sábado, 29 de novembro de 2008



30 de novembro de 2008
N° 15805 - MARTHA MEDEIROS


Capturados

Um dos DVDs mais legais a que assisti este ano foi A Vida por Trás das Lentes, documentário sobre a carreira da fotógrafa americana Annie Leibovitz.

Tive a oportunidade, também, de ver em Paris a exposição que registra todas as fases de sua trajetória, começando pelas fotos que fazia da família, passando pela fase roqueira (quando foi a principal fotógrafa da revista Rolling Stones), até a consagração na Vanity Fair.

Considero fotografia uma arte, pela capacidade que tem de capturar a alma do fotografado e revelar a nós algo que nosso olho não consegue enxergar.

Lembro que, na minha infância, meu pai não deixava passar um único evento sem fotos: Natal, aniversários, piqueniques na praia. Click, click, click.

Ficávamos um tempão parados, eu, meu irmão e minha mãe, três estátuas sorridentes, esperando o momento de ele encontrar o melhor ângulo, o melhor foco, a melhor luz, para então clicar. Máquina digital, naquela época, era coisa da família Jetson.

Também tirei muitas fotos de minhas filhas quando eram pequenas e guardo inúmeros registros de viagens e de alguns passeios, encontros, momentos que não acontecem todo dia.

Até aí tudo dentro de uma certa normalidade, e sou tendenciosa como todos: a gente acha que só a maneira como vivemos é que é normal. Mas o normal evoluiu muito de uns tempos pra cá.

Hoje, com um celular na mão, você documenta partos, tsunâmis, incêndios, transas, shows e crimes cometidos bem na sua frente. Inclusive, algum crime por ventura cometido por você.

Me pergunto: se você não documentar suas experiências e emoções, elas deixam de existir? Você deixa de existir? Não deveria, mas dá a impressão que sim.

Num surto catastrofista, imagino que em breve deletaremos da nossa memória tudo aquilo que não estiver documentado. Se eu quiser lembrar de uma viagem ou de uma festa, não conseguirei, a não ser que a tenha fotografado e filmado.

O momento em que seu namorado lhe pediu em casamento, aquela caminhada que deu sozinha à beira-mar, o mergulho noturno, o café da manhã na cama enquanto viam um filme do Chaplin, a declaração de amor no meio da estrada – se você não fotografou nada disso, será que aconteceu mesmo? Você ainda consegue lembrar da vida sem a ajuda de aparelhos?

Minhas duas últimas viagens ao Exterior foram feitas sem máquina fotográfica ou celular na bagagem. Fui e voltei sem uma única foto, o que para muitos talvez signifique “ela não foi”. Mas fui. A vida também acontece sem provas documentais.

Ainda Annie Leibovitz: entre seus inúmeros flagrantes, constam os momentos finais de seu pai e da escritora Susan Sontag, as duas pessoas que ela mais amou. As fotos de ambos, cada um na sua hora, agonizando, estão na exposição e no DVD.

Annie Leibovitz é uma artista, e suas lentes são seus olhos, ela não dissocia vida e trabalho, mas admito que senti, mesmo havendo consentimento dos fotografados, uma invasão na intimidade mais secreta de cada um, que é a solidão. Louvável como registro jornalístico, mas desnecessário como despedida pessoal.

Tudo isso para dizer que certas ocasiões ainda me parecem suficientemente fortes para resistirem intactas na nossa lembrança, e apenas nela.

Um ótimo domigo e um excelente início de semana.

Diogo Mainardi

2 789 toques

"Para o colunista, o essencial é eliminar qualquer sombra de ambigüidade. Dou um jeito de solucionar a crise da economia mundial numa única coluna, com um único argumento. Paul Krugman também"

Paul Krugman, o Nobel de Economia, recomenda gastar alopradamente. Eu recomendo o oposto: cortar gastos alopradamente. Quem está certo? O Nobel de Economia ou o Jabuti de 1990?

Paul Krugman é colunista do New York Times. Eu sei o que acontece com ele, porque é o mesmo que acontece comigo. Uma coluna tem mecanismos próprios.

A gente aprende a esgotar todos os assuntos numa tacada só, limitando-os a um determinado número de toques. Meus pensamentos restringem-se a 2 789 toques. Menos do que isso, me embanano. Mais do que isso, eu murcho.

O assunto pode ser Aristóteles ou uma torneira gotejante na pia do banheiro: o que tenho a dizer sobre eles se encerra rigorosamente depois de 2.789 toques. Para o colunista, o essencial é eliminar qualquer sombra de ambigüidade. Dou um jeito de solucionar a crise da economia mundial numa única coluna, com um único argumento. Paul Krugman também.

Um colunista é um Cafuringa, que corre olhando para a bola até sair pela linha de fundo. Daí a receita peremptória do Nobel de Economia: gastar alopradamente. Daí a receita peremptória do gordinho indolente: cortar gastos alopradamente. Quem está certo? Nenhum dos dois. Um colunista nunca pode estar certo.

Em outubro, num artigo sobre o estado calamitoso da economia americana, Paul Krugman afirmou: "Somos todos brasileiros". Ele se referia ao fato de agora os Estados Unidos sofrerem o contágio dos mercados, como um país do Terceiro Mundo, como o Brasil.

Se os Estados Unidos real-mente se transformaram num Brasil, Paul Krugman, com seus planos espalhafatosos, é o Luiz Gonzaga Belluzzo deles. E os brasileiros sabem que um Luiz Gonzaga Belluzzo sempre acaba encontrando seu Dilson Funaro. O Dilson Funaro americano só pode ser Lawrence Summers, o principal conselheiro econômico de Barack Obama.

Ele concorda com Paul Krugman que a saída para a crise é inundar a economia com dinheiro público. Ele concorda igualmente que é melhor gastar de mais do que gastar de menos, sem dar a menor pelota para o rombo nas contas.

Assim como Paul Krugman, Lawrence Summers também se tornou um colunista.

No caso, do Financial Times. Nessa economia gerida por colunistas, aboliram-se todos os conceitos mais simples e, por isso mesmo, intelectualmente mais enfadonhos: corte de gastos, disciplina fiscal e aumento de impostos, que implicam um período de ajuste, com arrocho salarial, desemprego em massa e quebradeira generalizada.

É complicado comparar um lugar ao outro. Os Estados Unidos tomam dinheiro emprestado com juros iguais a zero, o Brasil paga 15%. Eles planejam gastar em investimentos, a gente gasta com custeio.

Mas, se Paul Krugman está certo e os Estados Unidos de fato se transformaram num Brasil, o futuro da economia mundial está garantido: sairemos, com bola e tudo, pela linha de fundo.


Administradores de esquerda

"Em 500 anos de história, nunca tivemos equipes de administradores elaborando programas de governo"

Quando elogiei uma declaração de Dilma Rousseff, em VEJA de 21 de março de 2007, usei a expressão "administradores de esquerda", que intrigou muita gente.

Principalmente aqueles que pensam só existir administradores de direita. Achar que só existem administradores de direita no mundo é um preconceito e um insulto aos 2 milhões de administradores deste país. Para começar, administração é uma ciência neutra, como a engenharia e a medicina.

O que não impede que haja administradores de direita, de esquerda e de centro-esquerda, como de fato acontece. Em segundo lugar, há tempos existe no Brasil a carreira de administração pública, que de direita não tem nada.

De fato, administradores de direita são encontrados em empresas controladas por empresários de direita. Mas a maioria dos administradores é de centro e centro-esquerda, embora nem todos se definam assim.

São aqueles que administram empresas "sem dono", são aqueles que administram empresas de capital aberto e democrático, são os administradores socialmente responsáveis, que estão crescendo em número e poder. Foram eles que lutaram pela pulverização do capital, enfraquecendo assim o controlador capitalista, que foi a primeira ação da esquerda de fato vitoriosa.

Foram os primeiros a criar fundos de aposentadoria para trabalhadores, que hoje controlam 40% do capital americano. Foram os primeiros a criar planos de saúde aos trabalhadores. Foram os precursores do movimento de responsabilidade social das empresas brasileiras.

Ilustração Atômica Studio

No 3° Congresso Internacional de Responsabilidade Social de 1998, havia somente três administradores representando o Brasil.

Este seu colunista, o administrador Oded Grajew, criador do Instituto Ethos de Responsabilidade Social, e Henrique Meirelles, mais um desses administradores (do Coppead, Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação em Administração de Empresas da Universidade Federal do Rio de Janeiro) injustamente tachados de ser de direita.

Se Meirelles fosse de direita, não aceitaria um cargo no governo do PT, muito menos seria precursor de um movimento de humanização das empresas como esse.

Um dos grandes erros da Revolução Socialista de 1917 foi que ela eliminou, destituiu e expulsou todos os administradores da União Soviética. Dizimaram o segundo escalão da nação. Machiavel recomendava eliminar somente o primeiro escalão.

"Em meados de abril de 1918 os administradores haviam sido totalmente eliminados", orgulha-se um historiador da revolução de 1917, já que eles eram considerados lacaios do capitalismo. Acabaram também com todos os gerentes, supervisores, chefes de seção, bem como contadores e auditores, considerados "espiões" do capitalismo. O restante fugiu a tempo.

Incentivaram a autogestão, o que supõe que administradores não acrescentam valor algum à sociedade. Destruíram os sistemas de avaliação de desempenho, e a produção despencou logo em seguida. Foi esse erro que deu início à desorganização e à corrupção que ainda persiste na Rússia.

O erro foi esquecer que o socialismo precisa ser tão bem administrado quanto o capitalismo, algo que muitos intelectuais brasileiros também esqueceram. Muitos nem sequer conhecem um único administrador.

Nos Estados Unidos, a esquerda americana encabeçada por Harvard fazia justamente o contrário. Criava uma escola de administração em 1908 para formar e apoiar o "administrador socialmente responsável". Incentivaram e deram prestígio àqueles que fariam a oposição ao empresariado capitalista da época.

Infelizmente, o Brasil seguiu a linha da esquerda soviética e não a da esquerda americana. Nossos intelectuais, em vez de apoiar, demonizam o administrador nos seus textos, na mídia, nas novelas, retratando-os como fordistas, desumanos e "lacaios do capitalismo".

Movimentos sociais que alijam administradores do seu seio estão fadados ao fracasso. Por incrível que pareça, nunca tivemos equipes de administradores elaborando programas de governo, em 500 anos de história.

A esquerda raramente coloca administradores de esquerda e centro-esquerda para ser ministros, para administrar este país. Algo que a esquerda brasileira, a mais moderna pelo menos, deveria seriamente repensar.

Stephen Kanitz é administrador - www.kanitz.com.br


"Quero fazer muito sexo”

Com esse anúncio, publicado num jornal, uma sexagenária atraiu 63 interessados – e realizou o desejo com quatro deles
Martha Mendonça

JANE

Hoje, com 75 anos, ela afirma que não precisa mais publicar anúncios para fazer sexo – mas diz ter se divertido muito com os parceiros que atenderam a seu apelo

A professora aposentada Jane Juska tinha 66 anos e um jejum sexual que durava três décadas quando decidiu publicar um anúncio incomum num jornal de literatura de Nova York: “Antes de completar 67 anos – no próximo mês de março –, eu gostaria de fazer muito sexo com um homem de quem eu goste”.

Jane, então divorciada e já com um filho adulto, imaginou que no máximo dois ou três homens dariam retorno. Mas sua caixa postal recebeu 63 respostas. Ela escolheu alguns dos candidatos e marcou encontros para conhecê-los pessoalmente.

Fez sexo com quatro deles (um de cada vez). O ato de coragem só não foi maior que, anos depois, contar suas aventuras no livro Uma Mulher de Vida Airada – Memórias de Amor e Sexo depois dos 60 (Editora Rocco), que chega ao Brasil nesta semana.

Jane afirma que antes de publicar o anúncio se perguntava se nunca mais teria um homem – e essa dúvida fez soar um alarme.

“A maioria das pessoas de idade, em especial as mulheres, têm medo de correr riscos”, diz. “Preferi agir a esperar que alguma coisa acontecesse”. Antes de publicar o anúncio, ela havia tentado outras formas de despertar o interesse em potenciais parceiros. Freqüentou bares e festas, em vão.

