sábado, 25 de novembro de 2023

25/11/2023 - 09h00min
Martha Medeiros

Mesmo em relações íntimas, nem tudo é da nossa conta

Os bons samaritanos condenam as ocultações, como se o ser humano não fosse complexo e carente.

É o teatro da humanidade. Diante da plateia, o nosso melhor. Na coxia, vida real.

Gilmar Fraga / Agencia RBS

Somos os bonzinhos universais. Não só porque não cometemos crimes, mas porque nos assemelhamos a santos: não mentimos, não omitimos, não reclamamos da família, não flertamos, não somos pais omissos, nem mães histéricas, não falamos mal dos amigos, não fazemos besteira nenhuma. Uma salva de palmas.

É o teatro da humanidade. Diante da plateia, o nosso melhor. Na coxia, vida real.

Reflexão despertada pelo filme Nada a Esconder, que não é novo, já teve algumas adaptações. Assisti à versão francesa, na Netflix. Três casais e um amigo avulso, durante um jantar, resolvem fazer um jogo aparentemente inofensivo: reunir seus celulares no centro da mesa e compartilhar todas as mensagens de WhatsApp, e-mails e telefonemas que entrarem durante a noite.

O que se comenta sobre uma amiga com outra amiga, no privado. A mensagem picante que um ex mandou. O convite que não foi estendido a um integrante da turma porque ele costuma dar vexame. Uma gravidez ainda sendo escondida. O gerente do banco que não larga do seu pé por causa de um rombo ainda não revelado à família. Um amante virtual. Tudo em cima da mesa, no viva-voz.

Os bons samaritanos condenam as ocultações, como se o ser humano não fosse complexo e carente, como se não existisse um perfil paralelo contrastando com o que se posta nas redes, como se não tivéssemos fraquezas e uma alma desordenada.

Frase atribuída a Cazuza: "Existe o certo, o errado e todo o resto". Impossível enquadrar o que lateja, o que arde, o que grita dentro de nós. Somos maduros e ao mesmo tempo infantis, por trás do nosso autocontrole há um desespero infernal. Abrir nossas válvulas de escape diante de um tribunal de impiedosos é uma violência, um desnudamento forçado. 

Semana passada escrevi que, sendo verdadeiros, jamais seremos desmascarados. E é verdade, bendita vida serena. Mas já estive do outro lado do balcão. Certa vez, não estava cumprindo mandamentos divinos e recebi uma mensagem anônima: "sorria, você estava sendo filmada". Não havia cometido crime algum, e ainda assim me senti agredida e enjaulada naquele lugar em que a inocência e a culpa se encontram.

Ninguém precisa saber tudo sobre o outro. Eu, ao menos, não exijo que as pessoas que amo me mostrem seu lado do avesso. Confio que estou informada o suficiente, e se não estiver, é do jogo. Todos nós podemos descobrir coisas desconfortáveis e ter nossa vida modificada, mas não acho gentil extrair a fórceps o que não é da nossa conta. É isso que não engolimos: mesmo em relações íntimas, nem tudo é da nossa conta.


25 DE NOVEMBRO DE 2023
LEANDRO KARNAL

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Faço aqui uma fantasia limitada. Imagino um jovem de 18 anos, de classe média ou média-alta. Para este exercício, terei de ignorar a maioria para baixo e a minoria para cima. Um jovem de 18, pais com algumas reservas, sem aviões particulares, é minha personagem necessária para o texto.

O que seria melhor dar a essa pessoa que chega à maioridade? Parece que um carro não é mais o tema dos sonhos, como já foi num dia. A geração nascida neste século tem menos ênfase em dirigir. Renovar o celular? Um computador? Possível, porém comum. Uma viagem? Eu não recomendaria imediatamente. Vou ousar: havendo condições, sugiro oferecer um terreno. Já me explico.

Um terreno é um valor muito variável. Vai de alguns milhares a milhões de reais. Alguém da classe D não poderá oferecer. Alguém milionário nem pensará em algo tão classe média como um terreno trivial. Sempre falo que vinho é um bom presente para quem bebe, porque pode ser um gasto de R$ 50 ou dezenas de milhares, adaptáveis ao bolso de quem oferta. Um terreno parte de um valor um pouco maior, entretanto se adapta a orçamentos do grupo-alvo da minha crônica.

Uma área, aos 18 anos, oferece um chão concreto. Sendo um espaço real de solo, vazio de construções, eleva a imaginação. O lote implica um estudo mínimo. Deve ser guardado para revender, comportaria uma edificação, seria possível alugar para um outro fim? Como equilibrar as despesas que o terreno desperta com a chance de ganhos? A posse será acompanhada de uma enorme educação financeira. O fato concreto material do solo traz uma orientação nova para o possuidor. Provavelmente, ser proprietário mudará um pouco a posição política do jovem. O cartório de imóveis sempre é um lugar de reorientação no espectro partidário.

Se o filho decidir vender imediatamente o presente, indica-se uma atitude que deve ser trabalhada. Somos bons em apontar valores morais ao longo dos 18 primeiros anos dos rebentos, mas nem sempre tão eficazes sobre educação financeira.

Quando simbolizamos a pobreza absoluta, falamos que sicrano não tem "onde cair morto". Um terreno resolve o dilema. Mais do que representar um espaço de queda do corpo final, sinaliza uma vida ou uma perspectiva de futuro. Pode ser a ligação de que o rapaz ou a moça de 18 anos precisava para pensar em futuro. Como um gesto de maioridade, a dádiva indica negócio próprio ou até casamento. Sim, esperamos ainda que transcorram muitos anos antes da decisão de formar família, e o terreno traz o pensamento ao horizonte.

Em todo o vasto mundo do nosso planeta redondo, um pequeno pedaço de solo será dele ou dela. Isso pode ajudar até na consciência ecológica. "Tenho de cuidar da Terra, porque, neste instante, sou acionista minoritário do planeta", ele pensaria. Seria como um pequeno cotista de uma imensa empresa. "Nosso mundo" deixaria seu caráter abstrato e tornar-se-ia "minha parte do globo".

"Mas... Leandro! Esse seu texto está completamente capitalista." Pois é, mesmo assim, acredite. Arrolam-me como radical de esquerda. Se seu espectro político for outro e quiser transmitir suas ideias a seus filhos, o presente ideal será o texto O Que é a Propriedade, de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Em 1840, o pensador francês fez essa pergunta e deu uma resposta coerente com seu ideário anarquista: "O que é a propriedade? É um roubo!".

Inimigo do capitalismo da sua época, tornou-se desafeto de outros setores da esquerda, como marxistas. Curioso que, um pouco antes de definir a propriedade como um roubo, ele havia identificado a escravidão como um assassinato. Conforme ele diz, a ideia contra a escravidão não precisava de muitas análises. E quanto à propriedade, a crítica do anarquista parece incidir sobre aquela que gera rendimentos, a chamada fundiária (propriété foncière ou landed property), mas não sobre toda e qualquer propriedade privada.

O anarquismo é muito sedutor na juventude, quando poderes e rendas parecem estar inacessíveis ainda. Apesar disso, se seu desejo é formar um filho nos ideais da esquerda, o pequeno texto de Proudhon parece ser um passo inicial. O debate sobre os tipos de propriedade estimulam percepções muito densas sobre nossa sociedade. A única advertência um terreno é um convite a que ele saia de casa num dia e, como diria meu amigo Clóvis de Barros Filho, está na moda que as peras decidam apodrecer na pereira, sem cumprirem seu destino de rolar para longe ou produzirem sementes para novas árvores.

