sábado, 26 de outubro de 2019



26 DE OUTUBRO DE 2019
LYA LUFT

O sentido a gente inventa

Parece que muitas vezes, ao parar para pensar, imaginamos qual será o sentido da nossa vida. Seguidamente, aliás, se comenta o assunto: qual será o sentido de tudo isso?

E todos ficamos com ar meio perplexo. Vamos lutar por ele, produzir ou descobrir um pequeno significado a cada momento. Pois isso não nos é dado de bandeja, a vida não aparece e diz: "Olha aí, esse é o sentido de tudo".

Além do mais, cada um de nós é vários, é muitos, é pelo menos dois. Uma amiga me relatou um sonho há muitos anos: sonhava que corria por um campo e de repente foi atingida por um raio que a partiu em duas. Duas mulheres idênticas corriam pelo campo agora, mas em direções opostas.

Todos somos, mais que dois, muitos: muitas indagações, muitos desejos, muitas condutas, muitas frustrações. A toda hora vestimos máscaras, belas e irreais como as de Veneza, ou grotescas como caretas de choro ou sofrimento. Não é hipocrisia: é um modo de nos preservarmos, um jeito de sobreviver e merecer vida - e sobrevida, que às vezes é o que nos resta.

Tenho em minha sala um quadro despretensioso com moldura estreita e simples, no verso da qual a autora assinou apenas seu sobrenome: "Grauben". Sei que era já de avançada idade quando começou a pintar. Não tenho maiores informações sobre ela (gostaria de ter). É uma pintura ingênua e pontilhista: um jardim com duas árvores floridas, no meio um banco onde se senta uma menina com sua boneca. Ou é uma jovem mulher com uma criança.

De cada lado dessa mulher há um gato: o preto senta-se a seu lado direito no banco; o branco está no capim do lado esquerdo. Arte cada um interpreta como pode, mas para mim ali se representa a psique, a do adulto e a da criança que sobrevive em nosso inconsciente; e de cada lado aparece isso que somos de bom e mau, livre e prisioneiro, em suma a força da vida e a pulsão da morte.

No quadro, a "pulsão da morte" está mais próxima, sentada no banco do lado direito daquela mulher com a sua reprodução, dela parida, boneca ou criança. E estende-a um pouco afastada do corpo, como para mostrá-la a nós, indagando: "Qual delas sou realmente eu?".

Genes e acasos, experiências, tantas, foram me desenhando traço a traço com a minha destinada vida, e com a minha destinada morte pacientemente à espera. Construí com essa argila, tramei esses fios, bordei, pintei, esculpi com alegria e lágrimas, descobertas e afetos incríveis, no trabalho das horas de viver uma vida.

Quando tiver cavado todas as palavras da mina do silêncio, vou poder com elas fazer muitas telas, quadros mínimos ou grandes painéis, que nada resolvem mas vão continuar indagando. Embrulho tudo em palavras e amarro em intervalos, e deixo em textos para o leitor, meu amigo não muito imaginário - que procura seus significados como eu procuro os meus: ou, como eu, os inventa.

Mas também penso, em certas horas de leve ironia, que somos sérios demais: que muito melhor seria corrermos livres pelo campo, ou pela areia, espantando garças ou quero-queros só pela alegria de seguir seu voo.

LYA LUFT

26 DE OUTUBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Vida de artista

Ainda ela, claro. A quantidade de homenagens pelos 90 anos de Fernanda Montenegro será sempre insuficiente diante da sua grandeza. Aproveitando a data festiva, também li Prólogo, Ato, Epílogo, uma forma de me aproximar desta mulher com quem conversei timidamente uma única vez, por um minuto, quando fomos apresentadas por uma amiga em comum. E de conhecer não só sua história, mas a história do teatro brasileiro.

Entre tantas recordações, Fernanda menciona no livro a época em que era preciso ter uma carteirinha emitida pela Polícia Federal para poder transitar pelas ruas à noite. A ditadura impunha essa obrigação a duas categorias de profissionais: os atores de teatro e as prostitutas. Essa abjeta forma de controle acabou fomentando um preconceito que, mesmo já tendo diminuído, sobrevive de forma subliminar: a de que toda atriz é puta.

Quando menina, achava a coisa mais linda ser atriz, mas nem cogitei em me aventurar. Fui criança nos anos 1960 e início dos 1970, quando os costumes começavam a ser revolucionados, mas não ainda na minha casa. Meus pais, mesmo sendo frequentadores do melhor teatro, não aplaudiriam: sonhavam em ter uma filha "normal", e eu, sem vocação pra rebeldia, fui fazer Comunicação e virei publicitária. Mais adiante, acabei dando um jeito de atuar: passei a criar personagens fictícios através da escrita, que também é uma forma de ir além do próprio eu.

Ditadores perseguem artistas porque sabem que eles são porta-vozes dos desejos da população, o que consideram subversivo, por isso estigmatizam a classe e, muitas vezes, censuram. Já o cidadão comum não tem razão para desprestigiar um artista, a não ser que se sinta incomodado por um estilo de vida que, vá saber, evidencie suas frustrações. O artista, mesmo não sendo célebre, vive da sua arte, ama o que faz, usa os sentimentos como matéria-prima, reconhece a comédia e a tragédia da nossa humanidade, analisa as questões com a mente aberta, defende a liberdade e não se deixa regrar por convenções. Uma afronta aos que não conseguem lidar com essa entrega absoluta a uma existência plena. O fascínio pode acabar virando raiva. Joga pedra na Geni!

Todas as pessoas - inclusive as putas, senhores - têm ao menos um talento, que pode estar ligado a um esporte ou à gastronomia ou moda, jardinagem, bordado, computação, humor, música, não sei, você é que sabe qual é o seu dom. Alguma coisa você faz muito bem, mesmo que de forma amadora. Pois trate com gentileza o artista que você também é. O seu dom, ainda que infinitamente mais modesto que o de Fernanda Montenegro, é que ajuda a tornar o mundo menos rude. Quem coloca o mínimo de inspiração e paixão no que faz sempre devolve algo de bom para a sociedade.

MARTHA MEDEIROS


26 DE OUTUBRO DE 2019
CARPINEJAR

Homens são cachorrinhos quando apaixonados

Todo adulto, quando faz carinho em um cachorro, altera a voz. Essa voz infantil e cantante é também a dos apaixonados. Não precisamos descobrir se alguém está amando pelos olhos, basta escutar o esforço sonoro para ser agradável.

O apaixonado torna-se um animal adestrado. Murmurando. Pausado. Soletrado. Rimado. Vive dentro de um musical de quatro pernas que só há dentro de sua cabeça.

Não fala, na verdade, vai mais lembrando do que falando, revivendo ápices dos encontros passados, com intervalos comerciais da saudade. Dá até raiva de abordá-lo se você está apressado. Ele não tem foco nenhum, como se vivesse distraído, dopado, abobado, em transe. Direcionou seu corpo exclusivamente para a encenação da conquista.

Talvez o apaixonado tenha reencontrado a ingenuidade da esperança e retrocede ao tempo verbal do jardim de infância. Não existe mais naturalidade do timbre. Vem açucarado, estranho, meloso, com diminutivos e exclamações.

Empresários, executivos, engenheiros, advogados - gente engravatada e séria! - começam a ter ataques de meiguice no discurso. Inventam de propor brincadeiras quando o assunto é pesado, esquecem horários, aumentam o tempo do lanche e do cafezinho.

Tornam-se cachorrinhos abanando o rabo, felizes, correndo de um lado ao outro para expor o vigor.

Mas a característica mais dominante é mudança de tom grave para o agudo. Diminuem a voz para fazer charme, para mostrar que estão interessados e oferecendo atenção especial a quem gostam.

O crush desejoso de um relacionamento sério modula a sua locução querendo gerar confiança para a aproximação da parceira. Acredita que a conversa sussurrada transmitirá a imagem de que é doce e inofensivo. Esconde qualquer alteração que possa denunciar perigo, rudeza ou agressividade.

A atração se revela sempre no volume da fala. Baixo, significa que o homem está entregue. Alto, indica que não está nem aí.

Um diálogo entre apaixonados é igual aos dengos de um tutor com seu mascote. O que explica a submissão masculina no início do romance.

