sábado, 25 de fevereiro de 2017



25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
LYA LUFT

Educação e utopia

Já escrevi, e repito, que sou de uma família de professores: meu pai, o pai dos filhos, agora um filho, eu mesma ex-professora de linguística, até descobrir que aquela não era minha vocação. Me dava alegria o contato com os alunos, me fazia sofrer toda sorte de regras, por mais justas que fossem. 

O tema educação me é muito próximo, muito querido, é mesmo fundamental, e começa com aquela educação em casa, onde as crianças aprendem limites e possibilidades, voos e raízes, compostura, gentileza, firmeza, discernimento – mesmo os menorzinhos. Aprendem por osmose (sem diálogos solenes) questões de respeito e afeto. Quando forem à escola, não serão os pequenos selvagens que os pais entregam para que os mestres os transformem em civilizados.

O professor deveria ser, na pirâmide geral, um dos funcionários mais bem pagos, porque dele dependem futuro, postura, preparo, eficiência e humanidade de jovens e crianças – e, não é metáfora, do país. O mestre deveria ter excelentes condições de trabalho, para continuar a se preparar, para acompanhar os alunos, dialogar, escutar, reconhecer como pessoas, não importa se têm quatro ou dezoito anos. (E para que nos intervalos professoras não tenham de vender docinhos ou lingerie às colegas, e os professores fora do horário na escola não tenham de fazer bicos a fim de dar de comer aos filhos.)

Acredito, de maneira quase feroz, na necessidade de despertar, não só entre os responsáveis mas no povo em geral, a noção clara de que na educação devemos buscar excelência, o que não tem a ver com elitismo – todos temos direito ao melhor, que não significa dinheiro. Que a escola possa dar o melhor ambiente (basta que seja decente, sem ser um palácio), com os melhores professores, para que os alunos possam também descobrir, e cultivar, o melhor de si. 

Não é justo achar genial que se deve aprender brincando – não falo em criancinhas de maternal –, reproduzindo o hábito de muitas famílias em que não se pode dizer não ou dar um leve castigo (uma hora sem tablet já assusta) porque a criança, o adolescente, ficaria traumatizado. E assim os tratamos como pequenos ou grandes imbecis. Fazemos muita cerimônia com esse assunto: numa palestra, um professor me perguntou que motivo dar aos alunos para que estudassem. Minha resposta foi totalmente espontânea: “Para que não fiquem burros”. Risada geral, aplausos, e até eu fiquei refletindo nisso: deixar de ser ignorante é, mais do que um dever, um direito de todos.

E não me digam que os governos estão falidos. Talvez estejam falidos o ânimo e a vontade geral, começando pelas autoridades, contagiando famílias, os próprios jovens e – por que não? – as crianças. 

Nada justifica que, mesmo empobrecidos e assustados, iludidos por cada vez mais novos projetos e comissões palavrosos e ineficazes, não se coloque a educação em primeiro lugar em qualquer orçamento. Gente preparada vai colaborar nas condições de vida, saúde, economia, na melhoria da existência de indivíduos, no progresso geral, e na administração decente da tão maltratada coisa pública.

De modo que, se consertarmos um pouco que seja nossas nada brilhantes cabeças, talvez a educação deixe de ser uma utopia.


25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
MARTHA MEDEIROS

A colunista está em férias. Este texto foi publicado em 25 de abril de 2010

Terapia do joelhaço

Extra, extra. Esse troço que você tem aí dentro da cachola só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo. Sentado em sua poltrona de couro marrom, ele me ouviu com a mão apoiada no queixo por 10 minutos, talvez 12 minutos, até que me interrompeu e disse: Tu estás enlouquecendo.

Não é exatamente isso que se sonha ouvir de um psiquiatra. Se você vem de uma família conservadora que acredita que terapia é pra gente maluca, pode acabar levando o diagnóstico a sério. Mas eu não venho de uma família conservadora, ao menos não tanto.

Comecei a gargalhar e em segundos estava chorando. “Como assim, enlouquecendo??”

Ele riu. Deixou a cabeça pender para um lado e me deu o olhar mais afetuoso do mundo, antes de dizer: “Querida, só existem duas coisas no mundo: o que a gente quer e o que a gente não quer”. Quase levantei da minha poltrona de couro marrom (também tinha uma) para esbravejar:

“Então é simples desse jeito? O que a gente quer e o que a gente não quer? Olhe aqui, dr. Freud (um pseudônimo para preservar sua identidade), tem gente que faz análise durante 14 anos, às vezes mais ainda, 20 anos, e você me diz nos meus primeiros 15 minutos de consulta que a vida se resume ao nossos desejos e nada mais? Não vou lhe pagar um tostão!”

Ele jogou a cabeça pra trás e sorriu de um jeito ainda mais doce.

Eu joguei a cabeça pra frente, escondi os olhos com as mãos e chorei um pouquinho mais. Não é fácil ouvir uma verdade à queima-roupa.

“Tem gente que precisa de muitos anos para entender isso, minha cara.”

Suspirei e deduzi que era uma homenagem: ele me julgava capaz daquela verdade sem precisar frequentar seu consultório até ficar velhinha. Além disso, fiz as contas e percebi que ele estava me poupando de gastar uma grana preta. Tá, e agora, o que eu faço com essa batata quente nas mãos, com essa revelação perturbadora?

Passo adiante, ora. Extra, extra, só existe o seu desejo. É o desejo que manda. Esse troço que você tem aí dentro da cachola, essa massa cinzenta, parecendo um quebra-cabeças, ela só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo. O rei, o soberano, o infalível, é ele, o desejo. Você pode silenciá-lo à força, pode até matá-lo, caso não tenha forças para enfrentá-lo, mas vai sobrar o que de você? Vai restar sua carcaça, seu zumbi, seu avatar caminhando pelas ruas desertas de uma cidade qualquer. Você tem coragem de desprezar a essência do que faz você existir de fato?

É tão simples que nem seria preciso terapia. Ou nem seria preciso mais do que meia dúzia de consultas. Mas quem disse que, sendo complicados como somos, o simples nos contenta? Por essas e outras, estamos todos enlouquecendo.



