sábado, 28 de maio de 2022


28 DE MAIO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Adeus, exclusão

Era 2011, minha primeira vez em Tóquio. Caminhava com minha filha pelo fervilhante bairro de Ginza quando, numa movimentada avenida, escutamos uma música de balada: de onde saía aquele som? Logo percebemos que vinha de uma loja, e para ela fomos atraídas. Na entrada, dois homens sem camisa, apenas de calças jeans, recepcionavam os clientes: como referência, imagine James Dean e Marlon Brando aos 20 anos. 

Uma vez lá dentro, vertigem: parecia que eram três da manhã, e não três da tarde. A música que se ouvia da calçada se transformou numa rave trepidante, era como estar numa casa noturna. Os três andares da loja eram interligados por grandes escadas com degraus iluminados como numa discoteca, mas o que impressionava eram os funcionários. Meninos e meninas saídos de capas de revista: incrivelmente lindos e sexys. Seduziam com bíceps, decotes, sorrisos e olhares, "deseja alguma coisa"? Saí de lá antes de fazer alguma besteira.

Estávamos na Abercrombie, marca de roupas casuais que estourou entre os jovens americanos nos anos 1990 e que fazia da exclusão o seu diferencial. Com várias filiais espalhadas pelo mundo, a empresa contratava a equipe não pelo currículo, mas pela aparência, e usava a moda como promessa de pertencimento: quem quisesse se sentir desejável como eles, bastaria vestir uma camiseta da grife. Técnica publicitária clássica, mas não demorou para que se percebesse que não havia negros, nem asiáticos, nem latinos, nem gordos naquela tribo. Adeus, reinado. Abercrombie & Fitch, Ascensão e Queda é o nome do documentário disponível na Netflix, para quem quer conhecer melhor essa história.

O mundo mudou, continuará mudando e cada vez mais rápido. É verdade que as redes sociais sequestram nosso tempo e funcionam como um tribunal impiedoso, a que damos o nome de patrulha, mas é preciso reconhecer: que suporte elas têm dado à revolução em curso. A diversidade é a grande beneficiada pela fiscalização virtual - tolerância zero para preconceitos e segregações. O mundo descolado não é mais branco, nem magro, nem assim, nem assado. Afora a ética, que sempre deve ser protegida, não existe mais um monopólio de conduta. A idade certa para. O jeito certo de. A beleza padrão. A família ideal. Exclusão não vende mais nada e torço para que também não eleja mais ninguém, só quem se vale dela são marcas e políticos em estado de putrefação.

A Abercrombie não quebrou. Tem novos diretores, reformulou seu modo de operação e adequou-se ao universo inclusivo. Era isso ou a morte. Consumidores jovens e maduros, pequenos e grandes empresários: já não há quem não saiba que o produto mais valioso do mercado, hoje, chama-se consciência.

MARTHA MEDEIROS

28 DE MAIO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Afundada no Pantanal

Depois de anos sem acompanhar uma novela, acho que desde O Clone, que fez meu filho, então um toquinho, trocar os Power Rangers pelas criações do doutor Albieri, fui fisgada por Pantanal.

Bem verdade que a possibilidade de ver a novela na hora em que se quiser ajudou. Longa vida aos aplicativos, que tornam possível ao vivente não se irritar com as inserções políticas dos intervalos comerciais. Você ali, sonhando com o quartinho dos peões, e entra um deputado federal que lutou pela cloroquina se dizendo o mais qualificado para o governo do Estado. Ou outro, tapado de maracutaias, querendo ser o próximo ocupante do Piratini.

Me poupe, como se diz na língua culta.

Não assisti à Pantanal dos anos 1990, mais preocupada que estava com outras coisas, incluindo o desprezo pelo que meus parentes gostavam. Era jovem, mil perdões. Hoje estou do outro lado do balcão, sofrendo o desprezo pelos meus gostos. Como diz meu irmão, a terra gira é para nos fazer cair. A única vantagem é que tudo é inédito para mim, Juma, Jove, José Leôncio, Filó. E Maria Bruaca.

Que personagem, a Maria Bruaca. E que atriz. Nunca tinha visto a Isabel Teixeira em cena, quanta sensibilidade para encarnar uma mulher que já vi tantas vezes na minha avó, na minha mãe, nas irmãs, nas amigas, em mim mesma. A pessoa desvalorizada por cuidar da casa e dos outros, se contentando com o que sobra. E não sobra nada. Só pela Maria Bruaca, Pantanal já vale a viagem.

A novela privilegia os dramas masculinos. Até agora, já são dois filhos sofrendo pelos pais ausentes, mais o Jove, que não se dá com o pai. Jove, tão bonito quanto enjoado e, a bem da verdade, um tanto tóxico, além de usar as camisetas mais feias da dramaturgia brasileira. O ator é bem melhor que o papel que lhe coube. Já os dramas das mulheres são mais objetivos, quase todos envolvendo algum tipo de vingança. Ou a reafirmação de território, caso da Filó. Ou a luta por um amor, que não há heroína - gente ou onça - que passe ao largo dessa jornada, na ficção e na vida.

Esta humilde coluna não poderia terminar sem uma menção ao quartinho dos peões do Zé Leôncio. Se a vida real é mesmo assim, me penitencio por não ter abraçado as lides campestres. Todos os peões do Zé Leôncio, ele incluído, são lindos e se vestem na estica para as tarefas mais comezinhas. Mais: todos são românticos, homens que não conversam sobre gado, terras, a hora da ordenha, só falam de amor. O que tem parte com o capeta é maravilhoso. O vilão é um arraso. Tadeu e Tibério são duas pinturas, broncos e honestos até o último músculo. E vem aí José Lucas, mais um sensível para se juntar à turma. Um belo elenco, sem dúvida. Telespectadoras e telespectadores mereciam esse colírio.

Brincadeiras à parte, um novelão como Pantanal tem um quê de terapia, deixa a cabeça leve por alguns instantes. Cai bem depois de um telejornal cheio de tretas, de um embate Ciro x Gregório, de mais um pulo da inflação, de outro aumento da gasolina, de dinheiro público indo para o ralo etc etc etc. Novela pegada mesmo, a gente sabe, vem aí a partir de agosto, quando começa a campanha eleitoral.

Até lá, deixa a peoa sonhar.

CLAUDIA TAJES

28 DE MAIO DE 2022
LEANDRO KARNAL

A palavra é difícil de escrever. Um solene sc no meio e conteúdo desconhecido da maioria. Quantas vezes, nos últimos anos, sua fala incluiu o termo imarcescível?

Vamos nos aproximar um pouco da antiga seção "enriqueça seu vocabulário" da revista Seleções. Sua orquídea resiste na sala há 21 dias sem murchar? Talvez ela seja imarcescível. Algo que não fenece, jamais perde o viço, mantém o vigor original é parte da definição do vocábulo título da minha crônica. Com sentido figurado, aplica-se ao que nunca pode ser corrompido pelo tempo. Pode até ser elogio a sua colega de Ensino Médio que você reencontrou em um restaurante: Márcia, você tem um rosto imarcescível! Se ela for uma pessoa de vocabulário rico, baixará o rosto, corada. Ficar vermelho diante de um elogio é uma forma sofisticada de dizer: concordo, mas a humildade social impede que eu grite sim nesse instante.