CARPINEJAR


26 DE OUTUBRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

O INSTAGRAM DOS SANTOS

COMO NA 'LEGENDA ÁUREA', OU SE É SÃO JORGE OU SE É DRAGÃO, CAVALEIRO OU SAURO ABOMINÁVEL, ALIADO DE DEUS OU REPRESENTANTE DAS HOSTES DEMONÍACAS. ESSA É A RETÓRICA DAS REDES SOCIAIS, ESTRUTURA NARRATIVA QUE FLERTA MAIS COM O DRAMALHÃO MEXICANO ESTEREOTIPADO DO QUE COM A RIQUEZA DO HUMANO REAL

Eles eram perfeitos de todas as formas. Foram assinalados pela graça divina antes do nascimento. Alguns não mamavam no seio materno às sextas-feiras (por causa da Paixão de Jesus). A biografia irretocável dos santos cresceu durante toda a Idade Média. Era um tipo específico de escrita sobre os eleitos de Deus: a hagiografia. Com o tempo, o escrito hagiográfico virou um adjetivo que quer dizer excesso de elogios na descrição, idealização da personagem, omissão de defeitos e ênfase no caráter heroico das ações. A mais famosa narrativa do estilo descrito é Legenda Áurea, obra do século 13, de autoria do arcebispo dominicano de Gênova, Tiago de Voragine. Apenas na Idade Moderna haveria uma reação crítica ao enfoque hagiográfico idealizador. Eram os "bolandistas", pesquisadores jesuítas que pretendiam expurgar o folclórico das biografias dos santos.

A narrativa hagiográfica é muito sedutora. O herói deve encarnar valores do grupo em grau exemplar. O santo é tudo o que não somos e, provavelmente, nunca seremos. Nem sempre foi assim. Os homens da Antiguidade viam muita humanidade nos seus heróis, como Aquiles ou Hércules. Os seres olímpicos eram falhos, apenas imortais e poderosos. Embora não seja algo exclusivo do Cristianismo, a religião dos seguidores de Jesus aumentou muito a busca de uma descrição próxima da perfeição.

A hagiografia é uma forma de propaganda. Biografias de políticos são, quase sempre, hagiográficas. As personagens políticas vão sendo enquadradas em tipos ideais sem muitos matizes, ao menos na consciência dos devotos de cada seita. Verborragias viram "autenticidade" e toda acusação se transmuta em "perseguição". Falta bolandismo na política. Sobra mitologia, abunda falseamento e somem áreas de transição. Tudo é polarizado, como em grandes santos em luta contra grandes demônios.

Estudo religiões porque acho que elas moldaram a maneira de pensar as sociedades. Pessoas de esquerda ou de direita, ateus e piedosos, católicos e pentecostais, ricos e pobres continuam fazendo narrativas hagiográficas dos seres que veneram na política, na cultura ou no mundo empresarial. Como na Legenda Áurea, ou se é São Jorge ou se é dragão, cavaleiro ou sauro abominável, aliado de Deus ou representante das hostes demoníacas. Essa é a retórica das redes sociais, estrutura narrativa que flerta mais com o dramalhão mexicano estereotipado do que com a riqueza do humano real. O Instagram dos santos continua bombando, o demoníaco também.

Seria curioso fugir da estrutura narrativa clássica de santos ou demônios. Que tal humanidade? Um candidato diria: "Fui adepto de tal linha política ou partido. Naquela época, parecia o melhor e o mais lógico. Depois, tudo mudou e fui para outro campo". Seria um reconhecimento de humanidade, de capacidade de reavaliar. D. Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda-Recife (candidato aos altares), foi integralista de extrema-direita. Terminou a vida como representante do clero progressista. Carlos Lacerda (1914-1977) foi militante comunista. Chegou à maturidade como um político conservador. Os dois eram inteligentes e sensíveis à coletividade. 

Admiro a trajetória deles no aspecto da capacidade de mudar e assumir a mudança, sem escamoteá-las de suas biografias. Como estariam hoje? D. Hélder ainda seria ligado à Teologia da Libertação que a elite vaticana defenestrou? O governador da Guanabara estaria ao lado do governo atual? Não temos como responder, apenas sabemos que a inteligência conduz à reflexão crítica e esta pode indicar mudanças. Michel de Montaigne (1553-1592) associou a certeza absoluta à loucura. Sempre desconfiei de extremos, ainda que ache a paixão interessante. Radicais podem ser defendidos como pessoas que vão à raiz, como diz a palavra. Porém, só a burrice ou a insanidade faz alguém pensar na raiz como o todo do universo possível de existência.

Sempre imaginei os santos como muito humanos. Alguns foram problemáticos; outros, intoleráveis no convívio. As narrativas sobre eles, as hagiografias, produziram uma personagem perfeita. Gosto de lê-las como um gênero literário, abomino a ideia de que a santidade exclua humanidade. Seres humanos normais, como eu e como você, querida leitora e estimado leitor, pensamos de um jeito, aprendemos, vivemos e mudamos de ideia. Ninguém daria aula hoje como deu sua primeira aula. Ninguém criaria seus filhos do jeito exato que o fez no passado. Aliás, quem diz que agiria da mesma maneira deveria ser impedido de ter novos filhos ou de receber uma nova turma.

Mudar de posição a partir de novos dados ou dos erros: uma chave do humano e da consciência. Permanecer no mesmo ponto sempre mostrando uma face do poliedro para o público é um equívoco e, normalmente, chamamos esse erro de "redes sociais". Deus é imutável, os seres humanos são volúveis e as redes sociais são a tentativa de canonização em vida da perfeição de cada internauta É preciso ter um pouco de esperança e um pouco menos de fé em santos com instagram.

LEANDRO KARNAL


26 DE OUTUBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

PREVENIR OU REMEDIAR

Envelhecemos mal. Cerca de 90% dos brasileiros chegam aos 60 anos com pelo menos uma doença crônica
Os brasileiros envelhecem a passos apressados. A faixa etária que mais cresce entre nós é a que passou dos 60 anos. A expectativa de vida ao nascer - que mal ultrapassava os 40 anos, no início do século passado - atingiu 76 anos, e não para de aumentar.

O envelhecimento populacional que experimentamos nos últimos 50 anos levou o dobro de tempo para ocorrer nos países europeus industrializados. Motivo de orgulho, esse aumento expressivo da longevidade, no entanto, vem acompanhado da necessidade de investimentos e de organização do sistema de saúde para a nova realidade.

Envelhecemos mal. Cerca de 90% dos nossos conterrâneos chegam aos 60 anos com pelo menos uma doença crônica. Embora ainda não tenhamos nos livrado das transmissíveis, enfermidades cardiovasculares, câncer, diabetes, degenerações neurológicas e outras patologias degenerativas são hoje as principais causas de morbidade e mortalidade.

A cada novo inquérito epidemiológico, os níveis de obesidade estão mais altos. Na última avaliação, 54% dos adultos caem na faixa de excesso de peso (IMC entre 25 e 29,9). Pior, cerca de 20% são obesos (IMC acima de 30).

A obesidade é um pacote que traz com ela hipertensão arterial, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, doenças reumatológicas e problemas ortopédicos, entre outros males.

A Sociedade Brasileira de Diabetes estima que existam 14 a 15 milhões de brasileiros com a doença, número que provavelmente subestima os que andam pelas ruas com glicemias elevadas, sem ter recebido o diagnóstico.

Cerca de 50% das mulheres e dos homens chegam aos 60 anos com hipertensão arterial, prevalência que não para de aumentar à medida que a idade avança.

Pressão alta e diabetes causam complicações graves: infarto do miocárdio, AVC, insuficiência renal, cegueira, feridas que não cicatrizam, amputações e outros agravos que provocam sofrimento e despesas para o sistema de saúde.

A assistência médica talvez seja o único ramo da economia em que a incorporação de tecnologia aumenta os preços do produto final. A cada procedimento, exame novo ou medicamento descoberto incorporado à prática clínica, os custos sobem.

Os gastos com saúde ficaram tão elevados que se tornaram impagáveis. No SUS, a saída é negar o atendimento quando as verbas se esgotam, recurso que a lei impede de ser adotado pela Saúde Suplementar. As consequências serão o aumento das filas à espera de tratamentos no sistema público e a falência dos planos de saúde, que ficarão cada vez mais restritos aos de maior poder aquisitivo.

O progresso e o desenvolvimento tecnológico nos trouxeram a possibilidade de ganharmos a vida no conforto das cadeiras e fartura de alimentos, combinação perversa que se tornou a fonte dos males modernos. Sedentarismo e excesso de peso estão por traz dos principais problemas que enfrentamos.

O sistema plúbico e os planos de saúde precisam investir na prevenção e na atenção primária, para interferir antes que as doenças se instalem. A alternativa é o caos.

DRAUZIO VARELLA



26 DE OUTUBRO DE 2019
ESPIRITUALIDADE


O QUE É UM ANJO?

"A mão que afaga é a mesma que apedreja

Se alguém causa inda pena a tua chaga

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija."

(Augusto dos Anjos)

Meu amigo poeta do tempo de escola. Adorávamos suas rimas amorosas e plenas de amizade, amor, ternura, confiança - tudo que poderia fazer a vida mais gentil. Será? Por que gostávamos de falar palavras rudes e desacreditar da amizade e do amor?