 Amadurecer ou até apodrecer na matriz arbórea é um desafio maior do que dar um terreno ou um livro anarquista. Até Proudhon saiu de Besançon, depois ajudar na taberna dos pais e qualificar-se em uma oficina tipográfica. Lendo um autor anarquista ou administrando um terreno, meu desejo é que seu filho ou sua filha de 18 anos se afaste um pouco da internet. Essa é uma esperança cada vez mais heroica.

LEANDRO KARNAL

25 DE NOVEMBRO DE 2023
ELIANE MARQUES

BATISMO DE SANGUE

Isabel - Eu não sei o que fazer da minha vida. Sou um fracasso total. Tudo o que fiz até agora não me valeu de nada, de nada valeu todo o tempo de estudos, de trabalhos e de sacrifícios, indo e vindo de empregos como babá, empregada doméstica, cozinheira, cuidadora de pessoas doentes, aguentando desaforos de brancos até passar nesse concurso para o Judiciário, de nada valeu. 

Tem um poeta que diz que tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Acho que minha alma é minúscula, do tamanho de um grão de arroz. Nunca quis ter filho, também nunca quis me casar; mas, ao mesmo tempo, não queria ficar velha e solteirona como minha tia Maria. Ela mesma dizia que uma mulher deve casar para cumprir sua função no mundo. Foi assim que conheci o Zacarias, no Judiciário, e resolvi casar.

Analista - Casar com quem?

Isabel - Casar com o Zacarias, ora. Ele queria ter filhos. E eu acabei tendo um filho. Um filho deficiente.

Analista - Isabel, Maria, Zacarias e Deficiente.

Isabel - Não, o nome do meu filho é João, como João Batista. Só não tive tempo de falar antes que tu me perguntasse.

Analista - Eu perguntei o quê?

Isabel - Não perguntaste se o nome do meu filho era Deficiente?

Analista - (...)

Isabel - Não importa. Ele me chama de burra o tempo todo, diz que eu não sei fazer nada, atira a comida do prato no chão quando não gosta, não me deixa sair nem para minhas caminhadas matinais. Ele tem 12 anos, mas às vezes parece que tem a idade do pai, sempre pedindo a minha cabeça numa bandeja de prata.

Analista - A idade de que pai?

Isabel - A idade do pai dele.

Analista - Achei que fosse a idade do teu pai.

Isabel - Tudo o que o pai diz para mim, ele também diz. Esses dias, o pai me chamou de vagabunda e, logo depois, o João também me chamou de vagabunda. Outro dia, uma amiga foi me visitar em casa. Quando o Zacarias chegou, estávamos tomando cachaça feita com uns frutinhos, algumas jabuticabas que trouxe da casa dos meus pais. O Zacarias começou a dizer para minha amiga que eu era viciada em álcool, que eu era alcoólatra. Quase morri de vergonha. Eu tentava explicar para minha amiga que eu não era alcoólatra, mas o João imitava o pai e não parava de repetir que eu era alcoólatra. Eu bebo de vez em quando, ao contrário do Zacarias, que bebe todos os dias. Nesse furdunço todo, o João começou a berrar sem trégua, eu fiquei com raiva do Zacarias, peguei a garrafa de álcool e quebrei na pia da cozinha. O João começou a juntar os cacos e se cortou os dedos. Parecia um batismo de sangue. Foi uma cena horrível. Eu me senti culpada.

Analista - Culpada de ter batizado teu filho com o nome que não era o dele?

Teresa - Não sei. Acho que eu não queria ter tido um filho e fui castigada por deus.

Analista - O teu marido Zacarias é um deus, então.

Isabel - (...) 

Analista - O teu filho João, um profeta representante de deus, então.

Isabel - Vai ver estou fazendo sacrifícios para os deuses errados.

Analista - Ficamos por aqui, hoje.

Isabel - Axé.

Analista - Até!

ELIANE MARQUES

25 DE NOVEMBRO DE 2023
ARTIGO

QUANDO UMA CRIANÇA BRINCA, A NATUREZA SORRI

TALVEZ PARA ALGUNS ADULTOS A BRINCADEIRA NÃO PRECISE SER LEVADA TÃO A SÉRIO, MAS DEVERIA SER, ESCREVE PEDAGOGO

Crianças precisam de adultos que possam oferecer: amor, atenção, cuidados essenciais e oportunidades de brincar. Sim, nossas crianças necessitam do brincar como atividade fundamental para se desenvolverem com êxito. Talvez para alguns adultos a brincadeira não precise ser levada tão a sério, mas deveria ser, afinal, estamos falando de infâncias, algo que deve estar sempre no campo de discussão para melhorias.

O brincar ainda é visto como algo sem importância. Você já escutou aquela frase, "fulano está de brincadeira"? Então, falar de brincar ainda soa como no sentido pejorativo da palavra para muitos adultos.

Nossas crianças precisam de mais oportunidades de contato com as brincadeiras ao ar livre, em parques, ruas e praias. Tenho encontrado um grande déficit de natureza na primeira infância, impactando principalmente no ser criança, pois quando a mesma não tem a oportunidade de acesso a diversos elementos naturais (brincar com galhos de árvores, barro, folhas e outros recursos que somente a natureza pode nos ofertar), acaba limitando o seu raciocínio lógico, em muitos casos agravando a sua ansiedade e tornando-se mais agitada.

Discursamos que cada vez menos as crianças estão brincando, mas o adulto oferece oportunidades para que isso possa acontecer? Estamos abertos para se sujar junto? Mostramos as possibilidades de brincadeiras ou estamos preocupados em passar mais tempo mexendo nos celulares?

Você já deparou com a cena de um adulto mexendo no celular enquanto a criança está falando com ele? Ou você já encontrou uma criança em frente ao celular em um parque?

São situações corriqueiras, que infelizmente já fazem parte da vivência. Enquanto estava em um ambiente, fiquei analisando a situação e refletindo sobre a necessidade de mais adultos que possam brincar. Ou podemos dizer que adultos também poder ser "brincantes", pois somos referências para as crianças.

Não podemos pedir uma postura e fazer o contrário daquilo que estamos pedindo para as crianças, o adulto precisa de paciência e precisa se conectar com a criança que ele foi um dia, para dar conta das brincadeiras que possam ser distribuídas.

O caminhar com uma criança permite encontros e encantamentos

Rudolf Steiner diz que a criança é a própria natureza, ou seja, ela precisa de vivências lá fora, além das paredes de concretos que acabam consumindo a liberdade de movimento. Sol ou chuva são oportunidades para que as crianças vivam o brincar sem limitações, pesquisem o que a natureza tem de mais belo e possam correr livremente.

A infância é um momento de inauguração, de encantamentos e de liberdade. Não podemos deixá-los alienados com o uso excessivo de eletrônicos, ou sem atividades que envolvam as interações e os movimentos. Caminhar com uma criança é a possibilidade de encontros, encantamentos, desafios, afinal, as crianças enxergam o mundo com olhos de turistas cada canto da nossa cidade.

Precisamos dar liberdade de movimento, acompanhar o trajeto. A família tem nas mãos grandes possibilidades de estar com as crianças brincando e se encantando, as rotinas não podem consumir esse tempo precioso, pois a infância é aqui e agora.

