terça-feira, 31 de maio de 2011



31 de maio de 2011 | N° 16716
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Doce de pronunciar

Quando eu estudava no Curso Clássico, então um ritual de passagem para o vestibular e para a universidade, era um requisito básico conhecer a língua portuguesa. Isso significava dominar tanto a ortografia, como as normas de concordância verbal e nominal, sem falar, é claro, na gramática.

Pois não é que agora o MEC abençoa a publicação – e paga – de um livro, adotado por meio milhão de alunos do ensino fundamental, que ensina que a norma culta é apenas mais uma entre as maneiras de expressar-se? Traduzindo: quando eu digo os automóvel, ao invés de os automóveis, estou apenas usando uma variação popular do idioma, perfeitamente aceitável.

Trata-se de um erro crasso. Em uma época na qual a competição profissional exige exatidão e conhecimento, uma frase tipo Eu amo os livro é o caminho mais curto rumo ao insucesso num concurso ou numa prova de admissão.

Falei antes no Curso Clássico. Era o percurso obrigatório para quem desejava uma vaga numa Faculdade de Direito, Letras ou Filosofia. Isso não absolvia os estudantes do Curso Científico de se aplicarem na língua portuguesa, mesmo se seu destino fosse uma Escola de Engenharia ou de Medicina.

Nos mergulhavam até em Camões. As aulas de análise sintática – base do Latim – nos ocupavam por horas inteiras. E quem não entendesse nem Camões nem o Latim não passava de ano.

Tudo isso tinha um propósito. Era o de nos familiarizar com a norma culta, sem a qual ninguém ia a lugar nenhum. Literalmente, mesmo que você fosse um aluno de Física Quântica, era necessário que soubesse escrever 30 linhas de uma redação em que o sujeito chamasse e o predicado respondesse no tom exato, com pontos, vírgulas e complementos no lugar certo.

Sei que hoje tudo é diferente. Por alguns anos até, a redação acabou sendo banida do vestibular e o Francês, o Latim e a Filosofia expulsos dos currículos. As coisas felizmente vêm mudando para melhor.

Mas nada autoriza o MEC a aprovar, financiar e distribuir obras que agridem o idioma.

Pois a língua portuguesa é, segundo Rodrigues Lobo, branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar.

domingo, 29 de maio de 2011


DANUZA LEÃO

Um amigo leve

Não espere considerações sobre a complexidade dos sentimentos, mas ninguém será melhor companhia

É SEMPRE ASSIM: com tanto para fazer e sem tempo para nada, a gente acaba negligenciando um monte de coisas, entre elas nossos afetos.

E como os sentimentos não sobrevivem sem uma certa atenção, um dia se começa a achar que o coração não consegue -e nunca mais vai conseguir- gostar, ou ao menos sofrer por alguém.

Mas o tempo passa, aquele amigo que a gente via o tempo todo viaja e um belo dia você sente saudades dele. Preste atenção: esse fato é mais merecedor de uma comemoração do que qualquer data querida. Ter saudades de um amigo, há quanto tempo isso não acontecia? Ah, que coisa boa.

Uma simples saudade faz com que você se sinta viva, mesmo que sejam saudades apenas de um amigo -como se um amigo pudesse ser chamado de "apenas". Mas tantas vezes você amou apaixonadamente, e quando ele fez uma viagem sentiu um alívio, até para descansar de tanta paixão e poder se encher de cremes, sem ele por perto para reclamar? E tem melhor do que de vez em quando ter aquela cama enorme só para você, e até dormir com a televisão ligada?

Ter um amigo é coisa muito boa, e sendo um que não te patrulha, não te inveja, não te analisa nem discute a relação, é bom demais -e raro. Um amigo tão bom que te aceita do jeito que você é, que não faz perguntas indiscretas, que te entende e está por ali sem ser, jamais, invasivo. Você sabe de certas particularidades dele, ele das suas, mas delas não falam, só quando é necessário. E com pouca intimidade.

O excesso de intimidade pode ser fatal, mesmo entre mãe e filho, marido e mulher. A intimidade física não é nada, perto da dos pensamentos e sentimentos.

Pode ser pior do que ouvir a pergunta "em que você está pensando?". Pode sim: é quando alguém tenta analisar a razão pela qual você disse ou fez determinada coisa num determinado dia, pretendendo, assim, conhecer você melhor do que você mesma se conhece.
Um distanciamento saudável é indispensável às boas relações humanas.

Qual a primeira qualidade que deve ter um amigo? Bem, além das clássicas, como lealdade, fidelidade, discrição sobre as intimidades que ouviu nas horas do aperto, disponibilidade para escutar as histórias, bom humor, e mais o quê? Leveza. Ter um amigo leve é uma benção dos céus.

Não espere dele considerações sobre a vida e a complexidade dos sentimentos humanos, mas ninguém será melhor companhia para jantar, viajar, conviver, do que um amigo leve. Já pensou, passar três dias seguidos com um amigo profundo?

Se estiverem tomando banho de mar, ele pode se lembrar do tempo em que era criança, falar da relação que tinha com a mãe e o pai, e daí para cair no divã é um pulo; eles gostam de falar como são tolos os banqueiros e políticos, que só pensam em dinheiro e poder e não compreendem que a vida real etc. etc., quanta profundidade.

Com essa mania, quando estão numa rede em frente à praia, comendo um camarãozinho frito e tomando uma cerveja estupidamente gelada, se esquecem de que nessa hora o bom é não pensar em nada.

É isso que faz um amigo leve; ele não diz nada, apenas usufrui a vida, e quem tiver a sorte de estar perto dele vai ter momentos de grande felicidade - ou pelo menos quase isso.
Com um amigo assim, até a vida fica mais leve.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 28 de maio de 2011



28 de maio de 2011 | N° 16713
NILSON SOUZA


O avô do pirata

Cada vez que vejo Jack Sparrow, me lembro do Capitão Blood. Há um oceano de distância entre um e outro, mas no meu imaginário eles são parentes próximos. Juntando as pontas, Sparrow – todo mundo sabe – é o afetado comandante do Pérola Negra, o navio fantasma da série Piratas do Caribe, agora em três dimensões.

Peter Blood – talvez nem todos os leitores saibam – é uma espécie de avô de Sparrow. Personagem imaginado pelo escritor Rafael Sabatini, Blood é um médico irlandês desterrado para a Jamaica como escravo, que acaba se transformando em pirata e formando com a sua tripulação de ex-cativos uma imbatível armada flutuante.

O livro é tão empolgante, que nem precisavam ter feito o filme. Sabatini, exímio contador de histórias, especializou-se em romances de aventura de capa e espada. Comecei a ler aquele livro e não pude parar mais.

Em seguida, descolei um segundo volume, A Volta do Capitão Blood. Devorei-o com a mesma avidez e depois fui para O Gavião do Mar, que segue no mesmo embalo – navegadores audazes, bucaneiros sem pátria, mas defensores de causas defensáveis, sempre com toques de coragem, humanidade e humor.

Quando o escritor morreu, em 1950, aos 75 anos, sua mulher mandou gravar na lápide do seu túmulo a primeira frase de um de seus romances mais célebres, Scaramouche: “Nasceu com o dom do riso e a crença de que o mundo estava louco”...

Me diverti muito com as loucuras do Capitão Blood e com suas manobras espirituosas para iludir vilões de todos os calibres. A literatura é um poderoso estímulo à imaginação. Um texto bem escrito tem o poder de cativar, de emocionar, de levar o leitor para o centro da história.