Se era uma brincadeira da puberdade, o sentido ficou marcado profundamente em quem repetiu a frase tantas vezes que até hoje, mais de 60 anos depois, ainda está clara na memória.

As decepções, as exclusões, as exigências e as rejeições podem forjar seres solitários, revoltados. Ou não. O monge Ryokan, do século 17, no Japão, certa feita foi confundido com um ladrão e apanhou muito. Não reclamou.

Aceitou e se foi rindo da confusão do dono das melancias, que pedia perdão. Afinal, ele tinha se abaixado apenas para amarrar as sandálias de palha.

Afetos e desafetos.

Amores e traições.

Confusões. Sem olhar em profundidade cada qual se considera correto.

O que teria acontecido com Augusto - ele que era dos Anjos?

O que é um ser angelical?

Nos quadros medievais, suas faces são suaves, mãos e pés de dedos e artelhos longos, brancos.

Anjos negros? Por que não foram assim pintados pelos europeus?

Ateus e crentes são capazes de dialogar sem criticar, julgar ou querer convencer?

Anjo, Augusto dos Anjos, o que teria acontecido para escrever tal poema?

Amor e ódio - pares eternos?

Ou será que há amor que não cobra e nada pede?

Que ama por amar e nada mais?

Será que é possível afagar a mão que apedreja?

Ao invés de escarrar, melhor seria não beijar a boca falsa...

Equânime é o ser capaz de sentir compaixão pela vítima e pelo vitimador. Só é possível com muito treino. A compaixão não é visceral. Use a inteligência e vá além da dor, da aversão, do apego e da delusão.

Como sentir compaixão por quem causa divisão, briga, ódio, fake news, mata, estupra, mente, finge, corrompe e rompe todos os processos éticos legais que deveria estar a unir e a respeitar? Esforço correto. Não desista. É possível.

Vamos iniciar agora? Basta lembrar que cada ser que encontrar é um ser iluminado disfarçado. No Caminho, não há inimigos. Nada a temer. Nada pelo qual matar e/ou morrer. Nada a odiar e exterminar. Apenas entender e trabalhar para a transformação do ódio em ternura. Respire e venha se juntar a quem sabe imaginar e faz acontecer. Seja um átomo de paz.

Mãos em prece. Monja Coen escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Bruna Lombardi

MONJA COEN

26 DE OUTUBRO DE 2019
JJ CAMARGO

DE MÃOS DADAS


Eram um desses casais a quem podem faltar as palavras, porque são treinados na utilização de todos os outros sentidos

Em uma manhã de sol forte e uma brisa suave que iludia a sensação térmica, um casal de idosos caminhava lentamente na praia. Ela, com uma visível sequela de acidente vascular cerebral, arrastava a perna esquerda e colocava todo o peso do corpo na mão direita dele, um amparo indispensável para que se deslocasse com aquela lerdeza que só os muito velhos aceitam com resignação.

Vieram na minha direção e sentaram-se num banco de pedra, a dois metros da mureta, de onde eu espiava o mundo por cima do mar.

Ela tentou dizer alguma coisa e foi quando percebi que lhe faltava a voz. Não sei o que ela queria mas de qualquer maneira ele entendeu, e sorriu.

Foi então que bateu o vento, levando para longe o chapéu protetor que ela usava. Ele caminhou lentamente, apanhou-o quase embaixo do carrinho do sorvete e voltou remodelando a aba, sacudindo a areia, e recolocou-o na cabeça dela, com o cuidado de recolher as mechas brancas que extravasaram os limites do corpo do chapéu.

Então, aproveitando a proximidade, deu-lhe um beijo de leve nos lábios e recebeu a recompensa de um quase sorriso. Em seguida, tomou a mão esquerda disforme que ela mantinha passiva sobre a coxa e empunhou-a com delicadeza. Primeiro, ficou alisando a superfície das veias salientes, como se as tivesse recém descoberto, depois beijou-lhe a palma e, em seguida, apertou-a contra o peito, como a reconhecer que agora, sim, era ele que precisava de um afago.

E, com aquele novelo irregular de dedos entrelaçados, ficaram calados olhando o mar. Um desses casais a quem podem faltar as palavras, porque são treinados na utilização de todos os outros sentidos.

O silêncio lhes dava a força necessária para que, alheios a um mundo indiferente, eles vivessem em paz o tempo que lhes restava. Só agora, contando esta história, me dei conta que foi uma pena não tê-los abraçado, agradecendo a aula gratuita de afeto incondicional.

JJ CAMARGO


26 DE OUTUBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O supremo tribunal da impunidade

Eram 7h15min da manhã de sexta-feira, aqui, no norte do mundo, quando ouvi a voz límpida do Daniel Scola contar a seguinte história, na Rádio Gaúcha:

Semana passada, em São Leopoldo, um ladrão roubou um carro com uma criança de um ano de idade no banco de trás. Os pais, obviamente, ficaram desesperados, transidos de angústia e dor. Mais tarde, o carro e a criança foram encontrados. Dias depois, a polícia capturou o ladrão e o conduziu à delegacia. Lá, ele prestou depoimento, foi liberado e seguiu para casa.

Não preciso explicar o quanto isso é errado. Qualquer pessoa, por estreita que seja sua mente, sabe que a impunidade estimula a criminalidade. Outros ladrões, que roubarem outros carros, com outras crianças dentro, não perderão tempo deixando que os pais retirem os filhos do banco traseiro. Levarão carro e criança, porque ficou claro, pelo exemplo do ladrão de São Leopoldo, que fazer isso "não dá nada".

Ao mesmo tempo, em Brasília, o Supremo se encaminha para instalar outra ferramenta de impunidade, proibindo a prisão de condenados em segunda instância. Trata-se de uma lei urdida para beneficiar criminosos ricos e poderosos, com condições de pagar advogados caros e arrastar um julgamento até as fímbrias do STF, o que, na prática, pode significar a prescrição do crime.

Neste caso, talvez seja necessário gastar algum latim explicando o quanto isso é igualmente errado. Porque há gente boa, de luzes e letras, argumentando que a Constituição determina indubitavelmente que ninguém será preso até que todas as instâncias o condenem.

Há algo que me escandaliza quando ouço essas pessoas falando: é o fato de que, para elas, a Constituição se equivale ao conjunto de regras de um jogo de tabuleiro. No xadrez, por exemplo, os cavalos só se movem em L, os bispos na diagonal e as torres em linha reta. Isso jamais mudará, porque precisa. O jogo é esse e ponto. Se você quiser jogar, aceite.

Mas uma nação não pode ser regida por regras inflexíveis, já que os povos mudam e suas necessidades mudam também. Defensores da tecnicidade jurídica argumentariam que, sendo assim, o Legislativo deve mudar a lei, porque essa tarefa não cabe ao Judiciário. Eles estão certos. Só que, no caso da prisão em segunda instância, o texto da Constituição dá margem a duas interpretações, tanto que o STF está dividido.

Então, o que me escandaliza é ouvir juízes, advogados e até ministros do Supremo reconhecerem que proibir a prisão em segunda instância é ruim para o país, mas acrescentar que eles são a favor disso porque é o que está escrito. Ora, se existem pelo menos duas interpretações diferentes, ambas sustentadas por argumentos sólidos, por que não optar pela que fará o Bem, com bê maiúsculo, à nação?

Leis existem para regular as relações sociais, existem para atender às necessidades DAS PESSOAS. Um juiz tem de estar atento a essas necessidades.

No Brasil, leis lenientes, interpretadas de forma ainda mais leniente, desequilibraram a sociedade. Há uma sensação de impunidade e de desrespeito às autoridades que começa pelo aluno que agride o professor, passa pelo ladrão de carros que leva o nenê que estava no banco de trás e termina no traficante que tem dinheiro para arrastar seu processo STF acima.

Essa nefanda impunidade não é a única causa da insegurança, mas é a maior delas. E sem segurança você não caminha pela cidade, você evita andar de ônibus, você tem de gastar com vigilância e estacionamento, você não frequenta parques e praças, você se tranca em casa e perde a rua. Resolvam os problemas de segurança pública e 60% dos problemas do Brasil estarão resolvidos. Os ministros do Supremo tinham a obrigação de compreender esse clamor do povo brasileiro. E votar pelo certo. Pela lei que promoverá o Bem.

DAVID COIMBRA


26 DE OUTUBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Vendendo a alma ao Diabo

Quando jovem, num momento de desespero, tentei vender minha alma ao Diabo. Estava em um buraco, não enxergava saídas, a vida parecia um túnel angustiante sem fim e sem propósito. Sentia-me enterrado vivo, privado de vislumbre de mudança.