Quando uma criança brinca, a natureza sorri, pois está de braços abertos para se juntar nas mais lindas aventuras que meninos e meninos disponibilizam. O papel do adulto é fundamental, pois precisamos dedicar mais tempo para brincar juntos, o que torna atrativo o espaço e as explorações que vão surgindo, e nosso Estado é um dos mais lindos quando falamos sobre parques e áreas florestais, aflorando a exploração dos seus sentidos. Tenham a oportunidade de pedalar na orla do Guaíba, colham folhas no Parque Germânia e observem os cantos dos pássaros. Temos tanta beleza lá fora, mostrem a cada criança a importância de usufruir de uma infância natural, livre, mas com sentido.

Nossa sociedade clama por mais oportunidades de brincadeiras, mais tempo além do relógio que cronometra cada passo de nossas crianças. Tirem um tempo para apreciarem as nuvens com as crianças, fazer um bolo de barro e comida de folhas. Nossas infâncias são vivas e vividas quando cada criança pode brincar ao ar livre e se sujar. A brincadeira é oficio genuíno de nossas meninas e nossos meninos.

JOÃO LUIZ SILVA DA ROSA (*)

25 DE NOVEMBRO DE 2023
J.J. CAMARGO

O SER RANCOROSO

"Não odeie seus inimigos. O ódio atrapalha o raciocínio." (Michael Corleone, na trilogia O Poderoso Chefão)

Mesmo as pessoas mais pacíficas experimentaram em algum momento da vida um surto de raiva, que a maturidade nos ensina a controlar. Nada de errado que isso ocorra, desde que esse sentimento inferior não passe a fazer parte da rotina daquela criatura. Porque, quando isso acontece, todas as reações positivas ficam obscurecidas, tamanho o peso do ódio crônico incorporado ao cotidiano.

Uma passagem de olhos pela mídia assusta pela proliferação do perfil odioso, deixando a sensação de que o ódio tem melhor memória do que o amor. Difícil saber se esse modelo pitbull, que fez das redes sociais o seu habitat preferencial, já existia desde sempre ou se contando com essa imensa vitrine sentiu-se, como nunca, estimulado a dar o melhor de si rumo à iniquidade.

É compreensível que esta vítima, além de traços de caráter indispensáveis, tenha passado (ou atraído) vivências que atropelaram sua frágil autoestima. Com todas as circunstâncias puxando para baixo, construiu-se o protótipo definido como rançoso e deprimido, que, sem escolha, tornou-se um solitário mal-amado. Não conseguir manter um relacionamento afetivo, porque este convívio seria intolerável para o outro, só serve para torná-lo ainda mais raivoso.

Mas como em qualquer situação somos naturalmente impelidos a buscar companhia, este tipo rapidamente se liga a um partido ou facção que tenha como marca o ódio ao sucesso, profissional ou amoroso, de alguém. E mais insuportável ainda será se o pretensioso tiver os dois.

Vivendo atormentado pela pressão da amargura e do fracasso, ele é incapaz de admitir qualquer expressão de generosidade. Mas como nem o rancor resiste à ação corrosiva do tempo, ele se dedica, fervorosamente, a renovar o estoque odioso, para não ser confundido com esses frouxos que se deixam levar por sentimentos que, intimamente, não consegue entender como virtude.

Como o corpo não resiste fugir do que a mente determina, o protótipo rancoroso se exterioriza monotonamente em características físicas reconhecíveis à distância: o cenho constrito, a tendência à sudorese excessiva, uma acidez gástrica permanente e uma pressa que lhe acelera o passo mesmo quando não tem um destino determinado para alcançar. Não conseguindo suportar o peso do modelo que construiu, ele está sempre se deslocando com rapidez como se fosse possível deixar a si mesmo para trás. O desleixo físico é usado como um crachá para não ser confundido com esses pusilânimes que se preocupam com aparência quando o mundo todo está desmoronando.

E para manter-se odiosamente ativo, não dá tréguas ao seu propósito e está sempre buscando causas que se oponham ao senso comum numa tarefa antiquixotesca, em que tenta magoar gratuitamente a quem ousa aparentar qualquer indício de felicidade.

Alguns alvos são monotonamente escolhidos para que o ódio do mundo não arrefeça, e o modelo mais disponível tende a ser aquele arrogante e convencido, que se acha no direito de ter opinião. E se isso não bastasse, ainda contrária à sua.

J.J. CAMARGO

25 DE NOVEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Discriminação sofrida pelos namorados no luto

Namorados enlutados são excluídos, como se não fossem da família, como se fossem coadjuvantes de quem partiu. Morrem junto.

Não há um inventário, uma partilha, um documento para mostrarem sua importância, para provarem sua influência afetiva. Como não tiveram chance de casar, de dividir oficialmente os bens, permanecem nas fileiras de trás no adeus.

Foram interrompidos pelo acaso, foram suspensos pelo destino. A atualidade do vínculo não é lembrada. Mesmo se moravam com o falecido, ainda não contavam com o reconhecimento de uma união estável entre os mais próximos. A dor deles é silenciada, obscurecida. São dispensados sumariamente dos abraços de pêsames.

Os namorados sofrem o dobro quando perdem quem amam. Porque recai sobre eles o preconceito da invisibilidade. Eles deixam de existir com a morte do seu companheiro ou companheira, rebaixados a uma figura eventual, de um momento, de uma fase. O valor deles vinha exclusivamente de quem não se encontra mais ali para defendê-los.

Não são consultados para o velório e para o enterro, não são chamados para dar um depoimento, não são ouvidos a respeito dos sonhos e das últimas vontades, não são convocados a carregar uma das alças do caixão. Surgem nas exéquias na condição de penetras, tendo que guerrear por uma cadeira na reunião familiar, lutar por um canto na cabeceira do finado.

Desidratam-se de lágrimas, choram mais do que todos, e acabam escanteados pela distância do cartório, por não ter um sobrenome igual, sem poder proclamar laços de sangue, sem poder reivindicar uma ligação aprofundada. Representam viúvos do presente, viúvos ocasionais, viúvos circunstanciais. Sua viuvez não é levada a sério. Desempenham um papel desprovido de papel.

O entendimento social é de que, se eles fossem realmente relevantes, não estariam "apenas" namorando. Seriam mais do que isso, como se o namoro significasse quase nada no fim de uma vida, meros trocos de um legado.

É subtraído, de repente, o direito de chamar os sogros de sogros. A nomeação dependia do futuro, agora abolido.

Recebem uma atenção discreta e secundária, com a intimidade roubada pela morte súbita. O tratamento é uma injustiça, já que passavam o maior tempo com o morto. Talvez conheçam o morto mais do que um pai, ou uma mãe, ou um irmão.

Viam-no diariamente, mostravam-se inseparáveis e cúmplices, dividiam segredos e juras, novidades e medos. Não o largavam na convivência, com projetos e planos a serem cumpridos. Davam as mãos na claridade pública e os pés na noite da privacidade.

Se não apresentam antiguidade no lar do outro, têm imenso domínio do passado recente: são aqueles que melhor sabem o que o ausente pensava, sentia, queria antes da sua despedida, os únicos cofres que guardam intactas as esperanças do seu par.

Pena que os namorados levam os segredos consigo, jamais convidados a participar da convivência do luto.

CARPINEJAR

25 DE NOVEMBRO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

É DIFÍCIL APRENDER?

Existem advertências que devemos repetir sempre e sempre para que o mal não seja tido como normalidade ou algo a suportar. Tenho escrito aqui sobre a crise climática que, entre outras coisas, explica as últimas enchentes que o Estado suportou e que nos recordaram a cheia de 1941, que inundou boa parte da Capital.

Naquela época, a ciência ainda não tinha ido ao fundo do problema e desconhecia as mudanças climáticas e o que elas provocam. Hoje, porém, esquecemos até os números que nos alertam e advertem, como se fosse difícil aprender. O paradoxo é que nos portamos como pedra muda que não escuta, não percebe, não raciocina nem entende.