Por mim, nem precisavam ter feito o filme. Mas fizeram. E foi um sucesso mundial, com Errol Flynn interpretando o herói e se consagrando como galã. Mas Johnny Depp também é show no papel de Jack Sparrow. Dizem que ele se inspirou no roqueiro Keith Richards, dos Rolling Stones, para encarnar aquele pirata cheio de trejeitos. Se é verdade, ficou melhor do que o modelo.

E os roteiristas ainda meteram na sua boca frases engraçadas e inteligentes. Como essa, pronunciada no episódio do Baú da Morte: “Nos desonestos pode-se sempre confiar na desonestidade. Honestamente, os honestos é que deveriam ser vigiados, pois nunca se sabe quando farão alguma coisa realmente estúpida”.

Genial. O Capitão Blood ficaria orgulhoso do seu neto.

Lindo sábado para você. Gostoso fim de semana.

terça-feira, 24 de maio de 2011



Não estamos sozinhos!

Uma garotinha foi para o quarto e pegou um vidro de geléia que estava escondido no armário e derramou todas as moedas no chão. Contou uma por uma, com muito cuidado, três vezes. O total precisava estar exatamente correto. Não havia chance para erros.

Colocando as moedas de volta no vidro e tampando-o bem, saiu pela porta dos fundos em direção à farmácia Rexall, cuja placa acima da porta tinha o rosto de um índio.

Esperou com paciência o farmacêutico lhe dirigir a palavra, mas ele estava ocupado demais. A garotinha ficou arrastando os pés para chamar atenção, mas nada. Pigarreou, fazendo o som mais enojante possível, mas não adiantou nada. Por fim tirou uma moeda de 25 centavos do frasco e bateu com ela no vidro do balcão. E funcionou!

- O que você quer? - perguntou o farmacêutico irritado. - Estou conversando com o meu irmão de Chicago que não vejo há anos -, explicou ele sem esperar uma resposta. - Bem, eu queria falar com o senhor sobre o meu irmão -, respondeu Tess no mesmo tom irritado. - Ele está muito, muito doente mesmo, e eu quero comprar um milagre.

- Desculpe, não entendi. - disse o farmacêutico.- O nome dele é Andrew. Tem um caroço muito ruim crescendo dentro da cabeça dele e o meu pai diz que ele precisa de um milagre. Então eu queria saber quanto custa um milagre.

- Garotinha, aqui nós não vendemos milagres. Sinto muito, mas não posso ajudá-la. - explicou o farmacêutico num tom mais compreensivo. - Eu tenho dinheiro. Se não for suficiente vou buscar o resto. O senhor só precisa me dizer quanto custa.

O irmão do farmacêutico, um senhor bem aparentado, abaixou-se um pouco para perguntar à menininha de que tipo de milagre o irmão dela precisava. - Não sei. Só sei que ele está muito doente e a minha mãe disse que ele precisa de uma operação, mas o meu pai não tem condições de pagar, então eu queria usar o meu dinheiro.

- Quanto você tem? - perguntou o senhor da cidade grande. - Um dólar e onze cêntimos -, respondeu a garotinha bem baixinho. - E não tenho mais nada. Mas posso arranjar mais se for preciso.

- Mas que coincidência! - disse o homem sorrindo. - Um dólar e onze cêntimos! O preço exato de um milagre para irmãozinhos! Pegando o dinheiro com uma das mãos e segurando com a outra a mão da menininha, ele disse:- Mostre-me onde você mora, porque quero ver o seu irmão e conhecer os seus pais. Vamos ver se tenho o tipo de milagre que você precisa..

Aquele senhor elegante era o Dr. Carlton Armstrong, um neurocirurgião. A cirurgia foi feita sem ônus para a família, e depois de pouco tempo Andrew teve alta e voltou para casa.
Os pais estavam conversando alegremente sobre todos os acontecimentos que os levaram àquele ponto, quando a mãe disse em voz baixa:

- Aquela operação foi um milagre. Quanto será que custaria?A garotinha sorriu, pois sabia exatamente o preço: um dólar e onze cêntimos! - Mais a fé de uma criancinha. Em nossas vidas, nunca sabemos quantos milagres precisaremos. Um milagre não é o adiamento de uma lei natural, mas a operação de uma lei superior.


Deus na Janela

Havia dois irmãos que visitavam seus avós no sítio, nas férias. Felipe, o menino, ganhou um estilingue para brincar no mato. Praticava sempre, mas nunca conseguia acertar o alvo. Certa tarde viu o pato de estimação da vovó... Em um impulso atirou e acabou acertando o pato na cabeça e o matou. Ele ficou chocado e triste!

Entrou em pânico e escondeu o pato morto no meio da madeira! Beatriz, a sua irmã viu tudo mas não disse nada aos avós.

Após o almoço no dia seguinte, a avó disse: "Beatriz, vamos lavar a louça" Mas ela disse: " Vovó, o Filipe me disse que queria ajudar na cozinha". E olhando para ele sussurrou: "Lembra do pato?" Então o Felipe lavou os pratos.

Mais tarde o vovô perguntou se as crianças queriam pescar e a vovó disse: "Desculpe, mas eu preciso que a Beatriz me ajude a fazer o jantar." Beatriz apenas sorriu e disse, "Está bem, mas o Filipe me disse que queria ajudar hoje", e sussurrou novamente para ele, "Lembra do pato?"

Então a Beatriz foi pescar e Filipe ficou para ajudar. Após vários dias o Filipe sempre ficava fazendo o trabalho da Beatriz até que ele, finalmente não agüentando mais, confessou para a avó que tinha matado o pato.

A vovó o abraçou e disse: "Querido, eu sei... eu estava na janela e vi tudo, mas porque eu te amo, eu te perdoei. Eu só estava me perguntando quanto tempo você iria deixar a Beatriz
fazer você de escravo!"

Qualquer que seja o seu passado, ou o que você tenha feito... (mentir, enganar, seus maus hábitos, ódio, raiva, amargura, etc ).... seja o que for... você precisa saber que Deus estava na janela e viu tudo como aconteceu. Ele conhece toda a sua vida ... Ele quer que você saiba que Ele te ama e que você já está perdoado.

Ele está apenas querendo saber quanto tempo você vai deixar o diabo fazer de você um escravo. Deus só está esperando você pedir perdão, Ele não só perdoa, mas Ele se esquece.

É pela graça e misericórdia de Deus que somos salvos. Vá em frente e faça a diferença na vida de alguém hoje. Lembre-se sempre: Deus está na janela e sabe de tudo! "A vontade de Deus nunca irá levá-lo aonde a Graça de Deus não irá protegê-lo."


24 de maio de 2011 | N° 16709
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Direto ao coração

Leio que há um renovado interesse dos jovens da era digital pelos clássicos impressos. A notícia me alegra, pois o culto à máquina e a devoção à eletrônica acabam por abalar a boa e velha cultura humanística.

Segundo diz a notícia, rapazes e moças se reúnem para percorrer as páginas de Machado de Assis e Jane Austen, além de outros autores menos votados.

Isso é excelente. Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Orgulho e Preconceito, dentre uma miríade de outras obras, deveriam frequentar a formação de nossos adolescentes, que não poderiam esquecê-las quando na idade adulta.

Sei disso por experiência própria. Um tanto pelos exemplos de casa – sempre vivi cercado de livros –, outro tanto pelos sábios professores do Colégio Anchieta – aqueles que ensinavam nos casarões e edifícios da Rua Duque de Caxias, 1.247 –, me apaixonei pela literatura. Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Capitu – a dos olhos de ressaca – tornaram-se meus heróis particulares.

Já nem falo dos personagens russos, ou da safra americana, como Nick Adams, Dick Diver, Gatsby, e um centenar de outros, a que fui apresentado com o correr dos tempos.