25 de fevereiro de 2017 | N° 18778 
CARPINEJAR

Incompetência telefônica

Homem prefere telefonar aos amigos sozinho. Absolutamente solitário. Como se estivesse jogando videogame. Se a namorada ou a esposa estiver presente, a conversa não irá fluir.

Homem não consegue conversar ao telefone e atender qualquer pergunta de sua mulher ao mesmo tempo.Ele se perde inteiro, gagueja, tem brancos na memória. Se a mulher começa a fazer um gesto, ele salta o tom de voz, escorrega no silêncio, espaça a voz, sacrifica o raciocínio, esguicha vogais para todos os lados, como uma mangueira ligada e se contorcendo no chão. Esquece a sua mensagem, onde está, quem é.

É apenas ela coçar a cabeça que ele se precipita em supor incêndios, enchentes, calamidades pela casa. Homem sempre acha que está cometendo algo errado – é sua esposa fazer uma menção com as sobrancelhas ou parar em sua frente e ele cai em pânico. Vacila. Apaga. Não toca a ligação para frente.

Parece que foi desmascarado, que falou uma bobagem e ela ouviu. E agora terá que enfrentar uma discussão de relacionamento. Homem não consegue manter duas conversas ao mesmo tempo. É obrigado a desligar. É obrigado a saber primeiro o que ela deseja.

Ele fica encabulado com alguém mandando nele. O problema do homem não está em ser mandado, mas que os outros descubram que ele é mandado.

A mulher sim, a mulher pode ser interrompida enquanto conversa ao telefone e não terminará nem um pouco constrangida. Nasceu com o telefone na orelha. O telefone para a mulher é um ponto. O telefone para a mulher é um brinco. Não se sentirá ofendida. Pode responder comicamente à mímica do marido. Pode rir de sua presença incômoda. Ou colocar o fone para o lado e fulminar, grosseira e direta: “O que foi?”.

Já o homem se despede com a pressão e explica ao amigo que depois retorna.

Ao parar tudo e ver o que a sua mulher quer, descobrirá sempre que não é nenhuma urgência. Não foi uma correção de postura. Não foi um flagrante. Não foi uma censura. Nunca é nada. É algo bobo, corriqueiro, dispensável, tipo: “Lembre do óleo de girassol quando for ao mercado”.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017



21 de fevereiro de 2017 | N° 18774 
CARPINEJAR

Velozes e furiosas


Almocei com oito senhoras, tias e amigas da mãe de minha esposa, em Belo Horizonte (MG).

A anfitriã Zelinha preparou uma galinhada no pátio, com mesas de madeira à sombra de jabuticabeiras. A horta simbolizava o nosso ventilador de temperos. Vinha o cheiro de hortelã e de alecrim com a brisa, coisa gostosa. Puxava o ar com força como se estivesse no meio de um bosque.

Eu era o único homem naquele clube de mulheres mais velhas, na faixa dos 75 anos.

O que notei, a princípio, foi a raça superior feminina. A maioria, com duas exceções, experimentava a viuvez há um bom tempo. Os homens morrem mais cedo, apesar de fazerem muito menos dentro e fora de casa do que as mulheres. Pelo histórico das famílias, já imaginei a minha Beatriz depois de minha morte, velhinha, linda de preto, magra e elegante e não sentindo em nada a minha falta. Doeu, mas não há como conter a vida.

As viúvas não mencionavam os seus falecidos. Parecia que estavam mais felizes agora do que quando casadas. Isso doeu também, porém logo entendi que não se pode ficar preso à memória.

Fui descontar os meus medos do futuro tentando puxar conversa. Afinal, precisava me sobressair naquele grupo, mostrar minha trajetória gloriosa e excitante.

Desfrutava da vantagem de uma carreira no auge. Quebrei as pernas e os braços lentamente. Não conseguia me encaixar em nenhum tema, elas falavam rápido demais. Trocavam de assunto com altivez, e não permitiam repescagem. Quando raciocinava algo inteligente, o papo já havia migrado para uma nova reflexão e perdia a deixa. Política, economia, roupas, dietas, eu sempre sobrava. E elas não apresentavam nenhuma compaixão comigo. Iam passando de mão em mão as panelas e as palavras.

Daí decidi me vingar e trazer à tona as minhas recentes leituras e os filmes vistos no cinema. Sou um cinéfilo e um rato de sebo. Para ver, por exemplo, faltavam apenas uns três títulos dos concorrentes das principais categorias do Oscar. Tampouco obtive silêncio e empatia. Elas tinham assistido a mais filmes do que eu e lido mais no último mês. As velhinhas foram se transformando em comentaristas e resenhistas velozes e furiosas. Calei a boca e entrei em depressão durante o restante das horas.

É impossível concorrer com a programação cultural das aposentadas. Aprenda isso!

Aprendi da mais constrangedora forma. Elas ainda me jogaram na cara visitas a exposições, vernissages, peças de teatro e concertos da Filarmônica. Quando comentaram as encenações no Royal Opera House em Londres e os musicais da Broadway em Nova York, o terror exagerou e passou do ponto. Arcava com a maior humilhação intelectual da minha bagagem. Suei frio e me escondi debaixo das jabuticabeiras. Por pouco, Beatriz não ficou viúva ali mesmo.

sábado, 18 de fevereiro de 2017



18 de fevereiro de 2017 | N° 18772 
LYA LUFT

ENTRE FLORES E ADUBO

Se a gente cultiva o bom, o belo, o amoroso – dentro do possível –, do resto, nestes dias, o país e o mundo se encarregam. Escrevi aqui, postei no Face, acredito nisso, e me esforço. Mas, vamos admitir, difícil não dar bola para o noticiário cada dia mais espantoso. Não que a mídia seja isso, como diria o Trump, ao contrário; percebo jornalistas quase engasgados ou suspirando ao dar uma lista de loucuras que nos ameaçam, talvez mais do que nós mesmos supomos.

Mas alienação demais me causaria culpa, este é um momento esquisito mesmo: calor sufocante, inesperadamente nuvens cor de chumbo fazendo carrancas no céu, trovoada, chuvarada, ventania e... dourado e azul de novo rindo de nós. Talvez a mãe natureza também esteja rangendo os dentes. Talvez isso venha ocorrendo a cada tantos milhares ou milhões de anos, pois sabemos que as eras glaciais e infernais se alternaram no planeta desde que planeta ele é. Não me crucifiquem os ambientalistas: sim, eu acredito que nós, predadores e alienados, atualmente estejamos influindo nisso.

