sábado, 28 de abril de 2012


Martha Medeiros

Os expulsos

“Entre o eu e a vida abriu-se um hiato, que faz daquela não mais a sua vida, mas um território onde ele não consegue penetrar e se inserir, um lugar estranho que não lhe pertence e ao qual não se sente pertencer, uma contínua fuga de algo que nunca possuiu e que portanto não é seu, mas do qual sente nostalgia como se o tivesse perdido”

(prólogo do livro Niels Lyhne, do escandinavo Jens Peter Jacobsen, publicado em 1880)

É uma sensação esquisita. É Está tudo bem, nada de grave aconteceu, mas você não está legal. Não aguenta mais o trânsito, palco das maiores grosserias, e o que é pior: flagra a si mesmo praguejando na hora do rush, quando sabe que é preciso ter paciência e sair mais cedo de casa, pois os trajetos estão tomando mais tempo.

Está todo mundo nervoso por razões que não necessariamente o fato de você ter cruzado à frente – você que também vive numa pressa danada. Ainda assim, mesmo com toda a compreensão sobre o assunto, que desânimo.

Lê nos jornais que o metrô está longe de sair do papel e suspira. Tampouco se sente seguro para andar de bicicleta em meio ao caos urbano. E não se atreve a dizer em voz alta (é politicamente incorreto), mas até os pedestres estão abusando da soberania que possuem.

Atiram-se na frente dos carros, longe das faixas, com a empáfia de donos da lei, como se não houvesse leis para eles também.Você já não suporta dar e ouvir tanta opinião, e se choca com os desaforos anônimos que inundam as redes sociais.

Quanto mais se enaltece o bom humor, mais aumenta o número de pobres de espírito , pessoas com uma nuvem negra sobre a cabeça, inquisidores a apontar falhas, criticar, debochar. Todos se julgam aptos a dar lições quase não há mais humildade em aprender. Você sabe que não é melhor do que ninguém, porém gostaria de ser melhor doq eu você esmo, mas como?

São tantos avanços tecnológicos, atualizações de vocabulário, acontecimentos, modismos, tendências, como absorver? O dia de ontem torna-se obsoleto a cada nascer do sol, e essa renovação constante não lhe excita, ao contrário, dá preguiça. Você queria mesmo era se refugiar numa casa de campo ao melhor estilo Zé Rodrix, com seus amigos, seus discos, seus livros e nada mais.

Mas você não faz o tipo ermitão a quem bastaria uma hora para sobreviver. Você gosta de ir ao cinema, viajar, conversar, ainda tem curiosidade sobre o mundo. Só que curiosidade moderada não é suficiente. Não basta ter um interesse médio. É preciso acompanhar tudo. Já nem tento. Será assim mesmo que a velhice anuncia que está chegando?

Preferia pensar que é a sabedoria batendo à porta. Não precisar de tanta gente em volta (“Não sofrer de solidão, e sim de multidão” – Nietzsche), não se cobrar modernidade não se envergonhar de usar ferramentas antigas. Mas nada disso é sábio, dizem os outros. É desistência. Talvez você se sinta como eu. Prestes a ser expulsa da própria vida.


29 de abril de 2012 | N° 17054
ARTIGOS - Claudia Costin*

É possível transformar a educação pública?

Num recente estudo da egípcia Mona Morshed, da McKinsey, a pesquisadora evidencia que diferentes redes de escolas públicas têm sucesso quando adotam medidas compatíveis com o estágio de avanço de seus sistemas escolares. Em outros termos: o receituário atual da Finlândia ou da Coreia não é o indicado para o Brasil.

O Brasil investiu pouco e tardiamente em Educação Básica. Em 1930, enquanto a Argentina tinha 62% das suas crianças nas escolas e o Chile chegava a 73%, nosso país contava com apenas 21,5%. Apenas em 1997 conseguimos universalizar o acesso das crianças de sete a 14 anos ao Ensino Fundamental.

Mas, logo em seguida, um sério problema de qualidade colocou-se no processo de ensino. Finalmente haviam entrado nas escolas os filhos dos não letrados ou de pais com baixa escolaridade. Naércio Menezes, da Insper-SP, mostrou, em artigos recentes, que o sucesso escolar depende, em grande medida, da escolaridade dos pais.

Este é o grande desafio da educação brasileira: como ensinar crianças cujos familiares, em muitos casos, não concluíram as séries iniciais do Ensino Fundamental. Certamente não é copiando fórmulas da Finlândia, país em que boa parte da população tem formação universitária.

Os dados educacionais brasileiros são reveladores: na última aplicação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) com resultados divulgados, constataram-se avanços importantes em relação aos exames anteriores, mas, entre os alunos do 5º ano, apenas 34,2% aprenderam o que deveriam em língua portuguesa e 32,6%, em matemática.

No 9º ano, em língua portuguesa, a situação é pior: 26,3% dos alunos aprenderam o que deveriam e, em matemática, só 14,8%. No Ensino Médio, 28,9% dos estudantes dominam os conhecimentos em português. Em matemática, o pior resultado: 11%.

No Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), teste organizado pela OCDE que permite avaliar a qualidade da educação oferecida aos jovens de 15 anos, o Brasil também tem mostrado avanços, desde sua primeira participação em 2000 até a mais recente, em 2009, quando fomos o terceiro país que mais avançou. Mas, mesmo assim, estamos apenas em 53º lugar, abaixo da Romênia e do México.

Quais são as nossas tarefas nesse contexto desafiador? Em primeiro lugar, estabelecer um currículo nacional claro, que deve ser adotado em todo o país e complementado com conteúdos regionais. Alfabetizar as crianças aos seis anos, como fazem as boas escolas privadas e, nos três primeiros anos, concentrar-se em ensino da língua e de matemática. Investir no professor, valorizando-o, capacitando-o e dando-lhe instrumentos para o processo de ensino.

Manter um bom sistema de reforço escolar, voltado às crianças com mais dificuldade em aprender. Adequar a educação a cada fase do desenvolvimento da criança e do adolescente e evitar excesso de disciplinas com carga horária diminuta, fenômeno que assola o Ensino Médio.

Mais do que tudo, é fundamental termos persistência estratégica nos caminhos a serem seguidos para transformar a educação. Esta é uma área que apresenta resultados no médio e no longo prazo. Mas, para obtê-los, é fundamental afastar o fisiologismo vigente na máquina em muitos Estados e municípios e manter continuidade e consistência técnica nas políticas educacionais. É possível!

*SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO


29 de abril de 2012 | N° 17054
VIDA CRUEL

Cinderela moderninha

Atriz Isabelle Drummond dá vida a uma gata borralheira em “Cheias de Charme”
Ela faz todo o serviço doméstico, é maltratada pela madrasta e tem duas irmãs invejosas. Esse é o perfil de Maria Aparecida, a personagem de Isabelle Drummond na nova novela das sete, Cheias de Charme.

– Cida tem esse lado Gata Borralheira. É delicadinha, ingênua, trabalha muito e sonha encontrar um príncipe – conta Isabelle, que completou 18 anos neste mês.

Na trama, Cida mora com a família Sarmento, que a adotou depois da morte de sua mãe, empregada doméstica da família. A mocinha ajuda a cuidar da casa e acaba virando arrumadeira deles.

Como numa adaptação moderna da história de Cinderela, a vida de Cida passa agora por uma reviravolta. Desde que conheceu Penha (Taís Araújo) e Rosário (Leandra Leal), a empregada se une às duas em um projeto ambicioso: alcançar a fama com o trio musical As Empreguetes.

– Ela sai da abóbora, ganha dinheiro e tem várias decepções com a família e com os homens.

E se a Cinderela da história infantil tem um belo príncipe encantado, Cida não fica para trás: ela começou namorando Rodinei (Jayme Matarazzo), beijou Elano (Humberto Carrão) e agora está apaixonada por Conrado (Jonatas Faro). Acreditando que a empregada é filha dos Sarmento, o interesseiro playboy acredita que terá a vida que sempre quis se ficar com a moça. Ela, porém, esconde sua real ocupação.

Em capítulo que vai ao ar esta semana, Maria Aparecida irá revelar que sua mãe, Dolores, era empregada dos Sarmento. Conrado acha ruim, mas finge não ligar. Enquanto isso, Ernani (Tato Gabus Mendes) e Sônia (Alexandra Richter), os patrões de Cida, estão falidos e pensam que podem aproveitar o namoro para ganhar uma grana.


28 de abril de 2012 | N° 17053
NILSON SOUZA

Preleção

    Outro dia, um amigo que trabalha com esportes me pediu um texto motivador para mexer com os brios de sua equipe antes de um jogo importante. Perguntei-lhe se queria alguma coisa suave ou forte, pois é preciso conhecer a personalidade de cada indivíduo para saber quais as palavras que melhor lhe tocarão na alma.

    No terreno esportivo, o repertório vai da oração ao grito de guerra, embora às vezes os dois gêneros se confundam. Jogadores de futebol, por exemplo, costumam rezar o pai-nosso aos gritos, terminando a oração quase num acesso de fúria. Em matéria de estímulo à guerra, há coisa ainda mais assustadora.

Dia desses, vi um jogo do campeonato argentino em que o preparador físico de uma das equipes esperava seus jogadores na saída do túnel e desferia-lhes um forte tapa no rosto quando estavam para entrar em campo. Os caras entravam querendo matar o adversário.

    Mas as palavras também podem provocar um efeito estimulante, principalmente quando acompanhadas do componente afetivo. Tem técnico que manda gravar mensagens dos familiares dos atletas e apresenta o vídeo no vestiário. Só que isso virou um recurso tão rotineiro, que já nem faz mais o efeito desejado.

    Meu amigo queria um texto épico, do tipo vitória ou morte. Sugeri-lhe, então, adaptar às suas necessidades o célebre discurso feito pelo explorador espanhol Hernán Cortés a seus soldados antes da grande batalha de conquista do império asteca. Lá vai:

    “Soldados de Espanha! Antes de tudo há de lutar! As caravelas, mandei-as afundar, para não terdes qualquer veleidade de voltar. Há que lutar com as armas que tendes à mão. E se vo-las romperem em violento combate, então há que brigar a socos e pontapés. E se vos quebrarem os braços e as pernas, não olvidei os dentes.

E se, havendo feito isso, a morte chegar, mesmo assim não tereis dado a última medida de sua devoção, não! É preciso que o mau cheiro de vossos cadáveres empeste o ar e torne impossível a respiração dos inimigos de Espanha. Avante, por Deus e por Santiago!”.

    O gesto de Cortés, que mandou mesmo queimar os navios para não dar chance a seus homens de sequer pensar em recuo, não só deu o resultado esperado como também virou senha para expressar o chamado beco sem saída. Quando alguém “queima os navios”, não deixa margem para negociações. Vai para o tudo ou nada.

    Meu amigo leu a minha sugestão, pensou bem e, sensatamente, resolveu usar seu próprio vocabulário na preleção. No tempo de Cortés, não tinha cartão vermelho.


28 de abril de 2012 | N° 17053
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES

O Amigo

    Para o Andre Serpa Teixeira, o “Sacola”


    O amigo é um irmão que eu escolhi.
    Não me foi dado por meu pai e minha mãe.
    Aqueles que eles me deram
    São meus irmãos, claro,
    Irmãos de sangue de família,
    Que eu amo tanto e que também me amam.
    Mas eu não os escolhi
    – Foi Deus.

    O amigo que eu falo foi escolha minha,
    Da Vida, feita de sonhos e de esperanças,
    De vitórias e de fracassos.
    Em todas as horas boas da minha vida
    O amigo estava lá
    E rimos junto banhados pelo sol das alegrias
    E nas horas más
    Choramos junto um no ombro do outro.

    Como foi que nos tornamos amigos?
    Não sei.
    Um dia nossos caminhos se encontraram
    E o que era para ser uma cruz
    Traçada no chão
    Se transformou em duas paralelas
    Que avançam para o Infinito.
    A amizade é uma forma de amor.


28 de abril de 2012 | N° 17053
CLÁUDIA LAITANO

  Igualdade e diferenças

    Há um desconforto incontornável com relação à política de cotas raciais nas universidades. Por um lado, as cotas obrigam o Brasil a admitir o apartheid soft que vigora em instituições universitárias (dou um doce para quem se formou na UFRGS com, digamos, 10% de colegas negros na turma). Por outro, as cotas são, em essência, uma confissão de fracasso: não conseguimos resolver nossos problemas de outro jeito, então vai como dá. Meritocracia é para quem pode.

    Uma solução bem menos polêmica, mas muito mais complicada, seria corrigir as injustiças quando elas começam: na barriga da mãe (durante o pré-natal), na creche (quando ela é oferecida) ou na alfabetização, já que saúde e educação são, em tese, direitos garantidos pela Constituição.

