sábado, 29 de setembro de 2018



29 DE SETEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Medos à beira do abismo

"De que a senhora tem medo?", foi a pergunta bastante original numa dessas entrevistas recentes.

Pensei e disse: morro de medo de muita coisa, mas acho que, com o tempo, passei a ser mais corajosa (e achei, eu mesma, graça do que dizia). Principalmente, medo de qualquer mal que possa acontecer a pessoas que eu amo. Acidente, assalto, doença. Sei o que é sentir-se impotente quando algo gravíssimo acontece com alguma delas. No fundo mais fundo da mente, vem a indagação insensata e tola, mas pungente: como não pude proteger meu filho adulto de uma morte súbita no mar que ele amava?

Disfarçamos nossos tantos medos. Fingimos ser superiores, batendo grandes papos sobre dinheiro, futebol, sacanagem, política, ninguém levando porrada - como diria Fernando, o Pessoa. Empregamos palavras grandiosas, até solenes, que usamos como tapa-olhos ou máscaras para que a verdade não nos cuspa na cara, e nos defendemos do rumor que nos ameaça botando fones de ouvido enquanto caminhamos na esteira, para ficarmos em forma.

Mas, individualmente, temos medo e solidão; como país, presenciamos escândalos nunca antes vistos. A violência é cotidiana, o narcotráfico nos ameaça, mais pessoas foram assassinadas por aqui do que nas guerras ao redor do mundo nos últimos anos. Andamos encolhidos dentro de casa. Estão cada vez mais altos os muros do medo e do silêncio.

A gente se lamenta, dá palpites e entrevistas, organiza seminários. Resultado? Parece que nenhum. Eleições estão próximas? Melhor não saber. Mas sou da tribo (não tão pequena) dos que não se conformam. Não acredito em revolução a não ser pessoal. Em algumas coisas, sou antipaticamente individualista. Quando reuniões, comissões, projetos e planos não resolvem - é o mais comum -, pode-se tentar o mais simples. Às vezes, ser simples é original: começar pela gente mesmo. Em casa. Com as drogas, por exemplo, por que não?

Cada vez que, seja por trágica dependência, seja por aquilo que minha velha mãe chamava "fazer-se de interessante", um de nós consome uma droga qualquer (mesmo o cigarrinho de maconha dividido com a turma), está botando no cano de uma arma a bala - perdida ou não - que vai matar uma criança, uma mãe de família, um trabalhador. Nosso filho, quem sabe.

Há quem me deteste por essas afirmações, dizendo que sou moralista, radical. Não sou. Apenas observo, acompanho, muito drama desnecessário, talvez evitável - mas a gente preferia ignorar o abismo. Há muitos anos, visitei várias vezes uma famosa clínica de reabilitação em São Paulo. Alguém muito querido de amigos meus estava lá internado, e voltava com frequência. O que vi, senti, me disseram e eu mesma presenciei nunca vai me deixar.

Num jantar, há muitos anos, um conhecido desabafou com grande culpa que costumava fazer-se de pai amigão fumando maconha com os filhos adolescentes, para estar mais próximo deles. Um dos meninos sofreu gravíssimos problemas de adicção pelo resto da vida, morreu de overdose e nem todo o amor dos pais, dos irmãos, ajudou em nada.

Sim, a vida pode ser muito cruel. Nas tragédias familiares, só há vítimas, embora alguns devam ser mais responsáveis do que outros. Não tem graça nenhuma brincar na beira do abismo.

LYA LUFT


29 DE SETEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

O arrependimento

Tive um pequeno apartamento que vendi mobiliado, mas me aconselharam a retirar ao menos o lustre, já que era uma peça que parecia rara. Então, lá fui eu retirar do teto um lustre enorme e empoeirado, e até hoje ele anda pra lá e pra cá no bagageiro do meu carro, pois não encontro tempo para ir a um antiquário. Cada vez que abro o porta-malas, onde costumo transportar as sacolas do supermercado, me deparo com o espaço ocupado pelo lustre e me pergunto: por que não o deixei para o novo morador? Ganância, senhores.

Essa é uma pequena história sobre arrependimento. Igual a essa tenho dezenas, todas tão desimportantes quanto. Convites que não deveria ter aceitado, desabafos que eu não precisava ter feito, e-mails escritos depois de três cálices de vinho, esse tipo de coisa, bobeiras contumazes que não estragam nossa vida, apenas fazem com que a gente se envergonhe por uns dias e acabe aprendendo mais sobre si mesmo. Os poucos remorsos sérios têm a ver com relações afetivas e familiares (a velha culpa: onde eu estava que não vi isso, não percebi aquilo?), mas, ainda, tudo dentro da cota permitida de vacilos.

Arrependimentos nos amadurecem e nos ajudam na correção de rota. Só se tornam um problema quando a rota terminou, quando falta apenas meia-dúzia de curvas para a estrada chegar ao fim.

Ninguém simpatiza com a velhice avançada e motivos não faltam: doenças, falta de memória, perda da autossuficiência e outros enguiços comuns a quem rodou bastante. Ainda assim, doloroso mesmo é chegar tão longe e descobrir que entre os arrependimentos há um, ou dois, ou vários que não foram desimportantes e, sim, cruciais.

Excetuando as pessoas que confiam na vida eterna, para todas as outras, que acreditam apenas na vida antes da morte, nada pode ser mais triste do que, no balanço final, descobrir que abriu mão de um amor por causa de conveniências, que não foi amigo dos filhos porque só pensava em si mesmo, que não realizou projetos pessoais por causa de preguiça, que nunca arriscou uma guinada por causa de medos que agora parecem sem sentido, que gastou seu tempo com gente idiota e hábitos herdados de uma sociedade fútil, que não se permitiu conviver com pessoas diferentes por preconceito. Esse é o arrependimento que não é uma bobeira contumaz, pois resulta numa secreta tragédia pessoal: o desperdício de uma vida que poderia ter sido mais bem preenchida, mais estimulante e com mais oportunidades de expansão.

Tem boa notícia no final do texto? Tem. É sobre aquela meia dúzia de curvas que restam. Pode parecer pouco, mas é o que se tem para hoje, e hoje é tudo o que importa.

Muito mais sobre este assunto na palestra "Carpe Diem", que o filósofo e um dos fundadores da The School of Life, Roman Krznaric, fará dia 15 de outubro, às 19h, no Centro Histórico Cultural da Santa Casa, em Porto Alegre. Informações pelo fone: (11) 2638-7130.

MARTHA MEDEIROS


29 DE SETEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Esquisitices têm limite

As manias afastam amores. Até porque o romance exige o mínimo de sociabilidade. O exagero da compulsão complica o jogo de sedução. Quando a mania é elevada ao extremo grau de irreverência e absurdo e parece que não vai para frente se não consumar tal capricho absolutamente incomum. Emperra mesmo, para de viver, acredita que o pior pode acontecer se abdicar do seu zelo.

Ao encarnar um serviço de vigilância sanitária em tempo integral, não tem como se relacionar com ninguém. O beijo pede o contato, o toque, a sujeira emocionante da vida. Ama-se passando a gripe.

Tudo bem se troca o copo do restaurante, se não encontra a superfície cem por cento limpa, mas levar copos de vidro para almoçar fora já extrapolou a cota. Tudo bem se não gosta de alguém lhe observando comer, mas jamais realizar uma refeição com a presença de pessoas desconhecidas torna o convívio impossível.

Tudo bem se realiza as necessidades em seu banheiro, mas contar com o luxo de não ter ninguém em casa é uma cautela excessiva. Tudo bem se lava as mãos com frequência, mas recorrer ao álcool a cada cumprimento lhe tornará misantropo.