Seja como for, não quero desfiar a ladainha de horrores políticos que nos afrontam, já fiz isso no Paisagem Brasileira, há pouco tempo, e, por mais que me peçam alguns amigos e leitores, não vou retomar amplamente o tema, porque aqui me propus, aliviada, tratar de coisas humanas. O problema é que crise, empobrecimento, insegurança, cabeças decapitadas, conhecidos assaltados ou mortos logo ali, por exemplo, são coisas muito, muito humanas. 

Desemprego? Humano demais. Pior é que a tudo isso se acrescenta uma paulatina, cada vez mais evidente, apatia. Eu preparava este artigo sobre apatia, e minha querida colega Rosane nos brinda com várias linhas a respeito, na sua coluna que leio antes de tudo aqui na nossa ZH. Onde a indignação? Onde os panelaços? Onde ruas cheias de manifestantes? Onde o entusiasmo na esperança de conseguirmos mudar alguma coisa?

E isso, gente, é o mais triste: a sensação de que não adianta. Porque perdeu-se aqui no Brasil o mais precioso bem, talvez, da espécie humana, por mais louca que ela ande: o pudor. A vergonha. Políticos ou outras autoridades que cometessem alguma gafe séria, ou apresentassem propostas escandalosas, quase criminosas, costumavam sumir por algum tempo, até que, já que temos curta memória, voltavam ao cenário lampeiros e faceiros. Agora, ninguém parece se constranger nem das coisas mais loucas. 

Acusados, investigados, delatados, denunciados, presos, ou que deviam estar presos, se apresentam, esbravejam, repetem incansavelmente que não sabem de nada, são inocentes, é tudo maldade alheia (ainda não acusam a mídia como o Trump, mas nunca se sabe quando vão começar). E assim, teimando em curtir e cultivar o belo, o bom, o amoroso que existem na natureza, na arte e nas pessoas (não todas, claro), ainda resisto à descrença total que ronda meus calcanhares, bafeja irônica e sarcástica, rosnando que eu deixe de ser boba, deixe de postar flores e borboletas e de escrever frases clara ou vagamente otimistas.

Resisto mais ou menos, entre ânimo e desolação, porque num canteiro prefiro as flores ao adubo... Mas que está tudo muito esquisito, ah, isso está.


18 de fevereiro de 2017 | N° 18772 
PIANGERS

Em que escola ponho meu filho?

Pais sempre fazem essa pergunta, com olhos de desespero, como andarilhos em um deserto cheio de oásis, mas nenhum parece ser ideal. Querem o oásis perfeito, se não for a melhor agua desse deserto estarão falhando como pais. Eu sei em qual escola você deve colocar seu filho. Mas só falo no final do texto, porque não sou bobo nem nada e, se eu dissesse agora, você pararia de ler.

Existem duas escolas em que eu não colocaria de jeito nenhum: a escola mais longe da sua casa e a escola mais cara. A primeira vai fazer você pegar trânsito, e trânsito acaba com a sua qualidade de vida. Ou a criança vai de van, uma hora pra ir, outra hora pra voltar, e eu já estive em uma van escolar e sei que aquilo é barulho e grito e choro. A escola mais cara, apesar de tentadora, tem dois problemas: falta de convívio com pessoas diferentes e a necessidade de você trabalhar como um maluco pra conseguir pagar. Quanto mais você trabalha menos tempo tem com o filho, e aí já viu, o mundo está cheio de gente rica e infeliz.

O segredo é entender que a escola não é uma forma de terceirizar a educação do seu filho. Se você não tem tempo ou saco pra educar um filho, não vai ser uma professora que vai educar 30 crianças. Além disso, a escola padronizadora está cada vez mais obsoleta: o mercado de trabalho não absorve mais a mão de obra mediana, pensada desde a revolução industrial, mas indivíduos com características especiais. 

A melhor escola explora as potencialidades individuais do seu filho, o melhor método é personalizado. Nesse sentido, escolas que misturam matérias e alunos de diferentes idades são interessantíssimas. Existem iniciativas no Brasil inspiradas na Escola da Ponte, de Portugal, e no método finlandês, em que o aluno escolhe o que vai fazer. As escolas construtivistas e antroposóficas também incentivam crianças criativas, algo que vai ser importantíssimo para as profissões no futuro.

Por fim, pra você que pulou direto do primeiro parágrafo pra cá e depois reclama que seu filho não tem saco pra ler um livro, a melhor escola é aquela na qual o seu filho é feliz. Crianças são seres cheios de energia e ânimo e é uma pena que muitas vezes tenham que ir obrigadas para a aula. Do nosso tempo de escola, nos lembramos pouco das matérias: o que sobra são nossos amigos, nossos bons professores, nossas brincadeiras favoritas. O verdadeiro professor é a sua presença, o seu exemplo e o seu amor. O resto é miragem, nesse deserto que criamos pra nós mesmos.


18 de fevereiro de 2017 | N° 18772 
MARTHA MEDEIROS

A nova minoria

O sensato está longe de ser um certinho. Se as coisas funcionam pra ele, é porque tem foco e não se desperdiça, utiliza seu potencial em busca de eficácia, em vez de gastar sua energia com teatralizações que dão em nada

É um grupo formado por poucos integrantes. Acredito que hoje estejam até em menor número do que a comunidade indígena, que se tornou minoria por força da dizimação de suas tribos. A minoria a que me refiro também está sendo exterminada do planeta, e pouca gente tem se dado conta. Me refiro aos sensatos.

A comunidade dos sensatos nunca se organizou formalmente.

Seus antepassados acasalaram-se com insensatos, e geraram filhos e netos e bisnetos mistos, o que poderia ser considerada uma bem-vinda diversidade cultural, mas não resultou em grande coisa. Os seres mistos seguiram procriando com outros insensatos, até que a insensatez passou a ser o gene dominante da raça. Restaram poucos sensatos puros.