Quando percebeu que a idade não era sua aliada numa paquera, desistiu. Ela diz ter acreditado que era melhor o celibato que a humilhação. A ousadia de publicar o anúncio mudou sua vida.

Quando as respostas dos pretendentes começaram a chegar, Jane teve o luxo de poder escolher. Ela separou as cartas, como conta no livro, em montinhos de sim, não e talvez.

Escolheu os mais originais e equilibrados – já que sua caixa postal recebeu até mensagens pornográficas e fotografias de nu frontal.


ERROS CLÁSSICOS

Tenho espírito maligno. Adoro os erros dos outros. Especialmente os erros dos filósofos clássicos. Adoro lembrar detalhes sórdidos citados por um historiador secundário chamado Will Durant.

A humanidade, mesmo nos seus melhores momentos, foi terrível. Em Atenas, até hoje elogiada por sua democracia, de 400 mil habitantes, 250 mil eram escravos. Mulheres e estrangeiros também não contavam.

Aristóteles, o primeiro grande observador científico, achava que o homem possui oito costelas de cada lado. Já a mulher teria menos dentes que o homem. Talvez o homossexualismo dominante entre os gregos explique essas falhas de pesquisa de campo do gênio.

Spinoza, um dos filósofos mais em voga atualmente, via no medo e na esperança as explicações para as ações humanas. Era um determinista.

Apesar disso, considerava importante castigar os hereges, 'sem ódio', sendo importante, depois, perdoá-los por serem ignorantes. Meu filósofo predileto, o mal-humorado Schopenhauer, via as mulheres como seres de cabelos compridos e idéias curtas. O amor, segundo ele, é o resultado da ação dos instintos em busca do parceiro ideal para a reprodução.

Cada um procuraria no outro aquilo que não tem para legar ao rebento. As mulheres, tendo beleza, buscariam nos homens, mesmo feios, coragem, energia, determinação e atitude.

Schopenhauer não podia imaginar uma sociedade na qual o sexo, protegido por anticoncepcionais, não estivesse voltado para a reprodução.

Nos estudos sobre a metafísica do amor, o filósofo definiu que os homens preferem mulheres entre 18 e 28 anos, faixa ideal para ter filhos, com bom esqueleto, fundamental para carregar um filhote, mesmo com um rosto feio. Já as mulheres teriam predileção por homens de 35 anos, com uma boa situação financeira.

Pés pequenos e dentes fortes também contariam muito, pois os dentes, bem entendido, permitem uma boa alimentação.

Pobre filósofo, não podia prever a era das top models. Mulheres muito altas estavam para ele entre as menos admiradas pelos homens. Errou feio. Salvo se, como dizem as más línguas, a valorização das taquaras seja típica dos heterodoxos que mandam na moda.

Boa parte do que Schopenhauer escreveu não se aproveita. Basta pensar nesta pérola: 'Foi necessário que a inteligência do homem se achasse obscurecida pelo amor para que chamasse belo a esse sexo de pequena estatura, ombros estreitos, ancas largas e pernas curtas'.

Em contrapartida, afirmou que a vida de cada um oscila entre a dor e o tédio. O grande mal que tortura cada homem é o desejo. Só aquilo que não se tem alcança valor incontestável.

'Sentimos a dor, mas não a ausência da dor. Sentimos a inquietação, mas não a ausência da inquietação, o temor, mas não a segurança. Sentimos o desejo e o anelo como sentimos a fome e a sede.' Schopenhauer vai ao extremo: 'Se um Deus fez este mundo, eu não gostaria de ser esse Deus: a miséria do mundo me esfacelaria o coração'.

Garante que, se o criador fosse um demônio, não faltaria um acusador para dizer-lhe: 'Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada para fazer surgir uma tal massa de desgraça e de angústias?'. Toda essa amargura é o resultado da falta de amor materno.

A mãe de Arthur só queria fazer festa. Schop não viu sereia alguma num doce balanço a caminho do mar. A simples vista de Gisele Bündchen teria mudado metade da sua filosofia. Mas acertou, como sabem os publicitários, no essencial: o ponto frágil da humanidade é o desejo.

juremir@correiodopovo.com.br

Um ótimo sábado e um excelente fm de semana - Gostei do texto endosso as palavras do Juremir

quinta-feira, 27 de novembro de 2008



A PROFESSORA E A FAXINEIRA

Era uma vez um estado que se considerava culto, politizado e desenvolvido. Acima da média das demais unidades da Federação. Um dia, uma professora e uma faxineira encontraram-se numa parada de ônibus. A professora estava triste. Ganhava pouco.

Lamentava, com o cartão eletrônico, não poder mais vender as fichas de ônibus para arredondar o fim do mês. O governo não queria pagar o piso nacional fixado em lei para o magistério.

Ela havia seguido os colegas numa greve desesperada de final de ano. Por causa disso, estava prestes a perder 15 dias do seu parco salário. O governo fazia a chantagem de sempre e jogava a sociedade contra os professores, alegando prejuízo às crianças. A faxineira perguntou:

– Quem é mais importante para a sociedade, eu, que deixo uma casa como um brinco, passo, lavo e, muitas vezes, cozinho, ou quem ensina nossos filhos a ler e a escrever?

A professora hesitou. Não queria ofender a faxineira. Mas estava convencida de que o seu papel era mais importante. Afinal, estudara para exercer a sua profissão, da qual toda a estrutura social depende.

– Eu também passo, lavo, cozinho e deixo a minha casa como um brinco – disse a professora em tom conciliador. – Faço isso depois de ter ensinado um dia inteiro.

– Não seja por isso – emendou a faxineira. – Eu também tenho uma dupla jornada de trabalho. Passo, lavo e cozinho para a minha família depois de ter passado, lavado e cozinhado para a família dos outros.

– Não duvido disso – admitiu a professora. – Mas as coisas têm valores diferentes. Cada atividade tem a sua função social. Mas existem diferenças e hierarquias.

– Eu ganho R$ 80,00 por faxina, chego a fazer duas num dia, não dependo do Estado e não levo trabalho para casa – disparou a faxineira, que era meio neoliberal e completamente cética.

– Quanto você ganha por dia? A professora ficou vermelha. Gaguejou. Fez as contas. Finalmente, muito constrangida, confessou:
– Bem, com a complementação, ganho uns R$ 30,00 por dia.

– E você teve de estudar pra ganhar 30 pilas por dia? Não tem lógica esse negócio. Como pode ganhar menos quem se preparou mais? Por que não faz faxina? Tem vergonha?

Chocada, a professora teve um sobressalto de dignidade. Empertigou-se. Por fim, defendeu-se chorosa: – Eu amo o meu trabalho. Nasci para isso. É uma missão. – Enquanto pensar assim, vai ganhar menos.

– As duas coisas são verdadeiras. O magistério é profissão e missão. Mesmo que o salário seja baixo, continua sendo uma atividade especial, que exige amor.

A faxineira sorriu. Havia algum cinismo no seu sorriso. Não se pode confiar em faxineiras neoliberais.

– Vai ver que sou faxineira por isso. Não entendo essa história. Todo mundo diz que a educação é tudo, mas os professores ganham menos do que nós.

Nunca ouvi alguém falar que ser faxineira é um sacerdócio, uma missão ou atividade essencial. Ninguém nos dá valor em discursos. – É uma questão complexa. Somos muitos professores...

– Policiais e professores deviam demitir-se em massa – radicalizou a faxineira, que era também meio anarquista e de faca na bota. – Se não tiver professor e policial, os salários vão aumentar. A sociedade vai acordar.

Foi a vez de a professora rir com certo cinismo. Não disse coisa alguma por elegância. Limitou-se a pensar: – Como são ingênuas as faxineiras e cruéis os governantes.

juremir@correiodopovo.com.br

quarta-feira, 26 de novembro de 2008



26 de novembro de 2008
N° 15801 - MARTHA MEDEIROS


Saga Lusa

O que Chico Buarque, Vitor Ramil, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Thedy Correa, Duca Leindecker, Fernanda Takai, Gabriel o Pensador, Kledir Ramil e Nei Lisboa têm em comum? Acertou, são escritores. Todos eles lançaram livros, já que são familiarizados com a palavra desde que iniciaram aquela outra atividade, a música.

Há quem torça o nariz: agora qualquer um escreve! Sorte deles, porque não é qualquer escritor que pode fazer o caminho inverso: subir num palco e cantar direitinho.

Pois abram alas para mais uma forasteira no mundo das letras: Adriana Calcanhotto acaba de lançar Saga Lusa, uma viagem lisérgica que narra os dias em que saiu da casinha durante uma turnê em Portugal, tudo por causa de uma overdose de remédios que quase lhe custou a vida – mas que espertamente, ela “curou” com literatura da boa.

Quando eu digo por aí que escrever é terapêutico, sei que estou chafurdando num clichê mais que reprisado, mas o que é um clichê senão uma verdade mil vezes repetida? Escrever cura. Só que nem todo ser humano que se aventura nesse tipo de tratamento consegue um resultado acima da média.

Muitas vezes, o jorro de palavras deve ser mantido no anonimato, o que se quer apenas é que a catarse ajude a recuperar a saúde mental perdida. Mas quando vale a pena compartilhar, ave! Que a arte seja espalhada.

O livro de Adriana é uma viagem no melhor dos sentidos – ao menos para nós, leitores, porque para ela foi violento. Dias inteiros sem dormir, dificuldade de comunicação, o pânico de não conseguir “voltar”, pesadelos, delírios, shows cancelados e Lisboa vista por trás da janela de um hospital, sem poder ser desfrutada – perder a consciência nem sempre é um barato, pode ser um tremendo desconforto.

Mas Adriana tinha duas armas poderosas contra suas alucinações: bom humor e um laptop. E se pôs a escrever tudo o que estava lhe ocorrendo, de uma forma tão divertida, que a gente até pensa: essa guria está inventando. Não estava, mas se estivesse, maior ainda o seu mérito.

Adriana é elegante em suas composições e demonstra, com Saga Lusa, ser elegante também em suas decomposições.

Desestruturada, maluca, revoltada, não importa: consegue rir de si mesma e isso é a prova maior da grandeza de uma pessoa, qualquer pessoa. É nessas reações de humor e inteligência diante do desconhecido que se pode dizer: o mundo tem jeito.

Muita água, muita calma nessa hora, e tudo se resolve. Olha, Adriana, não chego a desejar outros surtos reais, mas os irreais podem ser provocados sem danos à sua integridade. Cante e escreva: esgote-se em seu incrível talento.

Nico Nicolaiewsky ainda não escreveu nenhum livro, mas enquanto não entra pra turma, aproveite que ele está de volta ao Theatro São Pedro com o show Onde Está o Amor?, no próximo sábado e domingo. Uma viagem, também.

Aproveite a quarta-feira - Um excelente dia para você.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008



24 de novembro de 2008
N° 15799 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O colecionador de livros

Os escritores são alvo preferencial de perguntas indiscretas.

São as que me faz Y., uma leitora que quer saber como trato minha biblioteca, como a formei e se compro livros ou ganho. Y. pretende organizar sua própria biblioteca e acha que sou uma espécie de autoridade na matéria, por causa de uma crônica que escrevi aqui o outro dia.

Ledo engano, Y. Para começo de conversa, minha biblioteca é herdada. Tive um pai e uma mãe que amavam os livros, e uma das primeiras paisagens que guardo na memória são arranha-céus impressos ocupando todo um escritório da casa da Rua Sete, em Cachoeira. Como muitas dessas obras eram de Direito, acabaram desterradas em sucessivas mudanças.

Mas por essa altura eu já tinha sido contaminado pelo vírus do colecionador. Tudo o que sobrava das mesadas, ou, mais tarde, dos primeiros salários, era gasto, em ataques de invencível prodigalidade, nos balcões das livrarias.

Cheguei a morar num apartamento em que peças inteiras, mais os corredores, eram tomados por fatias da literatura universal.

Ao me mudar para este em que vivo, tomei uma resolução heróica. Reservei um único lance para as prateleiras. Foram todas construídas a capricho – sem esquecer vidros protetores – por um emérito carpinteiro desta praça.

Aí sucedeu o drama. O número de meus livros era superior ao espaço disponível nas estantes, problema que resolvi da forma mais simples.