Quando sentimos que nada temos a perder, cometemos os maiores desatinos e foi o que fiz. Ou melhor, tentei fazer. Poupo-lhes dos detalhes sórdidos de como cheguei ao medonho. Mas em uma manhã de inverno, em que o frio de fora combinava com o da minha vida, nos encontramos. Ele se mostrava simpático e solícito, mostrou-me as vantagens e desvantagens da transação, tudo muito profissional.

A questão veio no preço, minhas vantagens seriam uma mixórdia. Teria um reinado minguado, praticamente ridículo. Perguntei-lhe sobre a desproporção e ele foi franco. Disse que eu era uma alma de baixa cotação. Acrescentou: "Você é sem carisma, sem refinamento, sem currículo, sem estilo próprio. Você é um ressentido - isso apreciamos - mas é sem qualificação maléfica. Dado isso, é o que o mercado tem para oferecer".

Quis retrucar, mas ele em poucas palavras fez uma brevíssima síntese da minha história. Era aterrador ouvir, e era tudo verdade. Não havia exagero, não era conversa de vendedor, barganha tola. Tanto que até me aconselhou: "Talvez não seja a hora de te vender, melhor esperar já ter realizado algo, então, quem sabe, daria para conseguir melhores vantagens. Agora não saberia como te aproveitar. Teria que te treinar, e isso é custo".

A humilhação não parava. Demonstrou detalhadamente como não serviria para a linha de frente da maldade por ser frouxo. Faria no máximo um trabalho secundário de retaguarda.

Quase sem voz, perguntei se me indicava um rumo para uma futura melhor classificação. "Informática. Estamos com um pressentimento de que por ali teremos grandes oportunidades para o mercado de ódio."

Ele foi levantando-se, fez questão de pagar o café e deixou uma gorjeta generosa para o garçom.

Como último conselho, já saindo: "Estamos interessados também em desenvolvedores de algoritmos para comportamentos. Faz parte de um projeto maior de desumanização. Tens o meu número, se aprenderes é só ligar".

Não foi um inverno fácil. O que era pior: saber do meu valor insignificante ou que nem o Diabo se interessava por mim?

É uma amostra grátis do inferno sabermos o que valemos e não o que pensamos que valemos. Ou seja, conseguir olhar desapaixonadamente para dentro. Enxergar o pedacinho de nada que somos.

Não voltei a procurar o tinhoso, temo ouvir outra vez meu preço. Mas o encontro rendeu. Crescer é livrar-se da ilusão de sermos talentos desperdiçados, boicotados. Talento e ressentimento não coincidem. Encarar minha desimportância cósmica foi vital. Valeu, Diabo!

MÁRIO CORSO




26 DE OUTUBRO DE 2019

ARTIGO

UM MOMENTO CONSTITUINTE NO CHILE?

Tobalaba chama-se a rua por onde caminhávamos dia desses. Começo parafraseando Gabeira, que, em 1973, caminhava pela Rua Irarrazabal quando pela primeira vez viu um caminhão cheio de cadáveres. A situação de Gabeira, em busca de asilo em uma embaixada, era mais dramática. Eu sou apenas um turista em Santiago que deparou com gás lacrimogêneo. Achei a cena curiosa. Enquanto manifestantes e carabineros confrontavam-se, pessoas em geral seguiam transitando normalmente. Eu não podia imaginar que estava presenciando o início de uma convulsão social comparável apenas àqueles dias em que Gabeira caminhava pela Irarrazabal.

De início, é inevitável a comparação com o Brasil de 2013. Ambos os movimentos não têm comandos políticos organizados e foram deflagrados por aumentos no transporte. Mas as semelhanças param aí.

O movimento brasileiro acabou instrumentalizado por interesses conservadores. A mobilização chilena, por sua vez, parece essencialmente antineoliberal. O Chile, tão aclamado por economistas brasileiros formados em Chicago, não tem sistema público de saúde. Muitos aposentados recebem menos de um salário mínimo. Serviços como água, luz e transporte são caros. É contra isso que as ruas se insurgem. Sugere-se um "novo pacto social", incompatível com o modelo construí- do pelos economistas de Pinochet, também formados em Chicago.

Bruce Ackerman, ao analisar a história dos EUA, sustenta que o país viveu um momento constituinte não apenas na Convenção da Filadélfia, que resultou na Constituição, mas também na Guerra Civil e no New Deal. Embora a Constituição tenha continuado em vigência, a profundidade das alterações promovidas por tais processos os qualifica como momentos constituintes.

No fim de seu governo, em 2018, Bachelet propôs uma nova Constituição. A proposta não teve sequência, e, por ora, não se identifica nas ruas um clamor explícito nesse sentido. Não é difícil constatar, porém, que o modelo neoliberal - que tem amparo na Constituição de Pinochet e no governo de Piñera - está sendo desafiado. O novo pacto social exigido pelas ruas supõe a suplantação desse modelo.

Não é possível prever o desfecho disso tudo. Mas é certo que o país não será mais o mesmo. Ackerman permite-nos afirmar, portanto, que, sim, o Chile vive um momento constituinte. A soberania popular exige um novo pacto. E nesse novo pacto já não há espaço para economistas formados em Chicago.

Procurador da República e especialista em Direito Constitucional jorgemauriciopk@gmail.com
JORGE MAURICIO KLANOVICZ

26 DE OUTUBRO DE 2019
FLÁVIO TAVARES

OS FANÁTICOS


Nada é mais destrutivo do que a visão fanática, que em tudo vê adversários ou inimigos a odiar. O fanatismo é cego e surdo. Ouve sem escutar, olha sem enxergar. Não debate. Só admite o que armazenou na cabeça, tal qual prateleira de supermercado, onde se compra só o que ali está.

Vejamos os fanatismos explícitos da semana. Os absurdos foguetes festejando a derrota do Grêmio no Maracanã desconheceram que o luto caiu sobre todo o Rio Grande, até sobre os colorados como eu. Ou somos gaúchos só na pilcha da Semana Farroupilha?

A audiência pública em que o Legislativo buscou entender as 480 alterações que o governador quer impor ao Código Estadual do Meio Ambiente em votação "urgente" (sem consulta à sociedade) mostrou a miopia que leva ao fanatismo.

Alguns deputados "culparam" o Código Ambiental pelo atraso do Rio Grande nas últimas décadas, como se proteger a vida fosse o caos. Ou como se, num temporal, a ventania viesse dos galhos das árvores (por se mexerem) e a solução fosse amarrá-los?

Em contraposição, a juíza Patrícia Laydner (que, convidada, opinou pela Ajuris com a visão do Tribunal de Justiça) lembrou que o meio ambiente é um bem coletivo indispensável: "O Rio Grande não pode ?crescer? às custas da saúde da população", frisou, explicando o absurdo de alterar o Código às pressas. "Se a lei estiver desatualizada, deve acompanhar a preocupação atual com as mudanças climáticas, mas não vi nada disto na proposta", observou.

Lembrou ainda que, se votadas em urgência, as mudanças podem fazer do Código "uma colcha de retalhos", levando o Judiciário a tudo decidir em futuros conflitos. O deputado Rodrigo Lorenzoni e outros reagiram (quase em fúria) tomando a "colcha de retalhos" como um agravo ao Legislativo, quando a juíza queria, apenas, evitar eventual judicialização da área ambiental?

Por tudo isto, sete ex-secretários estaduais do Meio Ambiente e seis ex-presidentes da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (vindos de diferentes governos) pediram ao governador que retire a "urgência" que muda o Código. Encabeçados pelos ex-secretários Cláudio Dilda e José Alberto Wenzel, lembram que, nos últimos 45 anos, o Rio Grande consolidou forte tradição na área ambiental e que toda mudança deve ter evidências científicas e ampla participação.

Em 1974, ao criar a Coordenadoria de Controle do Equilíbrio Ecológico, o governo Euclides Triches iniciou o caminho que, em 2000, o modelar Código Ambiental consolidou após cinco anos de pesquisas e consultas. Por que abolir às pressas, agora, controles ambientais e facilitar a degradação em nome de falso progresso?

Imitaremos o desdém do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que levou 41 dias para oficializar o plano de emergência no combate ao derrame de petróleo no mar do Nordeste?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

26 DE OUTUBRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

PRAGMATISMO COM A CHINA

Superada a fase inicial de estranhamento, fruto de declarações despropositadas do presidente Jair Bolsonaro ainda na época da campanha, parece que o pragmatismo voltou a prevalecer e brasileiros e chineses caminham para estreitar laços. Na passagem da missão comercial e diplomática pelo gigante asiático, principal destino do périplo pela Ásia, ficou a mensagem de que o país está aberto a fazer negócios que interessem às duas nações.

Se, no ano passado, o então candidato causou mal-estar ao sentenciar que a China estaria mais propensa a comprar o Brasil do que a comprar do Brasil, o discurso preponderante agora por parte do Planalto é de que o interesse maior está no intercâmbio com as principais economias do mundo, sem importar o viés ideológico. No gesto, acerta Bolsonaro, que viajou a convite do presidente Xi Jinping, no momento em que são comemorados os 45 anos do aniversário do estabelecimento de relações entre os dois povos.