Uma amiga sofreu um baque no início de um flerte. A princípio, o crush era normal. Conheceram-se num aplicativo. Trocaram longas conversas sem a ameaça de qualquer bolha de esquisitice. Quando saíram para o cinema, não houve nenhum problema. Para o jantar, tampouco teve algum hábito ameaçador. Ele fingiu bem.

A cena encrespou quando partiram para o motel. Ela estranhou que ele subiu ao quarto com uma mochila nas costas. Deduziu que ele trouxe uma muda de roupas e produtos de higiene para a manhã seguinte. Achou o gesto bonitinho, próprio de um filhinho de família. Relevou: ela tinha a sua bolsa, ele tinha a sua mochila.

Só que ele, assim que chegou perto do criado-mudo e colocou meia-luz na cabeceira, arrancou toda a roupa da cama, fez um bolinho com o pano e levou para longe.

Não significava um ataque selvagem e fúria de Don Juan, infelizmente. Daí, solenemente, tirou de sua mochila um jogo de lençóis e passou a arrumar e envelopar o cantinho com o olhar fixo de faxineiro.

Óbvio que ela cancelou o encontro. Não sem antes usar a loucura dele como álibi. - Você esqueceu os travesseiros. Vamos voltar outra hora com tudo completo. Ele nem estranhou o comentário. Pelo contrário, concordou com um sorriso.

Foram embora para nunca mais se verem.

CARPINEJAR


29 DE SETEMBRO DE 2018
PIANGERS

Se tivermos sorte



Existe um ditado irlandês: "É melhor ter sorte do que ser rico". Adoro esse ditado. Quero ter sorte. Uma vez um colega disse, desdenhando de um "boa sorte!", que sorte é para incompetentes. Que seja. Vou optar pela sorte. Agradeço todos os dias pelas coisas boas que me aconteceram, que não têm explicação científica alguma. Alguns chamam isso de Deus.

Me lembro até hoje do Caio, um garoto raquítico de pele muito branca de quem todos gostávamos porque tinha o videogame mais legal e sempre nos convidava para ir na casa dele. Ele ganhava um presente toda vez que tirava uma nota boa. Ele ganhava um presente realmente caro sempre que passava de ano. Eu tinha inveja do Caio. Toda vez que eu tirava nota boa minha mãe falava: "Não fez mais que a obrigação". Passava de ano e ouvia: "Não fez mais que a obrigação". Era o melhor da turma e "não fez mais que a obrigação".

Ouvi falar esses dias que o Caio destruiu seu carro novinho dirigindo bêbado. Fiquei chocado. Me fez pensar na influência negativa de pais que nunca dizem "não" pros filhos. Mas pensei também na influência de bons pais. Será que teremos sorte?

Pais atenciosos, esses que passam horas estudando com os filhos, pais que conversam, que dizem não, esses pais podem, por alguma razão inexplicável, ter filhos malsucedidos. Ter filhos que fazem coisas erradas. Imaginem que tristeza é, para um pai dedicado, não ver seu filho brilhar. Que mundo injusto é esse, em que nós, humanos, somos tão imprevisíveis.

Se nossos filhos serão brilhantes, não sabemos. Aproveitamos cada momento torcendo pra que sim. Se tivermos sorte. Se tivermos sorte, serão decentes, bem-sucedidos, ajudarão outras pessoas, mudarão o mundo. Se tivermos sorte. Serão bondosos, reconhecidos, sorridentes e educados. Se tivermos sorte. Terão valido a pena as noites em claro, as vezes em que não pensamos no trabalho, as tardes de estudos, a dedicação, as conversas, a abnegação. Teremos feito tudo isso, e talvez dê certo, talvez não.

Se der certo, seremos os pais mais felizes do mundo.

Não fizemos mais que a obrigação.

PIANGERS
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29 DE SETEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

COMO TRATAR ALGUÉM?

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Jovens, confiem no tio: existia um tópico em Português chamado pronomes de tratamento. Estudávamos toda a lista: Vossa Senhoria, Sua Excelência, Ilustríssimo, Vossa Magnificência, Reverendíssimo, suas respectivas formas abreviadas, usos corretos e, refinamento final, quando usar Sua Excelência e Vossa Excelência. O uso era maior do que hoje: quase toda carta chegava ao meu pai com Ilmo. Dr., e nós olhávamos a abreviatura com a tranquilidade de quem sabia o significado. Todos os mais velhos eram senhor e senhora. Meu pai usava o já arcaico senhorita seguido da expressão por obséquio. 

O mundo tinha matizes, vieses, vernizes e salamaleques. O tu e o você eram reservados para intimidades enormes e total isonomia: mesma idade, mesmo gênero, mesma renda. O uso do Seu era um pouco mais comum para pessoas que exerciam funções simples. Difícil saber se chamar o jardineiro de Seu era um gesto de respeito ou uma demarcação de espaço social. No Rio e no Nordeste, com muita frequência, sou chamado de Seu Leandro e acho simpático. Em São Paulo e Brasília, noto mais o doutor.

Gosto muito do título de professor. Sinto-me um professor, vivo a profissão, tenho orgulho dela. Quando alguém diz "mestre" como se fizesse alusão ao próprio Yoda de Guerra nas Estrelas, acho mais deslocado. Professor sempre me agrada. Meu pai, professor e advogado, sempre era doutor. Eu, professor com grau de doutoramento, quase sempre sou professor. Nunca tive anel de formatura, mas os advogados usavam rubi; os médicos, uma cintilante esmeralda. Nós, professores, teríamos direito a uma pedra negra, ônix, não sei se metáfora de algo.

Os títulos caíram de moda. Cintilam ainda em encraves como o ambiente clínico, o jurídico ou o diplomático. Lá, são obrigatórios e esperados. A gravata ou o estetoscópio demandam o tratamento. Nunca fiz muita questão de respeito demonstrado em pronomes, mas, confesso, a intimidade excessiva e sem base histórica de relação é mais incômoda do que ser chamado de professor-doutor.

Há uma paralaxe, um desvio, que preciso ressaltar. As pessoas são mais íntimas minhas do que eu delas. Algumas afirmam: "Durmo com você todas as noites" e, por mais que eu perscrute o rosto da interlocutora, nenhuma memória de infração do sexto mandamento vem à lembrança.

Quanto mais subimos o mapa do Brasil, mais temos uma sociabilidade que inclui o corpo e o toque. Chama-se pelo nome, toca-se muito, fala-se a uma distância de invasão da zona de conforto. A intimidade sem nenhum lastro prévio é algo inquietante para mim. Ouvi, há anos, uma anedota envolvendo Jânio Quadros, por certo apócrifa. 

Uma repórter faz uma questão chamando-o pelo nome de batismo e ele, empertigado, responde que "intimidade gera filhos e problemas" e que ele não desejaria nenhuma das duas coisas com a dita profissional. Em um país de corpos enlaçados, a figura mesoclítica de Jânio deveria causar espécie, mas, confesso, existe uma discreta fraternidade minha com o falecido presidente em torno da anedota. Quando lidamos com pessoas não conhecidas, o cordão sanitário é algo desejável.

O brasileiro é cordial, assevera mestre Buarque de Holanda. Ao encontrar alguém, abraçamos, retiramos pó do ombro, espanamos, mexemos nos botões e invadimos regiões do corpo alheio inadmissíveis para o padrão europeu. Chamamos quase todos pelo nome e já inventamos apelidos no primeiro contato.

Sou um homem de 55 anos que gosta de ser tratado de senhor por aqueles que eu não conheço e pelo título de professor em casos profissionais. Com os íntimos, gosto do nome. Nunca tive apelidos e o surgimento de Lê ou Lelê só me irrita. Acho "Seu" pouco e "Doutor" excessivo. Sei que quem me chama de "Mestre" ou "Seu" não está me atacando ou diminuindo, apenas usando algo do seu universo de sociabilidade.