Hoje sou dono do que creio seja a maior coleção de livros da Lost Generation existente em Porto Alegre e arredores e da obra completa de um inglês, Somerset Maugham, de que me falta apenas um volume, Looking Back, que nunca consegui encontrar. Deste último, compraria até a edição em espanhol.

Nada disso me renderia o título de Patrono da Feira do Livro ou de candidato a uma vaga na Academia de Letras. Mas me garante uma conquista muito melhor: a do prazer de ler. É assim que leio: por prazer. Há poucas alegrias maiores do que folhear páginas que falam direto ao teu cérebro e à tua sensibilidade.

O exemplo dos jovens que redescobriram a literatura impressa me enche de alegria. Significa que uma das raízes da civilização a que pertencemos continua firme e forte. Trata-se do livro, revigorado pelas novas gerações. Maugham, que já citei antes, dizia que apenas uma frase lida já tinha uma significação especial para ele. Não estava errado. Os bons livros falam direto ao coração.


24 de maio de 2011 | N° 16709
FABRÍCIO CARPINEJAR


Cúmulo do azar

Se nascer fosse por sorteio, não estaria aqui. Nunca venci nenhum. Nem rifa na escola. Muito menos de galeto de igreja.

Acho que me faltou traquejo popular, arruda, figa, reza braba, assistir ao Silvio Santos e seu baú da felicidade. Careci de treino. Quando pequeno, não jogava bingo com cinamomos. Quando adolescente, rompi corrente de cartas e e-mails, os remetentes não me perdoaram e amaldiçoaram minha caixa postal.

Não levei TV, geladeira, máquina de lavar das contribuições mensais para entidades carentes. Por mais que levante a carteira de sócio no estádio, a camiseta do time não pousará em meu armário.

O vizinho Geraldo arrebatou uma bicicleta de rede de lojas. Minha mãe arrecadou um liquidificador do Pão dos Pobres. O tio Otávio foi escolhido para uma viagem a Porto Seguro com acompanhante.

Há sempre alguém perto de mim que teve um tiquinho de bênção, um naco de fortuna, uma fatia de torta do destino.

Não desprezaria grampeador, caixa de lápis de cor, passeio no Cisne Branco. Qualquer prêmio para esnobar aos amigos e familiares. Qualquer oferta, para dizer que os dias não são iguais.

Mas sou um azarado. Vivo colocando cupons em arcas transparentes nos shoppings, guardando notas e números, conferindo extrações da Caixa Federal, mas carro zero não entrou em minha garagem. Sorteio de livros em lançamentos não vem para mim, sorteio de ingressos na rádio não encontra meu nome. Numa festa de aniversário, todos receberam brindes, menos eu. Sequer ganhei um final de semana num motelzinho de estrada.

A sorte não brinca comigo. Eu me vejo como resultado da insistência. Não espero facilidades e recompensas do acaso. Trabalho desde cedo para me aposentar tarde.

O que não merecia é ser traído pelas promoções de restaurantes e locadoras.

Minha ambição era completar 10 locações para merecer um filme grátis. No momento em que partia para o último X, a locadora fechou. Aquilo me magoou. Quase depredei o local. Fui contido pelos amigos imaginários.

No restaurante Parrila del Sur, repeti o feito. Talvez demore meses para preencher os quadradinhos, sei lá; quando fui descontar a dezena, não existia mais a oferta. Arre, é muito olho-gordo, coincidência lazarenta.

Triste mesmo é ver que fui sorteado apenas pelo Imposto de Renda para a malha fina.

domingo, 22 de maio de 2011


DANUZA LEÃO

Responda, se tiver coragem

Até porque a felicidade é sempre coisa do passado ou do futuro -ah, como foi bom, ah, como vai ser bom

VOCÊ É FELIZ? A essa pergunta, tão curta e aparentemente tão simples, ninguém responde rápido, nem que sim nem que não.

A resposta costuma ser tipo "bem, quando penso na situação da maioria dos brasileiros, não dá para dizer que eu seja infeliz". Não foi essa a pergunta, as pessoas sempre se enrolam.

É difícil mesmo, até porque a felicidade é sempre coisa do passado ou do futuro -depois que o apartamento for comprado, as férias foram maravilhosas, quando a filha se casar, quando arranjar um namorado ou quando me separei, ah, como foi bom, ah, como vai ser bom. Sempre antes ou depois.

As pessoas têm um certo pudor de confessar que são felizes; somos todos supersticiosos, e se queixar um pouco da vida faz parte, para não despertar a inveja dos amigos e a ira dos deuses. E mais: na hora em que se é feliz não se tem consciência do que está acontecendo -complicada, essa tal de felicidade.

O que não se deve é confundir: acontecem às vezes momentos maravilhosos em lugares deslumbrantes, com pessoas incríveis, e se imagina que aquele é um dos grandes momentos da vida, se imagina até mesmo que aquilo é a felicidade.

Anos depois, desses momentos só vai sobrar uma foto, se sobrar, e na memória, quase nada; no coração, nem pensar. Bom mesmo é ser feliz e perceber; quando você come um chocolate bem gostoso, é melhor achar bom na hora ou dois anos depois?

Para isso é preciso um certo treino: o dia de hoje, por exemplo, está sendo bom, ruim ou regular? Pense um pouco: aconteceu alguma coisa boa desde que você acordou? Não? Mas nada mesmo? Será?

Para começar, você acordou, abriu os olhos e viu a luz do dia; quando abriu a torneira, tinha água, o jornal estava na porta, e os gatos brincando. E mais: com um dia inteiro pela frente, dá para tomar certas decisões, do tipo "hoje vou ser feliz". Já é um começo.

É bem verdade que às vezes a vida não dá trégua, mas com o tempo a gente aprende a se defender, e uma boa estratégia é evitar qualquer discussão, e dizer sim a tudo.

Quando ouvir um "você engordou um pouco", diga que é verdade, e que está péssima -dizer que está péssima atrai as simpatias gerais.

Ache graça em tudo o que disserem e peça opinião sobre tudo: do namorado com quem não sabe se deve se casar ou abandonar para sempre até qual a melhor dieta -o que não quer dizer que vai seguir quaisquer dos conselhos.

Com isso está comprando seu sossego, isto é, sua felicidade, o que não tem preço.

E sua personalidade, suas opiniões, onde ficam? Ora, não há nada mais insuportável do que pessoas que têm opinião; bom mesmo são as que concordam com a gente o tempo todo.

E pensando bem, não custa nada dizer sim, sim, sim. Afinal, não é um preço assim tão alto para que todos sejam felizes.

E você? Bem, querer que todos sejam felizes e você também é querer demais, mas mesmo assim, não custa lembrar: ser feliz, ao contrário do que dizem, não é pecado.

PS - O grande escândalo do diretor do FMI me fez pensar. A arrumadeira entrou para arrumar o quarto; ele, que estava no banheiro, abriu a porta (nu) e viu a moça.

Imagino que seja preciso um tempo para que o desejo masculino aconteça; tempo suficiente para ela sair correndo (e à visão do personagem em questão, nu, mais correndo ainda).

Lembro de Mike Tyson que, anos atrás, convidou uma moça para subir em seu quarto de hotel; ela, pobre inocente, aceitou, depois o acusou de tentativa de estupro, e o lutador foi condenado a seis anos de cadeia.

Ah, essa América puritana.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 21 de maio de 2011



21 de maio de 2011 | N° 16706
NILSON SOUZA


O começo do fim

Se você é uma boa alma, prepare-se para subir aos céus neste sábado. De acordo com a interpretação da Bíblia feita pelo movimento norte-americano Family Radio, o fim do mundo começa neste dia 21 de maio de 2011 e se estende até 21 de outubro próximo, quando ocorrerá o epílogo do fim – se é que me permitem a redundância.