Sou apenas um jornalista preocupado com a crise climática e, assim, repito a visão do geólogo Rualdo Menegat, professor da UFRGS e respeitado mundialmente: "A chuva intensa foi a causa principal, mas há agravantes derivados da geomorfologia da bacia hidrográfica, além do mau uso do solo nas cabeceiras e ocupação das áreas ribeirinhas".

Vai adiante e explica que "os cursos d´água que afluem ao Lago Guaíba e parte final do Rio Jacuí (como Antas, Caí, Taquari, Sinos e Gravataí) nascem no Planalto e despencam até as zonas mais baixas em alta velocidade".

"Tudo se agrava" - continua o geólogo - "com o desmatamento junto a rios e arroios, ao qual se soma a destruição dos banhados das cabeceiras, aumentando o volume e a velocidade do escoamento".

Chegamos assim aos alagamentos do cais dos Navegantes na Capital (impedindo a exportação e importação de artigos ou produtos da vida diária) e à inundação quase total das ilhas do Guaíba e de cidades da área metropolitana.

A contínua urbanização de áreas rurais arrasa bosques que "são um dos principais reguladores dos ciclos da chuva", como observava nosso grande José Lutzenberger.

Indago: será difícil aprender com a realidade?

A eleição de Javier Milei na eleição presidencial da Argentina é preocupante por ele representar uma extrema direita enlouquecida que, sem alvo, atira para todos os lados.

Em um aspecto, sua vitória sobre o atual ministro da Economia (ao ser produto da hiperinflação) recorda o triunfo de Hitler na Alemanha em 1933. Na Argentina, a inflação chegou a quase 200%. Na Alemanha ia além disso, e se dizia que, para comprar um pão, levava-se o dinheiro num carrinho de mão?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

25 DE NOVEMBRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

DE VOLTA PARA CASA

Após o horror e a dor produzidos pelo ataque terrorista do Hamas a Israel, é preciso reconhecer que existe grande alívio com a confirmação de que inocentes mantidos como reféns estão voltando para os seus familiares. O cessar- fogo acordado entre Israel e a facção terrorista palestina, intermediado por Estados Unidos e Catar, permitiu a libertação na sexta-feira de 24 pessoas sequestradas no trágico 7 de outubro. Foram 13 israelenses, 10 tailandeses e um filipino libertados, na maioria mulheres e meninas. 

Como parte da negociação, que também prevê a paralisação temporária das hostilidades na Faixa de Gaza, Israel soltou 39 palestinos que estavam detidos no país desde antes do começo do conflito.

Aguarda-se que, nos outros três dias previstos de trégua, o maior número possível de capturados pelos extremistas do Hamas durante o ataque bárbaro contra o território israelense no mês passado possa retornar para casa. Acordos do gênero podem causar dúvidas e hesitação, por terem também como consequência a possibilidade de os terroristas, até então sob forte pressão da resposta militar, se reorganizarem para em seguida voltarem ao combate mais fortalecidos e com maior capacidade de resistência.

Negociar com terroristas, ainda mais após tamanha selvageria, é um exercício sempre envolto em dilemas acerca de princípios. Da mesma forma, é possível que parcela da ajuda humanitária que ingressou em Gaza para atender às primeiras necessidades de palestinos também inocentes acabe nas mãos dos radicais.

Mas não há dúvida de que, ao pesar prós e contras, é um imperativo moral buscar as formas admissíveis de libertar reféns. Além de executar o maior assassinato de judeus desde o Holocausto, o Hamas sequestrou cerca de 240 pessoas. Uma parte, possivelmente, perdeu a vida ao longo dos dias de conflito na Faixa de Gaza. Nem todos serão recebidos de volta em seus lares, portanto. 

Mas, se ainda restam sequestrados em cativeiro e a ofensiva militar não foi capaz de libertá-los, é responsabilidade do governo israelense tentar resgatá-los pela via da negociação. Não haveria como o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, apontado como um dos responsáveis pelas falhas de segurança que permitiram o morticínio perpetrado pelo Hamas, deixar de ser sensível aos protestos e apelos dos familiares por esforços do governo para libertar seus entes queridos.

Reina grande expectativa de que o cessar-fogo chegue aos resultados humanitários esperados. Potencialmente, pode atenuar as dificuldades dos civis que estão em Gaza e não integram o grupo terrorista. Mas trata-se de uma trégua temporária delicada, que pode ser suspensa diante da mínima atitude irresponsável ou de qualquer incidente inesperado.

Interlocutores internacionais ainda tentam ampliar o tempo do acordo, o que, se espera, poderia levar a mais libertações e a uma interrupção na escalada do número de mortes nos combates no enclave antes dominado pelo Hamas. O previsível, no entanto, é que nos próximos dias a guerra recomece, por enquanto sem qualquer prognóstico de encerramento e de um futuro acordo que leve à construção de uma convivência pacífica de Israel com um Estado palestino.



25 DE NOVEMBRO DE 2023
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA Feito no RS

A colunista de economia de ZH e GZH Marta Sfredo tem no seu dia a dia a missão de informar, analisar e opinar sobre assuntos voltados à macroeconomia e aos grandes negócios e investimentos. Além deste olhar abrangente, Marta também dedica uma atenção especial às empresas do Rio Grande do Sul.

Em 2019, ela foi autora de uma série de conteúdos em texto e vídeo que se chamava #comofazRS. Dentro da fábrica da General Motors, em Gravataí, mostrou como era feito o carro que na época era campeão de vendas no Brasil. Na vinícola Miolo, apresentou passo a passo a produção de vinho. Na Tramontina, como se montava uma panela.

Mas a curiosidade de Marta em exibir a produção gaúcha não parou por aí. Em maio deste ano, a colunista criou uma nova série, também em texto e vídeo, sobre atividades tradicionais ou surpreendentes que marcam a economia do Rio Grande do Sul.

O quadro Feito no RS estreou contando como nascem os doces da Docile, maior exportadora de candies do Brasil. Desde então, Marta já mostrou como funciona o Centro Tecnológico Randon (CTR), onde veículos são testados em condições extremas para avaliar resistência e estabilidade; os segredos do guaraná Fruki; a fabricação do gigantesco ar-condicionado instalado no Maracanã, produzido pela Midea-Carrier; e, dentro da Vulcabras, a confecção do tênis mais vendido do país, que passa por forno e geladeira antes de chegar às lojas.

- O Rio Grande do Sul tem uma produção importante, de produtos, serviços e ideias. Mostrar como são feitos é uma forma de expor a diversidade da economia gaúcha, que inclui desde segmentos que fazem parte da história do Estado, como o da vinícola, o do coureiro-calçadista e o do metalmecânico, até potências mais recentes, como as cervejarias e o crescente segmento de inovação. Sem contar que sacia a curiosidade de todos nós, inclusive a minha - diz Marta.

A cada conteúdo novo do Feito no RS, Marta publica em sua coluna em ZH. Toda a série, que inclui os vídeos, pode ser acessada pelo site e aplicativo de GZH por meio do link ao lado.

O próximo Feito no RS sairá em dezembro e, segundo a colunista, vai falar de uma empresa "gigante desconhecida".

DIONE KUHN

Novo momento de inovação

O Parque Científico e Tecnológico da Universidade de Passo Fundo (UPF Parque) comemora neste ano uma década de fundação. Ao longo dos anos, foram mais de 40 empresas instaladas no local, mais de 200 projetos institucionalizados de cooperação e quase R$ 30 milhões de projetos de inovação e de cooperação contratados. Para marcar o aniversário, a universidade lançou na tarde de terça-feira o Passo Fundo Valley, o distrito da inovação.