Às vezes, quando prendem um gênio do tráfico que montou uma complexa rede de negócios aos 17 ou 18 anos, fico pensando que a derrota nesses casos é dupla: ganhamos um criminoso, desperdiçamos um moleque empreendedor.

    Imagine um país em que os alunos com mais talento para o estudo pudessem ser identificados e valorizados desde cedo, onde quer que estivessem. Na Alemanha, uma sociedade muito mais homogênea do que a nossa, as diferenças entre os alunos são levadas em conta na hora de encaminhá-los para a vida acadêmica. Quando termina o primário, a criança começa a definir a sua orientação profissional conforme o desempenho dos primeiros anos.

Há três opções: a Hauptschule, em que os alunos são preparados para o ensino profissionalizante, a Realschule, que habilita a frequentar cursos superiores, e o Gymnasium, que propicia uma base mais avançada para a vida acadêmica. Há ricos e pobres em todos os níveis, em princípio (embora lá, como aqui, ricos tenham muito mais chances de driblar a falta de talento para os estudos do que os pobres).

    O que o sistema alemão explicita é que há diferenças na aprendizagem, como em todas as habilidades humanas: há os com talento para ganhar dinheiro, há os que sabem lidar com pessoas, há os que são bons nos esportes, há os que vão revolucionar a física nuclear – e nem todos precisam estudar no mesmo lugar.

    Vai bem o país que consegue oferecer as condições para que cada criança possa ser encaminhada a desenvolver (e identificar) seu potencial da melhor forma possível, independentemente de cor ou classe social.

    Bom, esse é o sonho. Mas como é que a gente diz para um guri de 18 anos para esperar um pouquinho porque, quem sabe, daqui a 50 anos, se tudo mudar radicalmente agora, seu neto estará indo para a universidade por méritos próprios porque teve um ótimo ensino básico?

    A melhor universidade brasileira, a USP, não está nem entre as 150 melhores do mundo. O país com mais universidades nesse ranking, os EUA, pratica ações afirmativas desde os anos 70. O Ensino Superior no Brasil é fraco e injusto há muito tempo (ou é justo a classe média estudar de graça e o pobre pagar?), e a culpa não é das cotas.

quarta-feira, 25 de abril de 2012


ANTONIO PRATA

Ela o chama, ele finge que não ouve

Parece sem graça, mas três décadas de treinamento transformam um jogo da velha na batalha de Waterloo

Ela o chama, ele finge que não ouve, e a isso se dedicam há mais de 30 anos. Claro, têm também outras ocupações: ele é advogado, ela é assistente social, há o pôquer às terças e o almoço na irmã, às quintas, mas não empenham nessas atividades metade da energia ou do método envolvidos em chamá-lo e não ouvi-la.

Falando assim parece fácil e sem graça, mas três décadas de treinamento transformam qualquer jogo da velha na batalha de Waterloo, de modo que é preciso observar a cena com a atenção de quem lê um poema ou desarma uma bomba (ou lê um poema E desarma uma bomba) para descobrir todos os meandros ali escondidos.

O volume no qual ela o chama, por exemplo, deve ser meticulosamente calculado: não tão baixo que dê a ele a possibilidade de realmente não ouvi-la nem tão alto a ponto de tornar impossível fingir não havê-la escutado. Pois não ouvir também requer atenção e esmero. Digamos que eles se encontrem no corredor, frente a frente, e ela o chame: difícil fazê-la crer que não escutou.

Como em toda arte, verossimilhança é fundamental. É preciso estar em outro cômodo, é preciso que passe um carro na rua, é preciso estar deitado sob a pia, vedando um sifão -afastado, portanto, distraído, portanto, concentrado, portanto-, para ter legitimado seu silêncio. Aí sim ele pode espraiar toda a sua agressividade, colocando na mulher a diabólica pergunta: não terá mesmo me ouvido ou apenas finge, calado?

Passados alguns segundos, ela o chama outra vez, um pouco -mas só um pouco- mais alto. Nada. Vem então a terceira chamada. O terceiro vazio. Eis o ápice. É uma casa cheia de gás, à espera da fagulha, uma bexiga aproximando-se da agulha, o segundo antes do trovão, e a regra é clara, Galvão: quem gritar, perde.

Será ela a urrar o nome dele, aliviando o ódio, mas baixando a guarda e dando-lhe a chance de encaixar um direto -"Eu tava lá no escritório!", "Tá barulho na rua!", "Eu tô aqui consertando o sifão!" -, ou ele é quem responderá, esgoelando-se -"Que é, caramba?!", abrindo para ela a oportunidade de tripudiar, "Tô te chamando há horas!", "Tá completamente surdo!", "Cê precisa usar aquele aparelhinho do tio Laurindo!"?

Há, claro, inúmeras variações neste jogo e seria preciso uma edição inteira do caderno "Equilíbrio" para falar de todas. Às vezes, por exemplo, quando ela o chama baixo demais, ele responde imediatamente, como que negando, assim, toda a história das hostilidades e os antigos crimes de guerra. Noutras ocasiões, estando frente a frente, ela o chama quase gritando - um comentário sarcástico e nada sutil sobre a vida a dois nos últimos 30 anos.

Vendo de fora, a tendência é pensar que ela é a vítima e ele o algoz. Que nela está a carência e nele o poder de supri-la -ou negar-se a-, mas na verdade é mais complexo.

Não há condutor ou conduzido nesta dança, é um jogo sem vencedores e sem fim, um jogo tão secreto quanto barulhento, uma metástase que já não pode ser extirpada, que aos poucos não está mais só em chamá-lo e não ouvi-la e, quando menos se espera, é capaz de colocar num "bom dia" a violência de uma facada.

antonioprata.folha@uol.com.br

CÁSSIO STARLING CARLOS - CRÍTICO DA FOLHA

Wayne Wang escapa do exotismo óbvio em conto sobre situação feminina na China

País de misteriosas tradições e potência econômica capitalista, duas das imagens mais difundidas da China, se sobrepõem e se complementam em "Flor da Neve e o Leque Secreto". Passado e presente ressoam um no outro e revelam as rupturas e continuidades por meio de duas histórias que se assemelham.

No centro dos dois relatos, encontram-se figuras femininas e uma tradição que aproxima opostos ou diferenças.

No século 19, Flor da Neve e Lírio, de origens sociais distintas, padecem a imposição tradicional que valoriza pés pequenos e delicados e as obriga a tolerar sofrimentos.

O "laotong", laço que une duas mulheres de modo eterno, as manterá ligadas, apesar de os destinos individuais imporem vidas separadas.