Aproveito a palavra menos comum para tocar em um ponto delicado. Qual o sentido de aprender algo novo como a palavra que usei? Amplio: e o currículo escolar em si? O influencer Felipe Neto causou impacto nas redes ao declarar que ainda não tinha encontrado utilidade prática para o Teorema de Pitágoras.

O conhecimento tem sido, com frequência, um distintivo social. Gramática não serviria, de fato, para afinar a comunicação, todavia para dizer quem é quem. Quem estudou muito sabe distinguir entre aposto explicativo, enumerativo, comparativo, circunstancial etc. Ao identificar que está utilizando um deles com acerto e consciência, causa em outros que estudaram a boa sensação de que se trata de alguém que pertence ao mesmo grupo. Resolve-se a identidade pela regra da língua. "Você ouviu? Ele pronuncia aerosol e não aerossol. Não vamos nos misturar com esse tipo de gente." Parece cômico, porém toca no ponto real. Gramática é usada como exclusão.

Volto ao ponto: quando fará falta imarcescível? Quando você, se não for da área de exatas, utilizou o Teorema de Pitágoras? Eu, como nerd confesso na juventude, admirava a beleza da hipotenusa e dos catetos. Sei identificar oração reduzida de gerúndio e ainda respondo, com rapidez, se alguém me pergunta qual grande rio da África atravessa a linha do Equador duas vezes.

Sempre imagino em qual jantar poderei elogiar a beleza imarcescível da dona da casa e acrescentar um detalhe interessante sobre a hipotenusa grega ou o rio Congo. Claro: o conhecimento não possui apenas esse item bizarro de enciclopédia antiga ou manual de curiosidades. Quais outras funções?

Prestar atenção em uma palavra nova pode ampliar a maneira de perceber o mundo. A velha história (lendária) de que os esquimós teriam mais de cem palavras para descrever branco. A palavra aguça o olhar e aperfeiçoa a mente. Observar que um termo é escrito com "sc" é uma maneira de prestar atenção à escrita e pode, no extremo, tornar meu olhar mais atento ao conteúdo do texto. Se eu passar para a banda do "tanto faz", é provável que, além da ortografia, eu me descuide do significado de tudo. Um olhar atento a textos e mensagens estimula a cidadania, diminui nossa chance de sermos enganados pela propaganda comercial e política. 

Tradicionalmente, os grandes ladrões do erário público brasileiro eram sólidos bacharéis, formados em boas universidades e muito atentos ao vernáculo. Ladrões ágrafos são personagens mais recentes. Como Nelson Mandela, ao lutar contra os racistas da África do Sul, achou fundamental entender o africâner, dominar a língua portuguesa pode ter, em algum setor, destaque na consciência política. Conhecimento liberta e torna, no fim, sua capacidade imarcescível, mesmo navegando no rio Congo sobre uma graciosa linha de hipotenusa pitagórica.

O saber não melhora eticamente uma pessoa. Canalhas podem ser cultos e até refinados musicalmente. Ortografia não garante criatividade ou estratégia. Opulência vocabular pode vir acompanhada de fraqueza de ânimo. O conhecimento sempre foi a chave do mundo. Na chamada sociedade 5.0 de smartphones e Google, ele é ainda mais fundamental. Os trilionários do planeta vendem ideias, algoritmos e soluções produtivas muito mais que constroem ferrovias ou extraem plutônio. Gado e soja ainda embasam fortunas. Acima dos empreendedores do agro, grandes especialistas em química, biologia e botânica concentram os verdadeiros ganhos. O fazendeiro rico, na prática, é o proletário dos grandes laboratórios ou dos sistemas logísticos de carga do mundo.

Muita coisa pode ser discutida sobre currículo escolar, caráter prático do conhecimento ou utilidade de tudo. Volto à África do Sul de Mandela: escolas para negros ensinavam trabalhos manuais práticos porque aqueles alunos seriam trabalhadores braçais na cabeça dos organizadores do sistema escolar. Os brancos? Estudavam Filosofia e Literatura: estavam sendo preparados para o controle. Conhecimento é poder. Ensinar só coisas muito práticas é uma excelente estratégia de controle da futura mão de obra. Saber é semear uma esperança imarcescível.

LEANDRO KARNAL

28 DE MAIO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

MACONHA NA GRAVIDEZ CHEGA AO CÉREBRO DO FETO E PREJUDICA SUA FORMAÇÃO

Fumar maconha na gravidez é uma má ideia.

São bem conhecidos e divulgados os malefícios do cigarro durante a gestação. Foram necessárias décadas de campanhas educativas para mostrar os problemas causados pelo fumo nessa fase da vida: baixo peso ao nascer, ruptura prematura da bolsa amniótica, gravidez tubária, descolamento prematuro da placenta, placenta prévia, alterações no sistema nervoso do feto, aumento do risco de aborto espontâneo, de morte fetal e infantil, entre muitos outros.

No caso da maconha, a legislação proibitiva adotada na maioria dos países fez com que as consequências do consumo durante esse período fossem pouco estudadas, por impor dificuldades burocráticas que desanimam os pesquisadores.

A revista JAMA acaba de publicar uma metanálise que reúne 16 trabalhos científicos sobre a influência da maconha na evolução da gravidez e no desenvolvimento fetal. É a publicação mais atualizada sobre o tema.

A prevalência do consumo de maconha por gestantes na literatura médica varia de 2% a 5%, a depender das casuísticas analisadas. Quando limitado a populações que vivem nas áreas mais pobres dos grandes centros urbanos esse número chega a aumentar para 15% a 28%.

Testes aplicados na hora do parto demonstram que o uso é mais frequente do que aquele relatado nas consultas do pré-natal. Nas publicações internacionais, de 34% a 60% das mulheres que fumam maconha com regularidade não interrompem o uso ao engravidar.

Diversas substâncias resultantes da combustão da maconha conseguem atravessar a placenta, cair na corrente sanguínea do feto e alcançar o cérebro. Entre elas, o delta9-terahidro-carabinol (THC), o componente psicoativo que exerce sua ação em receptores específicos localizados principalmente no córtex pré-frontal, interferindo com o desenvolvimento e a função dessa área nobre para a cognição.

Em estudos que somaram 47.130 partos, o risco de nascer uma criança com baixo peso (definido como abaixo de 2,5 quilos) na mulher que fumou maconha durante a gravidez é duas vezes maior do que o das que não o fizeram.

Três dos trabalhos analisados compararam a circunferência da cabeça dos recém-nascidos de mães que não interromperam a maconha quando engravidaram com a dos filhos das abstinentes. Num total de 2.425 bebês, aqueles nascidos de mães que continuaram a fumar maconha apresentaram circunferência da cabeça estatisticamente menor.

