Voces encontrarão aqui uma variedade de coisas que gosto: crônicas de jornais diários e de revistas semanais, de livros que já li e de outros que gostaria de ler... de imagens que gosto e tenho e outras que ainda sonho em fazer. Enfim, há uma variedade de coisas que espero voces também gostem pois esta, é uma das razões de ele ser. Sintam-se em casa aqui.
sábado, 28 de abril de 2012
quarta-feira, 25 de abril de 2012
sábado, 21 de abril de 2012
quarta-feira, 18 de abril de 2012
18 de abril de 2012 | N° 17043
MARTHA MEDEIROS
Pode ir
No domingo 8 de abril, foi ao ar a entrevista que o ator Reynaldo Gianecchini deu à jornalista Marília Gabriela. Houve quem se apegasse ao selinho e ao “te amo” no final, que nada mais foi do que uma manifestação espontânea de afeto entre ex-amantes que se dão bem, mas o que merece registro foi a abertura emocional da conversa, coisa que a TV não costuma esbanjar.
A entrevista comoveu do início ao fim, chegando perigosamente perto do piegas, porém Gianecchini foi tão grandioso, que calou qualquer crítica. Não perdeu a classe, não se vitimizou, falou com desenvoltura e honestidade – foi perfeito.
Houve um momento que sobressaiu aos demais. Foi quando ele contou como foram os últimos instantes de vida do pai dele, que também tinha câncer e que veio a falecer. Gianecchini, sabedor de que o pai estava desenganado, foi ao hospital e juntos tiveram a oportunidade de conversar sobre diversas questões pendentes – que pais e filhos não têm questões pendentes?
Não querendo ser mais um a choramingar “por que não disse tal e tal coisa ao meu pai quando ele era vivo?”, foi lá e fez o dever de casa.
Tiveram tempo para zerar as dívidas. Quando não havia mais o que falar, Gianecchini abraçou o pai longamente e disse: “Pode ir”. Então olhou para os monitores e viu que os batimentos cardíacos dele começavam a cair, que o pulso começava a cair – o pai começava a morrer. Ele acompanhou a morte chegando, até que as máquinas deram o sinal de que tudo havia acabado. “Não senti tristeza. Senti paz.”
Entre tantas coisas difíceis que enfrentamos na vida, as despedidas estão entre as mais cruéis. Dificilmente sentimos paz: romper um vínculo é uma pequena morte, e com ela advêm a dor, a culpa, a saudade e o medo diante do que o futuro reserva.
Mesmo as despedidas do tipo “fácil”, como as que ocorrem em aeroportos e rodoviárias, são angustiantes: quando nos veremos de novo? Ao menos, sabe-se que haverá um novo encontro, seja quando for. Já as difíceis implicam separação definitiva. Incluem-se aí divórcios, fins de namoro, discussões que dissolvem amizades, sociedades, empregos. Apesar de necessárias, sangram por dentro. Adeus. Palavrinha fatal.
Pois Gianecchini reverteu a tese de que toda despedida é um suplício. Diante do irreversível, não fez drama. Sofrimento e drama não são sinônimos. Existe o sofrimento pacífico, assimilado, generoso: “Pode ir”. É a aceitação da morte como um rito de passagem tanto para quem vai quanto para quem fica.
O drama é que torna tudo mais doloroso. Elimina a razão, não permite formulações nem aprendizado, apenas corrói, desespera. O drama, que tem na despedida sua cena representativa clássica, é cafona e improdutivo: o tempo que gastamos arrancando os cabelos poderia ser mais bem aproveitado se transformado em meditação e humildade.
Aceitar o luto inerente a tudo que acaba é sabedoria das mais refinadas.
terça-feira, 17 de abril de 2012
17 de abril de 2012 | N° 17042
CLÁUDIO MORENO
Um mito imortal
Nos mitos da Grécia antiga, os amores entre deuses e mortais, embora muito frequentes, nunca duravam muito tempo – não por inconstância das partes, mas sim por um simples problema literário: como é impossível existir um relacionamento duradouro entre uma divindade atemporal e alguém que caminha para o fim inevitável, quase todos esses amores terminavam de maneira abrupta, não com a morte do parceiro humano, mas – e aqui brilha a paixão que os gregos tinham pela vida – com sua transformação em outro ser, o que, de certa forma, também o tornava imortal.