Alguém poderia pensar que sou conservador e que, no mundo atual, qualquer formalidade pode ser dispensada. Na mesma esteira, mas em outra direção, poderiam dizer que apenas gosto de enaltecer diferenças e hierarquias entre pessoas que, Deus ou a República, tornam iguais a mim. Talvez essa crítica seja válida, mas, se eu tomar a mesma argumentação a meu favor, poderia dizer que justamente por desconhecer alguém, seus limites, gostos e idiossincrasias, além de saber que essa pessoa partilha o mesmo direito que eu tenho, aproximo-me com cautela e respeito. 

Meu receio de incomodar, cruzar fronteiras sem ser convidado, torna imperativa a regra de certas condutas de etiqueta pronominal e contenção das mãos, abraços e beijos. Formalidade nunca ofende. Forçar intimidade sempre o faz. Em suma, para responder à pergunta que está no título: trate a pessoa a sua frente como imagina que ela gostaria de ser tratada e não como você gostaria de ser tratado. Se não a conhece, use da formalidade sem perder o espírito republicano.

Como sempre, despeço-me com súplicas de que este texto os encontre bem, reforçando aos senhores, senhoras e senhoritas, caríssimos leitores e leitoras, meu mais inefável respeito. Deixo-lhes com votos de estima e consideração: é preciso ter esperança!

LEANDRO KARNAL

29 DE SETEMBRO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

O LIVRO NÃO ESCRITO 

Dois amigos no quarto de um hospital. Um deles está morrendo, e os dois sabem disso. Há uma urgência posta na conversa: o projeto de um livro que o homem que está morrendo gostaria de ter escrito (se a doença não tivesse colocado tudo em segundo plano) e que ele espera que o amigo possa ajudar a finalizar. Pesando no ar, os subentendidos da circunstância extrema. Sobre o que conversar quando tudo que um deles disser será, de alguma forma, definitivo? Planejam-se providências práticas ou ensaia-se uma despedida? Reflete-se sobre o passado ou dá-se orientações sobre o futuro? Cede-se à emoção ou tenta-se manter o equilíbrio de superfície para não aumentar ainda mais o embaraço do momento?

Naquele quarto anódino, sem dono ou personalidade própria, tudo é intenso e agudo. Todas as palavras, mesmo as mais banais, assumem um sentido mais profundo do que aquilo que está sendo dito. Um palpite pode se se tornar uma sentença, uma lembrança imprecisa, um fato. Dor e falta de ar ignoram o esforço dos dois amigos para lidar com os subentendidos da morte com a naturalidade disponível. Eles sabem que não terão tempo suficiente para transformar aquela conversa no livro que o amigo doente havia planejado, mas agem e falam como se tivessem. É impossível prever quando será o último encontro - se fosse possível prever qualquer coisa, o livro inacabado teria sido escrito 10 anos antes.

De quinta a domingo, entre visitas de despedida e exames médicos, os dois homens se veem todos os dias. Na terça, o amigo doente morre. O outro sai de lá com a matéria viva daqueles encontros congelada em um gravador. Um mês mais tarde, publica a conversa, em forma de entrevista, no jornal que pertence à família do amigo. Cai o pano.

O homem na cama do hospital é o jornalista Otavio Frias Filho, que morreu no dia 21 de agosto, de câncer. O amigo é o jornalista Fernando de Barros e Silva, que publicou a entrevista no último final de semana no jornal Folha de S. Paulo, dirigido por Frias nos últimos 35 anos.

Além de diretor de redação, Frias foi ator e dramaturgo. Talvez por isso imaginei que essas conversas finais, no hospital, deveriam se juntar ao livro nunca escrito, em um rol de obras imaginárias, como uma peça curta em um único ato. Enredo e densidade dramática não faltariam. Há na entrevista confissões divertidas (como a de que o jornalista buscou no teatro não a realização artística, mas a proximidade das atrizes), comentários sobre a história recente brasileira, revelações pessoais e uma visão em perspectiva da própria trajetória que só a proximidade da morte permite. Sobre a histórica carta-aberta dirigida ao ex-presidente Collor, meses antes do impeachment, em abril de 1991 ("Seu governo será tragado pelo turbilhão do tempo até que dele só reste uma pálida reminiscência"), citada ficcionalmente no filme O Banquete, Frias comenta: "Você acha que está se preparando pra coisa mais importante da sua vida, mas aquilo que está fazendo já é a coisa mais importante da sua vida. Você acha que isso aqui é um ensaio para uma coisa maior que ainda vai fazer, mas, não, aquele ensaio já é a coisa que você fará".

Parte da nossa história será sempre um livro não escrito. Parte do nosso espetáculo nunca sairá da etapa dos ensaios.

CLÁUDIA LAITANO


29 DE SETEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

RENÚNCIAS E REMENDAS

O SUS completa 30 anos de existência. É o maior sistema público de saúde do mundo; país nenhum com mais de 100 milhões de habitantes oferece cuidados de saúde para todos.

Mediado pela jornalista Cláudia Collucci, o jornal Folha de S.Paulo realizou um debate sobre dois dos gargalos que mais prejudicam a eficiência do SUS: as renúncias fiscais e as emendas parlamentares. As discussões mantidas no encontro foram comentadas pelos jornalistas Leonardo Neiva e Beatriz Maia. Vou resumi-las:

1) Segundo Mauro Junqueira, presidente do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde, o conjunto das renúncias fiscais do governo federal previstas para 2018 é de R$ 283,4 bilhões. Esse número ultrapassa o dobro do orçamento do Ministério da Saúde no ano de 2017, que foi de R$ 125,3 bilhões.

2) No montante dessas renúncias não estão incluídas as deduções dos gastos com saúde no Imposto de Renda.

3) Os participantes levantaram um ponto raramente discutido: as isenções na produção de motos e bebidas açucaradas na Zona Franca de Manaus. Cerca de 98% das motos que circulam nas cidades brasileiras são produzidas em Manaus, com benefícios fiscais. Elas são responsáveis por um terço das mortes em acidentes de trânsito, por aposentadorias precoces e despesas com tratamento e recuperação dos acidentados, que sobrecarregam o SUS. Refrigerantes e outras bebidas açucaradas, que tanto colaboram para a epidemia de obesidade que se dissemina pelo país, são beneficiados pelo mesmo sistema de isenções. Semanas atrás, uma das maiores companhias ameaçou deixar o país, caso perdesse essas benesses. Um de seus diretores ameaçou: "Iremos para um dos países vizinhos e o Brasil terá de importar nossos produtos".

4) Leonardo Vilela, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, chamou atenção para uma das excrescências da nossa administração pública: as emendas parlamentares, através das quais deputados e senadores se intrometem no sistema de saúde, alocando verbas para a construção de centros hospitalares em seus currais eleitorais e para a compra de equipamentos inadequados para os locais a que se destinam. Neste ano, o governo gastará R$ 8,8 bilhões com essas emendas impositivas garantidas pela Constituição.

5) Os técnicos asseguram que, para ter viabilidade técnica e econômica, um hospital deve ter pelo menos de 200 a 300 leitos. No Brasil, 55% dos hospitais têm menos de 50 leitos; cerca de 80% não chegam aos cem leitos. Jocelino de Menezes, secretário-executivo do Ministério da Saúde, resumiu o pensamento dos especialistas: "Essa epidemia de emendas parlamentares é uma doença genuinamente brasileira, que precisa ser erradicada. Não podemos fazer gestão por meio de emendas e, pior ainda, de emendas impositivas".