A previsão é de um engenheiro civil de 89 anos chamado Harold Camping, líder de uma seita que reúne centenas de norte-americanos. Ele garante que os bons serão chamados hoje e os outros ficarão por aqui até outubro, mas passarão por um período de grandes tormentos. Como tem gente que leva a sério o que o homem diz, não vou debochar – mas já vou adiantando neste texto escrito com três dias de antecedência que prefiro ficar mais um pouco neste planetinha atormentado.

E um dos nossos tormentos tem sido exatamente as previsões apocalípticas que – felizmente – nunca se confirmam. Os profetas da catástrofe que tiram suas ideias destrutivas de textos religiosos já são vistos com desdém, mas, cada vez que um asteroide ronda a Terra, todos ficamos apreensivos.

Em 1910, parte da humanidade tremeu de medo quando o nosso planeta passou perto do cometa de Halley. Anos antes, um astrônomo anunciara que a cauda dos cometas desprendia um gás tóxico, capaz de envenenar toda a população. Mas o cometa passou e não deixou nem cheiro.

A profecia de Nostradamus, que anunciava a chegada de um “rei do terror” no sétimo mês de 1999, também causou um certo pânico, mas não deu em nada. Eu tinha um medo infantil do ano 2000. Passei a infância ouvindo meus pais repetirem uma sentença alarmista que provavelmente ouviram dos meus avós e estes dos bisavós.

“Mil passará, mas a dois mil não chegará.” Tratava-se, vim a descobrir depois, do chamado milenarismo, também baseado em interpretações religiosas de que o mundo resistiria apenas ao primeiro milênio. Para não dizer que nada aconteceu, a previsão rendeu uma marchinha de Carnaval nesta terra de descrentes.

Tem gente que acredita ter havido um risco real, causado pela tecnologia, embora me pareça muito mais uma dessas teorias da conspiração que também atormentam os nossos dias. Dizia-se que os computadores emperrariam na virada do ano 2000 e que isso causaria uma catástrofe nuclear, pois os artefatos atômicos seriam acionados automaticamente pelo colapso eletrônico. Tudo alarme falso.

Pois hoje tem de novo. O curioso é que o homem da seita fala em céus, assim no plural, abrindo uma perspectiva de escolha para as boas almas. Fica um pouco mais atraente, mas não mudo de ideia: prefiro ficar.

Se você também prefere, nos vemos amanhã, depois do Apocalipse.

terça-feira, 17 de maio de 2011



17 de maio de 2011 | N° 16702
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um simples prazer

A ideia de música está sempre associada em minha memória à de meus pais. Ambos tinham uma enorme discoteca que cultivavam a capricho.

Era rara a semana em que meu pai chegava em casa sem um disco adquirido na Casa Victor ou na Casa Coates. As escolhas eram múltiplas. Tanto podia recair em uma sinfonia de Beethoven quanto num samba bem brasileiro.

Creio que fomos uma das primeiras famílias de Porto Alegre a dispor de discos long play, o cúmulo da modernidade para a época. Fomos também uma das primeiras a ter uma eletrola. Era um móvel elegante, ornamento da sala de estar, dotada de rádio, toca-discos e alto-falantes.

Mas nossa grande riqueza era a discoteca, que podia contar com obras de um Mozart, ou canções de um Francisco Alves ou de uma Carmen Miranda.

Num tempo em que a televisão era ainda uma miragem distante, perdida no futuro do indicativo, não era incomum que as pessoas se reunissem com seus amigos apenas para ouvir discos. As músicas eram acompanhadas com atenção, num silêncio respeitoso, como se todos estivessem numa sala de concertos.

As melodias eram também uma espécie de terapia.

Uma das mais belas e encantadoras recordações de minha infância é rever minha mãe, na penumbra da sala de visitas, ouvindo, silente, longe das tensões diárias de dona de casa, as chansons de charme de Jacqueline François.

Mas havia mais. Em minha adolescência, as reuniões dançantes eram embaladas pelo som da eletrola, dos elepês às criações em 78 rotações por minuto.

Depois se passaram mudanças de casa, empréstimos nunca resgatados, pequenos acidentes domésticos. Hoje conservo uma quinta parte de minha discoteca original.

Mesmo assim, é um legado precioso.

A cada vez que ouço um dos álbuns antigos é como se estivesse revisitando uma época inesquecível. Aquela em que as pessoas se reuniam pelo simples prazer de escutar discos.


17 de maio de 2011 | N° 16702
FABRÍCIO CARPINEJAR


Anel de lata serve de aliança

Uma moeda antiga, uma almofada de alfinetes, uma pulseirinha colorida.

A gente se prende a uma coisa pequena, insignificante para o mundo, especial para nós. Não há como esclarecer o sentido da devoção.

É algo que combina com a alma mais do que com o corpo, que gira nas mãos como uma chave do pensamento.

Na infância, guardava uma pena de ganso dentro do estojo. Ai se algum colega tirasse do lugar. Minha irmã Carla usava uma correntinha de coração. A bijuteria barata seguiu pelo seu pulso vida afora. Nunca trocou por nenhum brilhante.

Eu senti o apego durante um voo de volta a Porto Alegre. Estava com um terno cinza, retrô, escrevendo no caderninho e, de repente, a caneta estourou. Demorei a perceber sua ação. A ponta transformou-se num soro, pingava cada vez mais grosso. Uma mancha de petróleo se espalhou pelo mar de linho. Eu me desesperei, peguei os guardanapos e comprimi as áreas atingidas pela tinta. Pedi ajuda para a aeromoça, que me alcançou um pano com água quente.

Redundei a poça ao esfregar o tecido, pichei sem querer as próprias roupas. A aeromoça me aconselhou:

– Por que não põe a caneta no lixo?

Apesar da sujeirada que causou, segurava a esferográfica o tempo todo. Protegia aquela peça suicida, de veias abertas.

– Por que não põe a caneta no lixo? – a aeromoça agora levantava a cesta, quase me ordenando.

– É verdade – disse, mas não a descartei. Bateu uma impotência. Fiquei com compaixão da caneta, do que ela havia anotado comigo, de sua fidelidade à minha letra.

Abandonaria o objeto quando ele mais precisava de mim. As roupas sujas não me doíam, mas a caneta gritava, era um osso de meu dedo. Porque ninguém iria se importar com ela, a não ser eu.

Sempre foi dessa forma: a caneta explodia em meu bolso e ia socorrê-la, alheio ao estrago que produzia em mim. Poderia ser uma Mont Blanc ou uma Bic. Não é pelo preço, e sim pelo misterioso valor emocional.

Se já temos uma relação obcecada e incompreensível com um simples pertence, imagine a loucura que é o nosso gosto amoroso. Desisti de justificar a um amigo o que sinto por uma mulher. Amor é muito pessoal. Não se explica. Não requer motivo. Talvez aquilo que seja o inferno para os outros seja o éden para mim. Nem procuro mais disfarçar as manchas.

sábado, 14 de maio de 2011



15 de maio de 2011 | N° 16700
MARTHA MEDEIROS


O adeus à lógica

Pensar é um bom hábito, mas pensar o tempo todo, em tudo, é nocivo, sobretudo quando se está vivendo um grande abalo emocional

Rendição é minha maior dificuldade. Eu me exijo desumanamente. Tenho a impressão de que se eu não tiver uma vida bem argumentada ela vai se esfarelar em minhas mãos. Sou garimpeira, quero sempre cavoucar a razão de tudo, não consigo dar dois passos sem rumo determinado.