Na análise da prevalência de partos prematuros (definidos como antes de completar 37 semanas), entre 43.521 participantes, as grávidas expostas à maconha apresentaram risco 28% mais alto.

O escore de Apgar que os neonatologistas aplicam para avaliar a vitalidade do recém-nascido nos primeiros minutos após o parto (composto pela frequência cardíaca, esforço respiratório, tônus muscular, teste dos reflexos e cor da pele) foi calculado em 1.253 participantes. Os resultados do teste calculado um minuto depois do nascimento foi pior nas crianças expostas à maconha. Aos cinco minutos, entretanto, a diferença entre os dois grupos desapareceu.

Seis estudos publicaram os números de recém-nascidos que necessitaram de internação em UTI. O risco dos expostos à maconha foi 38% mais alto.

Receptores canabinoides podem ser detectados já nas fases iniciais do desenvolvimento embrionário. O sistema formado por eles e pelas moléculas que a eles se ligam desempenham papel importante no desenvolvimento e na sobrevivência dos neurônios.

Essa função sugere que a ativação desse sistema provocada pela presença do THC na circulação fetal está associada a anomalias no crescimento e à interferência no andamento da gravidez.

Uma das consequências da proibição e do entendimento de que o uso de drogas consideradas ilícitas deve ser deixado por conta da repressão policial é a falta de pesquisas sobre seus efeitos no organismo humano. A ignorância impede que as pessoas possam fazer escolhas conscientes e avaliar o risco que correm ao usá-las.

A maconha é exemplo típico. O desconhecimento leva à desqualificação de suas consequências deletérias entre os usuários, muitos dos quais a consideram inócua, inofensiva para adolescentes e menosprezam sua capacidade de induzir dependência química, como repetem usuários que não passam um dia sem fumá-la durante décadas.

DRAUZIO VARELLA

28 DE MAIO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

MEU ÍDOLO DA ADOLESCÊNCIA

Fui uma dessas adolescentes apaixonadas pelo Chico Buarque. Tinha um cartaz com a foto dele atrás da porta do meu quarto e sabia de cor todas as letras, cantava todas as suas músicas e ele simbolizava pra mim a perfeição. Aliás, ganhei do jornaleiro esse enorme cartaz com a foto do Chico e fiquei tão feliz, que quase fui atropelada ao atravessar a rua segurando o cartaz na frente da minha cara.

Alguns anos depois, com um colega de escola que eu não curtia muito mas que tinha dois ingressos, fui ver o show do Chico e fiquei em êxtase. Nem sei como a gente foi até o camarim, e quando entrei era como se o mundo tivesse parado. Quando vi o Chico de perto, a emoção que me invadiu foi tamanha que eu também parei e não consegui mais raciocinar.

Não tinha a menor condição de dizer que era fã, que tinha adorado o show ou qualquer coisa parecida. Minha mente não funcionava e eu me vi ali estatelada, imóvel, sem nenhuma reação, querendo esconder o nervosismo. Lembro que o tal colega falava coisas sem noção e minha preocupação era não parecer tão idiota quanto a minha companhia. Mas devo ter parecido ainda pior porque fui incapaz de dizer uma palavra sequer. Fiquei muda.

Quase uma década mais tarde, mais amadurecida, eu tinha escrito meu primeiro livro, No Ritmo dessa Festa. Um amigo querido, Carlito Maia, sem me dizer nada, mandou meus manuscritos pro Chico, que mesmo sem me conhecer, escreveu o prefácio. Eu nem podia acreditar em tamanho presente do Universo.

Finalmente meu livro foi publicado e fui conhecer o Chico pessoalmente (jamais comentei o encontro da adolescência). Nos encontramos no Antonio?s, no Rio, e dessa vez consegui falar, dar risada e agradecer seu generoso gesto.

Depois fomos até a casa dele e ouvimos seu novo disco, ainda inédito, Meus Caros Amigos. Ele colocou a faixa O que Será e foi um momento de extraordinária beleza. Nada me parecia real, o ídolo da minha vida estava próximo de mim e me mostrava sua nova música. Às vezes a vida traz surpresas de tirar o fôlego.

Tempo atrás me pediram um texto falando sobre o Chico, mais uma vez, mesmo grisalho, ele foi considerado o mais sexy numa pesquisa feminina. Com certeza não é como ele gosta de ser visto, mas não deixa de ser divertido ver alguém atravessar tantas décadas e continuar criando fantasias.

Talvez as mulheres se projetem nas letras das canções do Chico. Em sua poesia, ele se revela um homem que conhece profundamente os sentimentos das mulheres, compreende suas emoções, o que parece quase impossível.

A verdade é que Chico é um dos seres mais talentosos do planeta, e esse lance de ser bonito foi apenas um pequeno bônus dos deuses. Nem precisava. Ele continua aquele mesmo moleque de jogar futebol na rua, de descobrir sambas esquecidos que poucos conhecem, de ficar indignado com o estado das coisas e lutar por aquilo em que acredita.

Um artista único e extraordinário. Pessoas assim são o orgulho da raça e fazem a gente acreditar que um mundo melhor seja possível.

BRUNA LOMBARDI

28 DE MAIO DE 2022
J.J. CAMARGO

OS CONTADORES DE HISTÓRIAS

"A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la." (Gabriel García Márquez em Vivir para Contarla, 2003)

Os contadores de histórias constituem uma categoria à parte na cultura dos povos de todas as épocas. Nos primórdios, eles foram os veiculadores orais do conhecimento, quando não havia outra forma de divulgação, e por isso eram festejados. Depois, quando a escrita surgiu e se disseminou, eles passaram a ser vistos como diferentes, com inegável tendência a serem diminuídos aos olhos críticos de seus pares mais intelectualizados, mas ainda assim com um público numeroso e fiel.

O livro mais famoso da cultura ibérica, Don Quixote de la Mancha (1605), revelou em Miguel de Cervantes um dos primeiros representantes dessa categoria original e criativa. Na era moderna, o mais famoso dos contadores de histórias foi certamente Gabriel García Márquez (1927-2014), que, de tão excepcional, quebrou o círculo hermético da alta erudição e ganhou o Nobel da Literatura em 1982. No seu Não Vim Fazer um Discurso, que é uma espécie de biografia através de alguns dos seus discursos mais importantes, ele diz isso, explicitamente: "Não me peçam para falar de literatura porque eu não entendo disso. Eu sou apenas um contador de histórias".

No Brasil contemporâneo, provavelmente ninguém divertiu mais se divertindo com as histórias que contava do que Ariano Suassuna (1927-2014), que admitia que importava muito pouco se a história era ou não verdadeira, desde que ela fosse boa. A maioria dessas histórias não estão escritas, e o YouTube é o fiel depositário dessa cultura que não pode se perder. Seria uma pena se os nossos netos fossem privados de rir, por exemplo, do causo de mulher antipática que foi à casa dele, e na chegada anunciou que viera lhe dizer uma coisa que ele não ia gostar. E ele se antecipou: "Pois então, não diga!". Mas não adiantou. Ela estava determinada e, confirmando que ele era do signo de gêmeos, perguntou: "Você sabia que dizem que as pessoas de gêmeos têm duas caras?". E ele respondeu "E a senhora acha que se eu tivesse duas caras eu iria usar esta daqui?". E todos riam, e ele ria mais do que todos.