Reconhecê-los não é difícil. Eles costumam ser objetivos em suas conversas, dizendo claramente o que pensam e baseando seus argumentos no raro e desprestigiado bom senso. Analisam as situações por mais de um ângulo antes de se posicionarem.

Tomam decisões justas, mesmo que para isso tenham que ferir suscetibilidades. Não se comovem com os exageros e delírios de seus pares, preferindo manter-se do lado da razão. Serão pessoas frias? É o que dizem deles, mas ninguém imagina como sofrem intimamente por não serem compreendidos.

O sensato age de forma óbvia. Ele conhece o caminho mais curto para fazer as coisas acontecerem, mas as coisas só acontecem quando há um empenho conjunto. Sozinho ele não pode fazer nada contra a avassaladora reação dos que, diferentemente dele, dedicam suas vidas a complicar tudo. Para a maioria, a simplicidade é sempre suspeita, vá entender.

O sensato obedece a regras ancestrais, como, por exemplo, dar valor ao que é emocional e desprezar o que é mesquinho. Ele não ocupa o tempo dos outros com fofocas maldosas e de origem incerta. Ele não concorda com muita coisa que lê e ouve por aí, mas nem por isso exercita o espírito de porco agredindo pessoas que não conhece. Se é impelido a se manifestar, defende sua posição com ideias, sem precisar usar o recurso da violência.

O sensato não considera careta cumprir as leis, é a parte facilitadora do cotidiano. A loucura dele é mais sofisticada, envolve rompimento com algumas convenções, sim, mas convenções particulares, que não afetam a vida pública. O sensato está longe de ser um certinho. Ele tem personalidade, e se as coisas funcionam pra ele, é porque ele tem foco e não se desperdiça, utiliza seu potencial em busca de eficácia, em vez de gastar sua energia com teatralizações que dão em nada.

O sensato privilegia tudo o que possui conteúdo, pois está de acordo com a máxima que diz que mais grave do que ter uma vida curta é ter uma vida pequena. Sendo assim, ele faz valer o seu tempo. Reconhece que o Big Brother é um passatempo curioso, por exemplo, mas não tem estômago para aquela sequência de conversas inaproveitáveis. É o vazio da banalidade passando de geração para geração.

Ouvi de um sensato, dia desses: “Perdi minha turma. Eu convivia com pessoas criativas, que falavam a minha língua, que prezavam a liberdade, pessoas antenadas que não perdiam tempo com mediocridades. A gente se dispersou”. Ele parecia um índio. 

Mesmo com poucas chances de sobrevivência, que se morra em combate. Sensatos, resistam. 

A colunista está em férias. Este texto foi publicado em 20 de janeiro de 2010



18 de fevereiro de 2017 | N° 18772 
CARPINEJAR

Nunca discutir?


Quando o casal me diz que nunca discute ou está mentindo ou um dos dois reclama e o outro é indiferente. A farsa é para selfie. Pois o sorriso de margarina derrete ao sol da verdade.

Não tem como acertar sempre de primeira. Nem os inspirados em rosas e gentilezas, nem os plantonistas dos versos de Pablo Neruda. A paz é feita de sucessivos acordos e tratados. Ninguém assina a concordância eternamente. Não há amor à primeira vista, isso é coisa da paixão. O amor é parcelado em cada reconciliação.

Há casais que brigam excessivamente, com temperamentos geniosos, e casais que brigam pouco, com uma maior maleabilidade de suas opiniões. Mas não discutir é censura. Nada mais triste do que a ditadura da felicidade. Compreensão difere assombrosamente da submissão.

Não é possível. Simplesmente não é possível não conversar a sério e de cara feia uma vez na vida. É questão de saúde mental expor o que incomoda e procurar consertar ao alterar o padrão de comportamento.

Nem a pessoa mais estável está imune ao erro. O ciúme vem de mansinho, o egoísmo corteja a partilha, a arrogância sussurra aos ouvidos refrãos de dominação. A falha é fatal inclusive para os bem-intencionados.

Trata-se de uma farsa o casal que defende que nunca discute. Ele deseja ser uma exceção num mundo turbulento e ansioso. É um capricho, não uma realidade. Talvez queira gerar inveja e provocar desconforto em romances normais mergulhados em desentendimentos fugazes. Vem forçando um casamento milagroso, para desestabilizar a ordem de pequenos e naturais estremecimentos humanos.

Só que não dá para acreditar. Pega mal repassar esta versão. Derruba a credibilidade das palavras, enferruja a aliança. Duvido alguém jamais perder a razão ao equilibrar a casa, a família, as finanças e as urgências do trabalho.

Os enamorados puros não escapam da regra. Terão um dia ruim, enfrentarão a birra, a frustração e o desespero mudo, como todos que se amam e equacionam as diferenças sem anular as identidades.

Par amoroso que alega que não discute jamais está apenas fingindo que é perfeito. Os vizinhos ou os filhos conhecem a verdade. E não dura muito tempo. Casal feliz é o que briga, mas faz as pazes antes mesmo de virar notícia para os amigos no dia seguinte.

sábado, 11 de fevereiro de 2017



11 de fevereiro de 2017 | N° 18766 
LYA LUFT

Meu novo guru (transitório)

Várias vezes decidi, anunciei, que por um tempinho ia parar de postar coisas negativas no meu Face, coisas como outra noite do meu quarto ouvir vários tiros logo ao lado, na frente do Iguatemi. Mas, além de profissão, tenho o vício de escrever, o que faço há tantas décadas e paga minhas contas, e acabo comentando. Mas hoje, no mesmo Face, encontrei uma figura que por três dias será meu guru: uma rã, ou sapinho, num bote de borracha, numa lagoa, atirado para trás, feliz da vida, e os dizeres: “Quero ser feito chuveiro velho: não ligo, e se ligo, não esquento”.

Compartilhei, repeti, afirmei e reafirmei: três dias postando só florzinha, ou foto dos meus bugios do bosque, ou nuvens, ou nada. Às vezes, a alma está aquietada, mas o pensamento – floresta de tantos ventos – acaba se manifestando. Vou conseguir? Alcance a paz de espírito, sugere alguém, e tem razão. O que é paz de espírito? Uma amiga certa vez disse que não quer juventude de espírito, ia parecer “a alma fazendo trejeitos”. A paz talvez seja como uma preguiça da alma? Uma anestesia? Uma obtusidade, uma burrice? 