Vejam Hélio, o deus do Sol, que se apaixonou por Leucótoe, uma princesa da Pérsia. Lá de cima, conduzindo pelo firmamento os seus fogosos cavalos alados, o deus só tinha olhos para ela; enamorado, atrasava sua trajetória no céu de inverno, tornando os dias mais longos para ter mais tempo para contemplá-la.
Uma noite, quando a Lua, sua irmã, já brilhava serena, o Sol assumiu a aparência da rainha-mãe e assim entrou nos aposentos da princesa, que fiava e bordava na companhia das outras donzelas. “Deixem-nos a sós; quero falar com minha filha”, disse ela, dispensando-as.
Quando se viu sozinho com ela, o deus então se apresentou: “Eu sou quem mede a extensão dos anos; eu tudo vejo, e todos os homens veem por meu intermédio; eu sou o olho do mundo.
Eu te amo!”. Aturdida pela surpresa e pelo calor daquelas palavras, a jovem deixou cair o fuso com que fiava o linho; o deus, então, sem hesitar, assumiu sua verdadeira aparência, e Leucótoe, trêmula diante daquela visão esplendorosa, deslumbrada com tanta luz, acabou se entregando docilmente.
Uma irmã, porém, cheia de ciúme porque também amava Hélio, não hesitou em contar ao pai que a princesa já não era mais donzela. Impiedoso e brutal, o rei não quis ouvir a explicação da filha – ninguém resiste a um deus, dizia ela – e mandou sepultá-la, viva, numa profunda cova. Quando o deus soube disso, ainda tentou usar seus raios para libertar a pobrezinha, mas era tarde demais: Leucótoe, sufocada e esmagada, já era um corpo sem vida.
“Mesmo assim tu vais chegar aos céus”, jurou o Sol, desconsolado – e, impregnando com o néctar divino a terra que a cobria, fez nascer ali uma planta de folhas aromáticas: nascia assim o arbusto do incenso, e, a partir daquele dia, de todos os templos da Grécia, de todos os templos do mundo, a alma perfumada de Leucótoe subiria para se encontrar com seu amado, como ainda faz até hoje.
Lembrete – Em maio, começam meus cursos Introdução à Mitologia e Os Amores de Zeus. Todos os detalhes no site www.casadeideias.com.
17 de abril de 2012 | N° 17042
FABRÍCIO CARPINEJAR
O riso é perigoso
Clarice Lispector beliscava sua amiga Lygia Fagundes Telles quando entravam juntas num encontro literário:
– Não ri, vai! Séria, cara de viúva.
– Por quê? – perguntava Lygia.
– Para que valorizem o nosso trabalho.
Não há mesmo imagem de alguma risada da escritora Clarice Lispector. Em livros e revistas, a cena que persiste é seu olhar desafiador, emoldurado por um rosto anguloso, compenetrado e enigmático. Os lábios não se mexem, absolutamente contraídos, envelopes fechados para a posteridade.
Lispector não mostrava suas obturações, sua arcada para ninguém. Não se permitia gargalhadas para não parecer mulher superficial e leviana.
Ela percebeu que existe um imenso preconceito contra a alegria. Os críticos não a levariam a sério, dizendo que ela não era densa, não inspirava profundidade; acabariam por sobrepor a aparência faceira aos questionamentos metafísicos de sua obra.
Seu medo não era bobo. O riso permanece perigoso. Todos temem os contentes. Falam mal dos contentes.
O riso gera inveja, ciúme, intriga: “Por que está feliz, e eu não?”.
A alegria é malvista em casa e no trabalho, sempre intrusa, sempre suspeita equivocada de uma ironia ou de um sentimento de superioridade.
Ainda acreditamos que profissionalismo é feição fechada, casmurra. Ainda deduzimos que competência é baixar a cabeça e não entregar nossas emoções.
Quanto mais triste, mais confiável. Quanto mais calado, mais concentrado. O que é um tremendo engano.
A criatividade chama a brincadeira, assim como a risada renova a disposição.
Se um funcionário ri no ambiente profissional, o chefe deduz que ele está vadiando, sem nada para fazer. Poderá receber reprimenda pública e o dobro de tarefas.
Quem diz que ele não está somente satisfeito com os resultados?
Se sua companhia ri durante a transa, você conclui que está debochando do seu desempenho. Quem diz que não é o contrário, que ela não festeja o próprio prazer?