6) Mônica Viegas, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, chamou atenção para a relevância social do SUS: "É a maior política de transferência de renda que temos no Brasil, funciona mais até do que o Bolsa Família".

DRAUZIO VARELLA


29 DE SETEMBRO DE 2018
J.J. CAMARGO

MORTE ENCEFÁLICA E AS VIDAS QUE PRECISAM CONTINUAR

Depois de um trauma cerebral grave (pancada, tiro na cabeça, hemorragia cerebral por derrame), o cérebro pode inchar muito. E, como ele está dentro de uma caixa óssea, não tem para onde expandir, de tal modo que, se a pressão dentro do crânio aumentar muito, acaba apertando as únicas estruturas compressíveis da massa cerebral, os seus vasos. Chega-se, então, a um ponto em que não passa mais sangue para o crânio, e o cérebro, que não tolera ficar mais de quatro ou cinco minutos sem oxigênio, começa a morrer porque a porta de entrada de oxigênio está definitivamente bloqueada.

Por que esse mecanismo da morte encefálica é importante de ser entendido?

Para que se perceba que não é possível provocar morte cerebral no hospital, a menos que alguém considere razoável que um paciente na UTI possa ser vítima de espancamentos ou tiroteios. Não há subtratamentos ou supertratamentos clínicos que acelerem a morte do cérebro conservando o coração a bater. Tudo o que se possa inventar sobre isso é ignorância, fantasia, ou uma terrível combinação das duas.

Qual o significado da doação de órgãos?

Há muito tempo, a doação de órgãos vem sendo usada como um marcador de desenvolvimento social, porque mede com precisão o nível intelectual de uma região ou país. Não por acaso, nos países subdesenvolvidos, as doações são escassas. A construção de uma cultura doadora é uma tarefa de civilidade, e só a educação consegue dar naturalidade a esse gesto grandioso na essência, mas difícil na prática, porque é solicitado que seja generosa a uma família traumatizada pela dor da perda. Daí a importância da comunicação do desejo de ser doador em um momento de saúde plena. Se alguém anunciar em vida esta determinação, a família, sempre soberana na decisão, certamente fará o possível para cumprir a última vontade expressa em vida.

Ensinar nas escolas básicas o que significa morte encefálica e como se processa a doação de órgãos devia ser objeto de portarias e leis que criassem a obrigatoriedade de educar para a cidadania.

Enquanto a educação não chega, a mídia, principal modelador contemporâneo do comportamento social, deve assumir com sobriedade este papel, evitando notícias estapafúrdias sem nem ao menos verificar a credibilidade da fonte. Uma sociedade desconfiada não doa e, com isso, milhares de pacientes que necessitam de um órgão para viver vão ser penalizados com a morte sem que tenham nenhuma culpa. Não se pode esquecer que o transplante é a única modalidade de tratamento médico que necessita da sociedade para que ela mesma seja beneficiada. Além disso, todos nós somos mais candidatos a receptores do que a doadores de órgãos, e podemos a qualquer momento necessitar de um transplante para continuar vivendo. Melhor pensar nisso antes que a desgraça lhe bata à porta

Por outro lado, cabe ao Estado a disponibilização de uma coordenação estadual efetiva, que ofereça com um máximo de agilidade os instrumentos de comprovação da morte encefálica, uma equipe altamente qualificada para o difícil momento da abordagem familiar para a doação e os cuidados de terapia intensiva para que aquele doador preserve viáveis o maior número possível de órgãos.

Com tudo isto disponível, estará montado o cenário para o transplante, esta prática médica que exige um alto nível de qualificação técnica e um incomparável índice de comprometimento pessoal dos envolvidos. O trabalho exaustivo que frequentemente vara madrugadas, a remuneração precária do SUS, financiador de mais de 95% dos transplantes, a burocracia exasperante, a infraestrutura deficiente de muitos hospitais, nada disso diminui o encanto daqueles que se alimentam da impagável e indescritível alegria de aliviar sofrimento. Uma sensação tão maravilhosa que quem já provou sabe bem, e a quem não, nem adianta explicar.

J.J. CAMARGO


29 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Bolsonaro: um trunfo do PT

As três melhores coisas que aconteceram para o PT nos últimos anos foram:

1. O impeachment de Dilma.

2. A prisão de Lula.

3. O surgimento de Bolsonaro.

Três contradições. Das duas primeiras já escrevi. Só relembro que, se Dilma ainda estivesse governando, e não Temer, o PT é que seria rechaçado pela população, e não Temer.

Quanto à prisão de Lula, pense que, desde que foi recolhido à carceragem da Polícia Federal do Paraná, ele não precisa mais explicar nada do que cometeu de errado e ilícito durante e depois de seu governo, e foi muito o que ele cometeu de errado e ilícito durante e depois de seu governo.

Mas ninguém no PT, originalmente, queria o impeachment de Dilma e a prisão de Lula. O partido apenas soube lidar com esses reveses, transformando-os em trunfos.

Agora, quanto a Bolsonaro, não. Bolsonaro é obra indireta do PT. É uma consequência lógica das ações do partido.

No entanto, não foi sempre assim. Nos primeiros tempos, o PT não era um partido populista. Ao contrário, os petistas criticavam acerbamente o populismo de Brizola. Diziam, com deboche, que o PDT tinha dono.

A ideia do PT era arejar a política brasileira com um partido que, pela primeira vez na nossa história, se guiaria por ideias, não por projetos de poder. Eram pessoas honestas, modernas, retas, que não compactuariam com as velhas práticas dos políticos tradicionais.

Mas, depois de perder três eleições consecutivas, o PT chegou à conclusão de que teria de fazer concessões para alcançar o poder. É quase que um teorema:

1. Você tem boas intenções, mas não consegue colocá-las em prática porque não chega ao poder.

2. Para chegar ao poder é preciso se comprometer com quem tem más intenções.

3. Ao se comprometer com quem tem más intenções, você chega ao poder.

4. Chegando ao poder, você não consegue colocar suas boas intenções em prática, porque está comprometido com quem tem más intenções.

5. Você tem o projeto de continuar no poder, mas, para isso, não poderá pôr em prática suas boas intenções, terá que continuar fazendo o que sempre fizeram os que têm más intenções.

6. Logo, você se transformou em alguém com más intenções.

Foi isso que aconteceu ao PT, um processo de aliancismo parecido com o que manteve Getúlio Vargas no mando por 15 anos. Só que, em vez de Vargas, o PT tem Lula, o populista por excelência. Lula, antes, era apenas mais uma liderança do PT. Transformou-se no Único, no Pai Iluminado. Essa é uma figura indispensável ao populismo, vide o próprio Vargas, mais Perón, Mao, Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Tito, Chávez, Fidel etc.

O populismo precisa desse personagem, tipo o centroavante de referência, porque ele simboliza o bem. É pela graça dele que o povo recebe suas pequenas dádivas. Quando o homem do povo consegue algo do governo populista, não é o Estado que está cumprindo sua obrigação, é o líder que está fazendo uma concessão.

Mas, para o governo populista se distinguir, é indispensável haver a comparação com o mal. Como diria Nelson Motta e cantaria Lulu Santos, "não existiria som se não houvesse o silêncio; não haveria luz se não fosse a escuridão".

Assim, temos aqui outro teorema:

1. O líder populista defende o povo.

2. Quem defende, defende do inimigo.

3. Logo, é preciso haver um inimigo.

Quem é o inimigo do povo? Obviamente, a elite. O não povo. Lula passou toda a sua trajetória falando da elite branca, rica, preconceituosa, pérfida. Você faz alguma crítica ao PT? Você não está errado: você é canalha, faz parte da elite pérfida. Essa postura excludente fez o que faz qualquer postura excludente: excluiu. Parte da sociedade, alijada moralmente pelos petistas ou apenas irritada com tanta arrogância, atirou-se para o outro lado, para o extremo oposto, para quem se mostrava inimigo do PT: Bolsonaro.