Possivelmente, um começo de sabedoria, ai de mim. Ela é essencial, sobretudo quando tantos anos de luta e labutas e surpresas já deviam ter amansado esses corcoveios de indignação, de incredulidade, de entusiasmo ou de adolescência mental. Tento meditação algumas vezes, mas me atrapalho. Alguém bondoso achava que esse meu estar sempre nas nuvens (“essa guria sempre nas nuvens”, dizia minha mãe, ou “no mundo da lua”) era um tipo de meditação “à la Lya”...

Nasci ansiosa, preocupada, e por algum buraco na alma, alguma falha na criação, algum choque de que não tenho memória, talvez eu me sinta desde sempre meio responsável pelo mundo, pelos outros, até pelos tiros ouvidos da minha cama outra noite. Minha terapeuta achava graça: “Mas que onipotência!”. 

Deve ser mesmo. Se eu não me comportar bem, o pai pode morrer, a mãe sumir, o raio cair, o marido fugir, o filho quebrar a perna, o tiro matar, sei lá. Não há limites para nossa ou minha infantilidade nesse assunto, que às vezes chateia a mim e aos outros, embora em geral fique mais lá no inconsciente, que, coitado, engole e tenta digerir a loucura toda.

Quando fico cansada de mim mesma, desse meu jeito, lembro de meu amado amigo e compadre Erico Verissimo, que mais de uma vez me disse: “No fim de tudo, resta o humor, que nos salva”. Acho que sim. Verdade que sobre muitas coisas não dá pra fazer humor, mas quem sabe ironia, que é um humor meio triste.

Neste fim de semana, talvez eu fique feito aquele meu sapinho sábio: não ligo nem a tevê, não vejo notícias (um dos meus vícios piores), não dou bola nem pro Trump, que está lá longe e que afinal me distrai muito (ou assusta?). Na nossa casinhola da Serra, vou só olhar o marido lendo e escrevendo, espiar as nuvens ou escutar a chuva – se ela vier. 

Porque, acreditem, nada me deixa mais aconchegada e feliz do que chuva, mesmo na Serra, mesmo na praia: sensação de abrigo, música de anjos, gotas batendo na janela, e escorrendo – não feito lágrimas, mas quem sabe um sorvete derretido, incolor e com gostinho de abacaxi (meu preferido).


11 de fevereiro de 2017 | N° 18766 
MARTHA MEDEIROS

Recompensa instantânea

As pessoas estão amando com a profundidade de um lava-pés. Esqueça mergulho. Ninguém está com tempo para ir tão fundo

Uma amiga me escreve chorando as pitangas: mais uma história de amor terminou para ela. Eu, que nem sabia que ela estava namorando, de repente descubro que no fim do ano ela conheceu um homem encantador, que ambos estavam no céu, mas ele puxou o freio de mão e sumiu. Diz ela que havia acreditado em cada eu te amo dele, que confiava quando ele dizia sou seu. Que tipo de cafajeste desfaz um romance sólido de uma hora para a outra?

Ela seguiu com o desabafo e eu só pensava num aspecto, aquele que dizia que haviam se conhecido no fim do ano. Se entendi bem, estamos falando de um mês de relação (ela me escreveu dia 22 de janeiro). Eu te amo. Sou seu. Entregues em 30 dias.

Houve um tempo em que as pessoas temiam se comprometer pela palavra. “Te amo” não era xaveco, e sim a declaração de um sentimento raro, que não se distribuía feito senha. Abria um portal. Era um presente ofertado a quem tivesse modificado nosso jeito de estar no mundo, o selo de qualidade de uma relação que não era como as outras. Não que houvesse garantia de amor eterno, óbvio que não, mas dizia-se essa frase para um homem ou uma mulher com quem desejávamos festejar junto um aniversário, ao menos.

Agora “te amo” virou xaveco, sim. Depois de meia-dúzia de WhatsApp: “Te amo”. Sem nem mesmo terem se visto antes.

Quem não gosta de ouvir? Amor é nosso sonho de consumo, é o maior afago que podem fazer ao nosso coração combalido por frustrações e abandonos, é a confirmação de que não suamos a camiseta à toa, alguém percebeu nosso esforço em ser desejável, caiu na nossa conversa, acreditou no nosso empenho em ser engraçadinho: merecemos essa gorjeta afetiva. “Te amo” está valendo uma moeda de 50 centavos.

Ainda assim, é de se lamentar a violência do tombo quando, com a mesma rapidez que o “te amo” foi dito, é retirado de cena e deslocado para outro objeto amoroso, como quem troca de mesa no bar para não ficar tão perto da cozinha. Aquele que se sentia especial descobre-se mais um. Tempos modernos: as pessoas estão amando com a profundidade de um lava-pés. Esqueça mergulho. Ninguém está com tempo para ir tão fundo.

Minha amiga erra ao sentir-se traída pelas palavras: mesmo nós, que fazemos declarações cautelosas, estamos sujeitos a entregar, um dia, nosso “te amo” para outro locatário – é do jogo. Não se pode cobrar pelo o que foi dito, muito menos hoje, nessa era megainstantânea. O Don Juan disse “sou seu” para não cansar minha amiga com explicações, pois fosse menos romântico e mais sincero, teria dito: “Sou seu aqui, em cima do seu corpo, neste momento exato de prazer e gozo, apaixonado por este instante, voraz pela mulher que tenho agora diante do meu rosto, sou seu, meu bem, até que levante e vá ao banheiro escovar os dentes”.

Melhor a síntese.


11 de fevereiro de 2017 | N° 18766 
CARPINEJAR

HEY!

Toca Amor de Chocolate e não simpatiza com aquele frigir de pernas, sinalizando até o momento um coração diabético.

Toca Lepo Lepo e não se mexe, sequer coça o nariz. Toca Beijinho no Ombro e não se levanta da cadeira. Toca Te Ensinei Certin e parece que não está ali.

Toca Gordinho Gostoso e a aglomeração segue longe e a algazarra estranha. Toca Metralhadora e não se motiva a sair do seu confortável lugar. Toca Aquele 1% e permanece 100% inerte.

