sábado, 24 de fevereiro de 2024



24 DE FEVEREIRO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

Transar sem estar a fim

Entre os temas que o movimento feminista elegeu como prioritários, a violência sexual está no topo da lista. E não só. A Lei Maria da Penha, criada para proteger as mulheres, reconhece outras quatro modalidades de violência: moral, psicológica, física e patrimonial. Se não há consentimento, bater, confiscar dinheiro, humilhar, difamar, tudo é crime. 

Hoje, mais esclarecidas, muitas mulheres que antes normalizavam situações degradantes dentro de casa estão se libertando de seus namorados e maridos estúpidos. Infelizmente, algumas delas pagam o alto preço do feminicídio, cujos índices vêm crescendo. Ao romperem relacionamentos abusivos, provocam a ira de machos que não sabem lidar com a emancipação de suas companheiras.

Não é a primeira vez que você lê o que foi escrito acima. Deve ser a milésima. Cansa, eu sei. Imaginemos a Maria, como exemplo. Até ela, tão bem-informada, já chamou o assunto de mimimi em conversas privadas. Nunca nas redes sociais, claro. Maria é uma mulher antenada, agradável, inteligente. Soube escolher bem seu parceiro, nunca passou por essas situações infelizes que tantas mulheres passam, coitadas. 

Maria lamenta por elas, tem coração. Mas sua realidade é outra. No máximo - no máximo! - de vez em quando transa sem estar a fim. Coloca o sexo no piloto automático: quem nunca? Fica louca para virar de lado e dormir, mas o marido está aceso, sabe como é homem. Se Maria negar, ele vai ficar emburrado. Vai ficar cobrando há quantos dias Maria não dá para ele. E ele precisa se sentir viril, potente. Custa? Seja gentil mais uma vez, Maria, você sempre foi um amor.

Em programas de TV onde mulheres debatem sobre sexualidade, em postagens de influenciadoras ou em encontros no happy hour, perguntar umas às outras se já fingiu orgasmo virou piada. Todas dão a mesma resposta e morrem de rir com a própria esperteza. Aqueles bobinhos não sabem de nada. Aceleramos o desfecho, eles ficam com o ego em dia e, pronto, está garantida a paz mundial.

Orgasmo fingido rendeu uma cena inesquecível de Meg Ryan, em filme de 1989 - há 35 anos. Adoro. Mas o tempo passou e sugiro avançar na questão: você, parceira adorável, já transou sem estar a fim? Uma vez? Duas? Trezentas? Sei, uma concessão aqui ou ali não tira pedaço, e eles não forçam, a gente é que é legal e prefere aderir em vez de criar caso.

Que sorte conviver com homens que não estupram, nem surram suas mulheres. Homens que apenas dão uma insistidinha quando elas não estão para jogo, que apenas fecham a cara quando não conseguem o que querem, sem que isso soe como manipulação. Fazer sexo sem vontade é uma violenciazinha de nada, ninguém enxerga as sequelas. Você dá conta, não dá, Maria?

MARTHA MEDEIROS

24 DE FEVEREIRO DE 2024
CLAUDIA TAJES

Nada de novo no front

O baixo Rio Branco, extensão do Bom Fim, é um bairro simpático, ainda com muitas casas, a maioria antigas. Não sei se está certo chamar de baixo Rio Branco. É que o quadrilátero delimitado pela Ramiro, Vasco, Mariante e Protásio é bem diferente do Rio Branco mais chique que atravessa a Goethe.

O baixo Rio Branco viu os bares e restaurantes se multiplicarem nos últimos tempos. Não faz muito, a prefeitura andou fechando vários deles por causa do barulho, mas agora estabelecimentos e vizinhos parecem ter se acertado. Duas das ruas do bairro, a São Manoel e a Miguel Tostes, foram duramente atingidas pelo temporal de 16 de janeiro. Mais de um mês depois, as carcaças das árvores que vieram abaixo continuam lá. Eu sei porque moro na Miguel.

E foi voltando para casa de táxi no sábado passado, perto do meio-dia, que vi ao vivo a cena que ganhou os noticiários nacionais: um homem preto, algemado e subjugado por dois policiais na traseira da viatura aberta, cercado por pessoas que filmavam e gritavam para os PMs não machucarem o rapaz. O taxista foi rápido na conclusão.

- Olha aí, ó. Mais um que fez bobagem. O rapaz preto repetia, eu que chamei vocês, eu que sou a vítima. Mas é certo que não estava sendo tratado como vítima.

A história foi sendo contada por partes. Uma mulher disse que o rapaz preto, motoboy, havia sido agredido por um homem. Outra falou que o tal homem volta e meia brigava com os motoboys que ficam na esquina da Miguel Tostes aguardando pelos chamados dos aplicativos. Verdade, ali é um ponto de concentração dos entregadores. Antes do vendaval de 16 de janeiro, uma banquinha que hoje jaz, destruída, fazia um pouco de sombra. Agora eles esperam no sol.

No fim, o caso ficou bem conhecido por todos. Sérgio - um homem branco de 71 anos, de calção, sem camisa e com um canivete na mão -, desceu do seu apartamento e foi brigar com os motoboys, incomodado com a conversa dos entregadores ao meio-dia de sábado. Não exatamente um horário de repouso.

Everton, 40 anos, doravante chamado de Trabalhador, se aproximou para falar com Sérgio - doravante chamado de véio mesmo -, foi ofendido e tomou uma canivetada no pescoço. Chamou a polícia e acabou preso por "estar alterado".

Podia terminar assim, como tantas vezes termina, mas havia muitas testemunhas em volta. No que parece ter sido uma atitude para sossegar quem protestava contra a injustiça, o véio descamisado, que até então conversava, sorridente, com um dos PMs, foi orientado a subir e se vestir para ir à delegacia. Se as testemunhas não exigissem, sequer teria sido algemado. Enquanto o Trabalhador foi empurrado para dentro do camburão, o véio sentou no banco de trás de um dos carros da PM e se foi, tão confortável quanto possível na situação criada por ele.

Na mesma semana, uma mãe negra com sua filha pequena foi cercada pela polícia e teve o celular apreendido por filmar uma abordagem violenta em Bento Gonçalves. Já os estudantes do 3º ano do Colégio Anchieta que interromperam a Nilo em passeata - protestando contra o quê? - tiveram escolta da Brigada Militar.

O governador disse que os fatos serão apurados, mas que não se pode ter preconceito com a polícia. Na realidade, é a polícia que não pode ter preconceito contra os pretos.

Você e eu, que somos brancos: o que mais a gente pode fazer além de morrer de vergonha?

CLAUDIA TAJES

24 DE FEVEREIRO DE 2024
FRANCISCO MARSHALL

HOLOCAUSTO

Há dois usos para esta palavra grega adaptada ao latim e idiomas modernos. Originalmente, refere-se ao sacrifício animal em que a vítima é totalmente imolada, mas utiliza-se também para designar o massacre ígneo de oponentes. O tema envolve crueldades revoltantes, mas tudo o que ocorreu no passado pode ser examinado e também comparado, e esse conhecimento tem especial valor para compreendermos a história e tentarmos melhorá-la. Por que deixaríamos de analisar as pulsões violentas da humanidade, tristemente recorrentes?