Esse é um trecho de um livro. De um monólogo de uma mulher no analista, tentando se libertar do que considera sua maior virtude e ao mesmo tempo seu maior entrave: ela racionaliza tudo. Demais.

Ela sabe que pensar é um bom hábito, mas pensar o tempo todo – em tudo – é nocivo, principalmente quando se está vivendo um grande abalo emocional. É o caso da personagem do livro, que viveu uma série de rupturas num breve período de tempo e tenta, alucinadamente, entender o que aconteceu, e como, e quando, e por quê.

Alucinadamente não é um advérbio usado aqui por acaso. Procurar entender uma dor enlouquece mesmo.

A maioria das pessoas, quando em estado de sofrimento extremo, pensa até a página 2. Dali por diante, desiste de encontrar razões que fundamentem sua devastação e trata de chorar e chorar e chorar até que um novo dia amanheça, porque sempre amanhece. Elas vivenciam o luto, perdem a elegância e xingam os deuses, pois sabem que todo sofredor tem crédito na praça, pode pirar durante um tempo que os amigos seguram a onda.

O que o sofredor não pode é tentar buscar alguma lógica para o que está sentindo, porque a emoção não tem lógica, as coisas dão certo e depois não dão, as pessoas dizem que te amam e depois desamam, de manhã você está infeliz e no meio da tarde se anima, e só há uma explicação: a vida é assim.

Para alguns, essa explicação basta. Para outros, essa explicação só pode estar sonegando alguma coisa. Não toleram tanta simplificação. Que vida é assim, o quê!

A personagem do monólogo finalmente amadurece e entende que não há nada sendo sonegado. Não temos controle sobre coisa alguma, a cada dia estamos nas mãos do imprevisto, e tudo o que nos resta é aproveitar os acontecimentos bons e lamentar as dificuldades, pois elas fazem parte do mesmo kit. É pegar ou largar. Mas só um demente largaria. Quem não se sujeita ao pacote inteiro, não vive.

O livro não tem final, apenas mostra que, depois de a personagem ter quebrado a cabeça tentando encontrar conexões entre suas atitudes e pensamentos, descobre que a vida não é mesmo bem alinhavada. Buscar uma lógica para a dor só nos prende ainda mais a ela. É como tentar morder o próprio rabo – nunca terá fim.

Toda emoção é inconstante, toda paixão é bipolar. Tudo é mistério, tudo é instável, e sorte de quem aprende a se equilibrar nessa gangorra. O livro que citei foi publicado por mim nove anos atrás, chama-se Divã e tem sido uma alegria vê-lo ainda tão potente através da minissérie que está no ar.

A personagem Mercedes se emancipou da autora e agora está comovendo através dos textos do talentoso Marcelo Saback. Mas a moral da história continua a mesma: basta estarmos vivos para sermos passíveis de assombro o tempo todo.

Um lindo domingo para você.


Não sei o que aconteceu. Eu surtei

Farah Jorge Farah, o ex-cirurgião plástico que esquartejou a ex-amante em 2003, revela – em entrevista exclusiva a ÉPOCA – como vive e o que pensa

SOLANGE AZEVEDO - Rogério Cassimiro

SOLIDÃO
Farah deixa a universidade em que estuda, em São Paulo. Ao sair da cadeia, em 2007, ele começou a estudar Direito. Hoje cursa também filosofia


De cabeça baixa, calva à mostra, ele vasculha uma imensa bolsa preta de alças compridas. Estende a mão direita, olha nos meus olhos e faz um desafio:
– Me acha nesta foto.

Uma porção de alunos do Brasílio Machado, um colégio público da Vila Mariana, na Zona Sul de São Paulo, sorriem em preto e branco. Meninas sentadas à direita, meninos à esquerda. Era 1966. Aponto uns quatro ou cinco adolescentes e não acerto.

– Então eu não sei, Farah.
– Vou dar uma dica, estou na primeira fila.
– É este? – Não. – Este? – Também não.
– Então só sobrou o que está de óculos, mas não pode ser. Você me disse que, naquela época, ainda não usava óculos.
– Deve ser reflexo. Aí eu tinha 17 anos. Só descobri que era míope depois, quando fui tirar a carteira de motorista.

Cabelos lisos caindo pela testa, estilo tigelinha, Farah Jorge Farah era um dos garotos mais belos da classe. Ao guardar na bolsa o retrato daquele menino de semblante tranquilo e feliz, ele ressurge em 2009: um sexagenário solitário, emocionalmente instável, que vive atormentado. No ano passado, Farah foi condenado a 13 anos de prisão por ter matado Maria do Carmo Alves, sua ex-amante, e por ter ocultado o cadáver.

Passou quatro anos e quatro meses na cadeia. Obteve, na Justiça, o direito de recorrer em liberdade. Enquanto espera a sentença definitiva, diz que tenta “juntar os cacos”. “Não sou o que as pessoas pensam, minha índole não é ruim”, afirma. “O que fiz foi de maneira irrefletida, impensada. Houve luta. O estresse foi tão grande que minha cabeça balança até hoje, ainda estou confuso. Talvez, quando Jesus voltar, Ele me faça entender o que aconteceu.”

Farah me recebeu diversas vezes nas últimas semanas. Foram 11 horas de entrevistas feitas pessoalmente, mais de duas horas por telefone e uma extensa troca de e-mails. Encontrei um homem de aparência frágil, de boné, com a espinha levemente curvada pelo uso de uma bengala, fala mansa, que se considera vítima da incompreensão social. “O povo quer a minha punição ad aeternum (eternamente)? Quem não comete pecados?

Sou um ser humano, seres humanos agem de forma intempestiva”, diz. Farah se esforça para mostrar-se inofensivo, apegado à família e versado em religião e filosofia. Olhares e palavras – ora em tons frágeis, ora irônicos – sugerem que, muitas vezes, ele diz bem menos do que gostaria. Na primeira conversa, logo me perguntou: “Já leu a respeito do julgamento de Sócrates?”.

Um dos principais pensadores da Grécia Antiga, Sócrates foi acusado de não reconhecer os deuses de Atenas, introduzir novas divindades e corromper a juventude com suas ideias. Mesmo após demonstrar que os argumentos contra ele eram inconsistentes, foi condenado à morte por um tribunal popular, em 399 a.C. De acordo com o relato de Platão (428-348 a.C.), Sócrates não se surpreendeu com a sentença.

Ele acreditava que o dever dos 501 juízes daquele tribunal era punir um homem supostamente nocivo à sociedade – e não necessariamente buscar a verdade. “Sócrates mostrou o incômodo que a falsa sabedoria causava às pessoas”, diz Farah. E recorre a ideias que atribui ao filósofo francês René Descartes (1596-1650): “Os nossos sentidos nos enganam. Só deve ser considerado verdadeiro o que for claro e altamente provado”.

Teriam os sete jurados que condenaram Farah, em abril do ano passado, sido ludibriados pelos sentidos e ignorado o ensinamento de Descartes? “Está claro que houve perseguição. Está claro que tentei a proteção do Estado. Está claro que tentei sair do país. Está claro que Maria do Carmo transtornava a vida de meus pais.

Está claro que ela insinuava que meus pais corriam perigo caso eu não fosse dela”, afirma Farah. “Agi em legítima defesa.” Segundo ele, Maria do Carmo o atormentava havia cinco anos por não aceitar o fim da relação amorosa. Fazia escândalo e invadia o consultório. Ia atrás de seus pais na igreja.

“Será que o Farah se sentiu Deus? Ele julgou, condenou e executou a Maria (do Carmo) sem dar nenhuma chance para ela”, diz o viúvo, João Augusto de Lima, de 51 anos. “A liberdade dele é um descaso da Justiça com a família. Se eu tivesse cometido esse crime, estaria puxando 20 anos de cadeia.”