Para quem gosta de boas histórias, a internet oferece acesso a verdadeiras preciosidades, muitas das quais, por mérito, viralizaram na rede.

Selecionei duas para compartilhar:

"O major do exército americano Robert Whiting, um senhor de 83 anos, chegou a Paris de avião. Na alfândega francesa, demorou alguns minutos para localizar seu passaporte na bagagem de mão. O funcionário da alfândega, sarcasticamente, o repreendeu: ?Se o senhor já esteve na França, devia saber que mostrar o passaporte é obrigatório e devia tê-lo pronto para apresentá-lo?. O velho major, constrangido, disse: ?A última vez que estive aqui, não precisei mostrá-lo?. O funcionário da alfândega, já com a voz mais alta, disse: ?Impossível. Os americanos sempre precisam mostrar seus passaportes à chegada à França!?. Então o major Whiting lançou um olhar longo e duro aos franceses e explicou em voz baixa: ?Bem, quando cheguei à praia de Omaha Beach, no Dia D, em 1944, para ajudar a libertar este país, não consegui encontrar um único francês para mostrar-lhe meu passaporte?."

"Quando emigrou para os EUA, Albert Einstein lecionou na Universidade de Princeton. Um dia, saindo de New Jersey de trem, foi abordado pelo cobrador e não conseguia encontrar o tíquete. Foi prontamente identificado pelo cobrador, que lhe disse: ?Não se preocupe, eu já o reconheci?, e foi adiante. Quando ia passar para o vagão seguinte, olhou para trás e viu o professor ajoelhado, procurando algo embaixo do banco. Voltou e repetiu: ?Professor, eu já lhe disse para não se preocupar com o tíquete, porque eu sei quem o senhor é!?. E Einstein teria respondido: "Obrigado, mas eu também sei quem sou, mas preciso muito descobrir para onde eu estou indo!?."

J.J. CAMARGO

28 DE MAIO DE 2022
DAVID COIMBRA

A despedida de David

Em seu curto retorno às atividades diárias, retomadas em 16 de maio, David Coimbra publicou suas últimas nove crônicas. As derradeiras palavras de David podem ser lidas cada uma em seu texto de origem, mas também podem formar um relato único de suas dores, aprendizados e resignação diante da incerteza do dia seguinte. Compõem, ainda, uma despedida discreta e elegante, por vezes quase cifrada, da vida que tanto amou.

Pinçados e recombinados, esses parágrafos ilustram a grandeza do cronista diante da ideia da própria finitude e deixam uma lição de serenidade, beleza e autoconhecimento forjado diante da doença. Zero Hora publica, na coluna que marca o adeus de David Coimbra desta página, mas jamais da companhia de seus leitores, o legado final de um dos maiores jornalistas gaúchos.

"Eu quis morrer. Não se trata de figura de linguagem, estou falando sério: queria não existir mais. Refiro-me a esse tempo em que passei sofrendo (...). Foi exatamente essa reunião da fraqueza com as dores e com o mal-estar, todos agindo de forma permanente, que me tirou a vontade de viver (...).

Não vou aborrecer o leitor detalhando todos os males por que passei. Conto apenas que houve um momento em que fechei a porta do quarto, me encolhi na cama e de lá não saí por dois dias e duas noites. Não comia, não tomava banho, não olhava o celular, não fazia nada além de dormir em posição fetal. No final da tarde do terceiro dia é que me levantei e tentei comer algo.

Mas agora estou melhor. Cheio de traumas de guerra, todo lanhado e escalavrado, com algumas dores ainda, mas melhor. (...) Estou de pé, enfim. Meio esfarrapado, mas de pé. Vamos em frente de cabeça erguida. Com um leve tremor ao pensar no futuro. Mas o futuro não é coisa para se pensar. O que existe é o presente e, se o presente pode ser sorvido integralmente, a vida passa a ser boa. E ela é. A vida é boa."

(Quando quis morrer, publicada em 16/5)

"Quando você está encerrado em casa por causa de uma doença, os piores dias são os mais bonitos. Aquela tarde de sol gloriosa, os passarinhos cantando a alegria de estar vivo, o céu azul convidando a sentir as amenidades do clima, e eu não posso.

Imagino que todos os meus amigos agora estejam celebrando. Estão rindo, fazendo brindes, atirando-se nas ondas do mar. E eu aqui. Eles me esqueceram. Maldita solidão. Maldita doença, que me torna incapaz de sorver o bom da vida.

Mas aí, no dia seguinte, o céu enfeia, tudo fica escuro e até chove um pouco. Os amigos ligam e suspiram:

- Que vontade de estar em casa, comendo bolinho de chuva.

E eu me sinto bem, porque é o que estou fazendo. Quer dizer: quase é o que estou fazendo. Estou em casa, mas não tem bolinho de chuva porque minha vó e minha mãe não apareceram para cozinhar. O bolinho de chuva é um dos diamantes da minha infância. Esfriava um pouco e lá ia a minha avó fazer bolinho de chuva. Mas essa é uma graça que só cabe a quem tem menos de 14 anos de idade. Porque o bolinho de chuva serve para divertir, não para alimentar."

(Comida de gente séria, publicada em 18/5)

"Então, fiz 60 anos. Sessentão. Idoso. Mas, na minha cabeça, tenho outra idade. O corpo anda alquebrado de tanta luta, e na cabeça tenho entre 35 e 45 anos. O espelho confirma isso. Olho-me no espelho e vejo um cara bonitão, grisalho, experiente, com personalidade. Quando me vejo em filmes ou fotos, estremeço. De onde vieram tantos cabelos brancos? E essas rugas? Credo.

Se você for escrever a biografia de alguém, qual é a foto que será publicada na capa do livro? Essa é a foto que representa a vida da pessoa, era ali que ela devia ter ficado para sempre. Por exemplo: Pelé é o da Copa de 70, Churchill, Roosevelt e Hitler são os da Segunda Guerra, Marilyn é a do filme O Pecado Mora ao Lado. (...)

Os cientistas calculam que, até hoje, mais de 100 bilhões de pessoas viveram debaixo do sol. Hoje, onde elas estão? E eu, onde estava quando Julio César atravessou o Rubicão, quando Maomé II derrubou as muralhas de Constantinopla, quando Rasputin comeu uma caixa inteira de bombons envenenados e sobreviveu? Eu não estava vivo. Eu não vivi por milhares de anos da civilização e por milhões de anos do nomadismo. E sei que não estarei vivo depois, por outros milhares e milhões de anos. Coube-me esse pedacinho e já consumi 60 anos do meu quinhão. Oh, amigos, resta-me pouco. Então, não vou me importar com o que não tem importância. Nem mesmo com a imagem falsa das fotos e filmes de agora. Sou um ser humano existindo, "sendo", como são os bichos. Mais tarde, quando deixar de existir, vocês decidem que foto fui eu."