Hôlos, em grego, é a totalidade, e káo é o verbo queimar, de onde vem kaustós, queimado (como em cauterizar). Para os helenos antigos, o sacrifício era uma festa com churrasco; ofereciam aos deuses gorduras, entranhas e ossos, e assavam e consumiam as carnes, com vinho, cantos e danças. O sacrifício em que a vítima é inutilizada era lúgubre, um tipo de culto heroico, porém, o termo definiu-se mesmo quando a bíblia hebraica, a Tanakh ou Miqra, foi vertida para o grego por 72 sábios (a Septuaginta), por encomenda de Ptolomeu II Filadelfo (286-246 a.C.), fundador da Biblioteca de Alexandria. Então traduziu-se por holocausto a palavra hebraica olah, que designa, no Pentateuco, a fumaça que sobe dos sacrifícios.

É problemático designar genocídios como holocausto, pois neste caso quem promove o massacre equipara-se a um sacerdote em ofício religioso, realizando oferenda a alguma divindade. Todavia, por força do vocabulário bíblico, o termo tem sido usado com esta acepção ao menos desde 1833, quando o jornalista Leitch Ritchie descreveu como holocausto o incêndio produzido em 1143 por Luís VII de França (1137-1180) na cidade de Vitry-le-François, em que foram queimadas 1,3 mil pessoas refugiadas em uma igreja. Depois disso, em 1895, assim referiu-se o massacre de armênios por turco-otomanos, de que resultaram cerca de 50 mil crianças órfãs. 

Ainda com autoria turca, o incêndio de Smirna (1922), como parte do genocídio armênio (1914-1922), foi descrito como holocausto desde 1925 e também por Winston Churchill, em 1929. Em 23 de maio de 1943, em artigo de Julian Meltzer no The New York Times, usou-se pela primeira vez a palavra holocausto para indicar o judeicídio nazista. Após 1945, esse termo descreveu os bombardeios de Dresden e Hiroshima e outros massacres, como os de Stalin na Ucrânia (1932-33) e dos Tutsi em Ruanda (1994). Já o conceito de genocídio foi cunhado em 1944 pelo advogado polonês Raphael Lemkin e definido em 1948 pela ONU como "os atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso".

Talvez entorpecidos pela violência do genocídio brasileiro, ainda carente de justiça, em que morreram desnecessariamente 525 mil das 700 mil vítimas da covid-19, muitos custem a perceber e admitir um genocídio ora em curso, com características de holocausto, e a reconhecer sua similaridade com outros massacres da história da desumanidade, frutos da pulsão bélica e de seus interesses malignos. Isso não nos impede de clamar para que cesse imediatamente o genocídio do povo palestino, com ahimsa.

FRANCISCO MARSHALL

24 DE FEVEREIRO DE 2024
CRISTINA BONORINO

MUTAÇÃO E SELEÇÃO

Como a vida na Terra evoluiu a partir de um organismo de uma só célula é uma das principais perguntas da ciência. E essa é uma das questões que Cassandra Extravour, hoje na Harvard, tenta responder, após o grande impacto que seu trabalho sobre a competição de células germinativas - aquelas que formam óvulos e espermatozoides - teve na biologia.

A mutação e a seleção são premissas centrais da biologia evolutiva. Apesar disso, por décadas os cientistas acreditavam que existia um programa fixo para a formação de gametas. Cassandra, em seu doutorado, pensou diferente. Por que, se existem mutações nessas células germinativas, elas não podem também competir entre elas na hora de formar os gametas que irão, no futuro, gerar os melhores descendentes? Hoje, isso pode parecer óbvio. Mas, há alguns anos, antes da montanha de informação gerada pelo avanço das tecnologias de sequenciamento gênico e análise de dados, a interação de células do corpo com o ambiente, como as bactérias que nos habitam, não era considerada uma possibilidade.

Pensar diferente é fundamental em ciência. Cassandra é uma mulher negra, filha de imigrantes caribenhos e, para completar, uma soprano lírica com formação clássica, que canta com a Sinfônica de Boston. Muitas vezes, ela é a única ou a primeira mulher negra a...

Cassandra diz que isso é menos uma reflexão de seu trabalho em si e mais da baixa diversidade que ainda existe na academia. Nossa profissão, sempre digo a todos, é uma profissão de aprendiz. O mentor escolhe quem vai mentorear. E, naturalmente, existe o viés de escolher alguém parecido consigo. 

Isso é algo mundial: se a academia pretende ser relevante para a sociedade e, ouso dizer, mesmo para a ciência, é necessário estabelecer e colocar em prática políticas internas que tragam a diferença para dentro da comunidade acadêmica. Buscar o diferente, porque isso trará o pensamento diferente. E assim diminuirá paulatinamente o medo de pensar diferente do conhecimento estabelecido. Porque é só admitindo que algo que se considera verdade talvez não seja a verdade completa que poderemos avançar nessa busca.

Isso não significa buscar só números, e sim criar mecanismos para tornar as qualidades desejáveis de um cientista (inteligência, curiosidade, criatividade, determinação, resiliência) serem mais importantes que sua aparência, procedência ou estilo de vida.

Cassandra admite que sua escolha de treinar na Europa foi consciente: viver nos EUA é estar sob uma constante pressão de pesada divisão racial. Mesmo hoje, professora na Harvard, ela é muitas vezes direcionada para a entrada de serviço. Afirma que não ocupa seu cérebro com isso porque este vive de ciência e de música. Segundo ela, conciliar as duas coisas pode ser tanto um desafio quanto uma benção. Pode significar levar os experimentos com moscas-da-fruta na bolsa durante um concerto, ou conciliar horas de matemática com exercícios vocais. Mas faz parte da sua opção de vida de não deixar a beleza e a ciência de lado jamais.

Sofro em pensar quantas pessoas com essa energia não estão na universidade. Se não mutarmos nosso DNA na academia, não sobreviveremos à seleção dos tempos.

CRISTINA BONORINO

24 DE FEVEREIRO DE 2024
DRAUZIO VARELLA

COISA DE MULHER

Menstruar todo mês é fenômeno moderno. As mães de nossas bisavós, nascidas um ou mais séculos atrás, casavam com 15 anos, começavam a menstruar aos 17 e já engravidavam. Tinham oito, 10 filhos que as impediam de ovular por nove meses e por boa parte do período de amamentação.

No fim de uma vida reprodutiva que começava tarde e terminava ao redor dos 40 anos, o número de menstruações ficava entre 50 e cem.

Por razões mal conhecidas, na mulher moderna a menarca ocorre em média aos 12 anos e a menopausa vem depois dos 50. Com taxas de natalidade decrescentes, mulheres com um ou dois filhos menstruam cerca de 400 vezes.

O sangramento da mucosa uterina, no entanto, não acontece de repente, por capricho cíclico da natureza. É precedido pela ação de uma rede de hormônios com interações de alta complexidade. Como são liberados na corrente sanguínea, eles agirão em todos os tecidos do corpo em que existam células com receptores aos quais possam se ligar, característica encontrada em ossos, cartilagens, músculos, coração, intestinos e outros órgãos internos; entre eles, o cérebro.

A multiplicidade de ações explica os sintomas relacionados com o ciclo menstrual: dores pélvicas, obstipação, dolorimento nas mamas e distúrbios emocionais, entre outros que afetam a saúde física e mental.

Cerca de 75% das mulheres têm a rotina de suas vidas prejudicada por transtornos pré-menstruais, menosprezados pelos médicos e pela sociedade, interpretados como manifestações de TPM, sigla que serve de pretexto para estigmatizar e pôr as mulheres em posição de inferioridade no trabalho, na vida familiar e nos relacionamentos afetivos. A pressão resultante faz da menstruação um segredo que não pode ser compartilhado nem sequer com os mais íntimos.