Os números mostram, de forma nítida, a relevância da China. É o principal parceiro comercial do país, com trocas que, apenas neste ano, de janeiro a setembro, alcançaram US$ 72 bilhões. No caso do Rio Grande do Sul, a corrente de comércio foi de US$ 4,5 bilhões no mesmo período, com as exportações gaúchas centradas principalmente em soja, celulose e carnes. 

Motivos mais do que suficientes para nutrir um bom convívio com os chineses, que também, nos últimos anos, empreenderam pesados investimentos em território nacional, em áreas como logística e energia. Para o Brasil, o grande interesse imediato é se consolidar como um fornecedor relevante e estável de alimentos, mas também há espaço para imprimir maior cooperação bilateral em outras áreas, como tecnologia, um tema sempre sensível e estratégico.

Os sinais iniciais de tensão no começo do ano, com a chegada de Bolsonaro ao poder, começaram a ser superados com a viagem do vice- presidente Hamilton Mourão, em maio, à China. Foi também um prenúncio de que o Brasil não tomaria publicamente parte no conflito entre Estados Unidos e China. 

Mesmo que Bolsonaro seja um fã declarado de Donald Trump, demonstrar adesão às teses da Casa Branca seria imprudência desmesurada. Afinal, mais cedo ou mais tarde as duas maiores potências do mundo vão voltar a apertar as mãos. E, no mercado mundial de produtos agrícolas, que tem os chineses como principal destino consumidor, são os norte-americanos os grandes concorrentes dos brasileiros.

Na política de relações exteriores do Brasil, o melhor é que a racionalidade, sempre, se imponha. A mesma lógica deve prevalecer na convivência com os vizinhos do Mercosul. A ameaça do Planalto de tirar o país do bloco não pode passar de mais uma bravata.

OPINIÃO DA RBS

26 DE OUTUBRO DE 2019
DUAS VISÕES

Uma vitória do Brasil

Com a aprovação pelo Senado na última quarta-feira da PEC 06/2019, um novo capítulo da Previdência Social brasileira se inicia. Não me recordo na história recente das democracias da existência de pesquisas de opinião favoráveis ou manifestações populares que exigiam uma reforma... da Previdência. Sempre estamos acostumados a ver a população nas ruas exatamente pelo contrário. Ademais, vejamos que a maior reforma constitucional previdenciária já realizada neste país foi feita em apenas 10 meses, isso com dezenas de meios de comunicação e "especialistas" acenando contrariamente. 

O capital político do governo nessa reforma, aprove-o ou não, deve ser ressaltado: muitos tentaram, mas nenhum havia conseguido, mesmo em condições políticas e econômicas muito mais favoráveis. Não sem motivo que os principais veículos de impressa internacional ressaltaram esse importante ponto.

A reforma aprovada visa perenizar um regime que estava fadado ao insucesso em matéria de equilíbrio financeiro e atuarial. O argumento de que serão as pessoas humildes as mais afetadas caiu por terra durante os debates. Sabe-se claramente que as mudanças perpetradas visam exatamente a uma maior universalidade e distributividade, aproximando o regime brasileiro daqueles existentes nos países desenvolvidos e também em desenvolvimento (estes últimos nossos maiores concorrentes). 

A reforma em si tem como objetivo economizar aos cofres públicos (leia-se nosso dinheiro) R$ 800 bilhões em 10 anos. Somando-se aos outros projetos que serão apresentados, mais R$ 270 bilhões serão poupados em um decênio. Mais de trilhão!

O sistema de aposentadorias do Brasil tem característica bastante particular se comparado aos sistemas dos países membros da OCDE. Todos os regimes de previdência pública nos países da OCDE incluem uma idade mínima de aposentadoria, o que não era o caso do nosso país. O sistema brasileiro possui altas taxas de reposição - valor do beneficio previdenciário em relação à renda em idade ativa - e isso ocorre em uma idade muito baixa. 

A expectativa de vida no Brasil está um pouco abaixo da média da OCDE e tal fato não justificaria uma idade média de aposentadoria muito menor. Nos termos em que se encontra, o regime seria financeiramente insustentável e uma reforma profunda foi necessária e inevitável. A reforma da Previdência foi uma vitória de todos, uma vitória do Brasil.

JULIANO BARRA

26 DE OUTUBRO DE 2019
LAGOA DO PEIXE

Ruralista se candidata para chefia de parque nacional

Com a exoneração da agrônoma Maira Santos de Souza do posto de chefe do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no sul do Estado, em 11 de outubro, começou a busca do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) por uma sucessora. E despertou interesse da diretoria o nome de Giovana Sessim Borges, advogada e fazendeira de 51 anos que se apresenta como a segunda maior produtora de arroz e soja de Mostardas, que abriga parte do santuário ecológico.

O início das suas terras, às margens da antiga estrada do inferno, é identificado pela bandeira do Brasil pintada na porteira. Gosta de dizer que o verde e amarelo são sua marca pessoal. Casada e com dois filhos, um formado em Agronomia e a outra morando nos Estados Unidos, Giovana tem cerca de 500 cabeças de ovinos e gado angus espalhadas por 1,8 mil hectares. É um nome com trânsito entre ruralistas e pecuaristas.

Mas, para administrar a unidade, será preciso tratar, também, com os pescadores.Produtores travam com ambientalistas uma disputa histórica pelo uso do parque, cada um com seus interesses na unidade de conservação de proteção integral povoada por mais de 270 espécie de aves migratórias.

Giovana havia se oferecido ao cargo no primeiro semestre deste ano para mediar a discussão, mas acabou preterida pelo ICMBio, que nomeou Maira. A decisão da autarquia federal de afastar a ruralista de 25 anos foi tomada após a Justiça, ao atender pedido do Ministério Público Federal, suspender portaria que a alçava ao cargo: "Não existe qualquer elemento que comprove sua experiência profissional pretérita", diz o despacho.

Em conversas reservadas, Maira reconheceu ter "caído de paraquedas" e demonstrou humildade ao costumeiramente pedir ajuda para contornar situação do dia a dia nas 13 semanas como chefe.

Giovana critica a rigidez das leis ambientais e entende que parte da Lagoa do Peixe deve ser rebaixada de parque nacional para área de proteção ambiental (APA), status com normas bem menos restritivas, inclusive na chamada zona de amortecimento - perímetro no entorno da unidade que requer cuidados ambientais, mesmo sendo particular.

O sistema de conservação proíbe, dentro dos parques nacionais, pesca, pecuária e construção de moradia. Em uma APA, é possível tudo isso, até plantar. Giovana argumenta que os produtores dos arredores usam técnicas de manejo que não afetam o parque:

- Minha formação é em direito ambiental. A vida inteira defendi esse tema, só preciso do apoio da comunidade. Não posso ser punida por ser ruralista.

A reportagem entrou em contato com o ICMBio e o Ministério do Meio Ambiente, mas, até o fechamento da edição, não obteve retorno.

A exigência

Para ocupar o cargo de chefe do parque, a lei exige o preenchimento de pelo menos um dos cinco requisitos. Giovana diz ter quatro. Pela lei, basta comprovar um.

• 1 - Ter ocupado cargo em comissão ou função de confiança em qualquer poder, inclusive na administração pública indireta, de qualquer ente federativo por, no mínimo, um ano.

• 2 - Possuir título de especialista, mestre ou doutor em área correlata às áreas de atuação do órgão ou da entidade ou em áreas relacionadas às atribuições do cargo ou da função.

• 3 - Ter experiência profissional de, no mínimo, dois anos em atividades correlatas às áreas de atuação do órgão ou da entidade ou em áreas relacionadas às atribuições e às competências do cargo ou da função.

• 4 - Ser servidor público ocupante de cargo efetivo de nível superior ou militar do círculo hierárquico de oficial ou oficial-general.

• 5 - Ter concluído cursos de capacitação em escolas de governo em áreas correlatas ao cargo ou à função, com carga horária mínima acumulada de 120 horas.

MARCELO KERVALT

domingo, 20 de outubro de 2019


19 DE OUTUBRO DE 2019
CARTA DA EDITORA

Coragem em cor-de-rosa

Todo ano, nos desafiamos a pensar numa nova abordagem para apresentar um tema tão necessário como o Outubro Rosa. Já falamos sobre as mudanças no tratamento da doença ao longo dos anos, e compartilhamos dicas para melhorar a autoestima durante o período de quimioterapia. Convidamos mulheres que enfrentaram o câncer de mama a escreverem uma carta para elas mesmas às vésperas do diagnóstico. E produzimos um ensaio belíssimo em que as vitoriosas exibiam suas cicatrizes.