Se a criança ri no meio da aula, o professor compreende como provocação e pede para que cale a boca. Quem diz que ela não está comemorando algum aprendizado tardio?
Se o filho ri quando os pais descrevem dificuldades profissionais, a atitude é reduzida a um grave desrespeito. Quem diz que ele não achou graça do tom repetitivo das histórias?
Se a esposa ou marido ri e suspira à toa, já tememos infidelidade.
O riso é escravo dos costumes, sinônimo de futilidade e distração quando deveria ser visto como sinal de maturidade e envolvimento afetivo.
Não reagimos bem à felicidade do outro simplesmente porque ela ameaça nossa tristeza.
sábado, 14 de abril de 2012
15 de abril de 2012 | N° 17040
MARTHA MEDEIROS
A mulher e o gps
Vanessa não falava durante o trajeto, não ouvia música, não apreciava a paisagem. Confiar no senso de orientação do marido, nem pensar
Numa mesa de restaurante, um grupo conversava animadamente sobre relacionamentos de longa duração estavam ali casais que contabilizavam mais de 20 anos de casados até que uma das mulheres começou a expor as diversas razões que fizeram suas núpcias com o marido durarem tanto tempo.
Entre outras coisas, porque eles tinham muitas afinidades, eram muito pacientes um com o outro, gostavam de viajar juntos, prezavam a família, tinham os mesmos sonhos...
E ela foi se empolgando, se empolgando. Quando não faltava quase nada para iniciar um relato minucioso sobre os momentos íntimos entre lençóis, o marido, presente à mesa, largou um Não delira, Vanessa. A gente está junto até hoje por um único motivo: porque inventaram o GPS.
Silêncio. Alguém havia entendido a piada?
Deu-se então a explicação. “A Vanessa até que é boa gente (gargalhadas generalizadas), mas eu já não conseguia andar com ela no carro. Era um tal de vira à direita, cuidado que o sinal vai fechar, a próxima rua é contramão, tem uma vaga atrás daquele carro preto, ali, está vendo? Aqui, aqui!!! Falei. Agora quero ver você achar outra vaga. Só entrando na segunda à esquerda pra fazer o retorno.
Vocês estão me entendendo? A Vanessa não conversava durante o trajeto, não ouvia a música que estava tocando, não apreciava a paisagem. Confiar no meu senso de orientação, nem pensar.
Não sei até hoje se ela me considera capaz de interpretar uma placa de trânsito. Era o tempo todo: entra na próxima, aqui é rua sem saída, por ali a gente vai se perder, não ultrapassa agora porque já já você vai ter que dobrar à direita, por que foi pegar essa avenida movimentada se a rua de trás está sempre livre?
O GPS salvou nosso casamento”.
Até a Vanessa começou a rir. No minuto seguinte, os outros homens da mesa estavam reclamando da mesmíssima coisa, todos narrando o seu próprio filme de terror a cada saída com a esposa, inclusive aproveitando para contar exemplos bem recentes – de uma hora atrás! – quando saíram de casa para encontrar os amigos naquele restaurante escondido numa ruazinha incógnita da zona sul. Se tivessem encontrado um cartório no caminho, teriam parado para se divorciar.
Algumas mulheres não acharam tanta graça, deram uns resmungos, chamaram os maridos de exagerados, mas a Vanessa, desarmada, seguia rindo fácil, rindo à toa, rindo dela mesma, que é a risada mais generosa que há.
Foi então que olhou para o marido com tanta cumplicidade e tanta graça, aquele olhar de quem pede desculpas por ser do jeito que é, que ele não teve alternativa a não ser abraçá-la e confidenciar à mesa, assim que as vozes baixaram o volume:
“Não foi só o GPS. Esse sorriso também ajudou”.
Dizem que os dois se perderam na volta pra casa, mas aposto que foi de propósito.
12/04/2012 | 14:26 - NATÁLIA SPINACÉ
“Vi o monitor cardíaco parar e minha filha ir embora”
A servidora pública Giovana Gatti escreveu um comentário na entrevista com Flávio Dino, publicada na edição 723 de ÉPOCA. Nele, ela relatou brevemente a situação por que passou, parecida com a do ex-deputado, que viu o filho morrer de asma dentro de um hospital.