Farah saiu livre do tribunal porque o Judiciário paulista seguiu uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de maio de 2007. Na ocasião, os ministros concederam a Farah um habeas corpus, por entenderem que o esquartejamento e a comoção social causada pelo crime não justificavam a prisão preventiva.

Farah afirma que, no início da noite de 24 de janeiro de 2003, Maria do Carmo foi a sua clínica de cirurgia plástica, na Zona Norte de São Paulo, sem ser convidada. Diz que os dois se atracaram. “Ponto final, dona Maria do Carmo. Na primeira vez, você não me deixou ir, mas agora eu vou.” A ex-amante, ainda de acordo com Farah, partiu para cima dele com uma faca.

“Xingou minha mãe de vagabunda, vadia e de outras palavras de baixo calão... disse que sou homossexual... ela não falava homossexual, talvez nem conhecesse essa palavra.” Farah conta que se defendeu com a bengala. “Ela bateu a cabeça na parede. E o que aconteceu depois, não sei. Eu surtei.” Ele afirma ter acordado na manhã seguinte, sentado numa cadeira, diante de sacos de lixo com o cadáver retalhado.


14 de maio de 2011 | N° 16700
NILSON SOUZA



Tuítes e dúvidas

Por que o homem que nasceu com seis dedos em cada mão optou por roubar, se poderia ser um virtuose do piano ou o melhor digitador do país?

O motorista que buzina no engarrafamento de trânsito acredita que o barulho resolve ou só quer mostrar que é mais estúpido do que os outros?

Não seria melhor substituir todo o Código Florestal por um único princípio dos índios americanos: “A natureza não é para nós, ela é parte de nós”?

Em vez de fazer uma lei para proibir palavras estrangeiras, não seria mais adequado tentar revogar a sentença condenatória ao analfabetismo?

Serão também maus aqueles que não acham justo nem digno festejar a execução de um homem mau, ou o que mudou foi o significado de civilização?

Uma campanha para desarmar espíritos e disseminar a tolerância não seria mais eficiente do que a compra de armas enferrujadas com dinheiro público?

Inspeção veicular é uma urgência ambiental, um recall para todas as marcas ou apenas um novo pretexto para meter a mão no bolso do contribuinte?

Será que os treinadores-ídolos lembraram-se de escalar para o jogo de amanhã um craque que pode vestir as duas camisas, chamado Espírito Esportivo?

Terá razão o escritor Peninha quando, dos píncaros da sua irreverência, afirma que o Twitter é a melhor ferramenta para quem não tem nada a dizer?

quarta-feira, 11 de maio de 2011



11 de maio de 2011 | N° 16697
MARTHA MEDEIROS


Barulhos urbanos

Creio que eram 6 h. Reparei pelas frestas da cortina que o dia estava amanhecendo. O barulho era de tontear, algo de muito grave deveria ter acontecido para aquele helicóptero ficar parado bem em cima do meu edifício. Mais que isso: ele parecia estar ao lado da minha janela. Aos poucos fui voltando do sono e disse a mim mesma: ele não está tão perto assim, aconteceu algum assalto a banco, estão à procura de fugitivos.

Mas o helicóptero, insistente, não voava para longe, parecia resoluto em não se deslocar. Desisti de voltar a dormir. Levantei, fui até a sala, abri a porta de correr que dá para a sacada e olhei para o céu.

Nada. Então, olhei para baixo e ali estava o helicóptero, estacionado num terreno até então descampado, ali diante dos meus olhos o helicóptero que não era helicóptero, e sim um equipamento de construção civil ligado na velocidade máxima, um trambolho que fazia um barulho idêntico ao de um helicóptero, e que continuaria a me servir de despertador nas manhãs seguintes.

Se você é morador de uma grande cidade, também deve ter um helicóptero matinal entrando pelos ouvidos, ou uma bateria de escola de samba, ou uma turbina de avião, ou qualquer coisa excessivamente barulhenta que seja oriunda do que se chama obra. Metrópoles estão em constante construção. Aqui onde moro, há essa obra bem em frente ao meu prédio, e outra bem ao lado, e duas logo atrás. Silêncio? Estamos em falta.

Não há como reclamar para o bispo. Obras são efeitos colaterais do progresso. E o barulho faz parte do pacote, não se ergue um edifício aos sussurros. Então, como tenho escritório em casa, trabalho o dia inteiro com essa trilha sonora pouco romântica.

De manhã até o final da tarde, escrevo, escrevo, escrevo, e não ouço o toque que meus dedos fazem sobre o teclado, ele é abafado pelos motores de equipamentos pesados, caminhões despejando cimento, batidas de estacas, uma orquestra em permanente ensaio, e só resta adaptar-me, um dia o edifício onde moro também foi um esqueleto que não foi posto em pé quietinho.

Reconheço que sou uma escritora de apartamento, dito com o mesmo tom pejorativo que classificamos crianças de apartamento. Deveríamos estar cercados por jardins, margens de rio, praias abertas, mas vivemos confinados entre quatro paredes que de certa forma aleijam a inspiração.

Escrever, lógico, me oferece várias oportunidades de fuga. Estou onde estou, fisicamente, mas também não estou: invento meu próprio lago, pátio, horizonte. Até que volto a ser atingida pela consciência do inevitável: não é o barulho do mar que escuto, nem o das folhas caindo neste início de outono, e sim o de betoneiras, perfuratrizes, compactadores, rolos compressores.

De poético, me restou apenas a chuva. Quando chove, a obra para. Quando chove, o helicóptero vai embora. Quando chove, o silêncio me pisca o olho: “Aproveita a trégua e me escuta”.

terça-feira, 10 de maio de 2011



10 de maio de 2011 | N° 16696
FABRÍCIO CARPINEJAR


Geladeira de solteiro

Lar de solteiro não significa que estará desarrumado, com pilha de louça para lavar e parte das lâmpadas queimadas. O que diferencia o apartamento de alguém que vive sozinho do espaço de casais e de agrupamentos familiares são os sachês da geladeira. Centenas de sachês de mostarda e catchup ocupando as fôrmas dos ovos.

É que nem a praga do requeijão: nunca percebemos o início da doença, são tantos potes misturados aos copos, que a cristaleira deveria ser renomeada de estande de frios.

O sachê é a multiplicação da miséria. Não há modo de enriquecer após sua passagem, levará qualquer um para a falência ou às barrinhas de cereais.

Ele não tem a humildade de um visitante. Já chega como um movimento armado, uma passeata, uma calcutá de sósias. Tanto que duvide de sachê desacompanhado, não existe isso, chame o batalhão de operações especiais, trata-se de uma bomba.

Em primeiro lugar, porque a quantidade de cada bisnaga é ridícula; necessária uma dúzia para cobrir dois reles pedaços de pizza. Em segundo, não há como abrir a embalagem, a linha pontilhada é uma ironia. O biquinho fechado incita a truculência de um torturador – dependemos de várias opções para salvar a metade do conteúdo de uma. E não é prático, sempre nos lambuzaremos ou sujaremos a roupa.

Sachê é uma droga que vicia. Rapidamente o usuário se transforma em traficante. Surgem dentro dos pedidos de telentrega e espalham seus tentáculos de alumínio plastificado pela cozinha.

Para evitar a decadência, aconselho a jogar fora o que não foi usado no almoço e na janta. Nunca guarde. Ao preservar um exemplar, terá a infeliz iniciativa de economizar com os pacotinhos. Pensará que não precisa comprar alguns mantimentos, diminuirá a lista do mercado, e partirá para caçar saquinhos de azeite, vinagre e shoyu nos restaurantes.