(Pulei fora dos 60, publicada em 24/5)

"É preciso envelhecer com dignidade, afinal, sem essas vaidades de pintar o cabelo e outros que tais. Você haverá de entender que não tem mais aquela elasticidade e que começará a se preocupar com coisas nas quais antes nem pensava, como as articulações. Você terá de mudar.

Dormir mais cedo. Beber menos. Comer menos também. Nas atividades físicas e também nas amorosas, nada de acrobacias. Pensando bem, nada de acrobacias em nenhuma atividade. Esporte? O xadrez. Emoções? As literárias. O que nós queremos, nós que nos aproximamos da idade provecta, é paz e um plano de saúde confiável.

Sei que, falando assim, tudo parece sombrio, mas há uma vantagem. Uma só. E não é essa tolice de "melhor idade". Também não é a experiência. Nada disso. É a vantagem da madureza passa por algo que citei acima: as críticas. O homem mais velho, se sorveu com sabedoria o tempo que lhe coube, pouco se importa com elas. Ele sabe que tem de ser quem é, a despeito do que querem que ele seja."

(O que o sapato diz sobre quem você é, de 20/5).

"Se eu fosse um condor, eu não voaria para os Andes, eu ficaria por aqui mesmo, nas cidades tumultuadas do Brasil. No entanto, voaria alto, bem alto e, lá em cima, ficaria planando preguiçosamente. Ficaria olhando o movimento dos carros que rodam entre as artérias de cimento da cidade e as pessoas atarefadas, indo a algum lugar - as pessoas sempre estão indo a algum lugar.

Mas eu, estando tão alto, não me importaria para onde fossem, nem com o que estavam pensando ou debatendo. Elas seriam apenas pessoas, para mim. Todas iguais. Elas não teriam mais problemas ou preocupações. Não teriam opinião, nem teses a defender. Só estavam ali para existir. Mas se, de repente, dois ou três humanos se desentendessem por alguma razão trivial, como o trânsito, e começassem a brigar, eu bateria as asas e subiria um pouco mais. Olharia para aqueles pontinhos lá em baixo e sorriria de prazer. A vida aqui em cima é tão pacífica..."

(Gosto das pessoas que se transformam em bichos em "Pantanal", de 17/5)

DAVID COIMBRA

28 DE MAIO DE 2022
LEANDRO STAUDT

Cem anos do Imposto de Renda

A declaração do Imposto de Renda é um ritual para mais de 30 milhões de brasileiros todos os anos. Eu sempre aproveito os primeiros dias do prazo para acertar as contas com o leão. Com a declaração pré-preenchida, ficou mais rápido. A tecnologia melhorou os controles para a Receita Federal e também nos ajuda. Meu primeiro emprego foi em um escritório de contabilidade e posso dizer que participei de um momento importante na história do Imposto de Renda.

Em 1997, foram entregues pela primeira vez declarações via internet. O contribuinte podia optar entre envio em formulário de papel, entrega em disquete ou transmissão online. O meio magnético superou o papel pela primeira vez naquele ano. Lembro que fui três ou quatro vezes com disquetes de clientes à Receita Federal no último dia do prazo.

O formulário de papel era muito trabalhoso, preenchido na máquina de escrever ou à mão. Exigia os cálculos com uso de calculadora. Tudo muito demorado e sujeito a erros. Os formulários de papel, aceitos até 2010, eram usados desde 1924, na primeira declaração.

O Imposto de Renda completa cem anos em 2022. A cobrança de até 8% sobre rendimentos líquidos foi instituída em artigo de lei publicada em 31 de dezembro de 1922. Com base nos ganhos de 1923, os brasileiros deveriam declarar e pagar o tributo no ano seguinte. Os primeiros formulários só foram apresentados em setembro de 1924. A demora do governo para divulgar as instruções de preenchimento exigiu o adiamento do prazo final da primeira declaração para março de 1925.

Até final da década de 1930, o imposto sobre renda representava pouco para os cofres federais. O imposto de importação era a principal fonte de arrecadação, seguido pelo imposto de consumo. Com a Segunda Guerra Mundial, a receita com as importações caiu e o governo mirrou no Imposto de Renda, incluindo cobrança extra de obrigações de guerra.

Em 1944, o Imposto de Renda virou a principal fonte de arrecadação do governo brasileiro. De 1945 até 1978, dividiu a liderança com o imposto de consumo, que se transformaria no imposto sobre produtos industrializados. Desde 1979, lidera a arrecadação dos tributos de competência federal.

O leão é o símbolo do Imposto de Renda desde 1980, quando foi lançada a primeira campanha com o animal. De acordo com a Receita Federal, ele foi escolhido por impor respeito, ser justo, leal e manso, mas não é bobo. Leão virou sinônimo do órgão que arrecada o imposto. O verbete precisou até de uma atualização nos dicionários. Como dizia um dos primeiros comerciais com o leão: "um dia, você vai ter que enfrentar".

LEANDRO STAUDT

28 DE MAIO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

OS SÍMBOLOS

Há símbolos que vão além do que representam. Mas, quando algum acidente tira deles a essência, cai todo o arcabouço. No Brasil, esse é (ou foi) o caso da Petrobras, símbolo da nossa dinâmica e criatividade.

A Petrobras foi tal qual a bandeira como símbolo pátrio. Já nasceu lutando, numa batalha por nossa independência econômica. "O petróleo é nosso" foi, nos anos 1940-1950, o lema de um combate diuturno que levou à prisão milhares de brasileiros, numa campanha por nossa libertação econômica, mas que o tacanho conservadorismo no poder tachava de "agitação comunista".

A luta por "o petróleo é nosso" só se materializou com a criação da Petrobras em 1953, no governo Vargas. Na época, o petróleo significava a emancipação econômico-social e tomamos a empresa como a alforria do povo e da nação.

A Petrobras tornou-se a maior empresa do país e da América Latina, intocável e autônoma, longe da politicalha partidária. Com isso, chegou à descoberta do pré-sal. Empresa pública sob domínio do governo federal com minoritário capital privado, foi tratada respeitosamente até nos anos da ditadura militar, em que o poder se exercia de cima para baixo, autoritariamente.

A Petrobras se fez símbolo ao ter administrações estáveis que, pela continuidade, planejavam e implantavam ações. Resistiu até à corrupção de Lula nos governos do PT. Agora, Bolsonaro nomeou o quarto presidente da empresa em três anos e meio do atual governo, interrompendo uma gestão que recém se preparava para agir.

O novo presidente da empresa é secretário de Desburocratização e Governo Digital do Ministério de Economia, mas pouco conhece de petróleo. Os especialistas não o vêm apto a "baixar o preço dos combustíveis", como diz o presidente da República. O alto preço atual está atrelado à desvalorização do real frente ao dólar.

No fundo, tudo se deve ao fantasma da inflação, visível no preço dos alimentos e bens essenciais. E isso, por acaso, não é um símbolo do atual desgoverno?