Toca Deu Onda e seus olhos são um lago parado.

Nada desperta a sua alegria. Nenhum sucesso lhe inspira a desistir da pose de zumbi e as olheiras cansadas. Segura o copo de cerveja com a cara amarrada e uma indisposição intransigente. A sensação é que veio obrigado na festa, arrastado pela esposa. Conta apenas os minutos para ir embora, fazendo aquele tempo mínimo para entregar a prova do vestibular.

Mas é ouvir a primeira estrofe da canção mais famosa da dupla espanhola Los Del Río, “Dale a tu cuerpo alegria”, que o cidadão simplesmente enlouquece e corre para a pista, convoca todos ao redor e se põe em posição de sentido para coreografar. É uma transformação súbita e inesquecível, tal amigo solitário e de poucas palavras no expediente que se converte, de uma hora para outra, em drag queen majestoso e loquaz.

O sujeito abandona a imobilidade náufraga e a ilha deserta da mesa para se sobressair na metrópole do globo rodando e das luzes piscando. Não é possível compreender a rapidez da mutação. É como um milagre, é intervenção divina, é para crer na ressurreição da carne.

Estende os braços, acarinha os cotovelos ao redor do peito, joga as mãos na cintura, rebola e já se entrega, sem reservas e pudor, para transbordar de emoção. “Hey Macarena!” – a sua voz rege os demais bailarinos de ocasião. Esquece a mulher, os antecedentes criminais dos outros, os preconceitos, e mergulha num transe somente dele. Chega a liderar quem está ao lado, piscando sucessivamente, meneando o riso, demonstrando virtuosismo na sequência e se antecipando os movimentos futuros.

Quem conhece todos os passos de Macarena não prova que sabe dançar, somente prova que está velho.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017



09 de fevereiro de 2017 | N° 18764
HISTÓRIAS DE VERANEIO | NÍLSON SOUZA

O som do mar

Quando vejo motoristas e veranistas se queixando de engarrafamento na freeway, penso nas primeiras viagens que fiz a Tramandaí, na pré-história da minha infância, lá pelos anos 1950. Era raro encontrar outro carro na estrada, mas levávamos um dia inteiro para completar o percurso pela ERS-030, hoje Estrada Velha. Saíamos de Porto Alegre antes de o dia clarear e só chegávamos ao litoral no fim da tarde.

O veículo da excursão familiar era uma caminhoneta Ford-38, furgão que meu pai utilizava para distribuir leite a domicílio. Naqueles tempos pretéritos, o leite era engarrafado. Engradados de ferro ou latão, com 10 litros, eram retirados pelos distribuidores no antigo Deal (Departamento Estadual de Abastecimento de Leite) e entregues de casa em casa, de apartamento em apartamento. Eu mesmo, numa época em que o trabalho infantil era obrigação e honra no ambiente familiar, ajudei algumas vezes na atividade que nos sustentava.

Pois a velha Ford, impulsionada a manivela e com um radiador insaciavelmente sedento, arrastava-se a uns 40 quilômetros por hora pela esburacada faixa asfáltica. Era uma estrada precária, parte ainda de terra, e tão estreita que, em certos trechos, o carro tinha de parar no acostamento para outro passar. 

Curiosamente, havia controle de velocidade: ao longo do caminho, tinha-se de parar nos chamados “destacamentos”, guaritas localizadas em pontos de referência onde o policial rodoviário preenchia um papel com o horário da passagem, para ser entregue e conferido no posto seguinte. Chegar antes do previsto dava multa, pois significava, na era pré-radar, que o sujeito correra demais. Contam meus parentes mais antigos que, certa vez, um velhinho chegou esbaforido no posto de Santo Antônio, com sua fubica (automóvel velho) fervendo, e foi logo reclamando para o fiscal:

– Bota um horário maior. Quase não consegui chegar a tempo.

Acampávamos na beira da praia, nas proximidades do antiguíssimo Hotel Siri, e dormíamos no próprio carro, em beliches improvisados com tábuas, que às vezes desabavam no meio da noite. Uma de nossas diversões de meninos era recolher conchinhas na areia. Tinha bastante. A história de Tramandaí conta que o lugar já foi chamado de Paragem das Conchas. Foi de lá que trouxemos uma dessas maiores, que se cola ao ouvido para captar o som do mar.

A explicação científica é desprovida de graça. O que se ouve, na verdade, é o som ambiente que a concha capta e potencializa. Dá para fazer o mesmo com uma xícara vazia posicionada sobre a orelha.

Mas a concha – asseguro-lhes – tem a propriedade de emitir o ruí- do das ondas de um modo muito especial, acrescentando à sensação auditiva as mais doces recordações da infância, potencializadas pela magia do mar.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017



08 de fevereiro de 2017 | N° 18763 
MARTHA MEDEIROS

The Brothers

“O documentário faz a gente se reapaixonar pelos Beatles”, escutei alguém dizer, e eu que não estava pensando em assistir a Eight Days a Week por preguiça e presunção de que já sabia tudo, corri para o cinema e confirmo: sim, o documentário faz a gente se reapaixonar pelos Beatles sem remorso por estar chovendo no molhado.

Nada de fofocas, dramas, romances. O objetivo do filme é registrar as turnês da banda, desde os primeiros shows no Cavern Club, em Liverpool, até as apoteóticas apresentações nos maiores estádios do mundo, culminando com a última, em 1966, em San Francisco. Quatro meninos de 17 anos que começaram a tocar por diversão e que não pararam de se divertir nem mesmo quando se transformaram nos ícones absolutos da cultura pop. O segredo: convivência intensa, muita risada e o lema dos mosqueteiros: todos por um. 

A primeira providência de Brian Epstein, o classudo empresário da banda, foi mandar fazer ternos idênticos para John, Paul, George e Ringo, e dali por diante eles passaram a ser um só: “Um monstro de quatro cabeças”, como brincavam entre eles. Era um grude: dormiam sob o mesmo teto, faziam as refeições juntos e nada era decidido se os quatro não estivessem de acordo. Em meio a entrevistas, não perdiam a piada. O sucesso veio rápido e a gaiatice continuava. Era uma turma de colégio, uma gangue de rua: os The Beatles eram também The Brothers.