Os livros de medicina consideram normais ciclos com duração de 24 a 38 dias, com períodos de sangramento uterino de até oito dias. Essa faixa de normalidade, entretanto, nem sempre corresponde à percepção da mulher que enfrenta desconfortos intensos e embaraços sociais provocados pelas dores, alterações de humor e imprevisibilidade do sangramento.

A ignorância da sociedade e de boa parte dos médicos em relação a esse aspecto fisiológico do organismo feminino leva à depreciação das queixas e do sofrimento. É "coisa de mulher", como dizem. O descaso mascara condições patológicas como a endometriose e o transtorno disfórico pré-menstrual.

A endometriose se instala em 5% a 10% das mulheres em idade fértil. É uma das causas de infertilidade, de agravos mentais e de dores pélvicas tão fortes que as levam às unidades de pronto atendimento para receber analgésicos potentes.

Por ser "coisa de mulher", o diagnóstico costuma demorar décadas ou nunca ser feito, mesmo porque depende da realização de ultrassons especiais, que não são solicitados nas consultas de rotina.

Imagine, caríssima leitora, o descrédito de médicos, colegas de trabalho e familiares ao tratar da mulher com queixas de dores incapacitantes, mas que tem ultrassons normais.

O mesmo acontece com o transtorno disfórico pré-menstrual, que aflige cerca de 5% da população feminina. Trata-se de uma condição neuroendócrina com sintomatologia que inclui distúrbios psiquiátricos: depressão, crises de ansiedade e aumento do risco de suicídio, conforme demonstram os dados estatísticos.

Para completar o cenário, a falta de treinamento e de sensibilidade dos profissionais de saúde causa desconfiança e afasta as pacientes dos profissionais que poderiam ajudá-las.

O desinteresse secular da medicina por uma condição que traz dor, sofrimento e humilhações, que podem durar décadas em metade dos seres humanos, explica a falta de conhecimento, de pesquisas e de opções terapêuticas. Além da contracepção hormonal, pouco temos a oferecer.

O descaso é reflexo do valor que a sociedade atribui às dores das mulheres e do autoritarismo que os homens insistem em manter para subjugar os desígnios do corpo feminino.

Caro leitor, imagine se você, eu e todos os outros sentíssemos cólicas e passássemos pelos constrangimentos sociais e alterações do psiquismo que as afligem todos os meses. Aceitaríamos com passividade a resposta de que nada pode ser feito porque é coisa de homem?

DRAUZIO VARELLA

24 DE FEVEREIRO DE 2024
MONJA COEN

FALA CORRETA

Cada palavra, expressão, silêncio, pontuação pode modificar o sentido e o conteúdo do que falamos, escrevemos, pensamos e queremos transmitir. Não apenas nas relações internacionais há uma linha vermelha. Há em todas e quaisquer relações.

Meu mestre, Yogo Suigan Roshi, ensinava que, antes de falar, deveríamos passar a língua por toda nossa boca e refletir se o que iríamos dizer seria benéfico para quem ouvisse, se levaria à verdade e se não prejudicaria alguém.

Nem sempre é possível fazer essa reflexão, ainda mais quando estamos sendo estimulados e provocados por circunstâncias específicas. Quando atravessamos a linha vermelha - aquele sinal de parar, de se calar -, podemos causar brigas, conflitos, desentendimentos. Isso acontece em casa, nas relações íntimas, e, também nos locais de trabalho ou nas brigas de trânsito.

Temos a impressão de que podemos falar qualquer coisa com a boa intenção de educar ou estimular as relações. Ou, algumas vezes, no momento do conflito, da briga, atravessamos a linha vermelha e falamos o que nunca deveríamos ter falado.

Sou contra toda e qualquer forma de violência. Estamos em uma era de expansão de consciência e de respeito à vida em sua diversidade. Sabemos que somos todos bípedes, mamíferos, pertencentes à mesma família biológica - por que não conseguimos compartilhar dos bens comuns e das terras comuns a todos nós?

É preciso educar para a paz e para o respeito mútuo. Ah! Se todos pudessem meditar, praticar sentar-se em Zen, penetrar a essência de Si, certamente seria mais fácil encontrar um denominador comum para a harmonia e respeito entre todos os povos.

O Governador de Nova York, nos Estados Unidos, recentemente informou que haverá meditação em todas as escolas públicas, de dois a cinco minutos, todos os dias.

A ciência confirma o que o Zen vem transmitindo há mais de 2,6 mil anos: sentar-se em meditação (Zazen) beneficia o corpo e a mente. Leva a uma transformação pessoal e social. Modifica a maneira de estar no mundo, de se reconhecer interconectado a toda e qualquer forma de vida. E através do processo educacional de respeito e inclusão, podemos nos tornar, como humanidade, como u m todo coeso, cuidadores do planeta Terra.

Ainda é tempo. Somos o tempo.

Pisemos de leve sobre o chão, abracemos árvores e plantas, apreciemos o vento e o ar, as águas e as terras e cada ser humano na diversidade de nossas manifestações.

Que a paz prevaleça na Terra. Creia nisso. Faça acontecer. Seja a mão sagrada em ação no mundo, em sua vida, em sua casa, em sua cidade.

É possível. Cuidado com seus gestos, atitudes, pensamentos e palavras. Procure se expressar sem pisar ou atravessar a linha vermelha, a linha que demarca o respeito e a compreensão dos sentimentos e valores de outras pessoas, povos, países.

Mãos em prece

MONJA COEN


24 DE FEVEREIRO DE 2024
J.J. CAMARGO

A DELICADEZA DOS PEQUENOS GESTOS

O encaminhamento de um paciente para um colega de outra especialidade é uma prática frequente na medicina moderna, cada vez mais multidisciplinar, muito especialmente em se tratando do paciente oncológico, mas também em outras áreas em que o concurso de um profissional especializado se torne indispensável.

O reconhecimento dos limites de atuação de cada especialista representa uma exigência ética inegociável em favor do paciente. Definido o colega mais qualificado para esta prestação de socorro assistencial, um relatório completo com todas as informações pertinentes deve ser entregue ao paciente para o agendamento da primeira consulta com o profissional indicado.

Neste relatório, confidencialidade e transparência são considerados preceitos éticos inquestionáveis.

A necessidade da participação de outro colega, vista como rotina pelo encaminhador (é sempre oportuno lembrar que a rotina entorpece a sensibilidade de um em relação ao sentimento do outro), exigirá um mínimo de empatia para perceber o inevitável aumento da ansiedade do paciente. Porque se houve a necessidade da participação de outro profissional para resolver o mesmo problema, não deve ter sido por ter se tornado mais simples.

Um aspecto importante, e raramente discutido, é a experiência vivenciada pelo paciente que, objetivamente, está deixando um médico de que aprendera a gostar para encontrar um estranho de quem não sabe se gostará. Geralmente se ignora que este hiato pode significar vários dias e noites de orfandade afetiva, que seria atenuada com um cuidado muito simples: um telefonema, uma breve comunicação virtual, na frente do paciente, antecipando a consulta futura estabelecerá um vínculo afetivo, tênue, é verdade, mas que fará com que o próximo médico deixe de ser encarado como um completo desconhecido.

Lembro de uma jovem que operei de um tumor de mediastino e tinha necessidade de quimioterapia pós-operatória. Quando anunciei essa indicação, ela desatou num choro convulsivo, se negando a aceitar a recomendação. 