Ao ler o comentário feito por Giovana na matéria, fiquei curiosa e a convidei para contar sua história com mais detalhes. Abaixo está o email que ela me mandou contando como perdeu a filha de três meses vítima de uma septicemia, após esperar mais de 12 horas por uma transferência de hospital
“Música sempre traz alegria. Uma inverdade. Algumas nos remetem a um passado que gostaríamos de esquecer, ou melhor, que nunca deveria ter existido.
Foi ouvindo a música “Ave Maria”, tocada às 18:00 no rádio da UTI, no dia 31 de agosto de 1988, que me despedi de minha filha Maria Laura, de apenas 3 meses. Eu jamais esperaria passar por algo assim aos meus vinte e um anos. O ombro amigo do meu marido foi o meu conforto. Sofremos juntos.
Naquele momento ímpar, vendo o monitor cardíaco diminuir os batimentos e minha filha ir embora, eu recordei a sequência de acontecimentos dos últimos dias: as várias consultas médicas, a minha insistência em dizer que o choro dela estava diferente, que ela não estava dormindo bem… E todos os indícios não investigados e todas as suposições rechaçadas.
Maria Laura começou a passar mal no dia anterior. Fiquei desesperada e a levei para o hospital da minha cidade, João Monlevarde, no interior de Minas Gerais. Chegamos lá às 10h da manhã, e a enfermeira do pronto socorro resolveu batizar a minha filha ali mesmo.
O hospital demorou mais de 12 horas para conseguir uma transferência para uma unidade de Belo Horizonte, com mais recursos para atendê-la. Até hoje não sei o porquê de tanta demora. É incrível como a gente não tem acesso ou explicações sobre o que acontece dentro de um hospital. Só sei que se esse tempo de espera fosse menor, Maria Laura poderia estar comigo nesse momento.
A minha filha chegou a Belo Horizonte com vida. Eram mais de 2 horas da manhã do dia 31 de agosto de 1988, quando ela deu entrada no hospital particular. Nós não tínhamos plano de saúde nem dinheiro, mas tínhamos um fusquinha e uma pequena sala comercial para vender. Deixamos na portaria um cheque caução. Na hora do desespero, vende-se até a roupa do corpo.
Quando o dia amanheceu e o chefe da equipe pediátrica nos chamou para uma conversa, o meu coração de mãe já sabia o desfecho daquele dia. Ele nos mostrou outra criança na UTI que tinha entrado no hospital nas mesmas condições, mas havia se recuperado e estava a caminho do apartamento. Ela também era do interior, mas deu sorte em estar em Belo Horizonte. No caso de nossa filha, o tempo foi crucial.
Após 16 horas de UTI, retornamos à nossa cidade carregando Maria Laura sem vida. Durante o enterro, na nebulosidade dos meus pensamentos, via o olhar de compaixão dos amigos.
Por alguns dias, me senti anestesiada. Então veio a parte mais dolorosa: enfrentar a realidade. Voltar para casa, só eu e meu marido, desmanchar o quarto da minha filha, guardar cada roupinha, o travesseirinho com a marca de sua cabeça e o casaquinho de tricô ainda não terminado…
Foi muito, muito doloroso. Dentro de cada caixa, eu guardava um pedaço de mim, junto com as cantigas que não cantaria, as datas que não comemoraria, o futuro vazio. Conheci a dor da ausência. É uma dor física, no peito, e na boca do estômago. Uma dor cheia de perguntas sem respostas. Então, eu jurei que nunca mais queria sentir a dor do INSUFICIENTE – aquela sensação de que poderia ter feito algo mais.
Foi nesse período que fiz uma descoberta: dizem que o fígado é o único órgão que tem o poder de regeneração. Os cientistas é que ainda não descobriram o poder de regeneração de um coração de mãe. Além de regenerar, mesmo que leve tempo e fique completamente cheio de cicatrizes, ele ainda consegue se multiplicar. A cada filho, um coração.
Comprovei tal teoria após dois anos: eis que surge mais um coração na companhia de outra filha, Paula. Mas, a insegurança me dominou. E se alguma coisa desse errado novamente? Perdi a conta de quantas noites passei dormindo debruçada no seu berço com medo de ela passar mal e eu não estar por perto para socorrê-la.