Em paralelo, na Xangai de hoje, Nina e Sophia, também unidas pelo "laotong" e interpretadas pelas mesmas atrizes da outra história, representam a solidariedade numa sociedade orientada por princípios individualistas.

O filme prolonga uma fértil tradição de melodramas que distinguiu o cinema chinês desde os anos 20 com tramas em que destinos femininos e história coletiva se cruzam e se refletem.

Wayne Wang aborda com sobriedade um material que poderia sufocar sob o peso dos simbolismos nas mãos de um cineasta óbvio. Essa opção permite que, em vez do exotismo pronto para consumir, "Flor da Neve e o Leque Secreto" expresse mais do que aparenta sua superfície.

FLOR DA NEVE E O LEQUE SECRETO

DIREÇÃO Wayne Wang
PRODUÇÃO China/EUA, 2011
ONDE Espaço Itaú - Frei Caneca, Iguatemi Cinemark e circuito
CLASSIFICAÇÃO 12 anos
AVALIAÇÃO bom

sábado, 21 de abril de 2012



22 de abril de 2012 | N° 17047
MARTHA MEDEIROS

A capacidade de se encantar

Muita gente diz que adora viajar, mas depois que volta só recorda das coisas que deram errado. Sendo viajar um convite ao imprevisto, lógico que algumas coisas darão errado, faz parte do pacote.

Desde coisas ingratas, como a perda de uma conexão ou ter a mala extraviada, até xaropices menos relevantes, como ficar na última fila da plateia do musical ou um garçom mal-humorado não entender o seu pedido. Ainda assim, abra bem os olhos e veja onde você está: em Fernando de Noronha, em Paris, em Honolulu, em Mykonos. Poderia ser pior, não poderia?

Outro dia uma amiga que já deu a volta ao mundo uma dezena de vezes comentou que lamentava ver alguns viajantes tão blasés diante de situações que costumam maravilhar a todos.

São os que fazem um safári na Namíbia e estão mais preocupados com os mosquitos do que em admirar a paisagem, ou que estão à beira do mar numa praia da Tailândia e não se conformam de ter esquecido no hotel a nécessaire com os medicamentos, ou que não saboreiam um prato espetacular porque estão ocupados calculando quanto terão que deixar de gorjeta.

Não saboreiam nada, aliás. Estão diante das geleiras da Patagônia e não refletem sobre a imponência da natureza, estão sentados num café em Milão e não percebem a elegância dos transeuntes, entram numa gôndola em Veneza e passam o trajeto brigando contra a máquina fotográfica que emperrou, visitam Ouro Preto e não se emocionam com o tesouro da arquitetura barroca – mas se queixam das ladeiras, claro.

Vão à Provence e torcem o nariz para o cheiro dos queijos, olham para o céu estrelado do Atacama sofrendo com o excesso de silêncio, vão para Trancoso e reclamam de não ter onde usar salto alto, vão para a Índia sem informação alguma e aí estranham o gosto esquisito daquele hambúrguer: ué, não é carne de vaca, bem? Aliás, viajar sem estar minimamente informado sobre o destino escolhido é bem parecido com não ir.

Estão assistindo a um show de música no Central Park, mas não tiram o olho do iPad. Vão ao Rio, mas têm medo de ir à Lapa. Estão em Buenos Aires, mas nem pensar em prestigiar o tango – “programa de velho!” São os que olham tudo de cima, julgando, depreciando, como se o fato de se entregar ao local visitado fosse uma espécie de servilismo – típico daqueles que têm vergonha de serem turistas.

É muito bacana passar um longo tempo numa cidade estrangeira e adquirir hábitos comuns aos nativos para se sentir mais próximo da cultura local, mas quem pode fazer essas imersões com frequência? Na maior parte das vezes, somos turistas mesmo: estamos com um pé lá e outro cá. Então, estando lá, que nos rendamos ao inesperado, ao sublime, ao belo. Nada adianta levar o corpo pra passear se a alma não sai de casa.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

18 de abril de 2012 | N° 17043

MARTHA MEDEIROS

Pode ir

No domingo 8 de abril, foi ao ar a entrevista que o ator Reynaldo Gianecchini deu à jornalista Marília Gabriela. Houve quem se apegasse ao selinho e ao “te amo” no final, que nada mais foi do que uma manifestação espontânea de afeto entre ex-amantes que se dão bem, mas o que merece registro foi a abertura emocional da conversa, coisa que a TV não costuma esbanjar.

A entrevista comoveu do início ao fim, chegando perigosamente perto do piegas, porém Gianecchini foi tão grandioso, que calou qualquer crítica. Não perdeu a classe, não se vitimizou, falou com desenvoltura e honestidade – foi perfeito.

Houve um momento que sobressaiu aos demais. Foi quando ele contou como foram os últimos instantes de vida do pai dele, que também tinha câncer e que veio a falecer. Gianecchini, sabedor de que o pai estava desenganado, foi ao hospital e juntos tiveram a oportunidade de conversar sobre diversas questões pendentes – que pais e filhos não têm questões pendentes?

Não querendo ser mais um a choramingar “por que não disse tal e tal coisa ao meu pai quando ele era vivo?”, foi lá e fez o dever de casa.

Tiveram tempo para zerar as dívidas. Quando não havia mais o que falar, Gianecchini abraçou o pai longamente e disse: “Pode ir”. Então olhou para os monitores e viu que os batimentos cardíacos dele começavam a cair, que o pulso começava a cair – o pai começava a morrer. Ele acompanhou a morte chegando, até que as máquinas deram o sinal de que tudo havia acabado. “Não senti tristeza. Senti paz.”

Entre tantas coisas difíceis que enfrentamos na vida, as despedidas estão entre as mais cruéis. Dificilmente sentimos paz: romper um vínculo é uma pequena morte, e com ela advêm a dor, a culpa, a saudade e o medo diante do que o futuro reserva.

Mesmo as despedidas do tipo “fácil”, como as que ocorrem em aeroportos e rodoviárias, são angustiantes: quando nos veremos de novo? Ao menos, sabe-se que haverá um novo encontro, seja quando for. Já as difíceis implicam separação definitiva. Incluem-se aí divórcios, fins de namoro, discussões que dissolvem amizades, sociedades, empregos. Apesar de necessárias, sangram por dentro. Adeus. Palavrinha fatal.