Elegi os volumes de que não queria me separar – uma das decisões mais difíceis de minha vida de leitor – e doei os restantes para escolas e para o Mensageiro da Caridade.

Hoje meus livros passam bem, obrigado, Y. São disciplinadamente divididos pelo país de origem, por gênero, por época e por autor.

Sei onde está cada um nas ordenadas fileiras que vão do chão ao teto. Ganho muitos de presente, mas não perdi o vício de comprar outros tantos. Faço novas doações de tempos em tempos.

Algum dia não haverá lugar para mais. Mas te prometo desde já, Y., que não faltará espaço para a tua primeira coletânea de poemas.

Ótima segunda-feira e uma excelente semana

sábado, 22 de novembro de 2008



23 de novembro de 2008
N° 15798 - MARTHA MEDEIROS


De biquíni no shopping

Lá nos idos de 1997, quando alguns dos meus leitores ainda eram crianças, eu escrevi uma crônica chamada Provação, uma palavra que significa sofrimento e infortúnio. E o assunto era era sobre isso mesmo. Sobre a provação (ato de provar) biquínis em lojas. Sofrimento. Infortúnio.

Se eu precisasse fazer uma lista das coisas que menos gosto na vida, ela não seria muito extensa, pois vim ao mundo com uma boa dose de benevolência, mas “experimentar roupa” certamente constaria desse rol.

Por exemplo, já me apaixonei por alguns vestidos expostos nas vitrines, porém não costumo levar o caso de amor adiante: só de imaginar o ritual de aproximação me dá uma preguiça oceânica.

Ter que entrar numa cabine, tirar os sapatos, a calça, a camiseta, o blusão (imagine que é inverno), colocar a peça nova sem poder retirar a etiqueta, a atendente esperando ansiosa do outro lado da cortina, a luz estourada do provador realçando todas as deficiências da sua epiderme, o espelho não sendo muito caridoso com seus quadris (engraçado, ontem eu não estava assim redonda) e seus pensamentos avisando: você não tem bolsa que combine com esse vestido, criatura!

Esqueça, não serviu. Tire tudo, recoloque seus muafos (suas roupas envelheceram 10 anos nos últimos 10 minutos), enfrente a cara de decepção da atendente e volte correndo pra casa. No trajeto você lembrará: que gênia eu sou, sigo sem um único trapo para usar hoje à noite, e a festa é lá em casa, pra que bolsa?

Tudo café pequeno diante da tarefa inglória de provar biquínis. Sei que você não quer falar sobre isso, mas é preciso, estamos em plena época do suplício, o verão está batendo à porta. Aposto 10 contra um que você passará o Réveillon em alguma praia. Vai ter que comprar pelo menos um biquíni novo. Unzinho só. Não dá pra escapar.

Então, ao trabalho: coloque um sorriso no rosto e finja que é a coisa mais normal do mundo ficar nua dentro de um provador minúsculo forrado de espelhos por todos os lados, mostrando você de frente, de costas e de lado em sua infinita brancura glacial. Sim, você ainda não está bronzeada.

Segue leitosa, o que não valoriza nada o biquíni que está provando, mas tudo bem, abstraia, pense que é final de fevereiro e que até sua alma já está torrada. Agora é só torcer para que a parte de cima sirva e a parte de baixo também, o que é praticamente um milagre.

Eu abençôo todas as lojas que vendem as partes do biquíni de forma avulsa, permitindo que a gente misture estampas e troque os tamanhos. P em cima, GG embaixo. Acertei? Claro que não, logo se vê que me falta silicone – inclusive no cérebro.

Quem não nasceu Ana Hickmann aqui faz, aqui paga e aqui se diverte, porque só rindo de certas provações femininas.

Um excelente domingo especialmente para você.

Diogo Mainardi

Penso, mas existo?

"Se Descartes ordena, estou pronto a me sacrificar. Ele determinou meus investimentos na bolsa de valores por meio do livro Os Axiomas de Zurique, de um certo Max Gunther"

Descartes pode me arruinar. Ele mesmo, René Descartes, o pensador francês do século XVII, do Discurso do Método. Na última semana, ele se materializou em meu escritório, com aquele seu aspecto de lateral-direito do Boca Juniors, e ordenou que eu aplicasse imediatamente todas as minhas economias na bolsa de valores. O que fiz? Fechei os olhos e obedeci.

Eu já tinha pensado em fazer o mesmo em meados de outubro, quando Warren Buffett, num artigo para o New York Times, anunciou que aplicaria todo o seu dinheiro no mercado acionário dos Estados Unidos.

Ele ditou uma regra simples para orientar os investimentos na bolsa de valores: "Tenha medo quando os outros estão gananciosos, e seja ganancioso quando os outros estão com medo".

Do dia em que o artigo de Warren Buffett foi publicado até este momento, o Dow Jones já despencou mais de 15%. Em vez de contrariar o senso comum, obedecendo à regra de Warren Buffett, tive medo quando os outros tiveram medo e me dei tremendamente bem.

Mas Warren Buffett é Warren Buffett e Descartes é Descartes. Em latim, o truísmo soaria melhor. Se Descartes ordena, estou pronto a me sacrificar.

Ele determinou meus investimentos na bolsa de valores por meio do livro Os Axiomas de Zurique, de um certo Max Gunther. Retificando: ele determinou meus investimentos na bolsa de valores por meio de um trecho do press release de Os Axiomas de Zurique, porque nem precisei ler o livro.

O trecho dizia que, para especular com sucesso na bolsa de valores, é preciso fazer como Descartes, duvidando sempre das verdades estabelecidas. Dito de outra maneira: se todos estão fugindo da bolsa de valores, pode ser uma boa oportunidade para entrar nela. O que eu fiz? Entrei.

"Penso, logo existo." Em latim, soa melhor: "Cogito, ergo sum". Segundo Os Axiomas de Zurique, o principal enunciado de Descartes sugere que o investidor pense por conta própria. Eu fiz o oposto: deixei que Descartes pensasse por mim. Assim como as ações da Aracruz, a metafísica cartesiana atingiu um novo mínimo.

A única certeza que eu tenho é: "Descartes pensa por mim, logo Descartes existe". A rigor, nem isso. Eu só posso afirmar sem titubear o seguinte: "O vulgarizador de Descartes me meteu nessa baita enrascada da bolsa de valores, logo o vulgarizador de Descartes existe".

De fato, seguindo o método de Descartes, nada impede que eu seja apenas um produto da mente de Max Gunther, o autor de Os Axiomas de Zurique. Nesse caso, quem arcará com o prejuízo não serei eu, e sim ele.

Quem terá de mendigar nas ruas não serão meus filhos, e sim os dele. Por isso, para mim não importa se os aloprados do governo brasileiro decidiram aumentar o salário dos servidores em mais de 40 bilhões de reais. Com toda a probabilidade, eu nem existo.

Lya Luft

Uma panela de água e sal

"Não acredito em grandes mudanças neste tempo de ideologias confusas e cabeças loucas, mas tenho esperança em algumas transformações individuais"

O habitual rio de desgraças nos chega pelos jornais e TVs: política e polícia, mediocridade geral e alienação particular, todo o drama humano – não insolúvel, mas nunca resolvido. A crise atual, que mal começa e vai piorar, tem de um lado o medo, de outro a arrogância, e produz férias forçadas ou desemprego.

Tem gente que ainda diz que não há crise. Tem gente cortando despesas e tremendo nas bases do otimismo, por modesto que ele seja. Tem gente mandando a gente deixar de bobagem e consumir. Que fazer?

Ilustração Atômica Studio

Os vinte grandes do mundo – em parte responsáveis pelo que nos atinge – almoçam em torno de uma mesa luxuosa num intervalo do seu jogo de vantagens, poder e enganos.

Num país vizinho, uma mãe de 20 anos com cara de anciã e menos de 1,5 metro de altura, com um bando de filhos mirrados, segura um bebê, o único que vagamente sorri. Indagada sobre o que tem em casa para lhes dar de comer, a mãe responde olhando para o jornalista: "Hoje é uma panela com água e sal".

Fala quase num tom de quem pede desculpas. A panela aparece, realmente fumega no fogãozinho de pedras dentro do casebre. Desligo o noticioso como se fosse um filme obsceno – é um filme obsceno. Mas ligo outra vez: é preciso saber.

Notícias da pobreza brasileira: crianças comendo nos lixões, mais famílias meio anãs porque desnutridas, um menino esquelético de belíssimos olhos escuros cansado de carregar água ladeira acima – baldes de água leitosa tirada de uma poça barrenta.

Enquanto isso, trilhões em dinheiro circulam pelos mercados (Vou receber e-mails repetindo que empobrecer os ricos não ajuda aos pobres: nem todos entendem o que escrevo, mas botar a cara na janela é para isso também.).

Não acredito em grandes mudanças neste tempo de ideologias confusas e cabeças loucas, em que a gente muda de partido ou de ideal como quem compra um celular novinho. Mas tenho esperança em algumas transformações individuais.

Talvez esteja me tornando ferrenhamente individualista, não por egoísmo, mas por esperar que cada um tente fazer a sua pequena parte. Trabalho de formiguinha: se alguém pagar à empregada o melhor que pode pagar, em vez de lhe dar o mínimo que a lei exige, alguma coisa já mudou.

Se, em vez de querermos atordoadamente ter e aparecer, participar e pertencer e sobressair, pensarmos em alegria e afetos; se acreditarmos que o bom e o belo são possíveis, apesar de tudo; se conseguirmos ser um pouco menos cegos e arrogantes, quem sabe começaremos a cair na real e a ajeitar a ordem do mundo que anda tão torta.

Um pai de aluno, numa escola onde estive, estava preocupado com "o excesso de possibilidades que se oferecem a jovens e crianças", e com razão. Isso é tão preocupante quanto a vasta miséria.

A desigualdade sempre vai existir, pois não somos bonecos feitos em série: haverá os menos talentosos, os mais inteligentes, os mais enérgicos e os menos capazes. Mas aquela mãe com seus filhos esqueléticos não precisava existir.

Agora, na televisão, três crianças, de 5, 7 e 8 anos, três lindas menininhas, enchem pequenos baldes com areia. Não é para brincar: elas estão, diz o irmão de uns 12 anos, "trabalhando". Ajudam a família carregando areia morro acima, a prefeitura do seu vilarejo paga por isso.

Não é no Brasil, mas é perto, e, com certeza, por aqui temos esse tipo de crime. Essa gente não pensa em crise: do nascimento à morte, sua vida é uma escuridão de fundo de poço. Para eles, o que conta é a dor da barriga sem comida e a da alma sem esperança.

Desligo a TV e vou cuidar da vida. Carrego, mais do que o caos nas finanças do mundo, o palavrório dos vinte figurões e as dificuldades que se avolumam. Aquela mãe de metro e meio com seus sete filhos tristes.

O pano de fundo é uma fumegante panela de água com sal, toda a sua refeição para esse dia.

Lya Luft é escritora


Um teto para quem precisa

A ONG Um teto para meu país, criada no Chile e presente no Brasil há pouco mais de um ano, reúne jovens de classe média alta para construir casas de madeira em favelas da América Latina
Margarida Telles

Rosana Maria da Silva espera a construção de sua nova casaRosana Maria da Silva olha tensa para o espaço vazio onde ficava o seu barraco e, instintivamente, protege com as mãos a barriga de nove meses de gravidez.

À sua frente, dez jovens que ela não conhece discutem, empolgados, sobre o melhor lugar para posicionar uma tora de madeira chamada de piloti. Eles não são da Projecta, favela espremida entre indústrias de Guarulhos, na Grande São Paulo, perto do Aeroporto de Cumbica.

Vieram de regiões nobres da cidade, e a maioria cursa a universidade. No início do mês, em vez de aproveitarem o final de semana para se divertir, foram construir casas na favela.

Quem os reuniu foi a ONG Um teto para meu país, entidade nascida no Chile que, há pouco mais de um ano no Brasil, já ergueu 131 habitações em áreas carentes, principalmente na Grande São Paulo, com a ajuda de cerca de 500 voluntários.

Três dias antes de receber seu novo lar, Rosana ainda estava numa lista de espera para conseguir uma das casas emergenciais, de madeira, erguidas sobre palafitas e que resistem por cerca de cinco anos.