A reitora da UPF, Bernadete Dalmolin, destacou que a data é um marco dentro da instituição. Ela considera que a inovação começou a ser trabalhada dentro da universidade muito antes da criação do parque.

- Estamos completando 10 anos de uma trajetória de muita mentoria, pesquisa colaborativa e de muito trabalho com as empresas - disse.

O prefeito de Passo Fundo, Pedro Almeira (PSD), afirmou que trabalhar a inovação se tornou uma necessidade. - Com o Passo Fundo Valley, tenho certeza de que a gente abre uma nova oportunidade de novos negócios para o município - observou.

A diretora do UPF Parque, Teo Foresti, destacou que o momento é de reafirmar o protagonismo que o parque desenvolveu na região com o passar dos anos.

- É o momento de comemorarmos o protagonismo do parque e tudo o que ele trouxe de benefícios para a região em termos de desenvolvimento - disse Teo.

Espaço

Com uma área estimada de cerca de 10 hectares, o Passo Fundo Valley contemplará, além do UPF Parque, setores e serviços que permitirão o desenvolvimento de áreas de pesquisa e inovação. Para a reitora, será um novo momento da inovação dentro da instituição.

- Podemos esperar um espaço aberto, para inovação aberta, com muita troca, para que os atores possam convergir mais e mais e certamente desenvolverem novas pesquisas, soluções e novas rotas tecnológicas - acrescentou Bernadete.

Um dos objetivos do Valley é atrair para o município de Passo Fundo e região novas atividades de pesquisa, desenvolvimento e produção de bens e serviços inovadores. As empresas que tiverem interesse de ingressar no projeto precisarão participar de um edital. O primeiro processo será lançado em fevereiro de 2024.

MATEUS LEAL 


24 DE NOVEMBRO DE 2023
MARCELO RECH

O pêndulo

Duas eleições nesta semana, na Argentina e na Holanda, confirmam que o pêndulo político está mais ativo do que nunca. Por este fenômeno, vastas porções do eleitorado se aninham em candidaturas nos extremos, em silenciosa reação a exageros nas guerras culturais, a incúrias governamentais ou à volúpia com que alguns setores se adonam do aparato estatal.

Pela lógica, na Argentina, a fatia descontente com a inflação causada pela irresponsabilidade da esquerda e com os privilégios a castas do funcionalismo e a corporações tenderia a votar em Patrícia Bullrich, que apresentava planos sensatos de combate à inflação e ao crime. Na prática, os argentinos se mostram tão enfastiados com meias medidas e com mais do mesmo que resolveram simplesmente implodir tudo ao colocarem o primeiro anarcocapitalista da história na chefia de um governo.

Um movimento semelhante ocorreu na liberalíssima Holanda na quarta-feira, quando o eleitorado deu ao PVV, o partido da extrema direita de Geert Wilders, 37 assentos no parlamento, 12 a mais do que o segundo colocado, uma aliança de esquerdas. A vitória de Wilders é uma reação à inércia em se conter a imigração ilegal, que criou um enorme déficit habitacional e espalha por zonas urbanas populações estrangeiras que não se integram ao modo de vida holandês. Wilders baixou o tom ao deixar de pregar a proibição do Corão e o fechamento de mesquitas. Em contrapartida, aprofundou uma retórica que espezinha os bolsões muçulmanos: "Devolver a Holanda aos holandeses", o que inclui o absoluto respeito à igualdade de gêneros e a diferentes orientações sexuais.

O Brasil já viu esse filme também. Pelo movimento de pêndulo, milhões de eleitores que votaram na esquerdista Dilma ajudaram, anos depois, a eleger o direitista Bolsonaro. A dificuldade da esquerda em lidar com a criminalidade, as omissões no combate à corrupção e os excessos do politicamente correto acabaram por fermentar um ressentimento que eclodiu no extremo oposto nas urnas de 2018. Como Milei e Wilders, Bolsonaro conquistou seu espaço menos por sua biografia e mais por erros primários dos adversários e de instituições que não conseguem ver além de suas bolhas. A falta de limites e o corporativismo do STF, por exemplo, entregaram de bandeja incentivos ao ideário bolsonarista.

O pêndulo voltou a balançar em 2022 diante da verborragia desenfreada de Bolsonaro, do loteamento do governo entre teocratas e velhas raposas, além de insanidades, como sua batalha pessoal contra as vacinas. Tanto fez que o pêndulo nem parou no meio: foi direto desarquivar um lulismo que parecia esgotado pelo massacre da Lava-Jato. Agora é Lula que experimenta o fenômeno. Se não se livrar do esquerdismo infantil e irresponsável, um representante da direita estará com a mão na taça em 2026.

MARCELO RECH


24 DE NOVEMBRO DE 2023
DANIEL SCOLA

Aposta não é só diversão

Um dos maiores sites de apostas do Rio Grande do Sul promete, em seus slogans, diversão. Na verdade, isso é uma ilusão. No meu entendimento, uma aposta pode ter como resultado infelicidade ou diversão. Pior ainda: pode se tornar um vício. Afirmo isso com a tranquilidade e a tristeza de quem, como jornalista, fez muitas reportagens sobre jogo do bicho, jogo de cartas, bingos e máquinas caça-níqueis.

Testemunhei muita gente chorando de infelicidade porque vendia a casa, o carro ou qualquer bem material que pudesse ser convertido em dinheiro para apostar. Em alguns casos, o apostador acabava virando alvo de operação policial ou sendo flagrado em local irregular.

Entendo que o marketing das empresas precisa propagandear algo, mas não posso me calar diante de um vício que atingiu, inclusive, pessoas que conheço. É muito triste ver um viciado entre nós. A rede de apoio do viciado precisa conviver, aceitar e ajudar um doente que vende a casa ou limpa a conta bancária para apostar.

Os sites de apostas não são proibidos no Brasil, mas carecem de uma regulamentação federal. Essas casas geram bilhões de reais todos os anos e ninguém as controla. Também não creio que o poder estatal tenha que estar em tudo, mas permitir a prática desta atividade sem regulamentação é um equívoco.

Num passado recente, viciados viajavam para países vizinhos para poder fazer apostas. Hoje, quem quiser pode fazer de casa mesmo, sem a necessidade de viagem.

Antes tarde do que nunca: em julho deste ano, o governo federal editou medida provisória, e um projeto de lei deve ser aprovado no início do próximo ano pelo Congresso. Dar regras ao "mercado bet" é o mínimo que se pode fazer para começar a regulamentar uma área desgovernada. Taxar os sites de apostas é uma forma de gerar receita pública com a "diversão" que gera muito dinheiro. O projeto de regulamentação já foi aprovado na Câmara dos Deputados. Agora falta apenas a aprovação dos senadores. O desfecho depende do Senado e falta muito pouco.

DANIEL SCOLA

24 DE NOVEMBRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

CREDIBILIDADE É ESSENCIAL

O último relatório bimestral de receitas e despesas primárias de 2023, apresentado na quarta-feira pelos ministérios da Fazenda e do Planejamento, comprova que eram otimistas demais as previsões da equipe econômica em relação ao déficit de 2023. O governo chegou a trabalhar com a hipótese de um rombo equivalente a até 0,5% do PIB. O novo detalhamento, agora, estima que os gastos vão superar os ingressos de recursos em R$ 177,4 bilhões, o equivalente a 1,7% do PIB. Na apresentação anterior, em setembro, estimava-se déficit de R$ 141,4 bilhões (1,3%).