Em comum entre todas essas ideias? São as histórias de mulheres como eu e você, que tiveram muita força para buscar a cura e, hoje, compartilham sua batalha para evitar que outras de nós precisem passar pelo mesmo. Mas, desta vez, quisemos ir além. E se contássemos como essas histórias podem ter um final feliz? Afinal, há vida depois do diagnóstico.

De pronto, a repórter Marcela Donini lembrou da história de Alice, que descobriu estar grávida depois de ter ouvido de uma médica que "seus ovários não tinham mais atividade" por conta de uma menopausa precoce, causada pela quimioterapia. Como se vê na bela foto da página 15, a produtora musical espera o filho Miguel, que deve nascer nas próximas semanas. E tem ainda a saga de Débora, que está fazendo um doutorado e se prepara para casar, e da Mariane, que virou triatleta. 

Na nossa reportagem especial, você vai conhecer também a Angela, nossa escolhida para a capa desta edição, que descobriu a paixão pelo crochê durante o tratamento e criou uma marca, a Fiaparia Fios. Para além de realizar o próprio sonho, a empreendedora também contribui com a causa do Outubro Rosa e ajuda outras mulheres que, assim como ela, enfrentaram a doença. E estimula uma corrente do bem: os lacinhos que ela segura na nossa foto de capa serão distribuídos em um evento organizado pela sua marca no dia 30 de outubro, com a presença da oncologista Lídia Longhinoti, do Instituto Kaplan. Anote na agenda: será na Love It (Rua Mariland, 884), das 18h às 20h30min.

Neste Outubro Rosa, fica a lembrança para nossas leitoras: já fez o autoexame? Marcou sua mamografia? Que tal, antes de ler a nossa matéria, parar na frente do espelho e verificar se está tudo bem? Como a Marcela conta na reportagem, as chances de cura são de 95% quando a doença é detectada na fase inicial. Não espere o dia seguinte para ter certeza de que está tudo bem com você.

Boa leitura!

thamires.tancredi@revistadonna.com


19 DE OUTUBRO DE 2019

BEM-ESTAR

O NOVO LUXO

Oluxo mudou. Existe um novo conceito moderno do que é o luxo supremo. Os antenados estão ressignificando não só a palavra, mas as suas atitudes em relação a ela.

A mudança de comportamento nesse novo milênio mostra uma nova consciência no mundo. E toda grande transformação começa quando ocorre uma mudança de valores, e é isso que estamos vivendo.

Aos poucos, mesmo os mais desatentos, os mais conservadores, mesmo os novos ricos, deslumbrados com sua escalada social, vão perceber que o luxo agora é outro. Então, o que significa luxo nessa era moderna contemporânea?

O novo luxo é ter saúde. Liberdade. Tempo. Ter espaço nesse planeta atulhado, ter hortas orgânicas, abelhas, animais livres, água limpa, rios e mares limpos, matas nativas e florestas preservadas, biomas naturais.

E quem pode se dar esse luxo? Quem pode cuidar de sua saúde física, mental, emocional, psíquica e espiritual? Quem pode ter a liberdade de ser o que é, sem se preocupar com a opinião de ninguém? Quem pode ter tempo de fazer o que gosta e gostar do que faz?

Ter tempo de flanar, pensar, se dedicar a observar a beleza das coisas, de criar beleza nas coisas, de descobrir o mundo? Tempo de dançar sozinho, olhar demoradamente um pôr de sol? Cuidar dos bichos abandonados e ter uns bichinhos pra chamar de seus? Tempo de cuidar de jardim e poder plantar muitas árvores?

Tomar um café no fim de tarde e ler um bom livro? Tempo de conhecer, descobrir e amar as pessoas? De poder fazer amor com todo o tempo do mundo? De acordar de bom humor e acreditar que é possível, é sempre possível e que estamos aqui para presenciar pequenos e grandes milagres?

O novo luxo é ter paz de espírito, consciência tranquila, meditar e sentir aquela felicidade que nasce dentro de você, não importa o que aconteça fora.

O novo luxo é saber que para ser feliz temos que desejar que todos possam ser felizes também. Não carregar o peso de sentimentos ruins e pensamentos negativos, mas deixar que eles passem como passam as nuvens escuras pelo céu.

O novo luxo é saber ser gentil com pessoas que você não conhece, com empregados, funcionários, subalternos. Respeitar o outro independentemente de sua posição social, raça, cor ou credo.

Respeitar o ser humano que ele é. O novo luxo é tentar entender quem pensa diferente, quem nos é estranho e saber que violência sempre gera violência e esse beco não tem saída.

O novo luxo é admitir sua fraqueza, perdoar seus erros e se divertir com seus defeitos. Saber que nosso encanto é essa mistura de tudo, muitas vezes confusa e desajeitada, mas sempre tentando ir pelo caminho do bem.

Todos temos falhas, todos fazemos bobagens, dizemos coisas que não queríamos ter dito e saber pedir perdão é sempre libertador.

Uma das conquistas do novo luxo é essa plenitude. O novo luxo é experienciar, vivenciar, aprender. O novo luxo é conhecimento. Uma visão abrangente sobre o mundo em que vivemos e nossa passagem por esse lindo planeta azul.

O novo luxo faz de você um novo ser humano, sua busca é evoluir e ser melhor. Sua busca é ser mais feliz. O novo luxo não é ter: é ser.

Bruna Lombardi escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Monja Coen.

sábado, 19 de outubro de 2019


Como bancar a faculdade

Metade dos alunos não se forma porque não consegue pagar a mensalidade. Bolsa e financiamento são alternativa


Por CLAUDIA JORDÃO

FUTURO Quem financia os estudos paga a faculdade depois de formado

O Brasil vive uma realidade perversa no ensino superior. Com a pouca oferta de vagas nas universidades do governo, 72% dos 3,2 milhões de estudantes estão em faculdades privadas, em geral pessoas que vieram de escolas públicas e com menor poder aquisitivo.

O que poderia ser a esperança de um futuro melhor torna-se um pesadelo por causa do alto valor das mensalidades.

Segundo a pesquisa Os determinantes da freqüência à rede particular de ensino e dos gastos com educação no Brasil, dos economistas Naércio Menezes e Andréa Curi, apenas 52% dos alunos se formam e a principal razão disso é a incapacidade de arcar com a mensalidade. Nas universidades públicas, 76% conseguem o canudo.

A boa notícia é o crescimento dos programas de crédito educativo, tanto públicos quanto privados, o que pode ajudar a reverter este quadro.

Bárbara Gonçalves, 21 anos, é um exemplo típico de estudante que precisa de ajuda. “A minha vida toda dependi de bolsa de estudos”, resume ela.

Bárbara sempre freqüentou escola particular, mas nunca pagou a mensalidade. Na adolescência tinha bolsa integral, que conseguiu através de seu ótimo desempenho nos esportes.

Hoje, no terceiro ano de jornalismo na Unisa, em São Paulo, é bolsista integral do ProUni, programa do governo federal. Ela não paga nada desde o primeiro ano de curso. Mais velha de quatro irmãos, mora com a família e só ela e a mãe trabalham.

Bárbara tem dois empregos: de segunda a sexta é estagiária em jornalismo e, nos finais de semana, faz eventos. No total, recebe R$ 685 por mês. Só a mensalidade de seu curso é R$ 700.

Criado em 2004, o ProUni oferece bolsas de 50% ou 100% da mensalidade, tem convênio com cerca de 1.400 instituições privadas de ensino superior e, em 2008, oferecerá 180 mil bolsas.

As inscrições para o programa acabam esta semana. O bolsista parcial ainda pode financiar 25% do restante do valor da mensalidade pelo Fies, outro programa do governo federal, operacionalizado pela Caixa Econômica.

A partir do ano que vem, será possível financiar a mensalidade integral em cerca de 1.500 instituições credenciadas, com taxa de juros de 3,5% ou 6,5% ao ano, dependendo do curso. Desde que foi criado, em 1999, 457 mil alunos utilizaram o Fies. Assim como o ProUni, para poder participar, o aluno precisa comprovar carência financeira.

Quem não se enquadra no perfil dos programas do governo pode recorrer à iniciativa privada. Reinaldo Barros, 24 anos, é um dos 14 mil alunos que buscaram financiamento para a faculdade no fundo Pravaler, oferecido pela empresa Ideal Invest – que tem como sócio o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga.

Reinaldo queria fazer o curso superior de radiologia, mas, desempregado, não tinha condições de bancar R$ 384,63. Com o pai, um empresário, como fiador, ele obteve crédito e hoje, no primeiro semestre do curso, na Estácio de Sá, no Rio, paga R$ 193 por mês.