Na véspera da construção, a jovem de 20 anos foi procurada por voluntários com a notícia de que ela poderia receber a casa. Não haveria mais o mutirão na Vila dos Sapos, favela perto da Projecta, devido a uma briga de gangues. Rosana não hesitou ao aceitar a demolição de seu antigo barraco.

“Não fiquei com medo, pois não tinha muito a perder”, diz a dona-de-casa, que já tem um filho de dois anos. A renda da família vem do marido, caminhoneiro, e raramente passa dos R$ 300. “Espero que, com essa casa, as coisas melhorem um pouco”, afirma.

O objetivo do Teto, como é conhecida a ONG, é justamente promover a interação entre pessoas que normalmente não se relacionariam. Mas nem todos os moradores de uma favela reagem com a mesma confiança que Rosana depositou em jovens que não pertencem àquele ambiente.

Uma semana antes do início do mutirão, alguns voluntários geralmente vão para a favela, avaliar os terrenos onde serão erguidas as casas e aproveitam para conversar com a comunidade, tentando garantir uma boa convivência.

Na Projecta, o mecânico Mauro Fernando da Silva, que vive lá há 13 anos e atua como um líder comunitário, teve papel fundamental nessa integração.

“No começo, tive dificuldades em convencer os moradores a confiar nos voluntários. Minha mulher e eu tivemos que dar apoio, inclusive emprestando dinheiro, para que as coisas andassem”, diz Silva.

No Brasil, a casa-padrão erguida pelos voluntários do Teto tem um custo de cerca de R$ 3,4 mil. O dinheiro costuma ser doado por empresas. No entanto, se tiver condições, a família que recebe a casa, escolhida com base na renda e no tipo de moradia, paga 10% desse valor. Normalmente, um grupo de dez jovens é formado para cada casa construída.

No mutirão da Projecta, os voluntários ergueram seis habitações no lugar dos barracos. Ninguém tinha muita experiência em construção civil, embora alguns fossem estudantes de engenharia e arquitetura. Assim, os mais experientes treinavam os novatos.

Voluntários constroem casa na favela ProjectaConforme as casas iam sendo erguidas, diminuía a resistência dos moradores. Aos poucos, eles começavam a conversar, se dispunham a ajudar e ofereciam café com bolachas de água e sal.

As refeições eram feitas na casa de amigos ou parentes dos que iam receber as casas de 18 m². À noite, os voluntários dormiram numa escola pública cedida pela prefeitura de Guarulhos.

Esta não foi a primeira vez que o Teto foi à favela Projecta. Em julho, a família de Maria do Socorro Lima, que tem oito filhos, foi uma das beneficiadas.

E ela faz questão de mostrar sua gratidão pelo trabalho dos jovens. “Agora eu tenho uma casa que não pinga, não entra chuva, que não tem o risco de dar um vento e eu encontrar os meus filhos soterrados. Antes, as crianças ficavam doentes de tanto rato, mas agora eles não sobem mais.”

A auto-estima de Maria aumentou tanto com a nova casa que ela decidiu procurar o ex-marido para cobrar a pensão de seus filhos. “Se desconhecidos ajudaram tanto os meus filhos, o mínimo que o pai deles pode fazer é ajudar também.”


PAPATA DOS PEDÁGIOS

Eu acredito no que leio nos jornais. Sou ingênuo? Não sei. Acredito e fico perplexo. Chego a passar horas refletindo sobre as notícias do dia. Tenho muito tempo livre. Ontem, por exemplo, fiquei ensimesmado com o que li neste nosso intrépido Correio do Povo: 'Yeda vai a Brasília apelar ao ministro pelos pedágios'.

Não me espantei, como faria certamente um francês, com o tratamento informal dado à governadora do Estado, chamada pelo nome, como uma velha amiga, mas com o conteúdo mesmo da informação.

Não li em lugar algum uma manchete assim: 'Yeda apela ao ministro pelos professores'. Fiquei sabendo, ao contrário, que a governadora insiste em não abonar as faltas dos grevistas do magistério estadual.

O Brasil é um país clonado. Tudo possui um duplo. Pagamos previdência pública e privada, segurança pública e privada, educação pública e privada. Os impostos funcionam como pedágios pagos ao Estado.

Visto que não funcionam corretamente, metemos novamente a mão no bolso para resolver nossos problemas com serviços privados. O Estado vende dificuldades. A iniciativa privada cobra pelas facilidades. Um não vive sem o outro. Tem pedágio para tudo.

Conheço um sujeito que paga pedágio para visitar a amante. Ela mora no fundo de um pátio. Para atravessar o corredor que leva ao local do 'crime', sem provocar escândalo, o cara paga sem reclamar. A estradinha não é grande coisa, mas dá para o gasto.

Outra notícia que me chamou a atenção foi esta: 'Pont diz que proposta é negociata'. O deputado Raul Pont foi, referindo-se à prorrogação dos pedágios, ainda mais longe: 'Se mantido este processo, estaremos diante de uma das maiores negociatas que já se viu neste Estado. A CPI do Detran vai ser bobagem perto disso.

Esse vai ser o maior escândalo que este Estado já viveu, com esta negociata para beneficiar cinco ou seis concessionárias'. Fiquei atônito. Não sou amigo de Raul Pont. Sempre o considerei um homem sério.

Acredito no que ele diz. Procurei no Aurelião o termo negociata: 'Negócio em que há logro ou trapaça. Negócio irregular, suspeito. Mamata, papata'.

Será que vão processar o deputado Raul Pont? Ele está dizendo que tem mutreta no caminho dos gaúchos? Eu ando muito por essas estradas pedagiadas. São boazinhas. Nenhuma parece um tapete mágico. Funcionam. Ao menos.

Pensei em ligar para Raul Pont. Não tenho o seu número de telefone. Consultei novamente o dicionário. Cheguei à conclusão de que ele só podia estar falando em 'papata'. Não devia estar pensando em trapaça. Eu sou muito lógico.

Só pode ser 'papata'. Estou convencido de que Raul Pont quis dizer que 'estamos diante de uma das maiores papatas que já se viu neste Estado'.

Eu nunca tinha ouvido falar em papata. Achei que era batata. Imaginei batata como uma metáfora para pepino ou abacaxi. Seria, digamos, uma influência de Luiz Inácio no terreno das imagens inusitadas. Continuei a pesquisar. Papata é papata.

Folheei assustado o amansa-burro. Cheguei, enfim, ao vocábulo papata. Ele é definido economicamente: negociata. É um círculo vicioso. Como os pedágios.

Paga-se para entrar e sair. Tenho certeza de que, em juízo, Raul Pont não hesitaria. Estava falando em papata, cujo sentido original foi desvirtuado com o tempo. É batata!

juremir@correiodopovo.com.br

Ótimo sábado e um excelente fim de semana

quarta-feira, 19 de novembro de 2008



19 de novembro de 2008
N° 15794 - MARTHA MEDEIROS


Insatisfação crônica

Que sou caidíssima por Woody Allen, todos sabem, e que arrasto uma asa para Pedro Almodóvar, também não é segredo. Então pode-se imaginar o quanto saí satisfeita do cinema depois de assistir Vicky Cristina Barcelona. Satisfação, aliás, que os personagens do filme não parecem alcançar.

Pudera: Doug que amava Vicky que amava Juan Antonio que amava Maria Elena que amava Cristina que não amava ninguém. O happy end nunca passou tão longe de uma história.

Que história? Duas jovens americanas resolvem passar férias na Espanha. Uma está noiva de um homem padrão e não quer saber de aventuras, a outra está para o que der e vier, basta que surja um guapo bem disposto, e surge: um pintor que traz na bagagem uma separação mal resolvida com uma tresloucada e que resolve seduzir as duas turistas, mesmo com a ex-esposa na cola. Salve-se quem puder.

Mas não é um filme sobre desencontros. Ao contrário, é um filme sobre buscas. Dessa vez, Allen se permitiu ir além de si próprio: colocou pinceladas de uma ousadia almodovariana e, se eu não andei vendo coisas, há no roteiro algo de Truffaut também.

O resultado é um filme universal, como universal tem sido a nossa insaciedade.

Num tempo nem tão distante, você podia fantasiar o que bem entendesse, desde que seguisse o manual de instruções: casar e ter filhos. Se, mais tarde, acontecesse o imprevisto de uma frustração extrema, que se procurasse alguma saída, mas sem estardalhaço.

Essa é a situação da anfitriã das turistas no filme, uma senhora casada há uns bons 40 anos que, mesmo ainda amando o marido, sonha com uma grande paixão, mas declara-se impossibilitada de rescrever sua própria história - sente que o tempo dela passou.

Já Vicky e Cristina têm o tempo jogando a favor e vivem numa sociedade que não cessa de manter bem alto o nível de excitação geral. Internet, cinema, novelas, revistas, livros, música: tudo nos conduz a pensar que a vida não tem o menor sentido se a gente não sentir prazer 25 horas por dia.

E onde se esconde esse tal de prazer? Se você procurá-lo num casamento, estará renunciando às outras alternativas. Se, ao contrário, passar em revista todo homem ou mulher que lhe der um sorriso promissor, tampouco terá garantia de encontrar o que procura.

O que é que a gente procura? A tal festa no outro apartamento, a tal grama mais verde do vizinho, o tal êxtase que parece estar sempre na outra margem do rio.

Numa recente entrevista, Woody Allen disse que, de certa forma, tinha intenção de provocar tristeza com Vicky Cristina Barcelona.

Ainda que o filme tenha mesmo um toquezinho melancólico, Allen é elegante e engraçado em qualquer situação, e o que ele consegue, como sempre, é apenas (apenas?) nos mostrar como é megalômano o projeto de alcançar a plenitude dos sentidos. Mas a gente não aprende e vai morrer tentando.

Aproveite o dia - Uma ótima quarta-feira.

sábado, 15 de novembro de 2008



16 de novembro de 2008
N° 15791 - MARTHA MEDEIROS


O mundo dos vivos

Quando alguém morre, costuma-se dizer que não faz mais parte do mundo dos vivos. Me pergunto: é preciso morrer pra deixar de fazer parte do mundo dos vivos? Não são poucos os zumbis que andam por aí. Quantos de nós, que nos autoproclamamos vivos pelo simples fato de ainda estarmos respirando, realmente honramos o verbo viver?

Nem todos mantêm residência no mundo dos vivos. E não sabem o que estão perdendo.

No mundo dos vivos todos sentem alguma coisa. Uns sentem uma felicidade transbordante, outros estão sofrendo por amor, alguns ficam indignados, outros não conseguem conter o entusiasmo, há os que têm medo da estagnação e há aqueles que venceram esse medo e enfrentaram seus demônios.

No mundo dos vivos, não há um único habitante que diga para si mesmo: não estou sentindo nada. Se não está sentindo nada, ora, não está vivo.

No mundo dos vivos todos pensam por conta própria. Para isso, cultivam um hábito elementar: lêem. E não lêem qualquer coisa só por passatempo.

Lêem livros que abrem suas mentes, livros que estimulam sua imaginação, que os fazem rir e que os fazem ficar chocados, que os ajudam a reconhecer em si o que estava escondido, livros que provocam, livros que ousam, livros que lêem os leitores por dentro.

No mundo dos vivos, não há um único habitante que despreze o conhecimento e o acesso a novas percepções. Se despreza, ora, não está vivo.

No mundo dos vivos, além de se ler muito, reverencia-se a arte em todas as suas manifestações. As pessoas compreendem que arte é a prática do desrespeito, ótima definição que li num livro de Mario Sergio Cortella.

Respeitam-se as leis, mas aplaude-se a transgressão, o questionamento incessante, a inovação, a diferença, o inusitado. No mundo dos vivos não há um único habitante que não se sinta estimulado por aquilo que lhe inquieta. Se não se estimula, ora, não está vivo.

No mundo dos vivos, o tédio não é aceito como algo normal e inevitável. A repetição de atitudes não é considerada uma proteção, e sim um mau sintoma. Os preconceitos não são encorajados.

Do mesmo modo que há problemas, sabe-se que há soluções. No mundos dos vivos, cada dia é um presente a ser aproveitado. O que passa na tevê é entretenimento barato, o luxo está na realidade, qualquer uma que tenhamos criado com autenticidade e coragem.