Acabou a paz. Não vai parar de colher envelopes das cestinhas das mesas. Os amigos irão se envergonhar de sua companhia. Assumirá uma condição compulsiva, de colecionador histérico, com os bolsos forrados e as bolsas transbordando. Não terá mais vida social quando desfalcar o sal do cinema e o açúcar dos cafés, e não poupar sequer o adoçante.

Só o impacto de um casamento poderá salvar o sujeito. Só o amor para regenerar um cleptomaníaco de amostras grátis.

domingo, 8 de maio de 2011


DANUZA LEÃO

Aprendendo a viver

Não seria melhor viver só e ter a liberdade de só poder ferir a si mesma, sofrendo as consequências de seus atos?

O TEMPO PASSA, a gente se pergunta e não consegue saber a resposta certa: afinal, homem e mulher nasceram para viver juntos, sim ou não?

Difícil saber; depois do tempo da paixão, grande parte das mulheres casadas anseia por um marido que viaje regularmente, chegue bem tarde em casa e não perca um jogo de futebol aos domingos.

Não, elas não querem necessariamente namorar, nem necessariamente viver sozinhas, mas bem que gostam, pelo menos às vezes, de serem donas de seu nariz e não terem que dar satisfação de suas vidas a ninguém -muito menos para os maridos. E comandar o controle remoto da televisão, coisa impossível quando se mora com um homem.

Elas vivem a vida em dois turnos: um quando estão com eles, outro quando estão sem, e até os assuntos são diferentes. Adoram almoçar com as amigas, dizer bobagens, fingir que são solteiras e não têm hora para chegar, coisa que todos exigem das esposas -e a palavra no caso é essa mesma: exigem.

Não passa pela cabeça delas o adultério, não pela de todas. Mas que dá vontade de ser paquerada como nos antigos tempos -ah, que coisa boa. E mesmo adorando os filhos, que delícia seria ir para Búzios no fim de semana sem um pingo de responsabilidade, podendo tomar todas as caipirinhas que tiver vontade, sem pensar que na segunda-feira o caçula tem judô às oito e meia.

Responsabilidade: o maior fardo que existe no mundo, seja no trabalho, na família, na condução de uma casa. Tudo começa do começo, quando se vira uma pessoa adulta, portanto responsável por si mesma. Ah, como era bom ser criança e ter alguém para marcar a hora do dentista, por o termômetro, dar o antibiótico de oito em oito horas, telefonar para o médico e contar da febre, da dor de garganta.

Como é difícil ter que se cuidar, saber que se não fizer as coisas direito e tudo der errado, a culpa é só sua. A responsabilidade de ter um marido e manter um comportamento impecável para nunca deixá-lo mal diante da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho; e a maior de todas, ter alguém que te ama e cujo sentimento você deve respeitar, passando tantas vezes por cima dos seus próprios, para não machucar, não ferir.

Não seria melhor viver inteiramente só e ter a liberdade suprema de só poder ferir a si mesma, sofrendo as consequências de todos os seus atos, mesmo os mais delirantes? Ter o direito de ser louca e totalmente irresponsável, quando der na telha?

Mas também seria tão bom ter alguém ao lado para dividir as dúvidas e os sofrimentos, as alegrias e as felicidades -se é que esse "dividir" existe mesmo, não é coisa inventada.

O problema é que, quando se está com alguém, se sonha com a solidão; por outro lado, quando se está só, fica-se imaginando o quanto seria bom estar com alguém, sobretudo quando o telefone não toca e não aparece um amigo para convidar para tomar um chope.

Mas para tudo na vida é preciso ser inteligente, até para ser feliz; por isso, se você está sozinha, lembre-se de todas as coisas insuportáveis da vida em comum. E quando estiver debaixo do edredom com o homem amado, pense no quanto é horrível a solidão, quando se está sem um amor.

Apenas uma maneira de ser prática e viver melhor -isso também se aprende.

sábado, 7 de maio de 2011



08 de maio de 2011 | N° 16694
MARTHA MEDEIROS


Escute sua mãe

Podemos não concordar com muita coisa do que dizem, mas suas palavras nunca entram por um ouvido e saem pelo outro

Dois meses atrás, na noite de entrega do Oscar, o diretor Tom Hooper, do premiado O Discurso do Rei, subiu ao palco para receber sua estatueta e contou a todos, em seu agradecimento, que foi sua mãe que, assistindo certa vez a uma leitura dramática, se interessou pelo texto e incentivou o filho a fazer dele um filme.

Portanto, não fosse a mãe de Tom Hooper, não haveria a consagração de Colin Firth nem nada do que estava acontecendo naquela noite. Hooper concluiu sua fala de forma bem-humorada, dando um conselho para o mundo inteiro: Listen to your mother.

Não há personagem mais rico do que as mães. Elas, sim, são as rainhas do discurso, as diretoras de cena, as figurinistas do set. E é sempre delas o corte final. Podemos não concordar com muita coisa do que elas dizem, podemos até fazer um jogo duro para deixá-las malucas, mas suas palavras nunca entram por um ouvido e saem pelo outro. O que mãe diz é lei. Jamais desistem do posto de xerifes da casa.

Eu nunca me arrependi de ouvir minha mãe, mesmo quando o que ela dizia não fechava com o que eu pensava, e isso aconteceu algumas vezes. Desde a opinião sobre um filme que eu ainda não havia visto, até um conselho sobre como agir numa situação delicada, sempre confiei no bom senso dela, não porque seja uma sábia com PhD em filosofia, psicologia, cinema ou medicina, mas porque sua sapiência é congênita, foi outorgada pela simples condição de ter parido filhos um dia.

Posso falar assim porque também sou mãe e também sou sábia diante das minhas filhas, mesmo errando como toda mãe erra. No entanto, erros maternos possuem uma ternura que os transformam em acertos póstumos. Quando uma mãe morre, vira santa na mesma hora e tudo o que ela fez – de errado, inclusive – se dilui na lembrança de que um dia houve ali um cais.

Sei de filhos e filhas que não possuem essa complacência toda diante de suas mães. Quando pergunto o que essas mães fizeram para merecer tanto descaso, geralmente ouço como resposta: “O que elas não fizeram, você quer dizer”. Mães se omitem, é verdade.

Mães são egoístas, também. Mães às vezes privilegiam o marido em detrimento dos filhos – as submissas, ao menos. Mães se atrapalham, mães se apaixonam, mães metem os pés pelas mãos, e isso nunca é retratado nos comercias de tevê. Mães são muito mais protegidas e mimadas pela sociedade do que as crianças. Mães são sempre sagradas, mesmo sendo tão triviais.

Se sua mãe é meio avoada e não enxerga um palmo na frente do nariz, ame-a, simplesmente. Mas se ela consegue ir além da página 2, não só a ame como a escute. Confie no seu sexto sentido, preste atenção no que ela diz nas entrelinhas, respeite sua vivência, acredite no quanto ela lhe conhece e lhe quer bem, aprenda com sua sensatez, aceite seus palpites.

Não é preciso assinar embaixo de tudo o que ela diz, mas, ainda assim, leve em consideração suas dicas e impressões. Radar de mãe não se despreza.

Um lindo domingo para você. Feliz Dia das Mães para todas as mamães de hoje e as de amanhã

quarta-feira, 4 de maio de 2011



04 de maio de 2011 | N° 16690
MARTHA MEDEIROS


Princesas, bandidos e mocinhos

Não me sinto mais segura pelo fato de Osama bin Laden, o terrorista número 1 do mundo, ter sido assassinado, a despeito de qualquer lei, num acerto de contas entre o bem e o mal.