Liguei então ao oncologista dizendo que "estava encaminhando uma jovem chorona, que tinha um olho verde impressionante, e que ficava ainda mais lindo quando chorava, e que esperava que ele cuidasse dela com o mesmo carinho que dedicava a todos os pacientes", e ela parou de chorar imediatamente e, ao sair, depois de um abraço demorado, me agradeceu dizendo: "Que bom que Deus te deu esses braços tão compridos!".

Foi quando mais me convenci do significado de um vínculo afetivo, que em condições de máxima vulnerabilidade emocional, não importa o quanto pareça frágil, fará toda a diferença.

Após o encaminhamento, o médico deve acompanhar a sequência do tratamento, mantendo-se informado sobre a evolução e estando disponível para esclarecer dúvidas ou fornecer orientações adicionais, se necessário.

Com esses cuidados, a figura do médico ficará arquivada na memória emocional daquela família com um apêndice de gratidão. Doce e definitiva.

J.J. CAMARGO

24 DE FEVEREIRO DE 2024
CARPINEJAR

Lealdade e Liberdade

A vida me deu a coincidência de duas das mais importantes mulheres da minha história fazerem aniversário quase juntas, piscianas serpeando no oceano da gratidão. A comemoração da minha esposa Beatriz é no domingo (25), a da minha irmã Carla é na segunda-feira (26).

Beatriz é Lealdade. Nunca tinha experimentado uma cumplicidade tão tocante. Eu não preciso pedir para ela guardar segredo quando relato uma confidência. A confiança é inata, automática. Ela possui uma virtude rara: o dom do discernimento, de escolher o que pode ser passado adiante e o que deve permanecer entre nós. Não preciso temer vazamento de dados do meu coração.

Sendo mineira, ela não conta aos outros as novidades felizes para não gerar inveja, e tampouco conta as nossas maiores dores para não gerar pena. Em ambos os casos, é túmulo que me ressuscita e me põe a acreditar na eternidade do amor.

Às vezes, ela chefia um complô com os meus melhores amigos, Zé e Corso, para que eu cuide mais da minha saúde. Como a causa é nobre, eu lhe perdoo.

Ela me ama mesmo, porque quer que eu viva mais. Poderia ser uma viúva linda, jovem, inteligente, rica e sem o reboque de me aguentar, mas permanece escolhendo o meu ronco e a minha mania de limpeza. O amor é algo incompreensível.

Nossas implicâncias são divertidas, a ponto de ela conseguir a proeza de eu me desculpar pela minha chatice. Nunca admiti isso antes. Só ela arrancou do meu orgulho estas palavras difíceis: - Desculpa, estava chato naquele dia. Ela tira proveito da minha franqueza: - Somente naquele dia?

Beatriz é culta. Lê cinco jornais, escuta podcasts enquanto dirige, usa as suas folgas da advocacia para se informar. Odeia os livros inacabados na cabeceira.

Assim como flerta com a literatura, a arte e a moda, ela me impressiona porque conhece de cor todas as letras de música imagináveis. Não sei quantas reencarnações ela já teve. Pode tocar samba, que ela sabe. Pode vir pagode, que ela sabe. Pode baixar funk, que ela sabe. Pode ser rock, que ela sabe. Parece que cursou uma universidade cancioneira à parte.

Já me arrebatou no início do relacionamento quando mostrou, de modo inesperado, que dança frevo, lambada, tango.

Não duvido de que seja uma agente secreta de Deus em meu destino. Eu a amo por tudo o que conheço dela, e por tudo o que desconheço dela - vou me surpreender ao longo do tempo. Já Carla é a Liberdade em pessoa. Jamais se aprisiona em uma tese ou teoria. Pensa fora da caixa, procurando as brechas que ninguém viu.

Ela tem aquela liberdade que advém da autenticidade: de ser, de se emocionar, de evoluir. Não esquece o passado, não mente sobre o futuro, não finge em nenhum instante do presente.

Contagiou-me com a sua imensidão: foi a que organizou a minha primeira festa aos amigos na adolescência, foi a que me ensinou a dirigir, foi a que me incentivou a falar em público. Se voei longe do medo e da retração, ela soprou os meus olhos.

Talvez ela protagonize o caso mais emblemático de amor da humanidade: o da Liberdade com a Justiça. Atuando como procuradora de Justiça do Estado, não cansa de defender o que é ético.

Nasci irmão dela, e ainda fui escolhido por ela como seu irmão. São dois partos. O fim não nos assusta. O que a morte pode fazer diante de dois nascimentos? Nada, coisa alguma. Ser irmão de sangue não é garantia de proximidade. Opta-se pela irmandade por merecimento, por afinidade. A Lealdade e a Liberdade, na forma de duas mulheres, glorificam a minha existência.

CARPINEJAR

24 DE FEVEREIRO DE 2024

Namoro nas colônias italianas

As regras nos namoros retratam o pensamento e os costumes dos primeiros imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. O rigoroso controle, é verdade, também ocorria em famílias de outras origens nos séculos passados. Talvez você viveu esse tempo ou ouviu histórias dos seus pais e avós.

A Est Edições publicou a terceira edição do livro Imigração Italiana no Rio Grande do Sul: Vida, Costumes e Tradições, de autoria de Rovílio Costa (in memoriam), Irineu Costella, Pedro A. Samale e Paulo J. Salame. Editado inicialmente em 1975, no centenário da imigração italiana no Estado, o texto permite um mergulho na vida dos antepassados na serra gaúcha. Com base em muitas entrevistas, conseguiram detalhar o cotidiano dos primeiros imigrantes e seus descendentes.

Entrevistado pelos autores, Antônio Fiori, natural da Toscana, relatou que "o namoro comportava distância e espaço entre os namorados". Nada de sentar juntinho ou ficar de braços dados.

O namoro era iniciado com consentimento dos pais, muitas vezes, em frente à janela principal da casa. A mãe, a avó ou outro membro da família sempre ficava por perto. O casal só podia andar de mãos dadas após o noivado. O primeiro beijo normalmente ocorria no casamento.

Outra entrevistada, Isabel Ferretto Gotardo contou que, no primeiro mês, o namorado só podia ficar 15 minutos na visita. Mesmo com o aumento do tempo nos meses seguintes, "a mãe estava sempre ao lado", e o beijo antes do casamento era "considerado pecado". Os namoros eram curtos.

O noivado era realizado na cerimônia da bênção das alianças, na igreja. Só razões fortes podiam quebrar um noivado, porque provocaria comentários na comunidade.

O casamento tradicionalmente era nos sábados, nas primeiras horas da tarde. Noivos saíam, em procissão, a cavalo, da casa da noiva até a cidade, acompanhados de padrinhos e convidados. Depois da cerimônia religiosa, regressavam para a festa na casa do noivo, onde muitas vezes o casal ficava morando alguns meses para "ambientação da nora com a sogra". O costume era o filho mais jovem permanecer na casa paterna e ficar com a herança dos pais.

LEANDRO STAUDT


24 DE FEVEREIRO DE 2024
FLÁVIO TAVARES

HITLER RESSUSCITOU?

Antes da Segunda Guerra Mundial, nas zonas coloniais alemãs, as crianças ansiavam pela "tríplice folgança" de abril. No dia 19, aniversário de Getúlio Vargas, não havia aula. No dia 20, natalício de Hitler, a propaganda do Consulado Nazista fechava comércio e escolas. No dia 21, homenageava-se Tiradentes, mártir da Independência.