Pois Gianecchini reverteu a tese de que toda despedida é um suplício. Diante do irreversível, não fez drama. Sofrimento e drama não são sinônimos. Existe o sofrimento pacífico, assimilado, generoso: “Pode ir”. É a aceitação da morte como um rito de passagem tanto para quem vai quanto para quem fica.

O drama é que torna tudo mais doloroso. Elimina a razão, não permite formulações nem aprendizado, apenas corrói, desespera. O drama, que tem na despedida sua cena representativa clássica, é cafona e improdutivo: o tempo que gastamos arrancando os cabelos poderia ser mais bem aproveitado se transformado em meditação e humildade.

Aceitar o luto inerente a tudo que acaba é sabedoria das mais refinadas.

terça-feira, 17 de abril de 2012

17 de abril de 2012 | N° 17042

CLÁUDIO MORENO

Um mito imortal

Nos mitos da Grécia antiga, os amores entre deuses e mortais, embora muito frequentes, nunca duravam muito tempo – não por inconstância das partes, mas sim por um simples problema literário: como é impossível existir um relacionamento duradouro entre uma divindade atemporal e alguém que caminha para o fim inevitável, quase todos esses amores terminavam de maneira abrupta, não com a morte do parceiro humano, mas – e aqui brilha a paixão que os gregos tinham pela vida – com sua transformação em outro ser, o que, de certa forma, também o tornava imortal.

Vejam Hélio, o deus do Sol, que se apaixonou por Leucótoe, uma princesa da Pérsia. Lá de cima, conduzindo pelo firmamento os seus fogosos cavalos alados, o deus só tinha olhos para ela; enamorado, atrasava sua trajetória no céu de inverno, tornando os dias mais longos para ter mais tempo para contemplá-la.

Uma noite, quando a Lua, sua irmã, já brilhava serena, o Sol assumiu a aparência da rainha-mãe e assim entrou nos aposentos da princesa, que fiava e bordava na companhia das outras donzelas. “Deixem-nos a sós; quero falar com minha filha”, disse ela, dispensando-as.

Quando se viu sozinho com ela, o deus então se apresentou: “Eu sou quem mede a extensão dos anos; eu tudo vejo, e todos os homens veem por meu intermédio; eu sou o olho do mundo.

Eu te amo!”. Aturdida pela surpresa e pelo calor daquelas palavras, a jovem deixou cair o fuso com que fiava o linho; o deus, então, sem hesitar, assumiu sua verdadeira aparência, e Leucótoe, trêmula diante daquela visão esplendorosa, deslumbrada com tanta luz, acabou se entregando docilmente.

Uma irmã, porém, cheia de ciúme porque também amava Hélio, não hesitou em contar ao pai que a princesa já não era mais donzela. Impiedoso e brutal, o rei não quis ouvir a explicação da filha – ninguém resiste a um deus, dizia ela – e mandou sepultá-la, viva, numa profunda cova. Quando o deus soube disso, ainda tentou usar seus raios para libertar a pobrezinha, mas era tarde demais: Leucótoe, sufocada e esmagada, já era um corpo sem vida.

“Mesmo assim tu vais chegar aos céus”, jurou o Sol, desconsolado – e, impregnando com o néctar divino a terra que a cobria, fez nascer ali uma planta de folhas aromáticas: nascia assim o arbusto do incenso, e, a partir daquele dia, de todos os templos da Grécia, de todos os templos do mundo, a alma perfumada de Leucótoe subiria para se encontrar com seu amado, como ainda faz até hoje.

Lembrete – Em maio, começam meus cursos Introdução à Mitologia e Os Amores de Zeus. Todos os detalhes no site www.casadeideias.com.

17 de abril de 2012 | N° 17042

FABRÍCIO CARPINEJAR

O riso é perigoso

Clarice Lispector beliscava sua amiga Lygia Fagundes Telles quando entravam juntas num encontro literário:

– Não ri, vai! Séria, cara de viúva.

– Por quê? – perguntava Lygia.

– Para que valorizem o nosso trabalho.

Não há mesmo imagem de alguma risada da escritora Clarice Lispector. Em livros e revistas, a cena que persiste é seu olhar desafiador, emoldurado por um rosto anguloso, compenetrado e enigmático. Os lábios não se mexem, absolutamente contraídos, envelopes fechados para a posteridade.

Lispector não mostrava suas obturações, sua arcada para ninguém. Não se permitia gargalhadas para não parecer mulher superficial e leviana.

Ela percebeu que existe um imenso preconceito contra a alegria. Os críticos não a levariam a sério, dizendo que ela não era densa, não inspirava profundidade; acabariam por sobrepor a aparência faceira aos questionamentos metafísicos de sua obra.

Seu medo não era bobo. O riso permanece perigoso. Todos temem os contentes. Falam mal dos contentes.

O riso gera inveja, ciúme, intriga: “Por que está feliz, e eu não?”.

A alegria é malvista em casa e no trabalho, sempre intrusa, sempre suspeita equivocada de uma ironia ou de um sentimento de superioridade.

Ainda acreditamos que profissionalismo é feição fechada, casmurra. Ainda deduzimos que competência é baixar a cabeça e não entregar nossas emoções.

Quanto mais triste, mais confiável. Quanto mais calado, mais concentrado. O que é um tremendo engano.

A criatividade chama a brincadeira, assim como a risada renova a disposição.

Se um funcionário ri no ambiente profissional, o chefe deduz que ele está vadiando, sem nada para fazer. Poderá receber reprimenda pública e o dobro de tarefas.

Quem diz que ele não está somente satisfeito com os resultados?

Se sua companhia ri durante a transa, você conclui que está debochando do seu desempenho. Quem diz que não é o contrário, que ela não festeja o próprio prazer?

Se a criança ri no meio da aula, o professor compreende como provocação e pede para que cale a boca. Quem diz que ela não está comemorando algum aprendizado tardio?

Se o filho ri quando os pais descrevem dificuldades profissionais, a atitude é reduzida a um grave desrespeito. Quem diz que ele não achou graça do tom repetitivo das histórias?

Se a esposa ou marido ri e suspira à toa, já tememos infidelidade.

O riso é escravo dos costumes, sinônimo de futilidade e distração quando deveria ser visto como sinal de maturidade e envolvimento afetivo.