Resta claro que as projeções anteriores de despesas foram subestimadas e, de outro lado, os cenários que previam maior arrecadação estavam inflados. Deve-se registrar ainda que, de acordo com o Banco Central, que adota critérios um pouco diferentes, o buraco seria R$ 203,4 bilhões, ou 1,9% do PIB. Mesmo assim, por enquanto tudo indica que não haverá descumprimento das regras em vigor, uma vez que o déficit autorizado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é de 2%. Como alertavam grande parte do mercado e especialistas em finanças públicas, todas as hipóteses mais esperançosas teriam de dar certo para o governo conseguir alcançar o resultado prometido. Era um cenário pouco factível.

Como consequência, o governo anunciou na quarta-feira um bloqueio adicional de R$ 1,1 bilhão nas despesas do orçamento deste ano. O contingenciamento soma agora R$ 5 bilhões. Membros da equipe econômica ainda esperam melhorar o resultado em algo entre R$ 30 bilhões e R$ 35 bilhões, que seriam valores empoçados. Ou seja, verba com autorização de uso, mas que acaba não sendo utilizada por obstáculos burocráticos, por exemplo. Pode ajudar nas contas, mas não é a mais meritória das razões.

Apesar da frustração, o governo mantém a determinação de perseguir o déficit zero em 2024. Está correto em insistir na meta. Há pautas em tramitação no Congresso que podem elevar a arrecadação, como o projeto que altera a tributação de fundos offshore e exclusivos e o que taxa apostas esportivas online. Mas será outra vez arriscado contar com receitas que, por qualquer razão, podem não se confirmar. Se a intenção for de fato se esforçar para zerar o déficit, terá de existir maior empenho para conter despesas e para melhorar a qualidade do gasto. Isso terá de ser feito em um ano eleitoral, quando os impulsos gastadores de governo e Congresso estão mais aflorados, e contrariando os instintos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, resistente a cortar desembolsos.

Existe, por enquanto, certa condescendência com o governo. A economia, mesmo agora em desaceleração, vai crescer cerca de 3% em 2023, muito acima do projetado no início do ano. Está em curso um processo de desinflação, o Banco Central vê espaço para cortar o juro e o real se valoriza. De outro lado, o cenário externo, nas últimas semanas, também tem ajudado, com a expectativa de que o período de aperto monetário nos EUA esteja no fim.

Não há nenhuma segurança, no entanto, na manutenção de um horizonte benigno. Ganha importância, neste contexto, a credibilidade. Prometer e não entregar corrói a confiança, espécie de mão invisível que empurra ou segura a economia. Pior ainda é demonstrar leniência com o desequilíbrio das contas públicas ou recorrer a contabilidades alternativas. Esse é um caminho conhecido e leva ao desastre.


24 DE NOVEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Menina de nossos olhos

Gramado conta com 40 mil habitantes. Recebe cerca de 7,8 milhões de turistas ao ano. Em média, acolhe 648.063 turistas por mês, 16 vezes o seu número de moradores. A expectativa de visitantes no Natal Luz tem o teto de 2,5 milhões de pessoas. A taxa de ocupação hoteleira fica em surpreendentes 90%. Não existe rival, nada igual no Brasil.

Gramado é nossa joia, nosso tesouro, nosso município simétrico e perfeito. É limpo, organizado, bem sinalizado, com prédios centrais harmônicos, mantendo a ancestralidade germânica. Oferece chocolate, comida farta e um clima romântico. Tornou-se o destino preferido das luas de mel.

Mais da metade dos passageiros que desembarcam no Salgado Filho segue em sua direção. No topo da Serra, desponta como um paraíso quentinho no inverno, em que esperamos sempre a neve cobrir as araucárias e engordamos alguns quilos (perdoados pela felicidade).

Nem uma cidade cenográfica da Globo seria tão impactante. Nosso orçamento no turismo advém principalmente da competência de seus administradores. Diante da permanente e opulenta visitação, é natural a minha preocupação com as quatro rachaduras que eclodiram em diferentes pontos: no bairro Três Pinheiros, no loteamento Orlandi, no loteamento Alphaville e na divisa entre Linha Ávila e o bairro Piratini.

Ocasionadas pelo volume ostensivo das águas pluviais no semestre, são crateras lunares assustadoras, bifurcando repentinamente o asfalto ou os caminhos internos de uma praça. O chão se abre como num terremoto silencioso.

Há uma cisão, por exemplo, com 150 metros de extensão por um metro de profundidade, na Rua Ladeira das Azaleias, que desencadeou o desabamento do prédio nas imediações durante a madrugada de quinta-feira - por mérito da prefeitura, evitou-se uma tragédia com a bendita evacuação dos moradores cinco dias antes.

Diferentemente de uma enchente em regiões ribeirinhas, em que os estragos são visíveis, perdura em Gramado o mistério do deslizamento. Pela novidade histórica da situação, ninguém ainda é capaz de determinar a extensão dessa avalanche subterrânea.

O que se sabe é que a terra se movimenta por baixo do solo. Se ela caminha ou corre, se foi um evento isolado ou é um problema de conjuntura da superocupação, não dispomos de certezas.

Deve ser um assunto prioritário do governo, a ser investigado pelas autoridades municipais. Que seja realizado um mapeamento geológico imediato e minucioso, o qual forneça tranquilidade a passeios e segurança aos hóspedes e residentes.

Gramado é a menina de nossos olhos, a cidade mais fotografada, mais filmada, mais cobiçada do Sul do país. Acaba sendo, infelizmente, a mais propícia para fake news, gerando uma boataria apocalíptica pelos grupos do WhatsApp. O mínimo incidente assume proporções épicas e distorções monstruosas, como a do colapso de sua estrutura ou de seu gradual afundamento.

Não dá para fazer alarmismo. Tampouco dá para deixar de fazer prevenção, ainda mais com a previsão de chuvas prolongadas para os próximos dois meses.

CARPINEJAR

sábado, 18 de novembro de 2023

16/11/2023 - 19h47min
MARTHA MEDEIROS

Somos fundamentalmente importantes para oito ou 10 pessoas: é triunfo suficiente

Dá muito trabalho querer ser visto como alguém extraordinário. Para quê? Nem lembramos quem ganhou o Oscar ano passado

Gilmar Fraga / Agencia RBS

A felicidade é medíocre? Não é criativa, nem genial? Pode ser. Mas ela traz, como se sabe, um benefício que coloca a humanidade de joelhos: pessoas felizes não chateiam.

Para alguns, felicidade é a uma rápida trégua entre uma tempestade e outra. Não discordo totalmente, mas sou mais otimista: acredito que é possível sentir um bem-estar pleno e constante, desde que se entenda que medos, incertezas e dores são comuns até quando a gente está bem.

Vesti o colete que traz a frase: como posso ajudar? Lá vou eu.

Para início de conversa, aceite a própria insignificância, sem surtar. Dá muito trabalho querer ser visto como alguém extraordinário. Para quê? Nem lembramos quem ganhou o Oscar ano passado. Somos fundamentalmente importantes para oito ou 10 pessoas: é triunfo suficiente.

A história de cada um é sua própria obra de arte. Posses, amores e viagens a valorizam, mas ser gentil basta. As melhores coisas são de graça. Banho de sol, banho de mar, caminhar, dormir, conversar com os amigos, ouvir música, beijar, estar com os filhos. Você pode fazer tudo isso em Honolulu, mas já viu o preço das passagens?