Em 1945, derrotado o nazismo, Hitler suicidou-se em Berlim. As três potências aliadas sumiram com o cadáver para apagá-lo do futuro.

Mas agora Hitler ressuscita, ainda que numa comparação crítica ao terror que ele patrocinou. O presidente Lula da Silva, em discurso na reunião dos países africanos, reinventou o chefão nazista ao comparar o Estado de Israel a Hitler pela matança da população civil palestina em Gaza.

Historicamente, a comparação é absurda. Na Alemanha de Hitler, os judeus eram cidadãos alemães enviados a "campos de trabalho" para serem exterminados ainda antes da Segunda Guerra Mundial. A funesta Noite dos Cristais iniciou o terror. Em Gaza, Israel bombardeia a população civil num ato condenável, mas em guerra contra o terrorismo do Hamas. O horror das guerras é a violência em si, em que matar e destruir é "heroico".

Não importa sequer que, numa manobra, o israelense Netanyahu (acusado de corrupção anos atrás) coordene a guerra invocando patriotismo. Ressuscitar Hitler tão só revive um período tormentoso que deve ser atirado ao lixo podre para que não se repita.

A Operação Tempus Veritatis, da Polícia Federal, vem mostrando a trama com que o então presidente Jair Bolsonaro buscou engendrar um golpe de Estado para manter-se no poder e, até mesmo, nele se perpetuar. Os métodos têm raízes nas invenções e mentiras de Hitler, que se tornou ditador incendiando o parlamento e pondo a culpa nos comunistas.

A História, porém, só se repete como farsa, como já foi dito sabiamente. Não penso que o ex-presidente da República pretendesse ser sanguinário ditador, mas buscava o horror para ressuscitar.

FLÁVIO TAVARES

24 DE FEVEREIRO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

INSTIGAÇÃO IRRESPONSÁVEL

A polarização chegou a tamanho nível no Brasil, que qualquer ideia defendida por um lado da disputa política é automaticamente rechaçada com virulência pelo outro grupo. Há poucos meses, até uma marca de chocolate acabou envolvida. As discussões não mobilizaram apenas as hordas de militantes anônimos espalhadas pelas redes sociais. Deputados e senadores da República, que deveriam estar ocupados com temas relevantes para o país, desperdiçaram tempo e energia engajados em uma discussão estéril.

O problema escala vários graus de gravidade quando a divisão é fomentada em torno de temas sensíveis e complexos, com o risco de desdobramentos como o aumento da intolerância e da violência. Ao se chegar a esse ponto, é dever alertar que trata-se de uma irresponsabilidade. E precisa ser freada, portanto.

É o caso da atual crise diplomática entre Brasil e Israel. A tensão entre os governos foi deflagrada pela manifestação desastrada e equivocada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que igualou o Holocausto - extermínio sistematizado de 6 milhões de judeus pelo regime nazista - às mortes de civis na Faixa de Gaza causadas pela guerra entre o exército israelense e o grupo terrorista Hamas.

O resultado da manifestação disparatada de Lula foi o acirramento de uma divisão que já era nítida desde o início do conflito, após o atentado do Hamas em 7 de outubro do ano passado. São posições que têm origem anterior, com a esquerda mais inclinada à causa palestina e a militância bolsonarista identificada com Israel.

São simplificações carregadas de contradições. Os direitos humanos, por exemplo, enfrentam sérias restrições em países árabes. Já em Israel, uma reconhecida democracia, os direitos humanos são respeitados e há diversidade política, apesar de o governo atual ser identificado com a extrema direita. Esse vínculo ideológico com a direita é um dos motivos da simpatia dos seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro.

É altamente temerário que lideranças e ativistas dos dois polos da disputa política no Brasil instrumentalizem o conflito entre Israel e Hamas usando a guerra, seus motivos e consequências de acordo com os seus próprios interesses. Ao tentar utilizar a conflagração no Oriente Médio para instigar seus apoiadores, o resultado é o estímulo ao fanatismo, à divisão da sociedade e à discriminação generalizada. O antissemitismo, em particular, recrudesceu em todo o mundo de forma alarmante nos últimos meses. Não foi diferente no Brasil.

Bolsonaro convocou seus seguidores para uma manifestação neste domingo, na Avenida Paulista, em São Paulo.

Seu defensor em processos que enfrenta, o advogado Fabio Wajngarten chegou a sugerir que o embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, fosse convidado para o ato. Tratou-se de uma ideia inconsequente de Wajngarten, ex-secretário de Comunicação no governo Bolsonaro. Serviria apenas para elevar a crise diplomática a níveis críticos, com reflexos ainda mais perigosos na cisão social atravessada pelo Brasil. O ex-presidente e seus apoiadores têm o direito constitucional de se manifestarem. Mas exige-se responsabilidade para não aumentar a polarização política no país usando episódios que estão fora do contexto da realidade nacional.



24 DE FEVEREIRO DE 2024
CONSELHO EDITORIAL

AO LADO DOS GAÚCHOS

"A gente vive junto" é muito mais do que um posicionamento institucional. É um compromisso que reafirmamos diariamente na RBS, buscando estar ao lado dos gaúchos com informação e serviço, contando histórias, debatendo soluções para desafios das comunidades e valorizando iniciativas de diferentes regiões do Estado.

Estamos mais uma vez na tradicional Festa da Uva, em Caxias do Sul, com ampla cobertura, incluindo a transmissão do primeiro Jornal do Almoço Bem Pra Ti do ano - e temos mais 10 edições já confirmadas deste projeto tão querido pelos gaúchos, que leva o JA a percorrer diferentes cidades. Dando sequência a um intenso calendário de cobertura editorial e ações institucionais em eventos pelo Rio Grande do Sul, a Gaúcha transmitiu nesta semana a abertura da colheita do arroz, de Capão do Leão, no Atualidade, estaremos na Fenavindima, em Flores da Cunha, neste sábado, e abriremos em março nossa casa na Expodireto Cotrijal, um dos maiores eventos do agronegócio, realizado em Não-Me-Toque.

Nosso jornalismo tem raízes em diferentes cantos do Estado, com 12 emissoras da RBS TV e quatro da Gaúcha. Nesta semana, celebramos os 55 anos da RBS TV Caxias, que - ao lado da Gaúcha Serra e do jornal Pioneiro, que completou 75 anos - valoriza uma região tão importante para a economia e a cultura do Estado. GZH Passo Fundo completa em março um ano com foco em conteúdo hiperlocal e na conexão com o norte do Estado, marcando a expansão digital da RBS pelo Interior e somando-se à audiência de GZH, que alcança 10 milhões de usuários mensais.

Neste ano de eleições municipais, estaremos ainda mais próximos e vigilantes. Cumprindo nosso propósito de contribuir para uma vida melhor aos gaúchos, teremos uma cobertura centrada nos desafios das comunidades e nas propostas apresentadas pelos candidatos.

Assim, a partir do jornalismo profissional, seguiremos abordando temas relevantes para os 11 milhões de espectadores, ouvintes e leitores com quem nos conectamos diariamente, valorizando aquilo que torna cada comunidade única e tudo o que nos une como gaúchos.

CLAUDIO TOIGO FILHO


24 DE FEVEREIRO DE 2024
+ ECONOMIA

Temas de Haddad e a mulher mais poderosa da economia

Terminou a etapa diplomática do G20 no Rio de Janeiro, mas nos próximos dias, há outro encontro preparatório, desta vez com a participação de ministros de Finanças em São Paulo. Assim como o chanceler brasileiro Mauro Vieira foi o anfitrião da primeira etapa, caberá a um já assoberbado ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fazer as honras da casa.