Depois de formado, continuará pagando a mensalidade por mais dois anos e meio. “Se não fosse assim, não teria como estudar”, diz ele. O fundo para custear estudos da Ideal Invest foi criado em setembro de 2006 e oferece financiamento com taxas de juros que variam entre 0,5% e 1,5% ao mês. “Não é um programa de bolsas.

Pelo contrário, é necessário que a renda do fiador e do aluno somem no mínimo duas vezes o valor da mensalidade”, explica Oliver Mizne, sócio da empresa.

Ela não divulga a taxa de inadimplência, mas especialistas afirmam que está muito longe dos 23,7%, índice nas faculdades do Estado de São Paulo, por exemplo.

AUXÍLIO Bárbara cursa jornalismo com bolsa do ProUni: a mensalidade é maior que o salário dela

Há também bolsas das próprias universidades, que cobram do aluno formado uma parcela do valor da mensalidade. Reinaldo Moura de Souza se beneficiou de um programa desses, oferecido pela Universidade São Francisco, em São Paulo.

Enquanto trabalhava como motorista do Tribunal de Justiça de São Paulo, ele fez o curso de direito e hoje é o juiz substituto de Ribeirão Preto, em São Paulo. Formado, ainda deve 24 parcelas à instituição de ensino e paga R$ 312 por mês.

“Graças a incentivos como esse que pessoas de classes inferiores conseguem estudar e realizar seus sonhos”, diz Reinaldo. É por histórias como essas que investir em educação vale a pena.

08/02/2008 - 20:14 | Edição nº 508

Um atirador dentro da lei

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra

POLÊMICA
O promotor Thales, entre seus advogados. O caso é delicado e divide o meio jurídico

Há duas maneiras de matar alguém e não ir para a cadeia: quando fica comprovada a legítima defesa ou quando a Justiça falha. Se o réu confesso é promotor, conta com algumas benesses, como fórum especial, porte de arma e salário integral. Pelo menos enquanto não for condenado. É o caso de Thales Ferri Schoedl, de 29 anos.

O jovem promotor admite ter matado a tiros o jogador de basquete Diego Modanez, de 20 anos, no balneário Riviera de São Lourenço, em 2004.

Mas sempre alegou ter disparado 11 tiros em legítima defesa. Como promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE), a função de Thales é fiscalizar o cumprimento das leis. Seu cargo permite que ele ande armado, mesmo em momentos de lazer.

Os tiros disparados por Thales teriam se diluído no cenário da violência entre jovens caso ele tivesse outra profissão. Por ser promotor, Thales colocou em jogo a imagem pública da Justiça brasileira. Se Thales for inocentado, seria por “corporativismo”? Se for condenado, seria em decorrência do clamor popular contra o corporativismo na Justiça?

O destino de Thales tornou-se mais róseo na tarde de quarta-feira 29 de agosto de 2007, em São Paulo. O jogo virou a seu favor. Foi quando o MPE decidiu que ele seria efetivado no cargo, mesmo após o crime. Quando matou Diego, Thales cumpria o “estágio probatório” – período de dois anos em que promotores iniciantes são avaliados.

Ao fim do estágio, em decisão apertada, com 16 votos a favor e 15 contra, o Ministério Público decidiu estabilizar o promotor em seus quadros. Foram invalidados dois pareceres negativos, do Conselho Superior do Ministério Público, que pediam sua exoneração.

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra
A partir da decisão de agosto do ano passado, Thales passaria a dormir mais tranqüilamente. Ele já não teria de enfrentar o júri popular de Bertioga, município do litoral paulista onde fica o balneário Riviera de São Lourenço.

Ele voltaria a trabalhar, a receber um salário de R$ 10.500 (corrigidos em janeiro para R$ 18.009,75) e a portar uma arma. Quando um promotor comete um crime, ele é julgado num foro especial do Tribunal de Justiça, formado pelos 25 desembargadores mais experientes do Estado. Quando matou, Thales ainda não tinha a certeza desse benefício. Passou automaticamente a ter.

Na tarde em que Thales foi efetivado, faixas com as frases “Justiça para o crime da Riviera” e “Pela expulsão do promotor” eram exibidas em frente ao prédio do Ministério Público de São Paulo.

“Pena que eu não vim com nariz de palhaço”, disse Sônia, mãe de Diego Modanez ao saber da vitória de Thales. “Estão colocando a arma de volta na mão dele para tirar a vida de outros filhos. É um absurdo”, disse Fábio Pira, pai do rapaz assassinado.

A decisão, polêmica, deu início a um novo debate no meio jurídico. “Muitos promotores em estágio probatório já perderam o cargo por problemas menores”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo.

Ele cita o caso de uma mulher que deixou de ser efetivada apenas por ter-se divorciado durante esse período. Outro suposto desvio de conduta que impediu a efetivação na promotoria foi um atentado leve ao pudor: o candidato foi flagrado nadando nu. “Thales foi armado à praia, e isso já é motivo suficiente. Acho que foi uma decisão equivocada”, afirma Serrano.

REVOLTA
Os pais de Diego, Sônia e Fábio, hoje vivem em São Carlos, São Paulo, e não aceitam que Thales esteja impune

O procurador-geral do Ministério Público de São Paulo, Rodrigo Pinho, já havia declarado que Thales não tinha condições de seguir na carreira.

Pinho teve de se retratar perante os colegas por ter sugerido que houve corporativismo na decisão de manter Thales no MPE. Procurado pela reportagem de ÉPOCA, o procurador-geral disse que não fala sobre o caso.

Depois de efetivar Thales, o MPE decidiu que ele assumiria a posição de segundo promotor na comarca de Jales, uma cidade de 40 mil habitantes a 585 quilômetros da capital paulista. Só precisava comparecer ao fórum da pequena cidade e começar a trabalhar. Mas isso nunca aconteceu. Até hoje ele não assumiu o posto que lhe fora designado.

A notícia de que Thales Ferri Schoedl substituiria o promotor Herivelto de Almeida espalhou-se por Jales com prodigiosa velocidade. Quando alguém se lembrou de que o pai de Diego Modanez, Fábio Pira, havia jogado basquete pelo time da cidade, entre 1994 e 1995, um sentimento de indignação tomou conta das ruas.

As três rádios davam a notícia sem parar. Elas convocavam os habitantes a firmar um abaixo-assinado repudiando a nomeação do promotor. Moema Passos da Silva, uma aposentada de 72 anos, foi uma das primeiras a articular a reação.

Em pouco tempo, centenas de moradores se dirigiram à Praça dos Jacarés, ponto de encontro da cidade, para assinar o documento. O texto de quatro parágrafos termina assim: “A presença de Thales causará um sentimento de desconforto e intranqüilidade aos cidadãos e famílias de bem”.

Além de Moema, que apareceu em rede nacional de TV como guardiã do abaixo-assinado, o ex-vereador Carlos Cardoso ajudou a espalhar o texto. Cardosão, como é conhecido, tornou-se próximo da família de Diego porque seu filho morou com os Modanez durante seis meses enquanto jogava basquete com Diego. “Não vamos aceitar calados.”

Embora imbuídos de uma atitude legítima, Cardosão e Moema encontraram resistência. Um dos juristas da cidade teria dito ao ex-vereador: “Deixa quieto. O cara vem para trabalhar”. Ressabiado, Cardosão ligou para o filho, que é advogado. “Protestar é um direito da população”, disse o rapaz. Anos antes, ele havia jogado basquete com Diego.

No dia 31 de agosto de 2007, o governador José Serra esteve em Jales para inaugurar uma faculdade de Tecnologia. Era o auge da polêmica, e o governador emitiu sua opinião em público: “Fiquei profundamente triste com essa decisão (da Justiça, de enviar o promotor a Jales). Quero dizer que sou solidário com a indignação da população de Jales a respeito desse assunto”.

A população de Jales, São Paulo, se mobilizou e impediu a ida do promotor para a cidade onde a vítima viveu com os pais
Aos 26 anos, tudo parecia dar certo para Thales Ferri Schoedl. Em um concurso difícil, desbancara mais de 8 mil candidatos para conseguir a vaga de promotor de justiça. Tinha uma namorada bonita e ganhava bem. Seus superiores avaliavam seu trabalho como bom ou ótimo.

Mas ele temia represálias porque aceitara processos polêmicos que envolviam grupos de extermínio e policiais militares. Por isso, fez cursos de manuseio de armas e passou a carregar uma pistola calibre 38. No dia em que sua vida mudou para sempre, Thales não foi trabalhar.

Dirigiu por várias horas, de Iguape, no litoral sul de São Paulo, onde cumpria o estágio probatório, até a Riviera de São Lourenço, onde sua família tem uma casa de veraneio. Iria se encontrar com Mariana Uzores Batoleti, de 19 anos, sua namorada.

Testemunhas da acusação afirmam que Thales havia tentado falar com ela a noite toda, sem sucesso. O celular da moça estaria desligado. Ele chegou à Riviera por volta das 3 horas da madrugada. Passou em casa, onde havia um churrasco. Mariana também não estava lá.