É uma morte com forte simbologia, sem dúvida, e uma tremenda vitória política para os Estados Unidos, mas trata-se de uma desforra, de uma vingança, de um aqui se faz, aqui se paga, e não de um passo efetivo rumo a dias mais pacíficos. Seria, se tivéssemos testemunhado Obama e Osama apertando-se as mãos – uma cena que faz parte do repertório dos delírios, mas que produziria resultados mais práticos.

O rei morreu, viva o rei! Não é sempre assim? O sucessor de Osama bin Laden já deve estar articulando suas pirotecnias para honrar o líder fundamentalista.

Pra quem vê de longe, tudo isso parece enredo de gibi, mocinhos versus bandidos, mas quão distantes ainda estamos do epicentro dos acontecimentos?

Semana passada vi no jornal os destroços de um bar em Marrakesh que foi pelos ares matando quase duas dezenas de turistas. Um ano e meio atrás, eu estava sentada naquele mesmo local.

Não é uma sensação confortável, assim como tampouco me sinto 100% tranquila sendo passageira da United Airlines nos próximos dias – viajarei com minha filha justamente para Honolulu, cidade natal do presidente americano, como consta em sua tão anunciada certidão de nascimento.

Ficar em casa seria uma atitude mais cautelosa? Creio que não há segurança garantida nem em casa, nem na escola, nem no trânsito, nem no estádio, nem no bistrô da esquina. Os imprevistos nos alcançam onde quer que estejamos.

Enquanto todos nós estivermos à mercê de fanáticos religiosos, de milícias terroristas e de políticos vorazes pelo poder – citando apenas os peixes graúdos –, o mundo continuará em constante ameaça. É por essas e outras que o ritual monárquico envolvendo dois belos jovens atraiu a atenção de tanta gente. Foi pausa para descanso.

Um olhar rápido para o picadeiro não corrompe a consciência de ninguém. Não é toda hora que se é agraciado com uma dose generosa de fantasia, glamour e humor – eu, ao menos, acho engraçado que se chame de “casamento real” um enlace tão, tão onírico, tão... irreal.

A realeza não sangra, mas a realidade, sim. A paz que podemos alcançar hoje é a interior, individual, porque a paz coletiva é uma ilusão. Todas as nações têm batalhas a vencer – o Brasil tem as suas, os Estados Unidos têm as deles, o Paquistão, a Líbia.

A própria Inglaterra logo, logo será convocada a recolocar os pés no chão. Podemos até preferir seguir enxergando a vida como se ela fosse uma história em quadrinhos: ora um conto de fadas, ora um bague-bangue na favela, ora uma aventura de super-heróis. Mas, pelo menos no que se refere às questões de segurança mundial, já nada me parece tão fictício.

terça-feira, 3 de maio de 2011



03 de maio de 2011 | N° 16689
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Mar de livros(8)

Nasci navegando num mar de livros. Minhas mais longínquas lembranças incluem sempre o escritório de advogado de meu pai e as altas estantes que se erguiam até o teto, reunindo obras jurídicas, com um porém. Uma parte não pequena abrigava romances, novelas, poemas e cultura geral.

Minha paisagem habitual – isto desde os dois, três anos – era a de meu pai e minha mãe lendo os volumes recém-encomendados de Porto Alegre, que por vezes ficavam guardados sobre móveis, com as páginas cuidadosamente demarcadas. Havia também as reuniões, sempre à noite, em que um cálice de vinho brindava, em coquetel com as opiniões dos amigos presentes, sobre uma cena, um personagem, um capítulo dos livros que eles haviam compartilhado.

Isso acontecia na cidade de Cachoeira e, creio, que em raríssimas outras naquele final dos anos 40. E aí ocorreu que, um tanto contra a sua vontade, meu pai foi eleito deputado estadual.

Isso desencadeou uma série de mudanças, a primeira das quais para Porto Alegre, onde ficava a Assembleia Legislativa. Mas em casa havia um problema especial. Como transportar tantos livros para a Capital?

Foi preciso operar uma cirurgia drástica. Toda a literatura jurídica encontrou abrigo nos escritórios de amigos de meu pai. E o mais restante?

Romances, poemas, crônicas, contos, peças de teatro foram minuciosamente depurados. Ainda assim, por um engano lamentável, a edição original de O Continente, o melhor de O Tempo e o Vento, perdeu-se na movimentação, ainda bem que encontrado depois um segundo exemplar.

Em Porto Alegre, o apartamento revelou-se pequeno para os volumes restantes, de modo que foi necessário estender as prateleiras pelos corredores.

Por que conto tudo isso? Primeiro porque hoje disponho de uma boa biblioteca que, embora superpovoada, se estende, envidraçada, por duas peças de minha casa, com charme e estilo.

Mas, antes de tudo, porque amo esse mar de livros.

É…


03 de maio de 2011 | N° 16689
CLÁUDIO MORENO


Homens e mulheres (8)

As breves cenas que compõem esta série foram escolhidas porque ajudam, de algum modo, a esclarecer o que as mulheres representam para os homens, ou melhor, o o que os homens vêm escrevendo sobre elas, ao longo de todos esses séculos, antes que elas conquistassem definitivamente, como o fizeram, o direito de expressar a sua própria maneira de entender a História.

18. O segredo do sucesso – De acordo com um antigo pensador árabe, citado por Lane (um dos tradutores das 1001 Noites para o inglês), é aconselhável, antes de iniciar qualquer empreendimento importante, que o homem peça o conselho de 10 de seus amigos mais inteligentes; se ele não tiver mais de cinco, que consulte duas vezes cada um deles; e se tiver apenas um amigo inteligente, que o consulte então 10 vezes.

Agora, se não tiver amigo algum a quem possa recorrer, volte para casa, chame sua mulher e peça sua opinião. Se fizer exatamente o contrário do que ela disser, o sucesso estará garantido.

19. De pai para filha – Se uma bela dama me perguntasse se eu admito que uma mulher também possa chegar a ser um grande general, eu responderia: “Sem dúvida, madame. Se a senhora comandasse um exército, o inimigo se jogaria a seus pés, como eu próprio o faço agora; ninguém ousaria disparar um só tiro que fosse, e a senhora entraria na capital inimiga ao som de violinos e pandeiros”.

E se ela indagasse, na minha opinião, o que a impede de saber tanta Astronomia quanto Newton, eu responderia, com toda a sinceridade: “Nada, mas nada mesmo, divina criatura. Basta que a senhora vá ao telescópio, e os astros, honrados de atrair a curiosidade de olhos tão belos, vão fazer questão de lhe revelar todos seus segredos”. [Carta do terrível Joseph de Maistre (1753 – 1821), tranquilizando a filha, que o havia acusado de fazer pouco das mulheres].

20. Close your eyes and think of England! – Em todas as telas de TV, as cenas que tornaram William e Kate os noivos mais populares do planeta não deixam margem para dúvida: são dois jovens modernos, filhos de uma cultura em que as relações de um casal só vão se sustentar se forem baseadas na intimidade e respeito mútuo entre o homem e a mulher.

No século 19, contudo, durante o longo reinado da Rainha Vitória, a esposa era pouco mais que uma coadjuvante do marido; o que ela pensava sobre o sexo e o que ela sentia na cama não tinham muito peso diante da importância da solene instituição do casamento.

Contam – pode ser apenas mais uma lenda urbana, vá lá, mas, como tal, sempre reveladora – que a própria Rainha (ou teria sido uma das damas de sua corte?), ao relatar sua experiência da noite de núpcias à filha que ia casar, resumiu tudo neste triste conselho:”Feche os olhos e pense na Inglaterra!”.