Só que Bolsonaro é o inimigo ideal: é grosseiro, preconceituoso, sem nenhuma sofisticação intelectual. Fosse uma direita inteligente, com homens como Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen ou Luis Fernando Cirne Lima, o PT estaria em sérias dificuldades. Mas, não. Bolsonaro é grotesco, talhado a facão. É fácil ser contra ele.

Bolsonaro cevou-se do PT e o PT, agora, ceva-se de Bolsonaro. Eles estão no centro da política brasileira. Na periferia, os outros candidatos, impotentes, pálidos, perplexos, sem saber direito o que está acontecendo. E nós, é claro. Assistindo assustados. Experimentando a desagradável sensação de que ainda há muito a sofrer neste combalido Brasil do século 21.

DAVID COIMBRA

29 DE SETEMBRO DE 2018
DUAS VISÕES

A RAZÃO É UM TIPO DE DEBATE QUE VAI ALÉM DA POLÍTICA

Esta é uma eleição diferente das outras. É uma eleição pautada pela guerra cultural. Em 2014, havia visões político- econômicas em disputa. Mas não havia uma fratura cultural.

A presença de Bolsonaro muda o eixo do debate. Ele mesmo é o produto de uma mutação na democracia, que não ocorre apenas no Brasil. Temas morais e uma vaga retórica antissistema ganharam espaço na arena pública. A internet deu poder aos indivíduos e subitamente fez envelhecer as tradicionais instituições de representação da democracia liberal.

A ascensão do populismo é um sintoma disso tudo. Fenômeno feito de personagens tão diferentes como Viktor Orban, na Hungria, Marine Le Pen, na França, ou Donald Trump. Diferentes mas com um DNA em comum.

Bolsonaro é uma variante brasileira do fenômeno. Ele não dispõe de um partido; não formula uma grande narrativa sobre o país. Seu nacionalismo parece saído de velhos livros de moral e cívica. Sua visão de mundo parece se resumir a quatro ou cinco frases de efeito sobre temas culturalmente sensíveis.

Mas a retórica antissistema e a pauta moral estão lá. Ele deu expressão política a um conservadorismo de costumes latente na sociedade brasileira. Um enorme contingente de pessoas que nunca teve, desde a redemocratização, um porta-voz relevante. Agora tem.

Vêm daí a guerra cultural e a polarização. Sua razão não é Bolsonaro. Ele é o sintoma, e está longe de ser o único. A razão é a explosão de um tipo de debate que vai muito além dos limites possíveis da política. Seus temas vão do aborto, armas, sexualização da infância, "ideologia de gênero", à retórica difusa contra o politicamente correto.

Temas que opõem um tipo novo de conservadorismo popular a um progressismo ancorado na defesa de direitos, mas que não raro se torna ele mesmo moralista e intolerante.

E um tipo de debate feito à moda redes sociais, universo tribalizado, de baixa empatia, cujo incentivo é para a retórica de combate, não para escutar o que o outro lado tem a dizer.

Soluções para isto? Talvez um tênue caminho.

Os democratas precisam aceitar que há um novo ator no jogo, que representa uma parcela importante da sociedade. Suas posições surgem extremas e algo grotescas, mas o metabolismo próprio da democracia irá tratar de aparar as arestas. Não foi isto que aconteceu com a esquerda? Steven Levitsky observou que uma das normas não escritas da democracia é "a aceitação da legitimidade do outro, por mais que possamos desgostar dele". Difícil isso. Mesmo para Levitsky, que logo após nos convoca à guerra contra o grande inimigo.

É como o sujeito que abomina a radicalização, acha que temos que sair dessa "polarização inútil", mas não abre mão de chamar o oponente de fascista, nazista, coisa ruim. É sedutor fazer isto. Dá até pra bancar o herói da turma, na internet. Mas no fim todos perdem, porque é exatamente esta a lógica da guerra política.

Vai aí o novo paradoxo da democracia brasileira: nossos melhores democratas se tornaram, sem perceber, caçadores de bruxas. Teremos que aprender muita coisa de novo, trinta anos depois.

FERNANDO SCHÜLER Doutor em Filosofia e professor do Insper fschuler@uol.com.br



29 DE SETEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

COMPROMISSOS DEMOCRÁTICOS

Quem assegurar mais votos nas eleições presidenciais precisa estar preparado para unir o país, convocando todos os brasileiros a enfrentarem de vez a crise na sua origem

Independentemente do resultado das eleições, há uma certeza na reta final da campanha: temos uma Constituição e a vontade dos eleitores tem que ser respeitada. Esses dois pressupostos devem ser o norte da vontade e das expectativas da população e das instituições brasileiras. A obediência aos limites da lei e o acolhimento da escolha democrática que emergirá das urnas precisam ocupar o lugar hoje invadido pela disputa, pelo radicalismo e pelo ódio. Passada a campanha eleitoral, será hora de se acatar o resultado anunciado pela Justiça e unir esforços para a construção de um futuro melhor para a nação.

Diante das eleições, como sintetizou o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), é preciso renovar os compromissos democráticos. E há duas regras a serem obedecidas. Uma delas é: quem ganha leva. A outra: quem leva respeita as regras do jogo. E elas são claras. 

O próprio presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, foi enfático ao afirmar que "qualquer que seja o resultado, será respeitado", inclusive pelos militares. A garantia foi antecedida por outra, do próprio ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, para quem, depois de apurado o resultado, o papel das Forças Armadas será o de garantir o funcionamento das instituições dentro da normalidade.

Em princípio, todas essas manifestações seriam dispensáveis num país que dispõe de uma Constituição democrática e no qual as instituições funcionam plenamente, cada uma delas zelando para cumprir rigorosamente o seu papel. Em três décadas de democracia, o país passou por constantes sobressaltos, nenhum deles envolvendo militares. 

Ainda assim, episódios como as manifestações de rua em 2013, a disputa presidencial acirrada um ano depois, a crise que culminou no impeachment em 2016, a prisão de um ex-presidente da República e as denúncias envolvendo o governo que está chegando ao fim contribuíram para levar a campanha atual a uma polarização sem precedentes. É inevitável que o resultado, seja qual for, acabe dividindo os brasileiros.

Quem assegurar mais votos nas eleições presidenciais precisa estar preparado para unir o país, convocando todos os brasileiros a enfrentarem de vez a crise na sua origem. Revigorar a democracia e a atividade econômica são necessidades emergenciais, para as quais o voto de cada eleitor terá papel relevante.

sábado, 22 de setembro de 2018


22 DE SETEMBRO DE 2018
LYA LUFT


A volta do diabinho

Tenho no ombro, e às vezes se manifesta, um feio diabinho pousado. É meu lado descrente, talvez sarcástico, e triste. Quando me assaltam as notícias atuais, aqui e pelo mundo, ele enrola e desenrola seu rabo, e se inquieta.

Assuntos como meninos criminosos tratados como crianças e cotas - mas estas são para outro dia. Drogados ou lúcidos, os meninos começam a roubar e a matar, às vezes com requintes de crueldade, aos 12 anos, pouco mais, pouco menos: se apanhados, nem todos poderão ser reintegrados à sociedade, frase aliás metafórica e vaga. Voltarão para novos crimes.