Até que o prazer deixou de ser essa coisa toda. Quando começaram a fazer shows colossais, não conseguiam mais escutar um ao outro no palco – cortesia do público gritante. Passaram a se sentir inseguros e cansados. Chegaram a fazer 90 cidades em 15 países numa única turnê. Sua juventude foi consumida pela beatlemania e um dia se viram adultos participando de um circo que não divertia mais: 

“Fecharam o boteco”, como diz um amigo, e voltaram para o estúdio, onde praticamente inventaram uma banda nova (ainda mais extraordinária) a partir do antológico álbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band. Só três anos depois do jejum de shows, é que voltaram a cantar em público, de surpresa, no terraço do prédio da Apple Records, em Londres, para alguns sortudos desavisados que estavam passando lá embaixo a caminho da padaria.

E foi seu réquiem: no mesmo ano, a banda se desfez.

Desfez em tese, porque é um fenômeno vitalício. Os Beatles não se pareciam com nada que havia surgido antes e jamais foram igualados depois, apesar das boas tentativas. A maior banda do planeta nunca teve mais do que dois roadies por show. Nada de telões. MTV. Redes sociais. Entraram para a História simplesmente pelo exagero de talento e carisma: sobrava para uma semana de oito dias. Faça de conta que não sabe nada disso e corra para o cinema para ter certeza outra vez.

sábado, 4 de fevereiro de 2017


04 de fevereiro de 2017 | N° 18760 
CARPINEJAR

O beijo na boca


Casais que não se beijam na boca estão se separando. Vão se tornando amigos, parentes, irmãos, até se esquecerem de caminhar de mãos dadas. Vão se apartando do cheiro da pele, do gosto do abraço, das provocações infantis de corredor, das pernas alisadas no fundo da coberta.

O beijo na boca é a autêntica aliança, o ouro que vinga, a certidão que não desbota.

Só que me refiro ao beijo mesmo, de girar o corpo, o pescoço, o rosto.

Selinho não conta, onde os lábios são uma carta para quem já está distante. Beijo seco também não vale, onde não há a ameaça de morder os lábios.

O beijo molhado é que une. Um beijo úmido por dia renova o amor.

O beijo de quem tem saudade dos tempos apaixonados, um beijo que ainda sopre de volta os elogios ditos um para o outro.

O beijo sussurrado, em que os sons tremem com as respirações próximas.

O beijo que não tenha a necessidade de ser pensado demais senão surge sem jeito, forçado, cinematográfico.

O beijo que seja um segredo a dois, que você extravie o horário e suspenda a noção do lugar.

O beijo que toque uma canção dentro, que desperte a vontade de dançar.

O beijo de língua não permite o vazio crescer, a lacuna, o lapso. Pois uma ausência dentro de casa ainda tem conserto, duas ausências não têm como recuperar – o par esqueceu o amor em algum lugar das lembranças e não correu para reaver.

O beijo de língua desfaz as formalidades, os medos e a educação que esfriam a relação.

Beijo de língua é beijo para combater o tédio, a mecânica repetida dos gestos.

Beijo de língua salva os desaforos, perdoa as críticas e as cobranças. É como uma janela batendo com a chegada da chuva, uma porta batendo com o vento. É um susto que põe o coração a bater de novo.

Nem o sexo resolve o que o beijo faz. A transa sem beijo é apenas desafogo, catarse, apego de bichos. O beijo com língua é o que nos singulariza entre os animais.

Casais felizes sempre se buscam pela boca. É uma receita simples de longevidade.

Sem o beijo, a pessoa tem a vontade de largar tudo e ficar sozinha. Com o beijo, ela não perde a vontade de largar tudo, mas com a diferença de querer levar junto aquele que ama.


04 de fevereiro de 2017 | N° 18760 
MARTHA MEDEIROS

Desculpe por chorar

Quando alguém chora à minha frente, pareço uma pateta, não sei se abraço, se finjo que não está acontecendo nada, se começo a chorar também. Quase sempre começo a chorar também

Era janeiro e fazia muito calor. O Instituto Ling recém havia sido inaugurado e eu estava excitada para conhecer um dos pontos culturais mais bacanas de Porto Alegre, então fui até lá para assistir a Ayres Potthoff (flauta), Daniel Wolff (violão) e Rodrigo Alquatti (cello) no show Beatles em Concerto, num fim de tarde sofisticado, divertido e musicalmente impecável. Tudo sob a chancela do Porto Verão Alegre, esse mesmo que segue firme e forte.

Pois bem. Durante o espetáculo, um dos integrantes pediu licença para abrir um parêntese naquela playlist de sucessos dos Fab Four. Ele queria tocar uma música que seu pai, recentemente falecido, havia composto. Diante do consentimento da plateia, pediu: “Vou tentar tocá-la até o fim, mas me perdoem caso eu me emocione”. E tocou belamente, com a emoção controlada, ainda que visível.

Na hora, pensei: por que raios a gente pede desculpas por se comover? Lembrei de algumas pessoas que já caíram em prantos na minha frente escondendo o rosto, envergonhadas, e as compreendo, pois também tenho vontade de sumir quando choro diante dos outros. Os psicanalistas, acostumados a debulhações diárias em seus consultórios, poderiam responder: quando elas acontecem, seus pacientes costumam se desculpar?

Ninguém tem culpa alguma de sofrer, ninguém tem culpa por se sentir frustrado, ninguém tem culpa por sentir saudade, ninguém tem culpa por não conseguir reagir a seco às suas desordens internas. Deveríamos, sim, é nos sentir orgulhosos por não frear nem disfarçar nossas emoções, por permitir que elas extravasem, autorizando os outros a testemunharem esse momento em que estamos tão desprendidos, sendo tão humanos.

Curiosamente, o contrário não envergonha. Mais do que nunca, as pessoas têm sido grosseiras, estúpidas, deselegantes no trato, e não lhes bate um pingo de remorso, nenhuma inibição. Pedir desculpas, nem pensar.

Então por que pedir perdão por algo tão bonito, que é estar emocionado?