No mundo dos vivos, há mais perguntas que respostas, mais audácia que conformismo, engata-se mais a primeira do que a ré. Não há um único habitante que consola-se com a própria incapacidade, ao contrário: estudar, aprender e tentar são sinônimos de viver.

Os zumbis habitam outro mundo, e não vivem: vagam.

Aproveite o domingo - Uma ótima semana

Carlos Giffoni

Quer ficar assim?

Desista. Para isso tem de contratar a personal trainer de Madonna e fazer ginástica extenuante e regime de fome

PEQUENA MESTRA

Tracy, em pose de artista: "Não trabalho com gente preguiçosa"

Quando desembarcar no Brasil em dezembro, para shows no Rio de Janeiro e em São Paulo, Madonna poderá até aproveitar a solteirice recém-adquirida, mas a companhia mais consistente (na verdade, músculo puro) será Tracy Anderson, a personal trainer de quem não desgruda, sobretudo durante as turnês.

Como exige seu ofício, Tracy, 33 anos, é uma propaganda ambulante de si mesma. Baixinha, parece insignificante na foto abaixo. Mas, mostrada em ação como na foto maior, a ex-bailarina de 1,52 metro e 44 quilos vira um fenômeno de pernas poderosas, braços esculpidos e barriga tão negativa que parece que vai encostar na coluna vertebral.

Tracy assumiu o treinamento de Madonna há dois anos e fez o impossível: esmerilhou ainda mais o corpo de uma bailarina e malhadora compulsiva que tem o compromisso perante o palco mundial de sempre fazer mais e melhor.

Chegou até a cantora por meio de uma amiga a quem prestava serviço, a atriz Gwyneth Paltrow, outro inacreditável caso de evolução estética. Por intermédio das duas clientes famosas, encarou um terceiro e bem maior desafio, o representado pela estilista Stella McCartney, cuja silhueta mais cheia já conseguiu afinar consideravelmente.

O que faz de Tracy uma instrutora tão especial? Um método de exercícios (e dieta, se precisar) que reúne intensidade brutal e muita variedade de movimentos, trabalhando em particular a musculatura periférica, de forma a deixar o corpo feminino esculpido com precisão, mas sem o jeitão pesado de quem malha demais.


"Eu tenho a sorte de conhecer dança e coreografia. Apoiada nesse conhecimento, e também em pesquisas e estudos, sou capaz de inventar equipamentos e movimentos que vão formar o corpo que a cliente quer", afirmou a VEJA, com modéstia inversamente proporcional à altura.

"Consigo olhar para uma pessoa e saber exatamente do que ela precisa. Exijo o compromisso de treinar seis dias por semana, umas duas horas por dia. Se esse esquema for seguido, os resultados são imediatos. Reduzo qualquer manequim 44 para 36."

Tracy é dona de uma academia de ginástica em Los Angeles desde 2004 (pretende abrir outra em Nova York em 2009).

Chama-a pelo nome mais chique de "estúdio" e resume em poucas palavras o que atraiu a clientela famosa: "Todo mundo começou a ver resultados incríveis". Inclusive Gwyneth, que em 2006, com 9 irremovíveis quilos a mais decorrentes da gravidez do segundo filho, recorreu a seus préstimos, gostou, indicou para as amigas e mudou a vida da treinadora.

No estúdio, os alunos têm aulas particulares – mensalidade de 575 dólares, ou 1 300 reais – num aparelho cheio de molas e cordas chamado Hybrid Body Reformer, que Tracy projetou e para o qual criou cerca de 3.000 movimentos.

Um dos talentos dela é justamente inventar exercícios, quase todos baseados em seus tempos de balé, e depois adaptá-los à esteira, aos levantamentos de peso, aos abdominais e às frenéticas coreografias que preconiza. Nascida em Indiana, Tracy foi à meca dos aspirantes a artista, Nova York, decidida a fazer carreira na dança.

O sonho gorou quando engordou 15 quilos. Na busca de meios de voltar à forma ("Nada que existia no mundo funcionava comigo"), pesquisou durante dez anos, desenvolveu seu próprio método e mudou-se para o mundo da educação física.

Sempre por perto das três meninas poderosas, Madonna, Gwyneth e Stella, Tracy está solteira e tem um filho de 10 anos. Não se mete de jeito nenhum no divórcio da cantora, cercado de boatos de que a dedicação dela à malhação era tamanha que não abria espaço às obrigações conjugais com o ex, Guy Ritchie.

Mas, de forma geral, o que Tracy acha melhor, sexo ou ginástica? "No momento, ginástica", responde. Jura que adora comer, embora o cardápio seja desanimador.

"Barrinhas de cereal, que, além de gostosas, são muito nutritivas"; sucos verdes "com muita cenoura, espinafre e repolho"; bebidas energéticas ("Sou viciada"); e à noite pratos leves, "como uma salada com salmão ou frango".

Passa a maior parte do tempo em Nova York e Londres, cuidando das clientes famosas, mas agora o mundo dela gira inteiramente em torno de Madonna.

Seu dia começa às 7 horas e acaba por volta de meia-noite, dividido entre a manhã com o filho, depois treino pessoal e, por fim, a ocupação principal – Madonna, Madonna e Madonna.

"Tenho de exercitá-la e cuidar da preparação para suas apresentações quase toda noite", diz.

Para a cliente de 50 anos com corpinho fenomenalmente esculpido de 30, só tem elogios: "Ela é extremamente talentosa e dedicada. Eu não trabalho com gente preguiçosa". Dá para perceber.

Claudio de Moura Castro

Ônibus é educação?

"A globalização é vista como ameaça. Mas aprender com o que deu certo em outras partes também é globalização"

Um prefeito do Vale do Jequitinhonha fez questão de me mostrar seus dois ônibus escolares, recém-importados dos Estados Unidos. Com eles, eliminava as escolas rurais de classes multisseriadas.

Ou seja, escolas com apenas uma sala de aula reunindo alunos de várias séries no mesmo espaço. Pior, obrigando a única professora a lidar ao mesmo tempo com alunos de diferentes níveis de conhecimento.

Faz mais de um século que as escolas começaram a separar os alunos de acordo com o ano em que ingressaram. Isso permitiu ensinar a cada grupo o que corresponde ao seu nível de avanço. É a escola que conhecemos. O que hoje parece uma invenção trivial trouxe uma pequena revolução.

A Unesco e o Banco Mundial revisaram as pesquisas sobre o desempenho das escolas multisseriadas na África, na Ásia e em outras regiões pobres. Quase sempre os resultados obtidos nessas escolas são amplamente inferiores aos das seriadas. Portanto, devemos louvar o prefeito, por haver comprado seus ônibus.

Será? Em conversa com Thorsten Husen, considerado o decano dos educadores europeus, perguntei-lhe o que achava das escolas multisseriadas. Ele me ofereceu dois comentários. O primeiro é que havia estudado em uma, na zona rural da Suécia. O segundo é que não se sentia absolutamente prejudicado por haver freqüentado tal escola. O ensino era, pelo menos, tão bom como o das outras.

Ilustração Atômica Studio

Ainda hoje, sem exceções, todos os países europeus adotam essas escolas. Seu número é significativo. Os Estados Unidos e o Canadá também. Há muitas escolas assim, e elas voltaram a se expandir nas últimas duas décadas. No mundo, cerca de 30% das escolas têm três salas ou menos.

No Canadá, 16% dos alunos estudam em classes multisseriadas. Ainda mais relevante, nos países mais ricos, as avaliações revelam resultados obtidos nessas escolas em nada inferiores aos das outras, como já havia indicado Husen. Podem até ser melhores. E são respeitadas. Não sofrem preconceitos, como aqui. Aliás, entre nós, são preconceitos quase sempre justificados, pois apresentam pior desempenho.

Perpetuou-se nos países mais pobres a idéia de que a escola multisseriada é um ícone do atraso educativo. Só se justifica quando não há densidade demográfica para preencher várias salas nem recursos para os ônibus. Mas não serão os ônibus um grande equívoco? O prefeito gastou um dinheiro que não precisava?

Milhares de outros prefeitos oneram as despesas da educação rural com transporte. Os ônibus, freqüentemente, dobram os custos por aluno. Curiosa situação: os europeus, ricos e gastadores com o ensino, adotam escolas com apenas uma sala, misturando todas as séries. Nós, pobretões, desdenhamos essas escolas e corremos a comprar os ônibus que permitem recolher a meninada toda e juntá-la em uma unidade maior, com a seriação convencional.

O enigma é de simples solução. Faz mais de 100 anos que estamos lidando com escolas em que, para cada série, há uma sala. Com a experiência, já secular, aprendemos a lidar com elas. Em contraste, rigorosamente nada conhecemos das técnicas de manejo de escolas multisseriadas. Não é surpresa que a improvisação inevitável dê maus resultados.

Os professores não têm idéia do que fazer. Os países bem-sucedidos com essas escolas desenvolveram soluções eficientes que permitem manejar as turmas com pleno sucesso. E essas técnicas são tradicionalmente ensinadas nos cursos de formação de professores.

Complicadas demais? Vejam as áreas rurais da Colômbia, onde nasceu a Escuela Nueva, programa para escolas multisseriadas. Lá foi feito substancial investimento para desenhar os métodos e técnicas apropriados.

E valeu a pena, pois o rendimento dos alunos é superior ao apresentado pelos que estudam em escolas urbanas. Deu tão certo que a Escuela Nueva está sendo adotada na zona urbana.

E, se consegue sucesso nas montanhas de Cali, teria de funcionar no Brasil. Já há algumas réplicas, nos estados do Norte e Nordeste. E em vários casos elas funcionam muito bem. A globalização é vista como ameaça. Mas aprender com o que deu certo alhures também é globalização.

Claudio de Moura Castro é economista

Rodrigo Cardoso e Carina Rabelo

Elas estão traindo mais

Na geração até 25 anos, metade das mulheres assume que já foi infiel e o ambiente de trabalho é o local que mais favorece as escapadas

INSATISFEITA CARLA TRAIU O MARIDO PORQUE ESTAVA INFELIZ COM SUA VIDA SEXUAL

Fim do expediente. Ela recolhe a papelada da mesa, desliga o computador e sai com a nécessaire a tiracolo em direção ao banheiro. Lá, do alto de seu 1,78 metro, ajeita a meiacalça antes de caminhar sem pressa para a frente do espelho.

De olhos bem abertos, começa conferindo um tom mais vivo às bochechas alvas e termina escovando os cabelos castanho-claros até quase a cintura. Faltava apenas o batom, que ela sacou da bolsa e calmamente deslizou apenas no lábio inferior, que, por compressão, tingiu o superior.

Do lado de fora da empresa, o rapaz que a aguarda dentro do carro vê a hora no relógio e examina o movimento ao redor antes de checar o penteado no retrovisor. Tudo pronto, ela dá o passo final com uma mensagem enviada pelo celular, enquanto desce as escadas: "Oi, amor, vou entrar em uma reunião aqui no trabalho e chegarei mais tarde em casa."

O que há de novo no comportamento feminino descrito acima? Não é a mulher protagonizar uma história de infidelidade. Clássicos da literatura, como Anna Karenina, de Tolstoi, e Madame Bovary, de Flaubert, provam que o comportamento é antigo.

A novidade, segundo especialistas, é o fato de a traição praticada por elas estar cada vez mais freqüente - e não se revelar apenas no divã do terapeuta. Dados inéditos do estudo Mosaico Brasil 2008, coordenado pela psiquiatra Carmita Abdo, do Projeto Sexualidade (ProSex) da USP, revelam que cada vez mais as brasileiras pulam a cerca.

Foram ouvidas 8.200 pessoas em dez capitais (leia quadro à pág. 70). Basta um olhar sobre três gerações para ficar claro que o padrão de infidelidade delas vem se modificando. Das entrevistadas acima de 70 anos, apenas 22% confessaram ter tido alguma relação extraconjugal.

O índice sobe para 34,7% para as mulheres entre 41 e 50 anos e atinge o pico de 49,5% entre as de 18 a 25 anos. "A traição masculina ainda é maior, mas está estável. Já a praticada pela mulher tem crescido", afirma Carmita, autora de Descobrimento sexual do Brasil. Nos consultórios, a sensação é a mesma.