Um menino de 15 anos confessou na maior frieza o assassinato de 17 pessoas. "Matei, sim." Talvez tenha acrescentado num dar de ombros: "E daí?". Quinze dos crimes foram comprovados. Por ser menor de idade, como tantos assassinos iguais a ele, foi para uma dessas instituições de ressocialização nas quais não acredito. Logo estará livre para reiniciar sua vida de psicopata. E, se perguntarem a razão, talvez diga como outro criminoso, quase uma criança, que assaltou um amigo meu e repetia: "Vou te matar". Meu amigo perguntou por que, e o menino respondeu com simplicidade: "Nada. Hoje saí a fim de matar alguém".

Como nós, sociedade moderna, produzimos esse e outros dramas morais? Acusa-se pela criminalidade juvenil a família, que às vezes é apenas outra vítima, ou "a sociedade", conceito vago que isenta de uma ação enérgica, enquanto se multiplicam os dramas, aumentam as tragédias.

Esperamos soluções ou progressos de parte dos políticos? Dos líderes, das autoridades? De momento, isso me parece mais uma imensa falácia, pois mesmo os bem-intencionados terão pouco poder numa sociedade adoecida.

Sou mais crédula do que cética, o que nem sempre é bom. (O diabinho fica à espreita.) Quando menina, me disseram que, se a gente cavasse fundo no jardim, esse poço daria no Japão, onde as pessoas andavam de cabeça para baixo (para eles, de pernas para o ar estaríamos nós). Mas, adulta, descobri que a vida tem outros poços, nem todos divertidos. Um deles parece não ter fim: o dos escândalos nossos de cada dia, o da nossa desolação e dos nossos enganos. 

O poço tem água no fundo: o diabinho no meu ombro espia seu reflexo nela, para ver se não haverá alguma luz que o afugente. Mesmo que seja uma lamparina, será uma luz, e apesar de tudo acredito nela. Resta descobrir quanto tempo se leva para chegar nesse fundo e se, em lá chegando, boa parte das nossas aflições à espera de justiça será resolvida e haverá justiça.

Enquanto escrevo isso, o diabinho rosna uma das melhores frases sobre o assunto: "A lei nem sempre garante a justiça".

LYA LUFT


22 DE SETEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

M de movimento

Lembro que quando eu era criança e estava num lugar onde havia muita gente, tipo uma praia ou um ginásio, me diziam que, se acaso eu me perdesse, não deveria sair do lugar, pois só assim alguém me acharia. Ficava em pânico - como assim me perder? Devia ser uma tática pra eu não me movimentar muito, e funcionava, grudava nos meus pais e nunca me perdia. Mas talvez tenha levado essa regra a sério demais.

Estudei sempre na mesma escola, do primeiro ano primário ao terceiro científico (hoje Ensino Fundamental e Médio). Morei dos 11 aos 25 anos no mesmo apartamento. Até hoje, meus melhores amigos são os da adolescência. Fui casada por 17 anos. Lanço meus livros pela mesma editora há 30. Sempre tive vocação para manter, preservar, insistir. Não me arrependo de nenhum desses investimentos afetivos, mas é preciso cuidar para não ficar fanática demais pela imobilidade. Ela cria uma ilusão de segurança, mas ninguém é mais criança e se acaso nos perdermos, outros caminhos se abrem.

Hoje a palavra movimento é que me define. Ficar parado no mesmo lugar por muito tempo engorda, engessa. Pessoas resignadas não renovam as ideias, acomodam-se às suas certezas, perdem a capacidade de encantamento, pesam com seu excesso de mesmice. A questão não é ser feliz ou infeliz - qualquer um pode ser feliz sem jamais sair da própria rua. A questão é se a monotonia não acaba sendo meio letal, aquela história de morrer lentamente, mesmo respirando.

Sempre cabe mais gente dentro da gente, mais vida dentro de nós. Não é preciso abrir mão de amigos antigos para fazer novos, não é preciso abrir mão da profissão para testar-se em outras atividades, e há uma corrente que diz que nem mesmo é preciso abrir mão do seu amor para namorar terceiros - taí o poliamor para quem é um ser elevado, eu não sou. Mas, de resto, topo conhecer, xeretar, ver qual é. Meus verbos se expandiram. Acredito numa existência larga, elástica, e se antes me sentia segura com o câmbio em ponto morto, agora digo "lá vou eu", e vou.

Pra onde estou indo? Pra uma aventura chamada canal no YouTube. Além das colunas de jornal, vou dar pitacos em vídeos curtos que serão renovados a cada quarta-feira na internet. O nome do programa: M de Martha. É só assinar e me seguir, o primeiro episódio irá ao ar dia 26. Se acaso detestar, não me conte, pois sou muito sensível. Eu mesma terei a decência de recuar caso essa mídia não for a minha. Mas, se der certo, te cuida, Felipe Neto.

Que essa coluna sirva como estímulo pra quem tem a mesma cara de pau e anda a fim de dar uma agitada na rotina. Quanto às crianças que se perdem de seus pais, vale a antiga regra: que fiquem paradas até que alguém as encontre. Movimento é para os grandinhos que podem assumir riscos.

MARTHA MEDEIROS


22 DE SETEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Cartão de visita

A agenda de endereços de meu pai era um álbum de figurinhas. Só que, em vez de grudar jogadores de futebol nas páginas como eu fazia com o Campeonato Brasileiro, ele colava cartões de visitas de seus encontros. As páginas na espiral ficavam grossas e vagarosas. Ele montava o seu time adulto de amigos, a sua escalação de telefonemas e urgências.

É das estampas paternas que veio a minha adoração por cartão de visita, um hábito quase em desuso hoje pela facilidade digital de anotar referências no celular. Eu preservo o rito de guardar quando sou brindado com a pequena amostra biográfica de algum conhecido. Há um verdadeiro museu nas minhas gavetas, com personalidades já falecidas e outras que trocaram de endereço e ofício.

Como os empregos são cada vez mais temporários, não há mais a obrigatoriedade de imprimir as boas-vindas para os egressos das promoções.

Para os que mantêm a tradição, o cartão revela como o profissional se vê e onde trabalha.

Se é muito colorido e com letras grandes, é de serviço popular como telentrega de restaurantes, chaveiros, chapeação, lavanderia, farmácias. Lembra ímãs de geladeira. Se é branco e com letras pequenas, costuma ser de bancos e entidades financeiras. Reproduzem as fontes mínimas como nos contratos de empréstimo.

Dos dois lados ocupados, grandes chances de lidar com publicitários, jornalistas e relações públicas.

Quanto mais despojado, maior o cargo. Quanto mais poluído, menor a influência.

Na época em que trabalhava de office-boy, na adolescência, o meu sonho se resumia a ter um escritório com o meu nome na porta e uma caixinha de cartões de visita. Nunca aconteceu, porque virei poeta. Mas sempre imaginei a cena em que receberia clientes e, na saída, selaria o negócio com aperto de mão e o meu cartãozinho. Eu treinava a frase de efeito:

- Me telefone quando precisar, esse é o meu ramal direto.

Possuir um ramal direto significava sala própria, a realeza do mundo corporativo de antigamente, acesso exclusivo sem a necessidade de passar pelo filtro da secretária.

Com o igual rigor de um alfaiate e seus tecidos, escolheria com esmero a textura do papel, a cor e a tipologia. Depois, alisaria a superfície para me envaidecer do nome bem feito e entregaria os primeiros exemplares para a família.

Jamais pude dar meu cartão de visita para o meu pai completar a sua coleção. Mas ainda há uma esperança para ser vivida. Apesar de fora do tempo e completamente atrasado.

CARPINEJAR


22 DE SETEMBRO DE 2018
PIANGERS

Sessão da tarde

A parte boa de minha filha estar agora com 13 anos é que posso apresentá-la a todos os meus filmes favoritos, todos aqueles que marquei com nota 10 no IMDB, todos os filmes clássicos e modernos que uma garota de 13 anos pode ver. Porque alguns dos meus filmes favoritos têm classificação etária para maiores de 13 anos, é claro, como Kill Bill, que eu precisei ficar pulando todas as partes muito pesadas e o filme acabou tendo cerca de oito minutos, apenas.