FLÁVIO TAVARES

28 DE MAIO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

SOLIDARIEDADE PARA ENFRENTAR O INVERNO

O período do ano com as temperaturas mais baixas vem chegando e, com ele, a angústia de milhares de gaúchos com a incerteza sobre se terão roupas e cobertas adequadas para enfrentar o frio. A esta aflição se soma a da insegurança alimentar das populações mais carentes e das pessoas em situação de rua, um quadro que tem se agravado no país e no Estado em função das dificuldades da economia e do desemprego ainda significativo. É uma ferida social exposta especialmente nos espaços públicos de qualquer cidade de ao menos médio porte.

Diante dessa dura realidade, amplia-se o apelo, renovado a cada aproximação do inverno gaúcho, de colaboração da sociedade com as campanhas do agasalho, organizadas pelo Estado e pelos municípios do Rio Grande do Sul. Nos últimos anos, notadamente a partir da pandemia, acrescentou-se o pedido de doação de alimentos e cestas básicas, como forma de aplacar também a fome. Calçados e produtos de limpeza e higiene pessoal igualmente estão na lista de solicitações.

A Campanha do Agasalho do governo gaúcho foi lançada na quinta-feira. A da Capital foi apresentada no último dia 10. Em Caxias do Sul, teve início no dia 14. Uma das diferenças na mobilização neste ano é o pedido salientando para que as doações sejam de peças de qualidade, com bom estado de conservação. Esse é o foco, mais do que o volume. O entendimento partiu da constatação de que muitas peças, sem condições de uso ou inadequadas para o inverno, acabaram, no ano passado, sendo descartadas. Inaproveitáveis, não cumpriam o objetivo de ajudar alguém necessitado.

No caso da iniciativa estadual, que tem o lema "Doe, doe de coração", pedem-se especialmente roupas para crianças de zero a cinco anos. A prefeitura de Porto Alegre, por sua vez, dá atenção especial a peças infantis, masculinas e cobertores, mas também a toalhas de banho. E chama a atenção para cuidados simples, mas relevantes, ao doar. No caso de calçados, por exemplo, amarrar pelos cadarços os dois pés faz com que não se percam. Facilita a separação dos itens e, desta forma, ajuda a agilizar a entrega para os beneficiários na ponta.

Empresas e cidadãos de todos os municípios, interessados em colaborar com mais este mutirão de solidariedade, devem procurar em suas cidades os pontos de entrega e se informar sobre os itens prioritários. O governo gaúcho terá ainda um drive-thru itinerante, que percorrerá o Interior coletando doações. Nas ruas, praças, abrigos, instituições e comunidades pobres, há um grande número de gaúchos que dependem do engajamento da sociedade e da solidariedade para atravessar os meses mais gélidos sem padecer tanto com o efeito das baixas temperaturas e da falta de comida no prato. Nada melhor do que o calor humano para vencer o frio.

 


28 DE MAIO DE 2022
LUTO

Morre David Coimbra, guri do IAPI e amante do jornalismo

Jornalista faleceu na sexta-feira em Porto Alegre após uma longa luta contra o câncer, doença descoberta em 2013

Um dos mais celebrados jornalistas do Rio Grande do Sul, que soube combinar em crônicas antológicas e na vida cotidiana a paixão pelo futebol e pela cultura, pelos amigos e pela boa polêmica sem jamais deixar de lado o bom humor, David Coimbra morreu na manhã de sexta-feira, na Capital, após quase uma década de batalha contra o câncer.

Nascido em Porto Alegre, com 60 anos recém-completados, o jornalista do Grupo RBS começou a enfrentar problemas de saúde em 2013 ao ser diagnosticado com um tumor em estágio avançado no rim esquerdo.

Após sentir dores no peito, descobriu ainda que a doença já havia se espalhado. Rumou para os Estados Unidos com o objetivo de dar sequência à luta contra a doença.

Em seu exílio temporário, desde Boston, seguiu escrevendo textos para o jornal Zero Hora e para GZH e participando de programas na Rádio Gaúcha, como o então recém-lançado Timeline, sem jamais abandonar o estilo ao mesmo tempo leve e contundente.

Boston

Nos EUA, David conseguiu tomar parte em um estudo clínico inovador que testava a aplicação de imunoterapia - o paciente recebe uma droga que ativa o sistema imunológico com o objetivo de combater o câncer. A resposta de seu organismo foi considerada excelente, o que ajudou a compor as 208 páginas do livro Hoje Eu Venci o Câncer, publicado pela L&PM em 2018.

David decidiu escrever uma obra em tom confessional logo depois de receber a notícia do médico, ainda no Brasil, de que poderia ter poucos meses de vida. Naquele exato momento, resolveu colocar no papel todo seu sofrimento, mas principalmente sua esperança, para que o filho Bernardo - outro de seus grandes amores, hoje com 14 anos, além da mulher, Márcia - pudesse conhecer em detalhes a alma do pai que até os 50 anos se considerava uma "fortaleza física", e que, depois do diagnóstico, como relatou nas páginas do livro, passou a considerar que a felicidade é "um dia bem vivido, sem dores físicas importantes, em que você agiu com correção e que termina em paz".

Um de seus traços mais marcantes era justamente a paixão pela escrita, fosse a sua, moldada com frases tão elegantes quanto espirituosas, ou aquela produzida por outros autores que abarcavam desde os antigos gregos aos modernos clássicos noir de nomes como Raymond Chandler ou Dashiell Hammett.

Dizia que gostava de ler e escrever antes mesmo de aprender a ler e escrever por conta da influência de pessoas próximas como a mãe, Diva, e o avô, Walter, de quem puxou o gosto por contar histórias "de futebol, de guerra e de política", como lembrava o neto. Graças a essa herança familiar, David deixou vasta contribuição para enriquecer a biblioteca dos amantes da literatura com uma produção prolífica e variada, de coletâneas de crônicas e contos a romances.

Por vezes, como o grande repórter que foi em áreas como geral e política, mergulhou fundo em períodos célebres da história gaúcha a exemplo da morte do então deputado estadual José Antônio Daudt, ocorrida em 1988. Na obra, reconstrói momentos da vida do também ex-deputado estadual Antônio Dexheimer, considerado à época suspeito de ter participado do assassinato.

Outra expressão de seu talento era a crônica esportiva. Além de ter exercido o cargo de editor-executivo na editoria de Esportes em ZH e de ter escrito textos sobre Grêmio e Inter para o jornal, produziu obras fundamentais nessa área como A História dos Gre-Nais. Seu amor pelo jogo de bola se estendia a qualquer lance de pura beleza, virada de último minuto ou fracasso retumbante que pudesse valer uma de suas brilhantes analogias com qualquer aspecto da vida humana.

Um desses aspectos fundamentais, para David, eram as amizades cultivadas preferencialmente ao redor de uma mesa coberta com os chopes cremosos que por tantas vezes referiu em seus textos: "O verdadeiro chope, se bem tirado e bem servido, é a melhor bebida do mundo", ensinou. Muitos desses amigos festejaram publicamente a chegada de seus 60 anos em 28 de abril.