Não reagimos bem à felicidade do outro simplesmente porque ela ameaça nossa tristeza.

sábado, 14 de abril de 2012

15 de abril de 2012 | N° 17040

MARTHA MEDEIROS

A mulher e o gps

Vanessa não falava durante o trajeto, não ouvia música, não apreciava a paisagem. Confiar no senso de orientação do marido, nem pensar

Numa mesa de restaurante, um grupo conversava animadamente sobre relacionamentos de longa duração estavam ali casais que contabilizavam mais de 20 anos de casados até que uma das mulheres começou a expor as diversas razões que fizeram suas núpcias com o marido durarem tanto tempo.

Entre outras coisas, porque eles tinham muitas afinidades, eram muito pacientes um com o outro, gostavam de viajar juntos, prezavam a família, tinham os mesmos sonhos...

E ela foi se empolgando, se empolgando. Quando não faltava quase nada para iniciar um relato minucioso sobre os momentos íntimos entre lençóis, o marido, presente à mesa, largou um Não delira, Vanessa. A gente está junto até hoje por um único motivo: porque inventaram o GPS.

Silêncio. Alguém havia entendido a piada?

Deu-se então a explicação. “A Vanessa até que é boa gente (gargalhadas generalizadas), mas eu já não conseguia andar com ela no carro. Era um tal de vira à direita, cuidado que o sinal vai fechar, a próxima rua é contramão, tem uma vaga atrás daquele carro preto, ali, está vendo? Aqui, aqui!!! Falei. Agora quero ver você achar outra vaga. Só entrando na segunda à esquerda pra fazer o retorno.

Vocês estão me entendendo? A Vanessa não conversava durante o trajeto, não ouvia a música que estava tocando, não apreciava a paisagem. Confiar no meu senso de orientação, nem pensar.

Não sei até hoje se ela me considera capaz de interpretar uma placa de trânsito. Era o tempo todo: entra na próxima, aqui é rua sem saída, por ali a gente vai se perder, não ultrapassa agora porque já já você vai ter que dobrar à direita, por que foi pegar essa avenida movimentada se a rua de trás está sempre livre?

O GPS salvou nosso casamento”.

Até a Vanessa começou a rir. No minuto seguinte, os outros homens da mesa estavam reclamando da mesmíssima coisa, todos narrando o seu próprio filme de terror a cada saída com a esposa, inclusive aproveitando para contar exemplos bem recentes – de uma hora atrás! – quando saíram de casa para encontrar os amigos naquele restaurante escondido numa ruazinha incógnita da zona sul. Se tivessem encontrado um cartório no caminho, teriam parado para se divorciar.

Algumas mulheres não acharam tanta graça, deram uns resmungos, chamaram os maridos de exagerados, mas a Vanessa, desarmada, seguia rindo fácil, rindo à toa, rindo dela mesma, que é a risada mais generosa que há.

Foi então que olhou para o marido com tanta cumplicidade e tanta graça, aquele olhar de quem pede desculpas por ser do jeito que é, que ele não teve alternativa a não ser abraçá-la e confidenciar à mesa, assim que as vozes baixaram o volume:

“Não foi só o GPS. Esse sorriso também ajudou”.

Dizem que os dois se perderam na volta pra casa, mas aposto que foi de propósito.


6 9
Algumas atividades parecem que nasceram umas para as outras.
Tomar banho e cantar dá uma alegria enorme na gente, comer pizza e falar da vida alheia é quase um ato contínuo, beber cerveja e fumar combina que é uma loucura, assim como jogar futebol e xingar a mãe, sentar no trono e ler, dirigir e ouvir música - todas delícias de uma vida boa!
Por outro lado há coisas que não simplesmente não ornam.A palavra ornar, por si já não orna com nada. Chupar cana e assoviar todo mundo sabe que é desaconselhável, dirigir e falar ao celular a lei não permite, conversar e pular corda é complicado, e assim a coisa vai numa longa lista de práticas incompatíveis.

Pois eu queria manifestar meu desapreço por uma posição de funções adversas que, no entanto, é bastante apreciada na atividade sexual - o 69. Você há de concordar que a postura é ingrata, a vista não é das melhores, e que se não houver cautela pode-se sair dali com um pinçamento na cervical. Além do mais, por que a pressa, por que tudo ao mesmo tempo?

Parece coisa de culpa católica - é dando que se recebe, dê ao próximo o que deseja para si. Pessoalmente, considero aquela atividade frenética em ambas as pontas totalmente desnecessária, e porque não dizer, ineficiente. Não é possível a criatura executar com primor uma função que requer coordenação, dedicação e técnica, enquanto está tentando relaxar para usufruir o que lhe acomete na outra extremidade.

Sim, porque uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa! E não venha me dizer que tudo corre naturalmente e que é só meter a cara (perdão palavra no sentido figurado) que sai direito.
Não sai!!Pra começar, o negócio exige um estudo rigoroso da anatomia do outro. É imperativo que se saiba o que está onde para se entender o que fazer por ali, e é claro que isso vale para parceiros de todos os sexos, independente da ponta ( mesmo que convexa) em que se esteja. Há quem pratique a vida inteira e, não tendo se dado ao trabalho de observar os detalhes da questão uma única vez, passa a vida fazendo o serviço mal feito.

Outro fator que não ajuda é a inelutável próximidade com o assunto, que pode, num excesso de entusiasmo, causar a asfixia fatal do parceiro. Menos grave, mas não menos constragedor, é o caso do sujeito com a vista cansada que, nessa situação, tem que contar exclusivamente com a sensibilidade "linguo - labial" - não quero descriminar ninguém, mas todos sabemos como há no mundo, inclusive sem problemas de vista, criaturas desprovidas deste requesito.

E há ainda o caso dos obesos que por excesso de volume no percurso simplesmente não conseguem atingir as marcas. Por último, quero lembrar que a reciprocidade, grande objetivo da postura, é raramente atingida, posto que tem sempre um sujeito ali largadão, enquanto a outra está dando tudo de si. E vice-versa. E vice- versa, também, eu suponho.
O Kama Sutra propõe nada menos que 529 posições pra se experimentar na hora do amor e eu não estou aqui pra desistimular a criatividade de ninguém. Mas não sei se por preguiça, ou por ter amado homens de muita aptidão, ainda considero o trivial bem feitinho algo de insuperável.
ps: equem pode contar com um joguinho de sedução, não vai querer partir pra essa posição ingrata ... eu já peguei de volta o meu Kama Sutra, rs!!!!

12/04/2012 | 14:26 - NATÁLIA SPINACÉ

“Vi o monitor cardíaco parar e minha filha ir embora”

A servidora pública Giovana Gatti escreveu um comentário na entrevista com Flávio Dino, publicada na edição 723 de ÉPOCA. Nele, ela relatou brevemente a situação por que passou, parecida com a do ex-deputado, que viu o filho morrer de asma dentro de um hospital.