Acho que a pessoa emocionada se desculpa por constranger os outros. Sabe que a plateia, seja ela formada por 100 pessoas ou por uma só, se sente fragilizada diante de uma pessoa comovida. Ao testemunharmos alguém em situação tão delicada, não sabemos como agir, o que dizer. Quando alguém chora à minha frente, pareço uma pateta, não sei se abraço, se finjo que não está acontecendo nada, se começo a chorar também. Quase sempre começo a chorar também.

É por isso que certas pessoas pedem desculpas pela própria comoção. Sabem que uma emoção exposta não deixa ninguém indiferente, obriga a uma reação, e eles não querem dar trabalho. Pois é, os sentimentais têm dessas nobrezas.



04 de fevereiro de 2017 | N° 18760 
LYA LUFT

O grande silêncio da morte

Há coisas que fazem emergir o pior de alguns seres humanos, aprendi cedo com meu pai. Separação, sucesso, doença, morte e inventário. Já observei em casos de separação pessoas que um dia se amaram, tiveram sonhos e filhos, construíram uma vida, portando-se uma em relação à outra com raiva, rancor e até ódio, usando os filhos para se vingar, acusando de ações absurdas, com uma mesquinhez inacreditável em tempos normais. 

Já vi pessoas ricas brigando num inventário por um móvel velho (não antigo, velho mesmo), ao qual nunca deram atenção antes, ou buscando lograr uns aos outros. Já vi amizades ou relações profissionais terminadas quando um dos membros tem um sucesso ou nova felicidade. A esta altura da vida, já vi muitas coisas belas ou horrendas ou medíocres. Enfim, dizem, é a vida. Será?

Quero deixar claro aqui que não tenho partido político, pois de momento nenhum me seduz. Observo, analiso, procuro o mais decente ou confiável.

Vamos ao assunto: não conheci Marisa Letícia pessoalmente. Mesmo se conhecesse, dificilmente este seria o momento de julgar. Me impressionam manifestações de ódio sobretudo em redes sociais.

Parece que foi uma mulher bastante comum, vários filhos, família. Casada com o Lula, foi bastante apagada em público. Ainda que fosse uma megera corrupta, quase me assustam os que dizem que nem deveria ter sido atendida, mas morrer logo “para que o Capeta a abraçasse na hora”. Ou os que incitam a matar Sergio Moro como vingança.

Acontece que uma pessoa morreu, uma mulher de mais de sessenta anos, com filhos e netos.

Não se deve canonizar cinicamente os mortos nem condenar quem já se foi. O que dentro de nós é tão violento? Os mortos se foram pela vereda de mistério e sombra que nos intriga e nos faz pensar – ou ao menos deveria. Por um instante quem sabe podemos suspender juízos e indignação, até a justa, calar as acusações e abrir o ouvido da nossa alma para o tremendo silêncio da morte, solene e soturno. 

Dá medo, por isso evitamos esse silêncio, não queremos nada com o assunto, ou, como dizia um querido amigo que já se foi, “enquanto eu só acompanhar o cortejo, tudo bem”. Quando se abre a ferida da perda, por vezes incurável, talvez deixando para sempre uma dolorosa cicatriz, temos o susto da própria fragilidade: e eu, quando?

Talvez por isso, sem saber, muitos reajam de maneira quase implacável, embora sejam boas pessoas. Deixem Marisa Letícia descansar em paz quando terminar seu périplo de morte nunca bem confirmada. Que Deus a tenha e aquiete nossas emoções menos generosas. Depois poderemos brandir de novo o nosso arsenal de julgamentos e condenações

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017


01 de fevereiro de 2017 | N° 18757
MARTHA MEDEIROS

·         Ô, magrão
“Se você quer conhecer uma pessoa, veja como ela se comporta numa mesa de jogo.” É o que diz a sabedoria popular, que também recomenda: “Se você quer conhecer uma pessoa, viaje com ela”. Ambos os testes funcionam. Ver uma pessoa apostando dinheiro ou lidando com imprevistos garante um raio X aproximado de seu caráter.


Eu já acho que, se você quer conhecer uma pessoa, precisa conviver com ela no mínimo uns 50 anos e ainda assim estará sujeito a surpresas, mas elegerei também um método de conhecimento imediato, aquele do tipo que faz você dizer para si mesmo: “Humm, já vi tudo”. Como não jogo pôquer e não viajo todo dia, minha fórmula prosaica de identificação de espécies raras é reparar como a pessoa trata os garçons.

Pense no seu círculo de amigos e parentes: certo que você já foi com todos eles a algum restaurante, a um bar, a uma festa. É só prestar atenção.

Quase todos serão gentis, agradáveis, educados, eu sei: você não anda com trogloditas. Mas sempre tem aquele que joga água fora da bacia.

É o homem (ou mulher) que fala com o garçom num tom mais alto do que o normal, como se o sujeito fosse surdo. Ou levanta a voz porque pensa que deve deixar claro quem é que manda ali. Sabe aquele timbre autoritário, de quem acha que está sendo atendido por alguém que não irá entender o que está sendo solicitado se não for imposto algum “respeito”? Sério, quando vejo alguém ser intimidador com um funcionário que está nos servindo, fico com vontade de abrir um buraco no chão e me enfiar nele. Vergonha alheia.

Menos maquiavélico, mas também sem noção, é aquele que trata todos os garçons como se fossem os brothers do futsal, sem esperar um sinal de que a gaiatice está autorizada. Quando o ambiente é descontraído, tudo bem uma camaradagem – “e aí, chefe, qual o prato do dia?” –, invertendo simpaticamente a hierarquia presumida, ou “aí, irmão, sai um chope?” – beleza. Porém, uma vez eu estava num restaurante bem elegante, do tipo em que os garçons são treinados pelo cerimonial do Palácio de Buckingham e ganham mais do que os clientes da casa. Meu acompanhante não se intimidou: “Ô, magrão, essa mesa aqui está liberada?”. Não tínhamos reserva, mas como era tarde da noite, havia uma possibilidade. “Sim, senhor.”

“Valeu, magrão, vai trazendo uma gelada enquanto eu olho aqui o cardápio.”

“O meu nome é Roberto, senhor.”... “Bonito nome, magrão.” Rapazes e moças, regrinha básica: nem arrogância, nem excesso de intimidade, e ao menos nos estabelecimentos gastronômicos reinará a paz no mundo, que já está ameaçada o suficiente.