Sala de Redação

Jornalista esportivo e comentarista do Grupo RBS, Diogo Olivier lamentou a ausência do colega em razão do recente agravamento dos problemas de saúde: "O Sala, a Rádio Gaúcha, as colunas de opinião em GZH, as mesas de chope das confrarias, a vida toda fica muito chata sem a tua presença, irmão".

Se teve grandes amizades, o temperamento assertivo também lhe rendeu algumas poucas e boas brigas. A mais célebre delas foi com o colega de RBS Paulo Sant?Anna. Em 2013, desentenderam-se ao vivo durante o programa Sala de Redação, na Rádio Gaúcha, e Sant?Anna chegou a brandir uma bengala em sua direção. No ano passado, ao celebrar meio século de história do Sala, David gravou um vídeo em que recordava o episódio de forma bem-humorada.

De volta ao Brasil em 2020, nos últimos meses David vinha sofrendo novamente com problemas de saúde e precisou fazer interrupções em seu trabalho nos veículos do Grupo RBS. Quando pôde retomar seus afazeres, com o talento e a leveza de sempre, transformou a rotina de dor e mal-estar na crônica Quando Quis Morrer, publicada em 16 de maio (leia trechos das últimas nove crônicas de David na página 47).

No texto, ao mesmo tempo em que revive os momentos de sofrimento, relembra o carinho dos incontáveis amigos que agora deixa, dos familiares que tanto cuidaram dele ao longo dos últimos minutos de jogo contra a doença, dos médicos que não pouparam esforço para que um dos mais admirados jornalistas já surgidos no Rio Grande do Sul continuasse por mais tempo a dividir com uma multidão de admiradores suas histórias do IAPI, seu amor pelo esporte, pela boa literatura, pelos chopes cremosos madrugada adentro, por tudo isso que chamamos vida.

No mesmo texto, David conta que o carinho recebido fez com que pudesse viver seus últimos dias novamente de bem com ela, a vida, sabendo aproveitar o que cada momento é capaz de oferecer: "Isso fez bem. Estou de pé, enfim. Meio esfarrapado, mas de pé. Vamos em frente de cabeça erguida. Com um leve tremor ao pensar no futuro. Mas o futuro não é coisa para se pensar. O que existe é o presente e, se o presente pode ser sorvido integralmente, a vida passa a ser boa. E ela é. A vida é boa".

 MARCELO GONZATTO


28 DE MAIO DE 2022
POLÍTICA +

Nunca seremos os mesmos sem a luz de David Coimbra Manuela não concorre

Mesmo para quem vive de palavras, é difícil encontrar alguma que expresse o sentimento nesta hora em que é preciso encarar a realidade. Nunca mais teremos a luz de David Coimbra brilhando entre nós. Precisaremos reencontrá-la nos textos que ele escreveu - e como escreveu - nestes 60 anos de vida.

Nos últimos 30 anos, fomos colegas no Grupo RBS. Dessa convivência e das divergências democráticas nasceu a admiração pelo homem que se entregava à vida, ao amor, ao jornalismo, à literatura e aos amigos. Ele era o mais completo, eclético e versátil da nossa geração.

A música tema da vida do David é dos Beatles, mas são versos do cancioneiro gaúcho que me ocorrem nesta hora triste. É de Luiz Menezes, na música Última Lembrança, que Joca Martins interpreta divinamente:

"Quando morrer, permita Deus que nesta hora. Ouças ao longe o cantar da cotovia Será minh?alma que num pranto triste chora...

E nesta mágoa o teu nome pronuncia..."

David amou muitas mulheres até encontrar Marcinha. É nela que penso agora e a imagino ouvindo o cantar da cotovia no largo pampa que apresentou a David. Marcinha, a companheira que foi a fortaleza ao lado do nosso amigo e do filho que os dois geraram, o Bernardo, um dos responsáveis para que aqueles seis meses dados pelos médicos quando descobriam o câncer se estendesse por 10 anos.

É incrível pensar agora que nestes 30 anos de Zero Hora nossa conversa mais longa tenha sido quando ele já estava naquela fase de buscar a cura. Porque vivemos sempre na corrida contra o tempo, nossas conversas sempre foram breves. Eu não era da turma de amigos que varavam a noite tomando chopes cremosos, até porque sou uma criatura diurna.

No dia da nossa conversa mais longa, estávamos a caminho de Brasília, para entrevistar a presidente Dilma Rousseff. No chá de aeroporto e depois, no avião, David me contou em detalhes a descoberta do tumor, o choque inicial, a sentença de morte em seis meses, que ele reverteria com persistência, força de vontade, amor e o melhor que a medicina pode oferecer, no Brasil e nos Estados Unidos.

David contou a história em detalhes no livro Hoje eu Venci o Câncer. O livro termina com final feliz, porque ali ele tinha vencido mesmo, mas o bicho é traiçoeiro e voltou mais feroz.

A pandemia nos privou da presença dos colegas por dois anos e quando começamos a voltar o David precisou ficar em casa, porque sua imunidade estava muito baixa. Encontramo-nos apenas uma vez, no encontro de final de ano na RBS. Quando o abracei, estava tão magro que levei um choque, mas mantinha o bom humor e aquele espírito tão característico.

Hoje, como sempre acontece quando perdemos uma pessoa querida, gostaria de acreditar que existe outra vida, outra dimensão, onde os que morrem se encontram. E que nessa dimensão David encontrará meu pai e dirá a seu Alvino que eu era sua consultora para assuntos do reino vegetal, porque recorria a mim quando precisava identificar uma flor, um arbusto ou uma árvore incomum.

Nessa dimensão, David encontrará Ricardo Carle, o amigo que formava o quarteto com Telmo Flor e Juremir Machado da Silva nos tempos em que matavam aula na Famecos e iam para um bar discutir política e filosofia. Nesse mundo para onde as almas voam, David há de encontrar o Professor Juninho, amigo e personagem de tantas crônicas, para tomar os tais chopes cremosos. Há de encontrar o avô sapateiro, que nos parece alguém da família, e passar horas conversando sobre o IAPI, a dona Diva, os jogos de bola no estádio Alim Pedro e as reuniões dançantes da Zona Norte.

Um dos maiores leitores da nossa geração, conhecedor profundo das grandes obras da literatura universal, talvez agora David consiga arrastar Tolstói para uma mesa de bar celestial e trocar o chope pela vodca, Júlio Cortázar para um café com medias lunas, Proust para um bate-papo à sombra das raparigas em flor.

Apesar do bom desempenho nas pesquisas e do cenário favorável com a direita dividida, a ex-deputada Manuela D?Ávila decidiu: não será candidata ao Senado. A decisão, que abre um rombo na chapa PT-PCdoB, foi comunicada ao pré-candidato do partido a governador, Edegar Pretto:

- Sei da importância da eleição e sei que contribuí em 2018 e 2020 para acumularmos forças para vivermos esse cenário mais favorável agora, mas não serei candidata. Me esforcei muito para termos um palanque único da base de Lula aqui no Estado, com Edegar Pretto, Beto Albuquerque e Pedro Ruas, mas não conseguimos.