Virei uma mãe completamente neurótica. Para mim, qualquer espirro já era motivo de ir ao consultório médico. E, completamente sem culpa, procurava uma segunda opinião médica. A dor do INSUFICIENTE não me dominaria novamente.
Depois de sete anos, ganhei outro coração juntamente com a minha filha Júlia. Quanto ao trauma inicial, pensei que já tinha superado. Ledo engano. Passei a dormir outra vez debruçada no berço.
Minhas filhas são a razão do meu viver. Elas conhecem a minha dor e respeitam. Em cada momento de felicidade vivido – os primeiros passos, primeiro dia de aula, quinze anos, passar no vestibular – eu sentia a presença de um anjo chamado Maria Laura. Neste ano, completarei vinte e cinco anos de casada, que serão festejados numa viagem em família, pois, nós quatro (cinco), temos muito que comemorar!”
WALCYR CARRASCO
O dente e a criatura
Não sou santo. Aliás, quem é? Faz algum tempo uma criatura de 18 anos começou a me escrever pelo Twitter.
Falava de sua admiração por minhas novelas, por meus livros que leu quando criança. Adorei os elogios. Concluí se tratar de uma figura inteligente e criativa. Nunca senti atração por alguém tão mais jovem. Mas tremi nas bases quando a criatura me enviou a seguinte mensagem privada: “Sonhei que nos encontramos na praia. E nos beijamos. Depois...”.
O “depois” vocês adivinham. Só conto que era um depois com tudo a que um depois tem direito. Respondi, animado:
– Pode me enviar suas fotos?
A criatura mandou. Nenhuma explícita, mas... Propus:
– Que tal a gente passar uns dias na praia?
– Topo!
Preveni, cauteloso: – Não tenho barriguinha de tanque. – Não me importo com essas coisas.
– Estou gordo. – O que vale é o seu espírito!
Resolvi pedir conselho a meu amigo Júlio, que abençoa todas as loucuras. Outro qualquer seria contra. – Você acha 42 anos de idade uma diferença grande para um casal?
– Ahnnn? – Bem, não tanto assim. Só 41 e meio. – Ah, bom!
Respondeu o que eu esperava: – Está na hora de você se apaixonar. Listamos exemplos de felicidade entre gerações. Percorremos o rol de celebridades, como o vice-presidente Michel Temer, de 70, casado com a gatíssima Marcela, de 27. Falamos também dos mais próximos. “O que vale é a química”, concluí.
A criatura veio do interior de São Paulo. Busquei-a no aeroporto e fomos diretamente para minha casa no Litoral Norte de São Paulo. Chegamos ao anoitecer. Tudo era romântico: a noite linda, a lua linda, as árvores lindas. Já me via casado. Queria pegar na mão. Falar de coisas belas.
Antes fui me exibir na cozinha. Assei um frango bem temperado. Fiz arroz e salada. Abri um vinho. A criatura sentou-se à mesa, encantada. Destrinchei o frango. – Só quero um pedacinho do peito – disse ela, que, é claro, vive de regime. Busquei-a no aeroporto e fomos direto para a praia. Preparei um jantar. Mordi o frango – e meu dente caiu
Servi. Botei uma coxa no meu prato. Ela mordeu delicadamente um pedacinho de frango. Agarrei a coxa com a mão e enfiei na boca. Adoro comer frango com a mão. Mordi. Meu dente da frente caiu.
Tentei encaixar. Impossível. Caiu de novo. Era uma prótese, claro. Só tenho a raiz. – Meu dente caiu! – exclamei. A criatura me avaliou com vagar. Sorri de boca torta.
– Acho que dá para disfarçar. – Não tem jeito. Dá para ver a falha – respondeu. E sorriu com seus lindos dentes de 18 aninhos. – Pelo menos você disse que o importante é o espírito! Silêncio expressivo.
Respirei fundo: – Quer dizer, lembrei da nossa conversa sobre barriguinha de tanque. A gente já trocou mensagem e conversou no carro sobre assuntos profundos: sua escova progressiva, embora eu prefira cabelos cacheados, o último filme de Harry Potter que temos de ver juntos e o vestibular que você vai prestar.
A gente não precisa de dente para se dar bem, não é? Silêncio ainda mais expressivo.
Resolvi ser romântico: – Vamos passear na praia, olhar a lua? Caminhamos pela orla, as ondas batendo nos pés. – Aqui não dá para ver que perdi o dente. – Dá sim, por causa do luar.