Especialista em relacionamento amoroso, o psicólogo Aílton Amélio da Silva, da USP, vai ainda mais longe. Para ele, a brasileira trai pouco. "As oportunidades aparecem diariamente e encontram- se pessoas bonitas o tempo inteiro", diz ele, autor do livro Para viver um grande amor. "Mas, se antigamente havia uma agulha no palheiro, hoje, com certeza, há três."

Não é à toa que o jardim do vizinho tem parecido mais interessante aos olhos do sexo feminino. O cenário atual é amplamente favorável e a liberação sexual atingiu um patamar único na história, com maridos apavorados queixando-se para o terapeuta que a esposa quer manter relações sexuais todo dia.

"Eu não tinha mais sexo em casa. Meu marido não dava conta", diz a gerente de banco paulista Carla* (*nomes fictícios), de 27 anos, que foi casada por cinco anos.

Ela trocou o marido pelo amante depois de passar dois anos mantendo um relacionamento extraconjugal. "Fiquei carente e com quem vou conversar? Com o cara que eu via todo dia: passei a me relacionar com o dono do restaurante onde eu almoçava", conta.

Especialistas no assunto afirmam que, à luz da percepção social, compreendem-se mais as escapadas femininas, apesar de o machismo ainda imperar. Não são poucos os casos em que a Justiça brasileira determinou o pagamento de uma quantia em dinheiro, como dano moral, para homens que provam ter sido traídos.

"As pessoas estão mais corajosas para tomar atitudes. A separação é uma penalidade do adultério. O dano moral é quando o adultério expõe o outro ao vexame, à hostilidade pública e ao desrespeito", explica a advogada carioca Tânia Pereira da Silva, professora da Uerj e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam).

Há uma reviravolta histórica a se considerar também. Se antes à mulher cabia o dever de se entregar a um único homem e passar o tempo cuidando dos filhos e do lar, hoje o quadro é outro.

Houve uma queda significativa da taxa de natalidade, conquistada principalmente com a chegada dos anticoncepcionais, e a mulher, livre das amarras domésticas, optou por passar mais tempo nos escritórios e em viagens de trabalho ao lado de outros homens.

Estar em contato com o sexo oposto a maior parte do dia pode ser como riscar um fósforo ao lado de uma bomba de gasolina. É o que mostra uma pesquisa feita pela sexóloga americana Shere Hite. Segundo ela, 60% das pessoas que trabalham juntas já tiveram um envolvimento amoroso entre si.

Foi assim que a diretora de mar keting carioca Amanda* traiu o marido. "Fiquei com um amigo que trabalhava comigo na festa de final de ano da empresa, em uma boate. Cheguei em casa e meu marido estava dormindo. Deitei ao seu lado e ele nunca desconfiou", diz ela.

Com oito anos de relacionamento - metade deles casada -, a diretora de marketing pediu a separação poucos meses depois de ir para a cama com o colega de trabalho.

Antes do rompimento, encarava cada vez mais horas extras e saía com amigas com freqüência para não ter de voltar logo para casa. "Meu casamento já não tinha mais sentido", justifica Amanda, hoje, aos 39 anos.


15 de novembro de 2008
N° 15790 - NILSON SOUZA


Instantes

Nenhuma música é tão doce quanto o riso de uma criança.

Dia desses, passeava pelo centro de Porto Alegre quando vi uma mãe retirando os sapatos do seu menino para que ele caminhasse na praça colorida pelas pétalas dos jacarandás e guapuruvus. O piá pisou nas flores despedaçadas e riu um imenso riso, solto e cristalino, como se sentisse a mais prazerosa das cócegas.

Foi só um instante de magia, mas alegrou o meu dia. E me fez lembrar um trecho do célebre poema da norte-americana Nadine Stair, equivocadamente atribuído ao argentino Borges: “Se pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono...”

Há quem torça o nariz para a singeleza do texto, mas não havia legenda mais adequada para aquela cena matinal: o pequeno príncipe do cotidiano, com o seu riso de fonte, contagiava quem estivesse por perto.

Cheguei de alma leve ao trabalho e testemunhei outro momento especial no elevador. O sujeito que entrou atrás de mim segurou a porta aberta para dar passagem a um casal de jovens, ele e ela carregando pesados pacotes de jornais. Como os passageiros não podiam usar as mãos para pressionar o botão do andar desejado, o homem perguntou com um vozeirão de locutor esportivo:

– Para onde, mulato?

Quando o rapaz disse que iriam “para o quarto”, o cidadão desatou num riso malicioso que encheu o elevador e espalhou-se pelo corredor no momento em que os dois jovens desembarcaram constrangidos.

O terceiro instante diferenciado daquele dia ocorreu num lugar ainda mais inusitado, o banheiro do prédio. O rapaz que limpava pias e sanitários assobiava o hino de seu clube preferido.

E trabalhava com entusiasmo, embalado pelo som do próprio sopro, talvez imaginando-se no estádio que nunca freqüentou, vassoura-bandeira nas mãos, a bola-balde rolando na direção do gol adversário e ele dançando na imaginária arquibancada a solitária dança dos vencedores.

Ninguém é feliz o tempo inteiro, sei disso. Mas a vida também não precisa ser um vale de lágrimas.

Ao observar três personagens comuns de um dia absolutamente rotineiro, renovei minha certeza de que a verdadeira felicidade consiste em saborear pequenos momentos, em compartilhar os breves risos dos nossos semelhantes ou mesmo em acompanhar os primeiros passos de um menino descalço sobre um tapete de flores.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008



12 de novembro de 2008
N° 15787 - MARTHA MEDEIROS


Literatura menor

Um estudante de Letras me solicitou uma entrevista por e-mail que, prontamente, aceitei responder. A primeira pergunta: “A literatura de mercado é literatura mesmo?”.

Depois de 18 livros publicados, pela primeira vez entrei numa lista nacional de best-sellers. Se eu tivesse complexo de perseguição, poderia achar que fui escolhida para essa entrevista para que o garoto recebesse, direto da fonte, um panorama da pior literatura do mundo. Ainda bem que minha auto-estima está ok.

Imagino que “literatura de mercado” seja aquela que vende bem, ao contrário da literatura “artística”, que mofa nas estantes. Será? Até onde sei, toda literatura é de mercado, e dela fazem parte tanto os livros bem escritos quanto os mal escritos. Se vende, é ruim? Se não vende, é bom? Me parece um pouco simplista. Segunda pergunta:

“Qual a razão do sucesso desse tipo de literatura?”.

Creio que os leitores preferem ler algo que entendam e que seja de seu gosto, mas vá discutir gosto. O que é preciso lembrar é que um autor não produz esse tipo de literatura de caso pensado.

Alguns acreditam que basta escrever um texto fácil, de identificação imediata, e depois é só aguardar as moedas caindo na piscina, feito um tio Patinhas.

Fosse moleza assim, os “escritores artísticos” se valeriam do mesmo truque (criando um pseudônimo, lógico) e ficariam milionários da noite pro dia. Por que isso não acontece? Porque cada um escreve do jeito que sabe. Eu não sei escrever como Clarice Lispector.

Se soubesse, era o que estaria fazendo. Ninguém escreve fácil de propósito, só para estourar. Ou teríamos um Paulo Coelho em cada esquina. Quem não gostaria de possuir um apartamento em Paris onde é possível praticar arco e flecha no corredor?

Há os que exercem o dom da comunicabilidade sem abrir mão da sua honestidade artística. Não há nenhuma garantia de qualidade nisso, mas não se pode duvidar do caráter de quem vende direitinho.

“Acredita que a literatura de mercado tem como mérito a formação de novos leitores?” Sem dúvida. Eu, por exemplo, virei uma leitora através de Monteiro Lobato, que era muito popular quando eu era criança, o que o enquadraria em literatura de mercado, suponho.

“A literatura menor pode incentivar leituras de obras maiores?”

Sim, um leitor pode começar lendo a mim e chegar a García Márquez. Mas o que importa é que tenha prazer pela leitura, o que já é um avanço num país de iletrados, onde milhões de pessoas nunca seguraram um livro.

“A literatura séria está fadada ao desaparecimento?”

Vivemos na eterna expectativa do apocalipse. A humanidade é viciada em previsões catastróficas, sempre profetizando o fim do sublime.

Humildemente, acho que ninguém tem procuração para sacramentar o que é “sério” – e muito menos para tornar essa seriedade inquestionável. Já ouvi o genial Ferreira Gullar dizer que acha Beckett um chatonildo.

Ou seja, é importante estudar teoria da literatura, desde que ninguém seja catequizado. Opinião pessoal também conta.

Ótima quarta-feira - Aproveite o dia

segunda-feira, 10 de novembro de 2008



10 de novembro de 2008
N° 15785 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Da fama e do dinheiro

Success. É com essa brevíssima palavra que Somerset Maugham conta a si mesmo, em seu diário (A Writer’s Notebook), que se tornara rico e famoso do dia para a noite. Quatro de suas peças atraíam multidões aos teatros de Londres e lhe rendiam, há precisamente cem anos, 750 libras por semana, uma fortuna em qualquer moeda na época.

Eis aí um tema que sempre me despertou curiosidade. A trajetória de alguém deve ser medida por seu êxito e sua fortuna no caminho que escolheu? No caso do velho bruxo inglês não sucedeu exatamente assim.

Ganhou rios de dinheiro num gênero ao qual não atribuía grande importância: a dramaturgia. Era um romancista e – quilômetros além disso – um contista.

Os críticos jamais lhe perdoaram um deslize: converteu-se num milionário com o produto de seus livros. Ainda existe aliás uma bem orquestrada conspiração para sentenciá-lo ao posto de um escriba de terceira categoria.

Creio que Erico Verissimo e a Editora Globo foram dos raros a intuir, no Brasil da década de 30, que o autor de O Fio da Navalha e O Tesouro se alinhava à estirpe de um Fielding ou de um Maupassant.

Esses tempos, procurei visitar a Villa Mauresque, sua casa na Riviera Francesa. Dois obstáculos me impediram a entrada: os muros da mansão e um guia americano, cavalheiro que demonstrou tanto interesse pela literatura quanto eu tenho pela malacologia.

Mas aqui dou meia-volta e retomo o prumo destas poucas e maltraçadas. Não, não creio que o êxito e a riqueza devam ser norte e guia da jornada de um escritor. Maugham observou apenas a esse respeito que o dinheiro é o sexto sentido que nos permite desfrutar melhor dos outros cinco.

Acumular cabedais e aplausos é por vezes questão de sorte ou de berço. Bem mais raramente, o prêmio ao talento ou ao gênio.

William Somerset Maugham é hoje recordado por uma dezenas de criações imortais, a começar por Servidão Humana, não pelo requinte de Villa Mauresque, a tonelagem de seu iate ou o número de Rolls Royces estacionados em sua garagem. Tenho visto velhos exemplares de suas obras nos balaios da Feira. Há sempre compradores para eles.

O que me leva a pensar que o destino é um deus caprichoso. Recompensa com a glória quem jamais sonhou com ela e trata a pão e água quem lhe vota a mais intensa paixão.

Uma ótima segunda-feira e uma excelente semana.

sábado, 8 de novembro de 2008



09 de novembro de 2008
N° 15784 - MARTHA MEDEIROS


Caça às bruxas

É uma cena clássica: o homem vê um belo exemplar de fêmea caminhando pela calçada. Ela está de costas pra ele. Um corpo ótimo, cabeleira até a cintura. Uma gatinha. Então ele passa por ela, vira para ver o rosto e surpresa: não é uma gatinha, é uma mulher de mais de 40 anos. De corpo ótimo e cabeleira até a cintura, e daí?

Daí que essa cena me parece meio macabra. Um homem maduro não se importaria, mas um garoto de 17 se sente enganado, já que se convencionou que mulheres, depois de uma certa idade, precisam tomar juízo e aparar as melenas, caso contrário, correm o risco de receber uma vassoura e um caldeirão de presente.

Ainda assim, mesmo com toda a campanha para que os cabelos subam à medida que o corpo cai, é um sacrilégio pedir que as mulheres tosem os cabelos por força da “adeqüação”. Ora, que os cortem por causa da moda, da tendência, da renovação, mas não por imposição social.