Aliás: dinheiro traz felicidade, sim. Desde que seja dinheiro seu. Ganho com seu trabalho, com suas ideias. Parasitar é cômodo, mas esvazia o significado da existência. E, dependendo do método usado, pode render uma tornozeleira eletrônica.

Recuse confrontos. Se for ao estádio, torça aos berros pelo seu time, mas sem bater boca à toa. Semana que vem já tem outra rodada. Não busque a aprovação dos outros. Não bajule nem queira ser bajulado. É humilhante depender da aceitação de estranhos.

Entenda o mundo em que vive, não apenas o que acontece na sua bolha. Leia, pesquise, se interesse pelo que ainda não conhece. Termine o dia com uma informação nova, com uma visão que ainda não tinha: evoluir tem sido um prazer subvalorizado, mas o resultado nunca desaponta.

Não desmaie antes de tontear. Não sofra antes de doer. Não celebre antes de ganhar. Mantenha-se aqui, no fascinante agora. Gratifique-se com pequenas delicadezas. Ofereça-se para prestar um favor. Passe batom, mesmo que não vá sair. Faça seu mapa astral para 2024. Compre flores para a sala. Tome um suco de cajá ou uma taça de espumante. Leia um poema por dia. Seja verdadeiro e nunca será desmascarado. 

Cultue as soluções, não as dificuldades. Não lute contra sua energia vital, é um desgaste inútil. Consuma coisas boas em vez de porcarias (vale para shows, livros, postagens). Lembre-se: paz não significa ausência de conflito, e sim estar em meio ao conflito sem perder a calma. Adicione doçura ao organizar suas memórias. Tenha coragem – nunca vi um covarde satisfeito.

A felicidade é medíocre? Não é criativa, nem genial? Pode ser. Mas ela traz, como se sabe, um benefício que coloca a humanidade de joelhos: pessoas felizes não chateiam.

Homens têm mais desejo sexual do que as mulheres? Especialistas explicam

Entenda o que é mito e o que é verdade sobre essa questão

01/09/2021 - 14h15min

Nomad_Soul / stock.adobe.com

"Depende de cada indivíduo", diz ginecologista e sexóloga sobre desejo sexual

Nomad_Soul / stock.adobe.com

Você provavelmente já ouviu por aí que os homens gostam mais de sexo do que as mulheres. Talvez, inclusive, acredite nessa afirmação. Mas, afinal, eles sentem mesmo mais tesão? A urologista Karin Jaeger Anzolch afirma que, embora existam argumentos biológicos (e antropológicos, como veremos nesta reportagem) para esse mito ter sido criado, na realidade, a questão não encontra base científica sólida que os justifiquem.

Do ponto de vista biológico, desde o período pré-histórico era o homem que precisava  correr atrás de parceiras para manter relações e, assim, garantir a sobrevivência da espécie. Além disso, a testosterona, considerada o principal hormônio ligado ao desejo sexual em ambos os gêneros, é o mais característico hormônio masculino. Já pelo viés cultural, é sabido que o homem é mais cobrado do que a mulher para se mostrar sempre "pronto e apto" para o sexo. Por esses motivos, tanta gente acredita que é natural que eles sintam mais vontade de transar do que elas. Mas, como explicam as especialistas consultadas por Donna, não é bem assim que acontece. 

— Como urologista, e atendendo a ambos os sexos, com frequência esses temas vêm à tona, e percebemos que, na verdade, o desejo sexual varia muito de pessoa para pessoa — pontua a médica Karin Jaeger Anzolch. 

— Depende de cada indivíduo. Agora, é bem incomum que eles realmente tenham vontade todos os dias. Existe um mito em relação a isso. Eu brinco que, se perguntar, eles vão dizer que sim. Mas, se insistir, vão concordar: na verdade, já seria bom uma, duas ou três vezes na semana — argumenta.

Estímulo visual

Uma questão importante (e que a indústria pornográfica conhece há bastante tempo) é que grande parte dos homens encontra no estímulo visual o seu fator de excitação mais relevante - enquanto, para boa parte das mulheres, a inspiração costuma vir de outros sentidos e percepções menos explícitos. Para elas, por exemplo, experiências prévias e ligações afetivas com o(a) companheiro(a) atual ou com outros parceiros têm papel importante, lembra a urologista. 

Outro aspecto que precisa ser levado em consideração é que a representação do sexo é diferente para homens e mulheres. 

— A mulher tem uma estimulação muito mais a nível de pensamento, ela começa a pensar sobre sexo. Se o dia da mulher foi estressante, vai ser um processo um pouco mais longo para que ela esteja com o desejo mais aguçado e tenha vontade de transar — explica a psicóloga e terapeuta de casais Emmanuelle Camarotti. 

Por isso, pode ser que ela demore mais para entrar no clima - e aí pode precisar da ajuda do(a) parceiro(a), como em uma sessão de preliminares. A psicóloga ainda reforça que o homem pensa no sexo a partir de imagens, enquanto a mulher começa a ter desejo a partir de "sensações, cheiros e toques". Por ser um processo diferente, por vezes se banaliza ao afirmar que "o homem pensa mais em sexo do que a mulher". De certa forma, a afirmação é verdadeira, se considerarmos a sobrecarga mental da mulher em relação às tarefas domésticas, por exemplo. 

— O espaço para a mulher pensar no sexo, ter pensamento erótico, é muito pequeno, porque está concorrendo com a rotina. Não que para o homem não seja assim, mas a gente sabe que, na prática, a mulher acaba se ocupando muito mais do cuidado com a casa e com os filhos, por exemplo. Isso também faz com que ela se conecte pouco com o seu corpo, com o seu prazer e com a sua própria sexualidade — afirma a psicóloga.

Reprimidas

Culturalmente, apesar dos avanços, as mulheres ainda são mais reprimidas sexualmente, muitas vezes aprendendo desde cedo a ocultar e sublimar os seus desejos, deslocando-os para outros focos de atenção. A ginecologista e sexóloga ainda ressalta que algumas mulheres, por questões de gênero, falta de educação sexual ou repressão, não costumam priorizar o sexo em sua vida.

— Ou até podem falar que priorizam, mas não executam movimentos proativos nesse sentido — observa.  O que pode corroborar com este comportamento é o fato de que muitas mulheres não têm desejo espontâneo, explica Sandra. No caso da ala feminina, elas podem ficar mais excitadas na medida em que se engajam em uma cena sexual e são estimuladas pelo(a) parceiro(a).

 — Quando elas atingem um nível de excitação mediano, começam a ter desejo, relaxamento e excitação, tudo associado. É diferente do desejo espontâneo — esclarece. 

Do ponto de vista hormonal, os homens têm mais testosterona, então potencialmente têm um pouco mais de desejo espontâneo, além de serem mais estimulados do ponto de vista cultural, diz Sandra. 

— Parece que a configuração de ter que ter desejo espontâneo é a clássica. Então, às vezes, replicamos o modelo masculino na concepção do desejo — compara. 


18 DE NOVEMBRO DE 2023
LEANDRO KARNAL

O ditador Francisco Franco (1892-1975) tinha um homem que o influenciava e o orientava: José Millán-Astray y Terreros (1879-1954). Muito jovem, Millán-Astray foi combater os rebeldes filipinos que lutavam pela independência. Ao defender uma pequena localidade no arquipélago asiático, tornou-se um herói nacional. Recebeu promoções e condecorações, sempre se esforçando para limpar o nome do pai. José Millán-Astray y Pilar Terreros Segade administrava um presídio e criou o hábito ilegal de liberar, mediante dinheiro, presos. Num dia, um deles cometeu um assassinato, lançando lama no nome do diretor.