Quase xinguei a lua. Parti para o ataque e a beijei. Já tentou beijar sem o dente da frente? Entra um ventinho pela fresta. Parece que tem uma janela aberta na boca. Nos afastamos constrangidos. Voltamos em silêncio. A criatura foi diretamente para o quarto de hóspedes e se trancou. Ouvi o ruído do secador uns 50 minutos. Depois acho que adormeceu.
Acordei tarde. A criatura já fora para a praia, tinha tomado sol e se enturmado com uma galera com quem talvez jogasse videogame à tarde. Sentou-se, enquanto eu mordia cuidadosamente uma fatia de mamão. Peguei os comprimidos de meu tratamento ortomolecular. Um deles caiu no chão. – É outro dente? – quis saber.
Acabou aí a viagem. Voltamos imediatamente. E a deixei no aeroporto. Tranquei-me até o dentista restituir meu sorriso de piano. Se conto a minha saga é porque ela é universal. Um dente pode simbolizar o abismo entre gerações. E não vamos nos enganar.
Na batalha entre o corpo e o espírito, algumas vezes o espírito pode vencer. Mas só algumas. Banguela romântico não rola. O amor precisa de dentes.
14 de abril de 2012 | N° 17039
NILSON SOUZA
Contos sem fadas
Desde o dia em que li Bruno Bettelheim, Andersen e os Irmãos Grimm nunca mais foram os mesmos. Os psicólogos são como as bruxas más, desencantam qualquer história ao identificar nelas significados que jamais veríamos numa leitura descomprometida, até mesmo porque muitas vezes não os queremos ver.
Bettelheim é o autor de A Psicanálise dos Contos de Fadas, obra basilar da interpretação do universo infantil a partir de textos clássicos da literatura.
Branca de Neve, que está voltando às telas em grande estilo por estes dias, não é para a psicanálise apenas a menina bonita que causa ciúme à madrasta, mas sim o pivô de um conflito familiar que termina em lambança – ou em dança, no conto original, em que a rainha má é obrigada a calçar sapatos de ferro em brasa, dançando até morrer.
A crueldade nem sempre está nas entrelinhas, às vezes é explícita. A Bela Adormecida aparece ao leitor ingênuo somente como vítima de uma maldição de cem anos, mas alguns psicanalistas identificam na dama inerte um símbolo machista, pelo qual a mulher ideal é calada, inativa e indefesa. Ufa!
Pela mesma visão, a Cinderela, no seu momento gata borralheira, também simbolizaria a submissão aos desejos e às fantasias masculinas. Até ao sapatinho de cristal é atribuído um significado que nem o mais concupiscente sapateiro imaginaria.
Chapeuzinho Vermelho é uma sedutora precoce, que provoca o lobo e foge com o caçador. Alice, aquela do País das Maravilhas, cai no buraco do inconsciente e cada personagem que encontra em sua aventura tem significados que nem Lewis Carroll foi capaz de imaginar.
A Bela troca o desejo do pai pelo amor da Fera, ou seria o contrário, sei lá. Pinóquio é mais do que um boneco de madeira que ganha vida, é a projeção de um pai controlador. E seu nariz não cresce por causa das mentiras, mas por causa de uma verdade chamada puberdade.
As histórias infantis perdem a graça, mas suas interpretações psicanalíticas não deixam de ser divertidas.
A propósito dos novos filmes sobre Branca de Neve. Num deles, Julia Roberts interpreta a rainha má. No outro, a madrasta malvada é Charlize Theron. De onde tiro minha própria interpretação nada psicanalítica: talvez o propósito seja mostrar que toda linda mulher pode um dia virar bruxa, mas prefiro pensar que as madrastas também podem ser lindas.
Para encerrar esta sessão de delírios, invento o meu próprio conto de fadas e aguardo interpretações:
Joãozinho do Passo Certo era um sujeito determinado, que jamais hesitava, até o dia em que se apaixonou por Maria Vai Com as Outras. Ela, indecisa por natureza, só fazia o que as amigas sugeriam. Os dois se casaram, foram morar na casa da Mãe Joana e tiveram dois filhos, que se chamariam Zé dos Anzóis e Maria-Mole, mas viraram Mauricinho e Patricinha porque os pais não chegaram a um acordo sobre a colocação dos hifens.