Legislando em causa própria de novo?

Pois é. Nasci carequinha, e carequinha fiquei por anos, apenas com umas mechinhas ralas, pífias, com as quais eu nada podia fazer. Na adolescência, o cabelo não era lá muito farto também. Não crescia. Eu olhava para aquelas meninas de cabelão liso, escorrido, brilhoso, e pensava que Deus não era justo. Foi mais ou menos nessa época que abandonei a Igreja e comecei a rezar pelo Capilax.

Mais tarde, só bem mais tarde, é que meu cabelo cresceu e apareceu, e eu fiz as pazes com o Senhor. Finalmente longo, eu podia fazer o que bem quisesse com ele, de rabo-de-cavalo a coque, mas eu quase sempre o deixava solto, e solto ele seguiu comigo. Hoje, não chego a ser uma rapunzel, mas ainda o mantenho abaixo do ombro.

Cortar não precisaria ser uma idéia torturante. Bastaria a gente se inspirar no que acontece no outro lado do mundo. Na Europa, o cabelo comprido foi abolido das cabeças femininas. Em Londres, não há uma única mulher com fartura capilar. Nenhuma. Todas elas possuem um visual moderno, limpo e atualizado. Não se avista uma única Perla num raio de mil quilômetros.

Cabelão é coisa de peruana, mexicana, brasileira. Os homens gostam, dizem. E a gente se apega, faz trança, joga para um lado, puxa para trás: um exagero de cabelo, bem a nosso gosto latino.

Pra quê? Não é para manter a juventude, já que cabelo curto é que remoça. Só pode ser por amor às tradições. Apego ao passado. Culto à Iracema. Uma alma ancestral.

Ou é por covardia, mesmo.

Com que idade você acha que uma mulher deve se livrar das suas melenas históricas? Se você responder que nunca, eu pego minha vassoura e vou aí agradecer pessoalmente.

Excelente domingo, especialmente a você

quarta-feira, 5 de novembro de 2008



05 de novembro de 2008
N° 15780 - MARTHA MEDEIROS


O isopor e a neve

Aconteceu comigo. Eu, que trabalho em casa, senti uma necessidade súbita de sair, atravessar paredes, ganhar as ruas por alguns minutos, a fim de renovar o fôlego para continuar a escrever.

Precisava enviar uma correspondência e resolvi: vou a pé até uma agência dos Correios, tem uma a cinco quadras de onde moro. Fui.

Cheguei lá, não sem antes ter sido quase atropelada, foi por um triz. Despachei a carta, saí da agência e foi então que eu vi: um caminhão havia deixado cair no meio da rua um saco enorme cheio de isopor. O caminhão seguiu seu rumo sem perceber o rastro que ficou pra trás.

Em segundos, aquele isopor em lâminas foi se transformando em pedaços miúdos. Os carros passavam por cima e o isopor se desintegrava em partículas que se movimentavam para cima e para os lados em câmera lenta, de tão leves.

Parei, porque se eu atravessasse a rua de novo, não haveria uma segunda chance: seria atropelada de fato. Eu não estava mais em mim. Via nevar em Porto Alegre no meio de uma tarde de novembro. Neve de isopor.

Qualquer semelhança com Beleza Americana é, sim, uma feliz coincidência. Se você viu o filme, não pode ter esquecido aquela cena. Um saco plástico vazio sendo movimentado pelo vento durante alguns minutos.

Apenas a câmera e o saco plástico dançando em slow motion diante dos nossos olhos. Certamente, uma das cenas mais bonitas e poéticas que já vi no cinema.

Foi bem assim. Pedacinhos de isopor que pareciam flocos de neve dançavam sobre o asfalto numa tarde abafada de Porto Alegre. Carros velozes passavam por cima, e os isopores ali, flutuando lentamente, alheios à pressa urbana. O que significava aquilo?

Nada.

Por isso o estranhamento. Por isso a singeleza. As coisas sem significado são tão raras, acontecimentos gratuitos costumam ser tão despercebidos, que, se você percebe, ganha o dia.

Foi uma cena real, não de cinema, e por isso não teve trilha sonora, os motores dos automóveis violavam o silêncio, mas dentro da minha cabeça ouvi música clássica por alguns segundos, encantada com a neve no asfalto.

Aí o isopor foi se dispersando, se dispersando, e eu comecei a me sentir uma idiota parada no meio da calçada, inerte, como se tivesse testemunhado um atropelamento. Metaforicamente, é o que havia acontecido. Eu havia sido atropelada.

Não um atropelamento como quase havia ocorrido minutos antes, quando um carro tirou um fininho de mim em plena faixa de segurança, mas foi outro tipo de atropelo:

fiquei paralisada por ter sido platéia de um pouco de poesia no meio de uma tarde de um dia útil, que se mostrou útil justamente quando parei de trabalhar.

Voltei pra casa e escrevi este texto sem propósito, em homenagem à neve que também não era neve.

Você tem todos os motivos pra duvidar, mas meu livro Doidas e Santas reúne crônicas bem mais inspiradas que esta. Estarei autografando amanhã na Feira do Livro, às 18h30min. Apareça.

Ótima quarta-feira - Aproveite, ame, namore - Tenhamos todos um ótimo dia.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008



03 de novembro de 2008
N° 15778 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Pássaros de primavera

Há qualquer coisa neste apartamento onde me abrigo que atrai aladas dinastias de visitantes. Por sucessivas primaveras, isto aqui foi a pista de aterrissagem de tico-ticos, pardais e cambacicas, o palco de sua dança nupcial, o jardim de infância de seus filhotes. Depois, chegou o turno das andorinhas.

Vindas de distantes terras ou nascidas pelas vizinhanças – já que os descuidos que votamos à ronda das estações acabaram subvertendo suas migrações de antigamente –, passaram a me dar o prazer de sua companhia. Não sei quantas gerações desses pássaros de um belíssimo azul-noturno aprenderam a conhecer os mistérios da vida e do universo numa mínima sacada oculta desta casa.

Eram, não duvido, linhagens de uma mesma e imensa família. Nunca lhes pedi certidão de nascimento, mas aprendi a conhecê-las – avós, pais, filhos –, ou por certa parecença de visual e modos, ou por um certo jeito de sorrir que tinham.

Após, sobrevieram uns tempos ásperos. Desertaram-se as sacadas e jardins de meus hóspedes habituais – suponho que foram cantar todos em outras freguesias. Eis senão contudo que, numa manhã do último setembro, havendo levantado mais cedo para concluir um chatíssimo trabalho, escutei de repente arrulhos.

Arrulhos – me apresso a esclarecer – são uma fala ou conversa meiga, terna, carinhosa. Era, outra vez, um diálogo de pássaros. Não me perguntem como pude adjetivá-lo. Essas coisas não se aprendem, essas coisas são espontâneas. Me lembro que pensei: tem aves arrulhando de novo neste apartamento, e isto é bom. Refletido o que, fui cuidar de minha tarefa.

Meus atuais hóspedes formam um par com decidida queda para o romantismo. Já na antemanhã identifico suas declarações de mútuo amor e desejo. Tem dias em que me pergunto se não serão parte de um sonho. Há outros em que me indago se não serão capítulos de minhas próprias, idas lembranças.

O resto é segredo. Nem consegui ver qualquer dos pássaros – embora os imagine índigo-blue – nem faço remota noção de seu nome ou de sua definição ornitológica.

Isso, aliás, nem importa. Na real, importa mesmo é que voltou a ser primavera por estas alturas da Rua Duque.

Ótima segunda-feira e uma excelente semana para todos nós.

sábado, 1 de novembro de 2008



02 de novembro de 2008 | N° 15777AlertaVoltar para a edição de hojeMARTHA MEDEIROSmar­thamedeiros@terra.com.br

Nadismo e tudismo

N o final de semana passado fui à festa de comemoração dos 30 anos de formatura do colégio Bom Conselho. As dinossauras estão todas bonitas e em forma, aviso antes das piadinhas.

A gente se divertiu à beça, mas o grande momento foi o discurso da Irmã Nazaré, que nos idos tempos escolares controlava quem matava aula e outros crimes dessa natureza, e que hoje, aos 85 anos, esbanja lucidez, energia e bom humor. Qual o segredo da sua vitalidade, Irmã?

– Eu não me preocupo. Eu me ocupo.

Não posso deixar de lembrar dessa resposta ao escrever sobre o assunto de capa de hoje, o Nadismo, prática difundida pelo Marcelo Bohrer, que prega a importância de não se fazer nada por alguns minutos durante o dia.

É uma proposta original e bem-vinda, porque a gente sabe o quanto é importante dar uma parada e quebrar o ritmo alucinante da nossa rotina, mas acredito que também é possível conjugar o verbo “fazer” com “relaxar”.

Meu nadismo só acontece, pra valer, durante o sono. Do momento que acordo em diante, nunca fico ao léu.

Quando não estou trabalhando ou envolvida com outra atividade obrigatória, estou lendo um livro, estou fazendo palavras cruzadas, estou revendo fotos, estou conversando com uma amiga, estou arrumando meus armários, estou assistindo a um DVD, estou retocando o esmalte das unhas, estou baixando músicas no meu iPod,

estou namorando, estou tomando um banho relaxante, estou conversando com minhas filhas, estou caminhando no parque, estou tomando um chá, estou assistindo a uma entrevista na tevê, estou me bronzeando, estou regando as flores.

Sou adepta de um nadismo produtivo, que me relaxa mais do que se eu estivesse sentada olhando para o infinito, inerte. Até lavar louça me parece algo repousante e terapêutico.

Ativar-me não faz de mim uma ansiosa, porque me ocupo com coisas que me dão prazer. Luxo, para mim, é dar bom uso às minhas horas, e consigo isso inclusive trabalhando. A minha revolução particular se deu através da prática de um “tudismo” focado no meu bem-estar e no das pessoas que convivem comigo.

Eu sei que pareço uma pessoa excessivamente plugada, e tenho realmente uma série de compromissos a cumprir, mas não sou refém deles: aprendi a dizer não, e digo.

Ter que ganhar dinheiro nunca me escravizou, e mesmo tendo contas pra pagar, como todos, não me sinto intimada a fazer coisas que não gosto. Nunca fui ambiciosa a ponto de me esgotar.

Aos que não têm pleno domínio do seu tempo, recomendo o livro do Marcelo e suas dicas para desacelerar, mas, por enquanto, não sinto necessidade de marcar um horário para me desconectar do mundo.

Meu esforço, ao contrário, deveria ser para me reconectar, porque minha mente anda cada vez mais afastada de tudo o que estressa.

Se filosofia e religião possuem algum parentesco - e acredito que possuem -, vou me manter discípula da filósofa Irmã Nazaré, me ocupando com coisas simples para viver mais e melhor, amém.

Um ótimo domingo especialmente a você.


A terra não agüenta

A humanidade já consome mais recursos naturais do que o planeta é capaz de repor. O colapso é visível nas florestas, oceanos e rios. O ritmo atual de consumo é uma ameaça para a prosperidade futura da humanidade

Roberta de Abreu Lima e Vanessa Vieira

Montagem com foto de William Whitehurst/Corbis



A exploração dos recursos naturais da Terra permite à humanidade atingir patamares de conforto cada vez maiores. Diante da abundância de riquezas proporcionada pela natureza, sempre se aproveitou como se o dote fosse inesgotável.

Essa visão foi reformulada. Hoje se sabe que a maioria dos recursos naturais dos quais o homem depende para manter seu padrão de vida pode desaparecer num prazo relativamente curto – e que é urgente evitar o desperdício.

Um relatório publicado na semana passada pela ONG World Wildlife Fund dá a dimensão de como a exploração dos recursos da Terra saiu do controle e das conseqüências que isso pode ter no futuro.

O estudo mostra que o atual padrão de consumo de recursos naturais pela humanidade supera em 30% a capacidade do planeta de recuperá-los. Ou seja, a natureza não mais dá conta de repor tudo o que o bicho-homem tira dela.

A conta da ONG foi feita da seguinte forma. Primeiro, estimou-se a quantidade de terra, água e ar necessária para produzir os bens e serviços utilizados pelas populações e para absorver o lixo que elas geram durante um ano.