Ao ler o comentário feito por Giovana na matéria, fiquei curiosa e a convidei para contar sua história com mais detalhes. Abaixo está o email que ela me mandou contando como perdeu a filha de três meses vítima de uma septicemia, após esperar mais de 12 horas por uma transferência de hospital

“Música sempre traz alegria. Uma inverdade. Algumas nos remetem a um passado que gostaríamos de esquecer, ou melhor, que nunca deveria ter existido.

Foi ouvindo a música “Ave Maria”, tocada às 18:00 no rádio da UTI, no dia 31 de agosto de 1988, que me despedi de minha filha Maria Laura, de apenas 3 meses. Eu jamais esperaria passar por algo assim aos meus vinte e um anos. O ombro amigo do meu marido foi o meu conforto. Sofremos juntos.

Naquele momento ímpar, vendo o monitor cardíaco diminuir os batimentos e minha filha ir embora, eu recordei a sequência de acontecimentos dos últimos dias: as várias consultas médicas, a minha insistência em dizer que o choro dela estava diferente, que ela não estava dormindo bem… E todos os indícios não investigados e todas as suposições rechaçadas.

Maria Laura começou a passar mal no dia anterior. Fiquei desesperada e a levei para o hospital da minha cidade, João Monlevarde, no interior de Minas Gerais. Chegamos lá às 10h da manhã, e a enfermeira do pronto socorro resolveu batizar a minha filha ali mesmo.

O hospital demorou mais de 12 horas para conseguir uma transferência para uma unidade de Belo Horizonte, com mais recursos para atendê-la. Até hoje não sei o porquê de tanta demora. É incrível como a gente não tem acesso ou explicações sobre o que acontece dentro de um hospital. Só sei que se esse tempo de espera fosse menor, Maria Laura poderia estar comigo nesse momento.

A minha filha chegou a Belo Horizonte com vida. Eram mais de 2 horas da manhã do dia 31 de agosto de 1988, quando ela deu entrada no hospital particular. Nós não tínhamos plano de saúde nem dinheiro, mas tínhamos um fusquinha e uma pequena sala comercial para vender. Deixamos na portaria um cheque caução. Na hora do desespero, vende-se até a roupa do corpo.

Quando o dia amanheceu e o chefe da equipe pediátrica nos chamou para uma conversa, o meu coração de mãe já sabia o desfecho daquele dia. Ele nos mostrou outra criança na UTI que tinha entrado no hospital nas mesmas condições, mas havia se recuperado e estava a caminho do apartamento. Ela também era do interior, mas deu sorte em estar em Belo Horizonte. No caso de nossa filha, o tempo foi crucial.

Após 16 horas de UTI, retornamos à nossa cidade carregando Maria Laura sem vida. Durante o enterro, na nebulosidade dos meus pensamentos, via o olhar de compaixão dos amigos.

Por alguns dias, me senti anestesiada. Então veio a parte mais dolorosa: enfrentar a realidade. Voltar para casa, só eu e meu marido, desmanchar o quarto da minha filha, guardar cada roupinha, o travesseirinho com a marca de sua cabeça e o casaquinho de tricô ainda não terminado…

Foi muito, muito doloroso. Dentro de cada caixa, eu guardava um pedaço de mim, junto com as cantigas que não cantaria, as datas que não comemoraria, o futuro vazio. Conheci a dor da ausência. É uma dor física, no peito, e na boca do estômago. Uma dor cheia de perguntas sem respostas. Então, eu jurei que nunca mais queria sentir a dor do INSUFICIENTE – aquela sensação de que poderia ter feito algo mais.

Foi nesse período que fiz uma descoberta: dizem que o fígado é o único órgão que tem o poder de regeneração. Os cientistas é que ainda não descobriram o poder de regeneração de um coração de mãe. Além de regenerar, mesmo que leve tempo e fique completamente cheio de cicatrizes, ele ainda consegue se multiplicar. A cada filho, um coração.

Comprovei tal teoria após dois anos: eis que surge mais um coração na companhia de outra filha, Paula. Mas, a insegurança me dominou. E se alguma coisa desse errado novamente? Perdi a conta de quantas noites passei dormindo debruçada no seu berço com medo de ela passar mal e eu não estar por perto para socorrê-la.

Virei uma mãe completamente neurótica. Para mim, qualquer espirro já era motivo de ir ao consultório médico. E, completamente sem culpa, procurava uma segunda opinião médica. A dor do INSUFICIENTE não me dominaria novamente.

Depois de sete anos, ganhei outro coração juntamente com a minha filha Júlia. Quanto ao trauma inicial, pensei que já tinha superado. Ledo engano. Passei a dormir outra vez debruçada no berço.

Minhas filhas são a razão do meu viver. Elas conhecem a minha dor e respeitam. Em cada momento de felicidade vivido – os primeiros passos, primeiro dia de aula, quinze anos, passar no vestibular – eu sentia a presença de um anjo chamado Maria Laura. Neste ano, completarei vinte e cinco anos de casada, que serão festejados numa viagem em família, pois, nós quatro (cinco), temos muito que comemorar!”

WALCYR CARRASCO

O dente e a criatura

Não sou santo. Aliás, quem é? Faz algum tempo uma criatura de 18 anos começou a me escrever pelo Twitter.

Falava de sua admiração por minhas novelas, por meus livros que leu quando criança. Adorei os elogios. Concluí se tratar de uma figura inteligente e criativa. Nunca senti atração por alguém tão mais jovem. Mas tremi nas bases quando a criatura me enviou a seguinte mensagem privada: “Sonhei que nos encontramos na praia. E nos beijamos. Depois...”.

O “depois” vocês adivinham. Só conto que era um depois com tudo a que um depois tem direito. Respondi, animado:

– Pode me enviar suas fotos?

A criatura mandou. Nenhuma explícita, mas... Propus:

– Que tal a gente passar uns dias na praia?

– Topo!

Preveni, cauteloso: – Não tenho barriguinha de tanque. – Não me importo com essas coisas.

– Estou gordo. – O que vale é o seu espírito!

Resolvi pedir conselho a meu amigo Júlio, que abençoa todas as loucuras. Outro qualquer seria contra. – Você acha 42 anos de idade uma diferença grande para um casal?

– Ahnnn? – Bem, não tanto assim. Só 41 e meio. – Ah, bom!