Mas minha filha é muito madura, e fazemos essa molecagem de assistir juntos a filmes com classificação indicativa para 14 anos. Uau, como somos fora da lei. Fazemos pipoca, ficamos só de meia e cometemos nosso crime, longas-metragens no meio da tarde. Forest Gump tem mais de duas horas, levamos uns três dias pra acabar. Pequena Miss Sunshine ela achou chato, tirando a parte da dança da menina no final. Filhos da Esperança, do grande Alfonso Cuarón, foi um dos filmes que mais apreciamos juntos. Quando apreciamos um filme gostamos de chamar de "película", que é como pessoas metidas chamam os longas-metragem.

Eu estava evitando filmes de super-heróis porque, vamos lá, essas coisas são como cigarro e bebida alcóolica, estão em todo lugar e um dia ela vai mesmo acabar experimentando. Queria mostrar apenas clássicos antigos ou filmes obscuros maravilhosos. Mas nos divertimos muito com Guardiões da Galáxia. Depois, emendamos alguns do John Hughes, culminando no melhor dele, Curtindo a Vida Adoidado. Ela pirou no mau humor do Cameron, melhor amigo do personagem principal. Fiquei sem graça de dizer que o ator já tem mais de 60 anos hoje em dia.

Assistimos juntos a Lady Bird, indicado ao Oscar deste ano, e um filme de terror maravilhoso chamado Um Lugar Silencioso. Conversamos sobre roteiros, enquadramentos, finais previsíveis, atuações. Ela está ficando boa em diagnosticar como o filme vai terminar. Pediu pra eu escolher o filme da semana que vem. Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças ou O Poderoso Chefão?

PIANGERS


22 DE SETEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL - Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

VÁ COM DEUS

Jovem e ainda inseguro com os desafios críticos do amadurecimento, comecei a anunciar ao mundo que estava me tornando ateu. Naquela etapa, o ateísmo era muito mais o enfrentamento da tradição. Uns aderiam ao rock, outros faziam tatuagem, alguns fumavam maconha; eu, avesso aos deleites citados, estava virando ateu.

A insegurança é prima-irmã do discurso catequético. Minha piedosa avó recomendava: "Vá com Deus". E eu redarguia, arrogante: "Vou de Varig, vó". Hoje eu seria incapaz de responder assim. A pessoa que me desejou "fique com Deus", "vá com Deus" etc. está transmitindo um gesto de carinho dentro do seu código pessoal de crenças. Eu sorriria agradecido e pronto. Entendo que meu ateísmo é exclusivamente pessoal, fruto de experiências e leituras que só têm significado para mim e responde a questões limitadas ao meu universo. Jamais faria palestra em defesa do ateísmo, pois nunca compartilhei da ideia de que não crer em forças superiores, entidades criadoras, sentidos absolutos ou em um motor original do qual emanaria todo o movimento do universo seja algo absolutamente meu e não melhora ou piora o mundo.

Ateus e religiosos podem ser éticos ou canalhas, como encontrei muitos em todas as torcidas físicas e metafísicas. Sou contra a intolerância dos sistemas que querem impor fé a todos ou dos regimes que tornaram o ateísmo obrigatório e perseguiram religiosos como a URSS ou o México, especialmente após 1917. Gente autoritária é somente gente idiota, cheirando a incenso ou a razões de Estado. Gente autoritária não tem Deus ou não Deus, possui apenas um projeto de poder como meta. Acima de tudo, fundamentalistas da religião ou do ateísmo são chatos, muito chatos, insuportáveis na sua missão de levar a luz ao mundo, ou seja, mudar todos para que fiquem a sua imagem e semelhança. Se você segue o pastafarianismo, divertida crença contemporânea, nada altera sua obrigação de lutar contra o racismo ou a misoginia. Da mesma forma, se é um leitor devotado do Evangelho ou ateu, seu compromisso moral com a sociedade é o mesmo.

Há outro preconceito muito forte entre ateus e agnósticos. Pessoas céticas em vários graus costumam achar que descartar a hipótese fé é sinal de superioridade intelectual. A inteligência crítica confere autonomia a uma pessoa, como ensinava Kant ao definir o esclarecimento. Assim, religiosos inteligentes ganham autonomia na sua fé e ateus inteligentes ganham autonomia no seu ceticismo e passam a questionar fora de dogmas absolutos de ser ou não ser. 

Gente sábia não duvida para afirmar sua superioridade, mas entende que a disputa pelas almas e corpos existe entre governos oficialmente ateus e igrejas. Crer em Deus ou rejeitar a possibilidade teológica deveria sempre ser um gesto radical de entrega a uma liberdade: eu sozinho diante do Criador ou eu e minha consciência diante do mundo em si. Sou tão livre e tão preso como uma pessoa que vai diariamente à missa/culto ou que sente, genuinamente, que a récita do Pai-Nosso inunda sua vida de sentido e proteção. 

Certa feita, diante do espetáculo impactante de uma série de cataratas, uma amiga segredou-me que aqui via e sentia Deus. Eu via a prova empírica de Newton e pensava em Arquimedes, mas ambos estávamos felizes e conversando, pois éramos seres pequenos diante do volume de água, do som e do impacto extasiante da cena. Gosto muito de Newton exatamente porque era um homem de fé profunda e fez um sistema lógico-científico que serve a ateus e a religiosos.

Alain de Botton escreveu um livro para que os ateus recuperassem muitas coisas positivas das tradições religiosas (Religião para Ateus). Gosto do texto, até mais do que os livros de Christopher Hitchens e Richard Dawkins. Eu digo algo um pouco distinto. O religioso de verdade, aquele que carrega a ideia de um Deus criador, entende que, tendo o mesmo Pai, todos somos irmãos. Islâmicos, judeus e cristãos falam muito da regra de ouro: não fazer ao outro o que não desejo que seja feito a mim. Compartilho 100% da ideia de uma fraternidade universal, seja ela lógica, humanística ou teológica. 

Assim eu, ateu, me considero aliado incondicional de todo religioso, pois compartilho a mesma ideia que os devotos devem ter como guia máximo: compreensão, misericórdia, ajuda aos outros, proteção aos vulneráveis e defesa dos pobres. Há trechos a favor dos pobres na Torá, nos Evangelhos e no Corão. Eu e todos os religiosos temos o mesmo inimigo: o fundamentalista. 

O fundamentalista é aquele que, em nome de um suposto deus, usa seu projeto de poder para imprimir e matar. Ele é inimigo de Deus e da ciência, inimigo da lógica e da revelação, inimigo de todo ser vivo e de toda sociedade aberta. O fundamentalista (religioso, político, científico etc.) é um ser do ódio que, se tivesse filiação, seria exclusiva com a figura do demônio, nunca com Deus; com a burrice, jamais com a inteligência lógica.

Eu sou irmão dos religiosos e inimigo dos que odeiam. Em resumo, se minha avó fosse viva e hoje me dissesse "Vá com Deus", em vez de uma resposta irônica e limitada como outrora, eu reconheceria nosso vínculo e a abraçaria dizendo: "Eu também te amo, vó". Eu era ainda mais idiota quando era jovem. Graças a Deus ou à mitose e meiose das células, cresci um pouco. Que a semana de cada um de nós seja muito abençoada pelas luzes da Razão ou, se preferirem, pelo Deus que deu a Razão aos homens. O importante é a luz e sempre evitar a escuridão diabólica da vaidade e do poder. Urge crer na democracia. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


22 DE SETEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

EXPECTATIVA DE VIDA

Dizem que Cristo teria morrido aos 33 anos. Tão moço, lamentam os crentes. Nem tanto, a média de expectativa de vida no Império Romano era de 30 anos.