Além de receber todos os participantes, Haddad terá reunião bilateral com a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, que pode ser considerada a mulher mais poderosa da economia, tanto pelo orçamento que administra quanto pelo alcance global de suas decisões. Os dois têm uma dor de cabeça em comum: o pesado déficit nas contas públicas. 

Se Haddad respira um pouco mais aliviado depois da arrecadação recorde de janeiro, sabe que o jogo da meta de déficit zero está só começando. Nos Estados Unidos, o recorde é da dívida que Yellen tenta administrar, fruto de sucessivos déficits primários. Em janeiro, o endividamento americano chegou a inéditos US$ 34 trilhões, cerca de 120% do PIB.

É verdade que Yellen tem o poder de rodar a máquina de dólares que Haddad não tem, mas a dívida americana, que sempre foi alta, chegou a um nível que começa a provocar inquietações, além de recorrentes polêmicas parlamentares, para elevar teto sob pena do shutdown - a paralisação de serviços públicos.

Outra preocupação comum dos dois ministros de finanças (guardadas as proporções das encrencas que administram e a nomenclatura dos cargos) é a inflação e o ritmo da redução do juro. Nos EUA, os preços médios cederam, mas ainda não o suficiente para dar conforto ao Federal Reserve (Fed, o banco central do país) para um corte mais afiado.

A grande expectativa é mais focada na necessidade de reduzir a remuneração dos títulos públicos americanos e reduzir a pressão sobre a dívida.

Há expectativa, ainda, de que Yellen fale uma palavra mágica: "friendshoring". É o deslocamento da produção para abastecer os EUA de outros países - leia-se China - para nações amigas. Até agora, o país de Biden tem focado mais no "onshoring", ou seja, levar a fabricação para casa. E entre os amigos, o México é bem mais beneficiado do que o Brasil.

MARTA SFREDO


24 DE FEVEREIRO DE 2024
MARCELO RECH

Laços expostos

Entre as dúvidas sobre a presença de aliados no ato de Jair Bolsonaro neste domingo em São Paulo, está um personagem-chave para esclarecer a extensão da trama golpista contra o resultado das eleições presidenciais de 2022. Candidato a vice de Bolsonaro, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, o general da reserva Walter Braga Netto surge em diferentes papéis no enredo que vem sendo descoberto pela Polícia Federal.

O Braga Netto que se conhecia em público foi comandante militar do Leste e, nesta condição, interventor federal na segurança do Rio em 2018. Seu prestígio no círculo de poder e a discrição com que se movimentava entre os fanáticos do Planalto guindaram-no à vice na chapa e à intimidade de Bolsonaro no exílio do Alvorada após a derrota eleitoral.

O Braga Netto exposto pela Operação Tempus Veritatis é outro. Em troca de mensagens, ele chama um interlocutor enredado com a lei, o ex-capitão Ailton Barros, de "meu amigo". Gaúcho do Alegrete, Barros se declarava muito próximo de Bolsonaro, de quem se dizia o "01". De fato, em uma gravação, Bolsonaro descreve-o como "segundo irmão". 

Ambos tiveram muito em comum na carreira na caserna: atormentaram superiores, desrespeitaram códigos militares e foram presos por indisciplina. Entre 1997 e 2006, Barros foi detido sete vezes, uma delas por tentativa de abuso sexual de uma moça durante acampamento militar em Natal. Acabou sendo expulso do Exército por "reiterada conduta irregular de atos que afetam o pundonor e o decoro da classe", virou advogado e tentou uma carreira de deputado na sombra de Bolsonaro.

Na improvável amizade entre um general de Exército da reserva e um ex-capitão expulso da força, não há só inconfidências, como a de chamar o então comandante do Exército, Freire Gomes, de "cagão". Há um ex-oficial general que chegou à mais alta patente militar agindo contra antigos pares da forma mais vil que se tem registro na história recente das Forças. 

Braga Netto simplesmente orienta Barros a desfechar ataques virtuais a oficiais-generais que se negavam a embarcar no delírio golpista. "Inferniza a vida dele e da família", explicita o ex-general de quatro estrelas, direcionando o ataque ao então comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Baptista Júnior.

Barros é um frequentador de inquéritos, como o da falsificação do cartão de vacinação da Covid e da morte de Marielle Franco, depois de flagrado em uma mensagem de áudio dizendo que sabia quem tinha mandado matá-la - o que atribuiu mais tarde a uma "bravata". É um peixe pequeno para trabalhos sujos que ainda terá de dar muitas explicações. Mas não tantas como o ex-general que sustentou Bolsonaro na tarefa de corroer a coesão e a reputação das Forças Armadas por uma incontrolável ambição de poder.

MARCELO RECH

24 DE FEVEREIRO DE 2024
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA Mais um Gre-Nal nas nossas vidas

Neste domingo, às 18h, em um Beira-Rio lotado, Inter e Grêmio, dois dos principais clubes brasileiros, vão saber com mais precisão como estão se preparando para os principais desafios do ano: Copa Libertadores no caso do Grêmio, Copa Sul-Americana para o Inter, Copa do Brasil e Brasileirão para ambos.

Como costuma acontecer nos Gre-Nais do Gauchão, será o primeiro confronto do ano entre os dois gigantes. É hora de medir forças e avaliar o que foi feito neste mês e meio de atividades desde o início da temporada. A expectativa do primeiro grande confronto do ano pode ser medida pelos ingressos, que, conforme a direção do Inter, praticamente se esgotaram na última quarta-feira. Para os veículos do Grupo RBS, Gre-Nal 441 será mais um momento de conexão com o público.

- A estratégia que trabalhamos transborda plataformas e marcas. Pensamos o planejamento enquanto Grupo RBS para que a gente atenda à necessidade de quem quer consumir e também para os nossos parceiros comerciais - diz Carlos Etchichury, gerente-executivo de Esporte da Redação Integrada de Zero Hora, GZH, Rádio Gaúcha e Diário Gaúcho.

Etchichury destaca as novidades apresentadas ao longo da semana. Na terça-feira, foram anunciadas as chegadas dos jornalistas Quetelin Rodrigues, a Queki, e Vagner Martins, o Vaguinha. Ambos farão suas estreias na programação da Gaúcha no Gre-Nal. Queki será a repórter identificada com o Grêmio. Do lado do Inter, a função será exercida por Vini Moura. Com isso, os jogos da Dupla voltam a ter o Repórter Torcedor. E Vaguinha será o novo comentarista identificado com o Inter - Cesar Cidade Dias segue como comentarista do Grêmio.

Mas as novidades previstas para o Gre-Nal não param aí. Será uma extensa programação no final de semana. No domingo, as transmissões na Gaúcha e no YouTube de GZH se iniciam às 9h30min. Serão 14 horas e 30 minutos ininterruptos, ao vivo, no on air e no digital.

Os preparativos para o clássico estão entre as páginas 29 e 38. Os conteúdos também podem ser acessados pelo site e pelo aplicativo de GZH.

DIONE KUHN

sábado, 17 de fevereiro de 2024


17 DE FEVEREIRO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

Juntando os pedaços

Se eu contar para você uma história que anda me incomodando, você julgará de acordo com o meu relato, apenas. Não conhecerá o outro lado. Não adivinhará o que ocultei. Não tem como saber que meu incômodo está relacionado não só a esse episódio específico, mas a memórias remotas da infância. Minha história é verdadeira, mas não é conclusiva nem para mim mesma. Memórias traem, raivas nos fazem exagerar, o vitimismo ficciona confissões.