Entre os motivos para não ser candidata, Manuela cita a violência praticada contra ela e a filha Laura, de seis anos. Mesmo contando com o apoio do marido, o músico Duca Leindecker, e do enteado Guilherme, para ser candidata, Manuela optou por seguir a carreira acadêmica (está fazendo doutorado), o trabalho no Instituto E se fosse você? e os livros.

- Vou ser uma militante de nossa chapa, vou estar onde acharem que posso ajudar para garantir que derrotemos o bolsonarismo lá e aqui - disse Manuela à coluna.

a saída de manuela, somada à divisão do bolsonarismo entre hamilton mourão e nádia Gerhard reacende no mdb a esperança de convencer o ex-governador josé ivo sartori a disputar o senado. na última conversa, sartori pediu uma semana para pensar e conversar com a família. o prazo termina segunda-feira.

POLÍTICA +

28 DE MAIO DE 2022
MARCELO RECH

Justiça para o David

Certo dia, há coisa de mais de 20 anos, eu era diretor de redação de Zero Hora, uma colega morena curvilínea entra na minha sala e senta na minha frente.

- Quero reclamar do David. Sei que ele está escrevendo essas crônicas pra mim. Mas aviso que meu marido é militar e muito ciumento. Tenho medo do que ele vai fazer.

Na época, David Coimbra estava numa daquelas fases, digamos, libidinosas, esculpindo deliciosas crônicas sobre o sexo oposto e, às vezes, é verdade, me deixando exasperado por romper, qual um centroavante das letras, determinados limites.

David era cronista, editor-executivo de esportes e, não por último, um amigo próximo. Talvez pela minha personalidade mais séria (e mais responsável!), David e eu tínhamos longas conversas, ele buscando conselhos e orientações sobre sua vida profissional e pessoal. Invariavelmente, tal qual um irmão mais velho, eu o enquadrava:

- Acabaram as farras, David! Economiza uma parte do salário, David! Compra uma casa, David! Arruma uma namorada firme, David!

David ria, jurava de pé junto que ia se ajeitar e, finalmente, quando conheceu a Marcinha, colocou a vida em ordem, para gáudio deste amigo e tranquilidade de seu editor.

Então, naquele dia, assim que a morena saiu da sala, chamei David. - Tua vida tá em risco - avisei. - Mas eu juro que nunca escrevi nada pensando nela!

- Sei, sei, David. Mas agora, quando ela passar na tua frente, tu baixa os olhos. Algum tempo depois, a colega pediu demissão. Anos mais tarde, me enviou uma carta de próprio punho, que, em síntese, dizia:

- Sou aquela que reclamou do David. Mudei com meu marido para o Rio de Janeiro e me converti. Agora, estou separada e meu pastor me orientou a consertar meu passado. Então, quero dizer que aquela história do David era uma invenção para causar ciúme no meu marido e tentar salvar o casamento. Sinto muito.

Chamei o David, relatei a surpreendente retratação tanto tempo depois e pedi desculpas por desconfiar dele - se bem que, dado seu histórico amoroso, razões não faltavam! Rimos muito e refletimos sobre a vida, o ser humano, o jornalismo, o Brasil e o mundo, como sempre fazíamos, seja bebericando cafés, chopes cremosos ou IPAs e APAs.

Bastaria a extensa luta de David contra o câncer, e as pessoas que inspirou nesse enfrentamento, para ele entrar na história. O cemitério, eu sei, está cheio de gente insubstituível, mas David ingressou em outra liga. Não faz parte dessa legião. Por tudo, ele terá para sempre um lugar único no jornalismo, na literatura, na vida de Porto Alegre e, sobretudo, no coração de sua família e de seus amigos. Com justiça, David Coimbra foi e continuará sendo um dos grandes.

MARCELO RECH

28 DE MAIO DE 2022
J.R. GUZZO

Deu tudo errado para Doria

Não é a toda hora que se encontra uma história de superação no fracasso como a que está sendo oferecida ao público em geral pelo ex-governador João Doria. Histórias de superação, em geral, são relatos edificantes. Mostram como alguém, saindo de condições terrivelmente adversas, consegue superar uma a uma todas as suas dificuldades, para ao fim chegar à vitória.

Com Doria aconteceu exatamente o contrário. Saindo de condições terrivelmente favoráveis, foi destruindo uma por uma todas as suas facilidades, para ao fim chegar à derrota. Há menos de quatro anos, era o homem que "tinha tudo" na política brasileira; seu futuro lhe reservava, no mínimo, a Presidência da República. Hoje é três vezes nada.

É realmente um fenômeno. Doria lançou-se a uma corrida de 5 mil metros e conseguiu chegar antes do ponto de partida - ou seja, correu para trás. Não é mais o futuro presidente do Brasil, cargo semi-obrigatório para quem cresce na política do maior Estado do país. Não é sequer candidato à Presidência na próxima eleição - conseguiu ser transformado em picadinho pelos seus companheiros de PSDB. Não é mais, nem mesmo, o governador de São Paulo. Ou seja: acabou com menos do que tinha quando começou.

Doria é um desses casos que podem acabar servindo como objeto de estudo em cursos de ciência política, num workshop sobre como lidar com decisões - e errar em cada uma delas. Ao ser eleito governador, ele era o "Bolsodoria" - o presidente Bolsonaro em São Paulo, seu aliado fundamental, representante e possível sucessor como presidente.

Resolveu, pouco depois de tomar posse, que seria mais lucrativo transformar-se no exato contrário: o inimigo número 1 de Bolsonaro em São Paulo. Morreu aí, mais que por qualquer outro motivo - perdeu o cartaz junto aos bolsonaristas, não conseguiu nem o mais miserável apoio na esquerda que faz oposição e acabou sem coisa nenhuma. Doria, antes do seu grande projeto, era detestado pelo PT, os jornalistas e a esquerda em geral. Agora é detestado por todos.

Sua atuação durante a covid foi um suicídio político em praça pública. Doria e suas equipes publicitárias acharam que ele ganhava milhões de votos a cada vez que aparecia em entrevistas coletivas dizendo que era preciso "fechar tudo", "salvar vidas" e deixar para "depois" a necessidade de produzir e trabalhar. Mas a população queria exatamente o contrário do que o então governador estava pregando, e rapidamente se viu a realidade. No resto do tempo, Doria foi visto fazendo dancinhas, perguntando "quem aqui já foi a Dubai" (numa de suas palestras), dando bom dia a manequins de loja e sabotando o governo federal em tudo o que podia.

Obra, que é bom, nem uma bica d?água - ou nada que a população pudesse, realmente, considerar uma obra. Iria arrasar, em 2022, abrindo os bilhões de reais que o Tesouro de São Paulo tem nos seus cofres; já se chegou ao mês de junho e não aconteceu nada até agora. Deu tudo terrivelmente errado.

J.R. GUZZO