Respondeu o que eu esperava: – Está na hora de você se apaixonar. Listamos exemplos de felicidade entre gerações. Percorremos o rol de celebridades, como o vice-presidente Michel Temer, de 70, casado com a gatíssima Marcela, de 27. Falamos também dos mais próximos. “O que vale é a química”, concluí.

A criatura veio do interior de São Paulo. Busquei-a no aeroporto e fomos diretamente para minha casa no Litoral Norte de São Paulo. Chegamos ao anoitecer. Tudo era romântico: a noite linda, a lua linda, as árvores lindas. Já me via casado. Queria pegar na mão. Falar de coisas belas.

Antes fui me exibir na cozinha. Assei um frango bem temperado. Fiz arroz e salada. Abri um vinho. A criatura sentou-se à mesa, encantada. Destrinchei o frango. – Só quero um pedacinho do peito – disse ela, que, é claro, vive de regime. Busquei-a no aeroporto e fomos direto para a praia. Preparei um jantar. Mordi o frango – e meu dente caiu

Servi. Botei uma coxa no meu prato. Ela mordeu delicadamente um pedacinho de frango. Agarrei a coxa com a mão e enfiei na boca. Adoro comer frango com a mão. Mordi. Meu dente da frente caiu.

Tentei encaixar. Impossível. Caiu de novo. Era uma prótese, claro. Só tenho a raiz. – Meu dente caiu! – exclamei. A criatura me avaliou com vagar. Sorri de boca torta.

– Acho que dá para disfarçar. – Não tem jeito. Dá para ver a falha – respondeu. E sorriu com seus lindos dentes de 18 aninhos. – Pelo menos você disse que o importante é o espírito! Silêncio expressivo.

Respirei fundo: – Quer dizer, lembrei da nossa conversa sobre barriguinha de tanque. A gente já trocou mensagem e conversou no carro sobre assuntos profundos: sua escova progressiva, embora eu prefira cabelos cacheados, o último filme de Harry Potter que temos de ver juntos e o vestibular que você vai prestar.

A gente não precisa de dente para se dar bem, não é? Silêncio ainda mais expressivo.

Resolvi ser romântico: – Vamos passear na praia, olhar a lua? Caminhamos pela orla, as ondas batendo nos pés. – Aqui não dá para ver que perdi o dente. – Dá sim, por causa do luar.

Quase xinguei a lua. Parti para o ataque e a beijei. Já tentou beijar sem o dente da frente? Entra um ventinho pela fresta. Parece que tem uma janela aberta na boca. Nos afastamos constrangidos. Voltamos em silêncio. A criatura foi diretamente para o quarto de hóspedes e se trancou. Ouvi o ruído do secador uns 50 minutos. Depois acho que adormeceu.

Acordei tarde. A criatura já fora para a praia, tinha tomado sol e se enturmado com uma galera com quem talvez jogasse videogame à tarde. Sentou-se, enquanto eu mordia cuidadosamente uma fatia de mamão. Peguei os comprimidos de meu tratamento ortomolecular. Um deles caiu no chão. – É outro dente? – quis saber.

Acabou aí a viagem. Voltamos imediatamente. E a deixei no aeroporto. Tranquei-me até o dentista restituir meu sorriso de piano. Se conto a minha saga é porque ela é universal. Um dente pode simbolizar o abismo entre gerações. E não vamos nos enganar.

Na batalha entre o corpo e o espírito, algumas vezes o espírito pode vencer. Mas só algumas. Banguela romântico não rola. O amor precisa de dentes.

14 de abril de 2012 | N° 17039

NILSON SOUZA

Contos sem fadas

Desde o dia em que li Bruno Bettelheim, Andersen e os Irmãos Grimm nunca mais foram os mesmos. Os psicólogos são como as bruxas más, desencantam qualquer história ao identificar nelas significados que jamais veríamos numa leitura descomprometida, até mesmo porque muitas vezes não os queremos ver.

Bettelheim é o autor de A Psicanálise dos Contos de Fadas, obra basilar da interpretação do universo infantil a partir de textos clássicos da literatura.

Branca de Neve, que está voltando às telas em grande estilo por estes dias, não é para a psicanálise apenas a menina bonita que causa ciúme à madrasta, mas sim o pivô de um conflito familiar que termina em lambança – ou em dança, no conto original, em que a rainha má é obrigada a calçar sapatos de ferro em brasa, dançando até morrer.

A crueldade nem sempre está nas entrelinhas, às vezes é explícita. A Bela Adormecida aparece ao leitor ingênuo somente como vítima de uma maldição de cem anos, mas alguns psicanalistas identificam na dama inerte um símbolo machista, pelo qual a mulher ideal é calada, inativa e indefesa. Ufa!

Pela mesma visão, a Cinderela, no seu momento gata borralheira, também simbolizaria a submissão aos desejos e às fantasias masculinas. Até ao sapatinho de cristal é atribuído um significado que nem o mais concupiscente sapateiro imaginaria.

Chapeuzinho Vermelho é uma sedutora precoce, que provoca o lobo e foge com o caçador. Alice, aquela do País das Maravilhas, cai no buraco do inconsciente e cada personagem que encontra em sua aventura tem significados que nem Lewis Carroll foi capaz de imaginar.

A Bela troca o desejo do pai pelo amor da Fera, ou seria o contrário, sei lá. Pinóquio é mais do que um boneco de madeira que ganha vida, é a projeção de um pai controlador. E seu nariz não cresce por causa das mentiras, mas por causa de uma verdade chamada puberdade.

As histórias infantis perdem a graça, mas suas interpretações psicanalíticas não deixam de ser divertidas.

A propósito dos novos filmes sobre Branca de Neve. Num deles, Julia Roberts interpreta a rainha má. No outro, a madrasta malvada é Charlize Theron. De onde tiro minha própria interpretação nada psicanalítica: talvez o propósito seja mostrar que toda linda mulher pode um dia virar bruxa, mas prefiro pensar que as madrastas também podem ser lindas.

Para encerrar esta sessão de delírios, invento o meu próprio conto de fadas e aguardo interpretações:

Joãozinho do Passo Certo era um sujeito determinado, que jamais hesitava, até o dia em que se apaixonou por Maria Vai Com as Outras. Ela, indecisa por natureza, só fazia o que as amigas sugeriam. Os dois se casaram, foram morar na casa da Mãe Joana e tiveram dois filhos, que se chamariam Zé dos Anzóis e Maria-Mole, mas viraram Mauricinho e Patricinha porque os pais não chegaram a um acordo sobre a colocação dos hifens.