Se há inexatidão até em conversas sinceras e afetivas, imagine entre quem mente e quem adora uma fofoca, entre quem manipula e quem é inocente, entre quem não se expressa bem e quem não capta entrelinhas. O universo é repleto de mal-entendidos.

É como se cada um de nós falasse um idioma próprio, e tivesse que contar com a compreensão de quem não domina o que dizemos. Quando nos comunicamos em um idioma que não é o nosso, resumimos a experiência e simplificamos nossos sentimentos. Em português, tenho vocabulário e desenvoltura para me expressar com clareza. Em espanhol, menos. Em inglês, menos. Em alemão, emudeço.

Vale como metáfora, inclusive.

A pessoa com quem eu falo talvez seja fluente em maledicência e reconheça apenas nuances da minha sinceridade. Como podemos ser julgados por quem não nos conhece profundamente, não testemunhou o que vivemos e só conta com a nossa habilidade (ou inabilidade) no uso das palavras?

Essa reflexão foi despertada pelo excelente Anatomia de uma Queda, filme que concorre ao Oscar no próximo 10 de março e que tem calado plateias: na sala de cinema em que eu estava, não se escutava um suspiro. Cada diálogo, cada afirmação dos personagens era um pedacinho do quebra-cabeça a ser montado em busca da verdade. Diante de um impasse, como decidir quem tem razão?

É um filme de tribunal, mas de uma originalidade impactante, pois desconsidera o veredito. A matéria-prima do filme é a relatividade de tudo. Cada um de nós tem um pouco de razão e cada um de nós está equivocado. Procuramos equilibrar o certo e o errado a fim de chegar a um platô de entendimento minimamente aceitável, mas sempre haverá alguma injustiça no parecer final. Aliás, nem sempre no final. Há injustiças no meio. Há injustiças no começo.

Sempre foi assim e hoje está pior: os julgamentos deixaram de acontecer na Suprema Corte, estão pulverizados nas redes sociais. Todos os dias alguém pensa que sabe o que você está sentindo. Tem opinião sobre o motivo de você ter dito o que disse. Acha que você é do bem ou do mal, segundo critérios toscos.

Quanto maior a plateia em volta, menos conhecemos uns aos outros. Conhecer para quê, ora bolas? Duas ou três postagens são suficientes para saber qual é a sua.

MARTHA MEDEIROS

17 DE FEVEREIRO DE 2024
CLAUDIA TAJES

Sobras do Carnaval

Estive na Barra do Chuí, ali onde o Rio Grande do Sul termina para virar Uruguai. As distâncias mais curtas e, sem dúvida, a estrutura turística explicam o Litoral Norte ser mais popular, mas a Barrinha, o Cassino, o Hermenegildo e a Barra do Chuí têm os seus muitos encantos. Incluindo as grandes extensões de areia que dão uma sensação de praia particular, dependendo do lugar em que se estenda a toalha.

O Cassino tem o título de maior praia do planeta, é pouco? E para quem acha que, além de imenso, o Litoral Sul é feio, com todo o respeito: tirando Torres, todas as praias gaúchas se parecem. Ainda tivemos a sorte de pegar os dias de Carnaval em que a água estava perfeita, refúgio para escapar dos 40°C com sensação térmica de, sei lá, 100°C? Caiu o mito de que as águas do nosso litoral mais extremo são geladas. Nem elas resistiram à temperatura em ebulição.

Depois de quase 600 quilômetros de estrada, foi como chegar não em casa, mas em um forno. O piso estava quente. A parede fervia. O Brasil pegou fogo no Carnaval. Nunca se viu tanto folião desmaiando em bloquinho. Moralistas e pudicos que me desculpem, mas toda nudez não apenas não deve ser castigada, como ainda foi o único não-traje possível para se enfrentar um trio elétrico naquelas condições.

Também teve as rainhas da bateria pela TV. Sempre espero a rinha de rainhas, uma querendo ser mais espetaculosa que a outra. Devia ter o quesito Rainha da Bateria na apuração. Chamada de gorda e velha poucas semanas antes, Paolla Oliveira surgiu à moda Paolla Oliveira, um evento. Além de tudo, ela ainda tem aquele namorado. Malandro é malandro, mané é mané.

A Portela veio com Um Defeito de Cor no enredo e o livro da Ana Maria Gonçalves virou o mais vendido do país no intervalo de uma Sapucaí. O calhamaço de quase mil páginas, que quem se aventura a ler não esquece mais, agora é o mais vendido do país. E ainda há quem menospreze a cultura popular. Uma pena Porto Alegre ter escanteado o seu Carnaval para longe em todos os sentidos, inclusive no calendário. Quanta história a gente não perdeu e vai continuar perdendo.

Falando em Porto Alegre, a crônica do Carlos Gerbase que saiu aqui na Zero Hora, na segunda-feira de Carnaval, merece um quadro. Ele imagina Diógenes de Sinope, aquele que morava em um tonel e era filósofo e mendigo por convicção em Atenas, chegando à nossa cidade. "De repente, algo impedirá o sol de bater em seu rosto. Alexandre, o Grande Construtor, estará à sua frente. É um homem imponente, de terno Armani e educação refinada". No final, depois da proposta de negociar seus namings rights para um novo empreendimento, o Diógene?s Tower, o filósofo mergulhará no Guaíba, atravessará mares e oceanos e voltará a Atenas pelo Pireu com uma certeza: "O Alexandre de Porto Alegre é pior que o da Macedônia. Sua sombra é muito maior." Para ler a crônica: gzh.rs/ImagineDiogenes

Antes, quando o Carnaval passava, a gente dizia que, agora sim, o ano já podia começar. Bem que daria para trocar esse conceito - tão demodê - por algo do tipo, agora que o Carnaval passou, a temperatura já pode baixar. Mas essa é uma ilusão ainda maior, e menos cheia de plumas, que o próprio Carnaval.

CLAUDIA TAJES

17 DE FEVEREIRO DE 2024
LEANDRO KARNAL

Nem sempre a pessoa culta, inclinada a livros, reflexiva sobre os grandes sistemas de significação do universo, cuida de ocupar-se das coisas prosaicas do real. Você conhece em sua família ou amigos: ela domina línguas, lê com prazer livros complexos, pensa sistemas filosóficos e possui alguma dificuldade com atos, como amarrar cadarços, abrir latas ou ir a supermercados. Parecem vocações diferentes: lidar com o real miúdo e refletir sobre grandes sistemas abstratos.

Filósofos trabalhando na resolução de problemas comezinhos também esbarram em asperezas. O grande Platão saiu dos espaços protegidos da sua Academia, em Atenas, e foi ser político prático em Siracusa (Sicília). A vontade de frônese (phrónesis, termo usado por Aristóteles), de sabedoria prática e aplicação concreta dos princípios teóricos, foi um desastre em Siracusa. As teorias de um rei-filósofo sábio e equilibrado terminaram com o tirano vendendo o pensador como escravo.