Enviado a estudar o modelo da Legião Estrangeira Francesa, trouxe ideias de como importar certos padrões de autoridade, disciplina e castigos ao lidar com os nativos do Norte da África. Perecer em combate era a maior honra, e um culto à morte penetrou no imaginário do agora coronel. Havia até influências da sua leitura do código do Bushido, regras para a vida dos guerreiros samurais japoneses. Deixou famoso o lema ¡Viva la muerte!. Ferido várias vezes na guerra brutal do Marrocos, orgulhava-se da ausência do braço esquerdo e de um olho. Seu comportamento histriônico misturava nacionalismo, ideias de hombridade e de catolicismo. Veio a ser um herói da direita espanhola e de Franco.

Há um episódio cercado de controvérsias da tumultuada carreira de Millán-Astray. O dia era 12 de outubro de 1936, celebração da viagem de Colombo. O local? A tradicional Universidade de Salamanca. O reitor? O intelectual Miguel de Unamuno. O ambiente era polarizado, devido ao começo da trágica Guerra Civil Espanhola (1936-1939). A data 12 de outubro recebia leituras políticas diversas na chamada Festa de La Raza. Unamuno tomou a palavra em meio aos discursos, para dizer que não apoiava o ódio O episódio tem versões variadas. Millán (ou um assessor) teria gritado "viva a morte!". 

Unamuno rebateu a ideia estranha, acusando de culto à necrofilia, invocando Cervantes e a alta cultura hispânica. Furioso, o militar gritou: "Morra a inteligência!" O reitor lembrou aos presentes que aquele era o templo do intelecto; os fascistas poderiam até vencer por terem força bruta de sobra, mas "vencer não era convencer". Parece que a esposa de Francisco Franco, presente ao evento, acalmou o militar e impediu que o debate exaltado virasse tiroteio. Os falangistas andavam com pequenas metralhadoras e já estavam sacando suas armas, quando decidiram retirar-se do ambiente.

O episódio é muito significativo, de um embate entre vários modelos de Espanha e de civilização que se estavam enfrentando. Miguel de Unamuno pensava na tradição cultural; Millán, na força para manter outro modelo. Os republicanos, contestadores de Franco e de Millán, também cometeriam inúmeros abusos e assassinatos. Nenhum dos dois lados da Guerra Civil era formado por anjos pacifistas, mas o lado de Millán tinha o estranho culto à morte e à violência, que consagraria também parte das forças fascistas da Itália e da Alemanha. Todas as exaltações da destruição se uniram no criminoso bombardeio a Guernica, ocorrido em abril de 1937. Picasso, incapaz de se comover com a violência stalinista, foi rápido em pintar a atrocidade franquista.

O culto à morte estava muito presente na extrema direita europeia. Foi analisado por psicanalistas. A caveira (em alemão, Totenkopf) estava em algumas unidades nazistas. Tal como a suástica, era um símbolo bem mais antigo. Traduzia desprezo diante da morte e marca de força. Aparece em tropas do mundo todo, inclusive nos uniformes do Bope, do Rio de Janeiro. Signo aberto: pode representar o caráter passageiro do corpo e aparecer em ambientes religiosos. Os ossos estão no uniforme das SS e próximos da figura de Francisco de Assis. A relativização da vida existe também nas democracias. A celebração da morte faz parte de uma exaltação muito associada à masculinidade. Ter medo parece diminuir a potência viril.

A base do enfrentamento em Salamanca era esta: Unamuno pensava no templo do conhecimento. Saber implica tempo, sedimentação, contradições variadas e debates. Conhecer é uma estrada infinita que nos excede. Tudo era excessivo para Millán-Astray. A mentalidade daquele militar era maniqueísta e polarizada. Não admitiria meio-tom. Acostumado a disparar contra filipinos e magrebinos, transferiu a lógica da violência colonial para a Espanha.

Construiu sua cruzada contra o inimigo interno. Seu túmulo em Almudena informa: "D. José Millan-Astray y Terreros, Cavaleiro Legionário. Por Deus e pela Pátria". Desapareceu esquecido até pelos franquistas. Enfim, a morte venceu. Na bateia do tempo, separam-se pedregulhos e pepitas reluzentes. Unamuno é lido até hoje, o que alimenta a minha esperança. Viva a vida!

LEANDRO KARNAL


18 DE NOVEMBRO DE 2023
FRANCISCO MARSHALL

ANTISSEMITISMO?

O antissemitismo é um ramo da síndrome de preconceitos mais ampla que cabe chamar de racismo. Trata-se de atitude nociva profundamente enraizada em tradições que vêm do mundo antigo e que se agravam no curso dos séculos. Por sua complexidade e por seu vigor histórico, esse cacoete não pode ser tratado com simplicidade ou desdém. Na crise atual, entre Israel e Palestina, há novo capítulo dessa trama, gerando situações muito difíceis para os povos afetados pelo conflito e para os que se atrevem a falar dele em público. Esse risco não pode nos impedir de examinar situação tão desafiadora. Comecemos com a questão ética essencial: você gostaria de ser agente ou vítima de racismo?

Os gregos se ufanavam de sua superioridade cultural, credencial usada para capturar e escravizar o povo da Trácia, que consideravam bárbaro. Em uma sociedade narcisista, violenta, escravocrata e imperialista, a visão preconceituosa transformou-se em princípio fundamental do racismo, tratando depreciativamente estrangeiros com base em estereótipos ditados por características de seu habitat, como se as tradições e as condições geográficas produzissem efeitos mentais e morais nas etnias, descartando-se suas virtudes e as individualidades e variações que há em qualquer povo. No cenário racista, ocorrem também comparações dos outros povos com animais, em sentido depreciativo; o outro é descrito como não humano, pressuposto que favorece conquista, escravização e até extermínio.

Esses preconceitos aplicam-se também a imigrantes, gerando em âmbito doméstico tensão de origem étnica e racista, com o temor de contágio por outros povos, e aparecem, como consequência, práticas de segregação dentro de cidades, nações e culturas. O estrangeiro pode ser associado a crises sanitárias e econômicas, crimes e outras moléstias, preconceito que atinge também a minorias não estrangeiras, mas com identidades e comportamentos divergentes, reféns de relações de poder malignas.

Todos esses preconceitos protorracistas e racistas desenvolveram-se entre gregos e romanos, como estuda Benjamin Isaac no livro A Invenção do Racismo na Antiguidade Clássica (2004). No caso romano, povos germânicos foram alvo frequente, como também muitos povos orientais, entre os quais os hebreus, com que Roma teve conflitos políticos e religiosos. Na aurora do cristianismo, os quatro evangelistas, João, Lucas, Marcos e Mateus, formularam, com oportunismo político, a lenda da culpa dos judeus na morte de Jesus Cristo. Dessa invenção proveio a acusação que atormentou judeus por muitos séculos: "Vocês mataram Jesus!", fonte de ataques covardes e perseguições hediondas que culminaram no Holocausto da Segunda Guerra Mundial.

Não convém se aviltar esta grave herança de racismos e sofrimentos para se hipotecar cego apoio ao governo de um país, Israel, menos ainda para promover quaisquer preconceitos, nem cabe confundir os erros daquele governo ou de qualquer liderança com o profundo respeito que merecem os que herdam as memórias e identidades semitas, e as celebram em suas vidas, querendo dizer shalom ou salaam a cada dia.

FRANCISCO MARSHALL