Os que defendem com fervor religioso o emprego da medicina chinesa no tratamento dos males atuais, com o argumento de que se trata de uma tradição milenar, talvez não saibam que, até o século 19, o chinês médio vivia os míseros 30 anos dos romanos. Não era muito diferente o destino dos europeus até o século 18. Foi só no final dos anos 1900 que a expectativa de vida começou a aumentar nos países europeus que se industrializavam, embora se mantivesse nos mesmos patamares medíocres no resto do mundo. Na maior parte do século 20, a disparidade se manteve: expectativa de vida ascendente nos países industrializados, mortes precoces nos demais.

Nas últimas décadas, no entanto, a desigualdade diminuiu e a expectativa de vida mundial praticamente duplicou. Hoje, os países mais pobres têm expectativa média de vida semelhante às dos que eram considerados ricos nos anos 1900. Cem anos atrás, a expectativa de vida de quem nascia na Índia ou na Coreia era de apenas 23 anos. Atualmente, esse número quase triplicou na Índia e quase quadruplicou na Coreia do Sul. No Brasil, uma criança que completasse 10 anos em 1950 podia alimentar a esperança de viver mais 53 anos. As que chegaram aos 10 anos em 2015 devem viver mais 67 anos.

Esses aumentos de longevidade aconteceram graças à ciência, à tecnologia e aos avanços no conhecimento. O declínio da mortalidade foi resultado da aplicação de ideias novas no campo da saúde individual e coletiva e dos benefícios trazidos pelo aumento de produtividade que possibilitaram melhores condições de moradia, nutrição e saneamento básico, pela vacinação em massa e a descoberta dos antibióticos.

A divulgação das teorias que identificaram os germes como causadores de doenças a partir dos últimos anos do século 19 foi crucial na mudança do comportamento individual e na infraestrutura de saúde pública. O mesmo ocorreu com as medidas tomadas contra o fumo, na segunda metade do século 20.

No decorrer do século 21, será possível duplicar mais uma vez a expectativa de vida?

Num trabalho publicado na revista Nature em 2016, Xiao Dong e colaboradores desmentiram essa hipótese. Ao analisar os dados demográficos em 40 países, os autores concluíram que aumentos da sobrevida tendem a declinar depois dos cem anos. A longevidade atingiria um teto ao redor dos 115 anos. Ninguém comemoraria o aniversário de 125 anos.

Um dos argumentos mais fortes dos autores é o de que, desde os anos 1990, a idade da pessoa mais velha do mundo não aumentou. O recorde continua pertencendo à francesa Jeanne Calment, que morreu em 1997 com 122 anos. Os autores concluíram: "Nossos resultados sugerem claramente que a duração máxima da vida é limitada por constrangimentos naturais".

Um estudo realizado entre centenários, por um grupo da Universidade Sapienza, na Itália, reacende esse debate. Elizabeth Barbi e Francesco Lagona acabam de publicar na revista Science um inquérito conduzido entre 3.836 italianos com 105 anos ou mais. Foram analisadas as certidões de nascimento e os atestados de óbito para confirmar as idades e evitar os exageros tão frequentes em pessoas com muita idade.

A conclusão do estudo foi a de que o risco de morrer (que aumenta à medida que envelhecemos) fica estável depois dos 105 anos, criando um "plateau de mortalidade". A partir dessa idade, a probabilidade de viver mais um ano seria de 50%. Se esse plateau realmente for confirmado, a mulher mais velha do mundo, Chiyo Miyako, atualmente com 117 anos, poderia ainda viver alguns anos ou décadas, pelo menos teoricamente.

O mundo abriga cerca de 500 mil pessoas centenárias, número que deverá duplicar de 10 em 10 anos. Se, depois dos 105 anos, o risco de morrer for de 50% a cada ano que passa, os demógrafos calculam que o recorde de longevidade em posse de Jeanne Calment deverá ser quebrado com a diferença de um ano a mais a cada década.

Os especialistas não consideram esse o estudo definitivo. O debate prosseguirá. Enquanto eles não chegam à conclusão, cabe a cada um de nós cuidar do corpo da melhor forma possível. Você, leitora, não vai querer chegar aos cem anos com a aparência de quem tem 200.

DRAUZIO VARELLA

22 DE SETEMBRO DE 2018

J.J. CAMARGO

UMA LINGUAGEM UNIVERSAL

Cada profissão tem um linguajar próprio e, dentro de algumas profissões, até há facções com termos tão peculiares que os não especialistas se atrapalham. Leiam um relatório psiquiátrico de encaminhamento de um paciente cirúrgico e descobrirão do que estou falando.

Um dia, atendendo a um velho e brilhante desembargador com um tumor avançado, ouvi dele a queixa de que nós, médicos, nos comunicamos com vocabulário exclusivo, como se pertencêssemos a uma casta tão especial que não se permite usar uma linguagem popular. 

Argumentei que todas as áreas técnicas têm seus termos específicos, mas que, obviamente, esse linguajar diferenciado não poderia ser usado nas relações com os pacientes porque, além de afetada, seria inútil como veículo de comunicação, e que eu me esforçava por me fazer entender e ficava sempre perscrutando o olho do paciente na busca de sinais objetivos de entendimento. Mais do que isto, eu ensino aos alunos e residentes que sempre que o paciente não entendeu o recado é culpa exclusiva do médico que não fora capaz de decodificar sua linguagem.

O que me pareceu injusto e merecia uma resposta foi o fato da queixa ter vindo de um advogado. Respondi que de qualquer outra profissão eu aceitaria a crítica com mais naturalidade, mas não dessa categoria de incomunicáveis que são capazes de frases inteiras usando palavras desconhecidas, ou pior, empregando palavras reconhecíveis, mas com significado diferente ou oposto.

Ele riu, debochado, coçou a barba branca com a serenidade dos sábios e disse: "Pois, meu doutor, vou lhe contar uma história que deve ficar como um segredo entre nós porque reforça sua opinião, mesmo que ela não precise de nenhum reforço, até porque a única frase que me encantaria ouvir, a de que a lesão era benigna, o senhor não foi capaz. Pois bem, quando jovem, trabalhei durante alguns anos numa cidade do Interior. 

Numa tarde da primeira semana, entrou no meu escritório uma agricultora humilde, com um envelope pardo embaixo do braço e, ao perguntar-lhe em que poderia ajudá-la, ela resumiu: "Meu marido é mental, aqui está a prova da mentalidade dele (e entregou-me o tal envelope), eu sou o homem da casa e eles querem tomar o meu fogão!". Com a facilidade de indignação que têm todos os jovens, assumi o caso e prometi que, no fim de semana, redigiria um arrazoado para levarmos ao juiz e que aquele absurdo seria revertido. 

No final do domingo, revisei orgulhoso o documento datilografado em 23 laudas caprichadas. Quando resolvi dar mais uma lida no processo, me dei conta de que aquela redação prolixa e afetada não acrescentara nada àquelas quatro frases: marido mental, aqui a prova da mentalidade dele, sou o homem da casa e eles querem tomar meu fogão. Curioso é que precisei da sua contestação para finalmente fazer uma catarse desse sentimento que, passados 48 anos, ainda guardava como um segredo meu. Agora que já me confessei, vê se aumenta a dose do analgésico porque senti uma dor excruciante na noite passada!".

Havia comiseração e algum remorso quando aumentei a prescrição de morfina. Nada mais constrangedor para a medicina moderna do que esta queixa num hospital, sendo a dor, como é, a linguagem universal mais atroz.

J.J. CAMARGO