Em Roma, Sêneca desejou influenciar o jovem Nero. Transmitiu princípios estoicos. Nero também foi aconselhado por Afrânio, iniciando seu governo com medidas prudentes e sensatas. O jovem Nero foi comparado a Augusto. Porém, o tempo e o poder mudam muita coisa, e o imperador tornou-se um monstro sanguinário, mesmo para os padrões violentos de Roma. Idoso, implicado em uma conspiração, Sêneca se matou no ano 65. Afrânio morreu, retirado da vida pública, desfavorecido pelo imperador e sob suspeita de envenenamento.

No começo da Idade Média, outro intelectual trabalhou para um rei. Boécio, quando foi preso, servia a Teodorico e acabou executado. Do cárcere emergiu o belo livro A Consolação da Filosofia (em latim: Consolatio Philosophiae), obra influente por toda a Idade Média.

Em pleno Renascimento, Thomas Morus era um humanista culto que servia ao rei Henrique VIII. Utopia, sua obra de 1516, foi de enorme influência sobre a imaginação filosófica. Contrário ao afastamento entre o rei e a igreja de Roma, Morus foi decapitado no verão de 1535.

Citei Platão, Sêneca, Boécio e Morus - exemplos de pessoas virtuosas que se viram enredadas em tramas de poder. Nem todas foram assim. Joseph Goebbels foi ministro do Terceiro Reich. Antes de participar do horror nazista, ele se doutorou em Filosofia, pela prestigiosa Universidade Heidelberg, com tese sobre um escritor menor do século 19: Wilhelm von Schütz.

Poucos se lembram de que Hitler o nomeou para cuidar da cultura, da propaganda, dos livros, rádio, cinema e do "esclarecimento do povo" (Reichsministerium für Volksaufklärung und Propaganda). Por 12 anos, foi o filósofo mais poderoso do mundo... e o mais letal.

Dando só mais um exemplo, Luc Ferry foi também ministro da Educação na França. Tanto os livros com linguagem mais acessível (O Que É uma Vida Bem-Sucedida, Aprender a Viver) como o projeto político de Ferry tinham um diálogo com a tal da frônese. Há um anseio de sabedoria prática, de ações, até mesmo de busca da felicidade: um choque a Schopenhauer.

Como vimos, os problemas são muitos. Quando são éticos, os filósofos (em geral) são tragados pelo sistema político realista e amoral. Quando são canalhas, reforçam o mal do mundo, por meio da habilidade estratégica de pensar. E existe o caso mais complexo de Luc Ferry...

Se os pensadores ficarem encastelados na universidade, abrem caminho para outros codificadores de sistemas. O "intelectual público", como Sartre, já foi uma referência. Geralmente, qualquer pensador que se aproxime da fama é mais atacado pelos colegas universitários do que pelos inimigos alheios à universidade. Meus colegas Clóvis de Barros Filho e Mario Sergio Cortella são bons exemplos. Se estivessem falando para meia dúzia, em congressos, nunca seriam criticados.

O trono do poder nunca está vago. Sempre houve muitos candidatos a ele. Se grandes pensadores não dialogarem com o mundo externo, atores em fim de carreira ocuparão postos, como sua tábua de salvação. Aquilo que é um peso para um intelectual consagrado é a única esperança de luz e de dinheiro para alguém ruim. Existe da mesma forma a frônese dos meios de comunicação. Ninguém precisa abandonar a universidade. Basta escrever para a grande imprensa, gravar lives, registrar ideias críticas em redes sociais. O mundo vê Instagram, mas não Revista Acadêmica. O problema das vestais é não perceberem que os bárbaros vão tomar também seu Templo Sagrado. Sem o diálogo com o mundo, a ação crítica vai continuar sendo catequese para já convertidos, em intermináveis assembleias para um público que concorda 100% com o orador universitário.

Na falta de interfaces com bons pensadores, a Terra fica plana, as vacinas são questionadas, racismo passa a ser mimimi de novo... Tenho esperança de bom fermento e de bom sal. Na ausência dos dois, o ódio irracional coopta Goebbels e seus asseclas. Em vez de gritar do lado de fora "Saiam da caverna!", estaria na hora de voltar a ela e mostrar o Sol?

LEANDRO KARNAL

17 DE FEVEREIRO DE 2024
EUGÊNIO ESBER

AJUDANTE GERAL

Em 1981, um ano depois de fundar um partido que eu e muitos brasileiros esperávamos que fosse, como o nome prometia, "dos Trabalhadores", Lula expressou sua desafeição pela mais elementar atividade intelectual. Respondia ele a um simpatizante, Flávio Rangel, homem de teatro, tradutor, jornalista. "Você não está estudando nada? Você sente necessidade de estudar?" 

Com um tom de soberba e autossuficiência a emoldurar a voz rascante, Lula falou do que mais gosta - de si mesmo: "Primeiro, eu acho que eu sou muito preguiçoso. Até pra ler eu sou preguiçoso. Eu não gosto de ler, eu tenho preguiça de ler. Pelo hábito, isso é questão de hábito. Tem companheiro que passa um dia lendo um livro. Eu não consigo". Quase quatro décadas depois, eleito e reeleito presidente da República, Lula nada fez para alterar esta biografia. Ao contrário, fez uso da sua aversão a livros para espicaçar, na figura de FHC, "intelectuais e doutores" que segundo ele nada faziam pelo país.

Em 2018, porém, o PT procurou fazer uma transformação radical na imagem do seu fundador enquanto ele cumpria pena de prisão de 12 anos e um mês por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Em seu website, o partido informou que nos dois primeiros meses de cárcere - dos 580 dias em que ficaria preso - Lula teria lido 21 livros. Muitos duvidaram da média de uma obra devorada a cada três dias, mas a ser verdade a afirmação do PT ter-se-ia a impressionante história de um sedentário que, da noite para o dia, converteu-se em imbatível maratonista das letras.

A nova página de Lula como um líder ilustrado veio a público poucos dias atrás. Em discurso, o presidente da República saiu-se com esta: "(...) A gente sabe que a gente tem que ter uma profissão. Se a gente não tiver profissão, a gente vai ser ajudante geral. E ajudante geral não ganha nada! Nenhuma mulher quer namorar com um cara que mostra a carteira profissional... Qual é a tua profissão? "Ajudante geral." A mulher fala "Pô, cara? Nem uma profissão você tem? Pra levar o feijão, o arroz, pra casa, no final do mês? E as crianças que vão nascer? Como é que a gente vai cuidar?". Então, tem que estudar!

Um conselho correto, mas servido com arrogância e desprezo aos mais humildes, gerou reações como a de um brasileiro que se filmou diante de uma betoneira: "Eu sou ajudante geral, sou casado, tenho cinco filhos e uma esposa maravilhosa. Ela nunca foi me visitar na cadeia porque eu nunca fui preso". Pelo impropério que o ajudante geral dirige depois ao presidente, talvez o pobre tenha que procurar um advogado, mas a legítima defesa de sua dignidade, e a de muitos milhões de brasileiros, é o que lhe pode acudir, se ainda houver justiça neste país. 

Quanto à intenção de encorajar o brasileiro a estudar, faria melhor Lula se engavetasse o "Documento de Referência" do Plano Nacional de Educação 2024-2034, abordado nesta coluna ("Rota do desastre"). É uma peça política que passa longe da preocupação de preparar os brasileirinhos para uma vida digna e produtiva. Colocar ênfase no Ensino Básico e Fundamental, historicamente relegado a segundo plano em prol do Ensino Superior, e substituir o panfletarismo ideológico pela aposta em disciplinas como português, matemática e língua estrangeira, seria uma ótima notícia para todos - a começar pelos ajudantes gerais.

EUGÊNIO ESBER