A seguir, esses valores foram transformados em hectares e o resultado dividido pelo número de habitantes do planeta. Chegou-se à conclusão de que cada habitante usa 2,7 hectares do planeta por ano. Nesta conta, o brasileiro utiliza 2,4 hectares.

De acordo com a análise, para usar os recursos sem provocar danos irreversíveis à natureza, seria preciso que cada habitante utilizasse, no máximo, 2,1 hectares. Se o homem continuar a explorar a natureza sem dar tempo para que ela se restabeleça, em 2030 serão necessários recursos equivalentes a dois planetas Terra para atender ao padrão de consumo.

Essa perspectiva, conclui o relatório, é uma ameaça à prosperidade futura da humanidade, com impacto no preço dos alimentos e da energia.

Nos últimos 45 anos, a demanda pelos recursos naturais do planeta dobrou. Esse aumento se deve, principalmente, à elevação do padrão de vida das nações ricas e emergentes e ao crescimento demográfico dos países pobres.

A população africana triplicou nas últimas quatro décadas. O crescimento econômico dos países em desenvolvimento, como a China e a Índia, vem aumentando em ritmo frenético a necessidade de matérias-primas para as indústrias.

China e Estados Unidos, juntos, consomem quase metade das riquezas naturais da Terra. O impacto ambiental da China se explica pela demanda de sua imensa população e, nos Estados Unidos, pelo elevado nível de consumo.

Nas contas da World Wildlife Fund, enquanto o chinês usa 2,1 hectares do planeta, o americano chega a utilizar 9,4 hectares. Se todos os habitantes do planeta tivessem o mesmo padrão de vida dos americanos, seriam necessárias quatro Terras e meia para suprir suas necessidades.

A exploração abusiva do planeta já tem conseqüências visíveis. A cada ano, uma área de floresta equivalente a duas vezes o território da Holanda desaparece. Metade dos rios do mundo está contaminada por esgoto, agrotóxicos e lixo industrial.

A degradação e a pesca predatória ameaçam reduzir em 90% a oferta de peixes utilizados para a alimentação. As emissões de CO2 cresceram em ritmo geométrico nas últimas décadas, provocando o aumento da temperatura do globo.

Evitar uma catástrofe planetária é possível. O grande desafio é conciliar o desenvolvimento dos países com a preservação dos recursos naturais. Para isso, segundo os especialistas, são necessárias soluções tecnológicas e políticas.

"Os governos precisam criar medidas que assegurem a adoção de hábitos sustentáveis, em vez de apenas esperar que as pessoas o façam voluntariamente", disse a VEJA o antropólogo americano Richard Walker, especialista em desenvolvimento sustentável da Universidade Indiana, nos Estados Unidos.

O engenheiro agrônomo uruguaio Juan Izquierdo, do Programa das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, propõe que se concedam incentivos e subsídios a agricultores que produzam de forma sustentável.

Diz ele: "Hoje, a produtividade de uma lavoura é calculada com base nos quilos de alimento produzidos por hectare.

No futuro, deverá ser baseada na capacidade de economizar recursos escassos, como a água".

Como mostra o relatório da World Wildlife Fund, é preciso evitar a todo custo que se usem mais recursos do que a natureza é capaz de repor.

Stephen Kanitz

O fim dos homens alfa

"Na próxima crise, tenha mais cuidado

com o poder de persuasão e sedução dos homens que querem aparecer"

A crise mundial que estamos presenciando é um fenômeno conhecido por zoólogos como o estouro da manada. Ela ocorre quando os machos alfa se assustam por alguma razão, seja um vulto de leão, um relâmpago ou um trovão.

Sem analisar a situação por um segundo, fogem em pânico, na esperança de que comido será o bezerro retardatário. As fêmeas, surpresas, fogem atrás, seguindo "o nobre exemplo" do macho alfa em disparada.

Os primeiros a sair gritando "fogo", numa casa de espetáculos, e dizendo que "200 bancos americanos vão quebrar e o mundo vai derreter" foram os machos alfa. O alfa dos alfas, o diretor-geral do FMI, saiu a público afirmando que as bolsas iriam derreter 20% em dois dias, algo que uma pessoa na sua posição jamais poderia dizer.

Boa parte daqueles que saíram resgatando fundos de investimento foram pessoas inocentes, que confiavam nos profissionais do Fed e do FMI. Mas, se eles mesmos estão em pânico, o pânico se espalha.

O macho alfa sobrevive usando a força bruta, e não a inteligência. Ele quer e detém o poder. É sedutor, aprende a falar bem, acha que sexo se consegue ou com poesia ou mentindo descaradamente. Numa crise, são os homens alfa os mais interessados em aparecer, no rádio ou na televisão, que, devido à concorrência, baixam seu padrão de seleção.

Eles tratam primeiro de salvar a própria pele. Raramente pensam nos mais fracos, como gostam de afirmar, muito menos procuram acalmá-los.

Nenhum alfa brasileiro saiu acalmando os investidores brasileiros ou estrangeiros, mostrando-lhes que o Brasil não tinha esse tal de "subprime", nem "alavancagem financeira", nem bancos com prejuízo, prestes a quebrar. Só disseram que a crise iria piorar e atingiria o Brasil, profecia que se cumpriu.

Nenhum alfa brasileiro saiu apresentando fatos concretos, informando que nossos bancos financiam governo, e não imóveis, que nosso crédito ao consumidor não passa dos 36% do PIB, contra os 160% do americano, que metade dos bancos já era estatal, que o momento era para comprar ações dos alfas apavorados, e não para sair vendendo junto.

"Será pior do que 1929", berrava o professor Nouriel Roubini, encantado com sua súbita notoriedade, correndo de entrevista em entrevista. "Será igual a 1929", afirmava o antigo alfa aposentado Alan Greenspan, quando o correto teria sido o silêncio.

Ilustração Atômica Studio

O desemprego nos Estados Unidos não chegará aos 24% de 1929 nem 4.000 bancos quebrarão. E, mesmo que 4.000 bancos quebrassem, o dinheiro hoje está em fundos DI, e não em contas remuneradas.

Os fundos DI e de investimento estão no nome dos cotistas, e não dos bancos. Eles conseguiram, com suas previsões, provocar uma corrida aos fundos de investimento, e não aos bancos, como em 1929.

As fotos do professor Roubini rodeado de mulheres são sintomáticas de alguém que quer ser associado aos alfas, ao contrário das fotos de Hank Paulson e Sheila Bair, do FDIC (a agência federal de seguro de depósitos), tentando conter o estouro da manada.

Como nessas horas nossos instintos são parecidos com os dos animais, machos alfa contaminam gente inocente. O homem ômega e a maioria das mulheres têm coisas mais importantes a fazer no meio de uma crise, como cuidar das crianças e das finanças em perigo, do que dar entrevistas.

Não se culpe por ter-se deixado levar por homens que você achou que eram mais inteligentes do que você. A crise caminhará para o fim quando os alfas cansarem de correr.

Na próxima crise, tenha mais cuidado com o poder de persuasão e sedução dos homens que querem aparecer. Aplique seu dinheiro com homens ômega mais velhos, preferencialmente avós experientes, gente que não se abala com crises, pois já as viu acontecer muitas vezes. Ignore solenemente os homens alfa, daqui por diante.

Eles são um atraso evolutivo e estão em extinção. Vire a página, mude de canal. Ouça mais aquele homem ômega que você tem em casa, aquele que não se desesperou, correndo e berrando "fogo" numa casa de espetáculos.

Confie naquele que lhe deu apoio e proteção, naquele que se preocupa com os retardatários e que ficou ao seu lado. Eles são os verdadeiros "machos" da história da humanidade, o resto é balela e encenação.

Stephen Kanitz é administrador www.kanitz.com.br

José Antonio Lima

Cuidado: você pode estar tomando um placebo

Pesquisa americana mostra que 50% dos médicos receitam com freqüência placebos ou remédios sem eficácia comprovada. A prática é difundida, mas sofre críticas do ponto de vista ético e da saúde pública

Imagine que você está com uma forte dor, desmarca compromissos, falta no trabalho e corre para o médico em busca de ajuda.

No consultório, a sua expectativa é receber um remédio que fará o incômodo passar, mas existe uma grande chance, de 50% segundo um estudo divulgado na semana passada, de que o médico prescreva uma droga inócua – os placebos – ou um medicamento sem eficiência comprovada.

Em ambos os casos, a intenção é que você sinta o efeito placebo – aquele em que a simples impressão de ser medicado produz uma reação psicológica positiva que se reflete em uma melhora real no estado de saúde do paciente.

Esse tipo de prática é comum na medicina há séculos e tem sucesso relativo para determinados tipos de doentes, mas é questionada tanto do ponto de vista ético como da saúde pública.

"Dar um placebo ou um remédio que não tem eficácia provada sem o paciente saber não é ético", diz Décio Mion, coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa Clínica do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo. "O médico não pode se sentir onipotente".

Duas das justificativas para dar esse tipo de medicamento são a pressa e o descaso com pacientes mais complicados, como os que têm algum nível de hipocondria.

"Para esse tipo de médico, o paciente incomoda. Parece que é muito mais fácil dar um remédio do que explicar o que pode estar causando problemas ao doente", afirma Antonio Carlos Lopes, professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Segundo Mion, uma motivação mais nobre para usar esse tipo de recurso é o resultado de algumas pesquisas. Em testes com pacientes hipertensos, por exemplo, chega a 20% o número de pessoas que conseguem normalizar a pressão tomando apenas placebos.

Conta muito para isso, explica Mion, o fato de a hipertensão ser uma doença com um forte componente emocional – e suscetível, portanto, ao efeito placebo.

Ainda que esse efeito positivo tenha sido demonstrado empiricamente, o uso de placebos é controlado em quase todo o mundo. No Brasil, a restrição foi ampliada em 22 de outubro deste ano pelo Conselho Federal de Medicina.

O texto da entidade proíbe a participação de médicos em pesquisas que utilizem placebo quando houver disponível tratamento eficaz já conhecido.

Para as pesquisas, a fiscalização funciona, mas o problema é quando os placebos são substituídos por remédios ineficazes. Nesses casos, não há controle.

Pesquisa

Na semana passada, pesquisadores das universidades de Chicago, Harvard e do National Institutes of Health, um dos órgãos de pesquisa mais respeitados dos Estados Unidos, publicaram no British Medical Journal (BMJ) um levantamento feito com clínicos gerais e reumatologistas, médicos que tratam com freqüência pacientes com condições clínicas debilitantes, e que são difíceis de diagnosticar.

Segundo os dados, 50% dos 679 médicos entrevistados confirmaram que receitam drogas sem efeito comprovado aos pacientes. Quase 70% dizem que o medicamento é "potencialmente benéfico, mas não usado tipicamente para a sua condição".

A pesquisa revelou que, dos remédios receitados, apenas 5% são os placebos usados em pesquisas – pílulas de açúcar (2%) e injeções salinas (3%). O grosso é formado por analgésicos que podem ser comprados em farmácias, vitaminas e até sedativos e antibióticos.

Para os médicos contrários à prática, a prescrição desse tipo de medicamento amplia o problema. "Quanto às vitaminas, não há tanto problema, mas o caso do antibiótico é ainda mais grave, pois pode criar resistência no paciente e dificultar tratamentos futuros", diz Décio Mion, do Hospital das Clínicas.

Quanto aos sedativos, o perigo é que uma pessoa medicada com um remédio desse tipo fique sonolenta, e não possa fazer atividades como dirigir ou trabalhar com materiais perigosos.

O que é preciso fazer então para escapar desse tipo de receita? Talvez o melhor seja procurar um médico que valorize a relação com o paciente.

"Muitas vezes um médico que tenha carisma, postura e esteja disponível para o paciente pode resolver o problema sem usar medicamentos, especialmente quando questões emocionais estão envolvidas", diz Antonio Carlos Lopes, da Unifesp.

Mas um outro dado da pesquisa mostra que as críticas e a polêmica acerca do tema não devem diminuir a quantidade de médicos que fazem esse tipo de prescrição.

Enquanto 50% dos entrevistados receitam placebos e remédios sem eficácia comprovada, 62% acreditam que essa prática é eticamente aceitável. Ao que parece, mesmo que os pacientes tentem evitar essa situação, a decisão está nas mãos apenas dos médicos.