A relação entre Thales e sua namorada é um dos pilares da acusação. Segundo o advogado Pedro Lazarini, Mariana provocava Thales em público. Um dos depoimentos mais explosivos é o do dono de uma boate que Thales freqüentava na Riviera, chamada Los Gringos. Jacques Bonhomme, que conhece o promotor desde que ele era adolescente, afirmou em juízo que Mariana “é uma menina que põe fogo em Thales”.

Jacques disse ainda que o promotor se envolvera em dois “bate-bocas” na casa noturna e quase brigara com outros rapazes porque Mariana reclamou do assédio deles.

Segundo Jacques, ela se apresentava como “a namorada do promotor”. Meses depois da noite do crime, o casal terminou o namoro. No depoimento de um policial militar que patrulhava a portaria da Los Gringos, Thales é retratado como “boca dura”, briguento e alguém que vivia se envolvendo em confusões. Segundo o PM, Thales manuseava a pistola automática em público e fazia valer sua posição.

Naquela noite, Mariana havia ido até a boate Los Gringos. Sem Thales. O promotor só a encontraria mais tarde, perto de um local onde acontecia um luau com mais de mil pessoas. Juntos, os dois atravessaram uma praça rotatória em direção ao carro de Thales. Havia ali duas viaturas da Polícia Militar e duas da vigilância particular do condomínio.

Centenas de jovens ouviam som ao redor de carros estacionados. Eram 4 horas. Alguém se dirigiu a Mariana. “Gostosa”, teria dito. Thales diz ter exigido respeito. Testemunhas afirmam que o casal começou a brigar. Foi quando Diego Modanez e Felipe de Souza se aproximaram.

A partir desse momento, as versões diferem. De acordo com a defesa, os dois jogadores de basquete, com mais de 2 metros de altura, estavam entre os que haviam faltado com o respeito. Teriam desafiado Thales. A acusação afirma que Diego e Felipe somente pediram calma ao casal. Thales teria sacado sua arma e se identificado como promotor de justiça. Diego e Felipe se afastaram.

“Guarda essa m...”, teria gritado Mariana. Um grupo de dez rapazes então começou a gritar: “Você é ‘promoter’ de balada! Sua arma é de brinquedo!”. A defesa diz que Diego e Felipe se destacavam à frente da turma. Segundo a acusação, Diego e Felipe, de costas, se afastaram da confusão. Foi então que Thales teria dado tiros de advertência, para o chão e para o alto. A perícia balística não encontrou nenhum projétil no solo.

REAÇÃO
A aposentada Moema, em Jales, com uma das faixas usadas nos protestos

Depois dos primeiros tiros, Thales foi acuado e perseguido. Uma testemunha afirma ter ouvido gritos de “Mata, mata!”. Para a acusação, Diego e Felipe tentaram segurar o braço de Thales para evitar que ele atirasse. Os advogados de Thales dizem que ele só atirou, em legítima defesa, quando foi encurralado e depois que Felipe agarrou seu braço.

Um laudo da perícia mostra ferimentos no braço direito de Thales, Rodrigo Bretas Marzagão. A acusação afirma que ele atirou de cima para baixo, quando as vítimas já estavam caídas.

“Na verdade, foi o Felipe quem provocou tudo”, diz o advogado de Thales. “Tomou um tiro na perna, não parou; outro no braço, continou avançando.” No desfecho, Diego e Felipe se contorciam, caídos no chão. Felipe fora alvejado quatro vezes: nos braços, na perna e no peito. Diego, atingido por duas balas, no braço e do lado direito do peito, morreu por ter perdido muito sangue. No total, Thales disparou 11 tiros.

A acusação afirma ter o testemunho de um dos guardas do condomínio, segundo o qual Thales teria apontado sua arma, ainda com uma bala, para o rosto do vigia antes de fugir de carro. Mariana entrou numa ambulância dizendo-se parente de Diego.

Thales foi preso na casa dos pais, já de manhã. “Era um garoto apavorado”, disse Alberto Corazza, diretor do Departamento de Polícia Judicial da região de Santos.

Às 5 horas daquela manhã, o telefone tocou na casa de Sônia e Fábio Pira, em São Carlos, no interior paulista. Ficaram sabendo que o filho Diego estava no hospital.

Hoje, o casal diz que só consegue dormir à base de tranqüilizantes. Sobre a mesa da sala, uma pilha manuseada de jornais e revistas sobre o caso. Quando foi a Jales participar de uma moção de repúdio à nomeação de Thales votada pela Câmara Municipal da cidade, Sônia ficou surpresa. “Todo mundo queria me tocar”, disse ela sobre a solidariedade que recebeu.

Quem conviveu com Diego diz que ele era incapaz de brigar. “Podem procurar alguma história ruim”, diz dona Sônia. “Se tivesse, alguém já teria encontrado e transformado em prova contra meu filho.” Sobre Thales, ela diz simplesmente: “É um monstro. Gostaria de olhar dentro dos olhos dele.

Quero que ele me peça perdão pessoalmente”. Fábio, o pai, sente que lhe falta um pedaço. “Antes, eu colocava a mão aqui e sentia meu peito. Agora, a mão atravessa.” Bruno, irmão de Diego, que deveria se apresentar à seleção brasileira juvenil de basquete logo depois da morte do irmão, perdeu dois anos da vida para a depressão. Hoje, está nos Estados Unidos. Jogando basquete.

No dia 3 de setembro de 2007, o procurador Nicolao Dino pediu a suspensão temporária da decisão de efetivar o promotor na carreira.

Foi a primeira vez, desde sua criação, em 2004, que o Conselho Nacional do Ministério Público interferiu numa decisão estadual de concessão de cargo vitalício a um promotor. Seu caso ilustra o choque entre duas instituições: o Conselho Nacional do Ministério Público e o Tribunal de Justiça de São Paulo.

Apesar do status de promotor de Thales estar suspenso pelo Conselho, o processo criminal contra ele continua correndo no Tribunal de Justiça. Caso o Conselho decida expulsá-lo, o julgamento que corre em São Paulo perderá a validade – Thales será então submetido ao júri popular de Bertioga. Se isso acontecer, a decisão final caberá ao Superior Tribunal de Justiça, os guardiões da Constituição Nacional.

A qualquer momento, o Tribunal de São Paulo pode convocar o julgamento. O processo já está sendo lido pelos revisores. Os conselheiros de Brasília estão perto de chegar a um consenso sobre a carreira do promotor.

Enquanto isso, Thales faz pós-graduação. Tem sonhos. Mesmo sem trabalhar há três anos, ganha R$ 18.000 por mês. E diz que, “graças a Deus”, tem recebido solidariedade de muitas pessoas. No dia 21 de maio, festejará 30 anos.

5 perguntas para Thales Schoedl
O promotor afirma ter agido em legítima defesa, diz que atirou contra a vontade e conta como essa decisão afetou sua vida
Você se arrepende do que fez?
Posso lhe dizer que, embora tenha convicção de que agi em legítima defesa e que minha conduta salvou a minha vida, eu lamento muito o que aconteceu.

O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre o caso e que, em sua opinião, ainda não sabem?
Que os disparos não ocorreram porque mexeram com a minha namorada, mas sim porque, após esse fato, aquele grupo de pessoas, incentivado por uma multidão que gritava para me matar, correu atrás de mim, iniciou as agressões e tentou tomar a minha arma, momento em que fui obrigado a atirar, contra a minha vontade, para salvar a minha vida. Tudo isso está no processo, relatado por várias testemunhas.

De que forma a repercussão pública do caso mudou sua vida?
Eu estou terminando um curso de pós-graduação, mas tem sido muito difícil não poder realizar o trabalho que eu amo, na Promotoria de Justiça. Claro que por conta da repercussão do caso eu tenho receio de freqüentar lugares públicos, mas graças a Deus eu só tenho recebido solidariedade das pessoas, pois hoje muita gente conhece a realidade dos fatos, de acordo com o que consta no processo.

Existe algum conflito em ser promotor depois de ter matado em legítima defesa?
Não penso em outra profissão. Ser promotor de justiça sempre foi o meu sonho, e eu lutei muito por isso.

Como eu já disse, é a profissão que eu amo. Não vejo problemas em um promotor de justiça que agiu em legítima defesa continuar atuando, mesmo porque legítima defesa não é crime e pode acontecer com qualquer pessoa.

Você fez cursos para manejar armas de fogo? Teve de usar a arma antes?
Sim, fiz dois cursos, um no Exército e outro no Barro Branco, promovido pela APMP, mas nunca havia utilizado minha arma de fogo em outra situação.

Fotos: Alex Silva/AE, Pisco Del Gaiso/ÉPOCA (2)