terça-feira, 28 de abril de 2015


28 de abril de 2015 | N° 18146
CARPINEJAR

O mistério do cofre de meu pai

Meu pai tinha um cofre. Ficava atrás de um quadro do Vasco Prado, em nossa antiga casa na Rua Corte Real, em Porto Alegre (RS).

Ninguém conhecia a senha, a não ser ele.

Ninguém enxergava o que ele colocava lá.

Imaginávamos maços de dólares e sacos de cruzeiros. Imaginávamos, eu e os irmãos, que ele alimentava uma montanha de moedas do Tio Patinhas. Que usava uma pá para tirar o excesso e nos repassar a mesada que gastávamos com balas Xaxá no armazém da esquina.

Quando ele mexia no esconderijo, não podíamos permanecer perto. Chamava a nossa mãe para nos levar embora. Era uma questão de segurança.

Um dia, o Rodrigo apareceu com estetoscópio de médico para ouvir o que tinha dentro. Outro dia, o Miguel bateu com um martelinho para verificar a profundidade do fosso. E ainda teve um dia em que a Carla arriscou uma combinação a partir da data de aniversário do pai, não deu certo e quase fomos pegos.

O segredo durou minha infância inteira. Até nossa residência ser assaltada enquanto veraneávamos em Pinhal (RS).

Assaltantes entraram pela janela do banheiro. Entortaram as grades. Levaram a televisão preto e branco e grande parte dos eletrodomésticos.

Ao voltar da praia, meu pai – percebendo a casa depenada – correu em direção ao escritório. Aproveitamos o desespero para ir atrás. Não seríamos impedidos naquela hora trágica.

Largamos as malas no meio do corredor e seguimos a sombra paterna.

O cofre está escancarado. A porta de metal finalmente aberta, estouraram o disco de acesso.

O pai pôs, com extremo cuidado, sua mão no interior do quadrado na parede. Lembro o suspense, a minha respiração parou.

E trouxe do fundo do buraco seis espirais, seis cadernos amarelados.

– Ufa, não levaram!

Carla, a irmã mais velha, perguntou o que era aquilo, pois aquilo não era dinheiro.

– Meus livros de poesia! – o pai respondeu.

Ele usou o cofre para guardar o que possuía de mais precioso: sua obra inédita.

Antevejo a decepção dos ladrões ao puxar um amontoado de versos. Tanto trabalho para explodir o cofre e só acabariam mais cultos e ricos de espírito.

Mergulhamos em estado de choque. Tampouco cogitávamos a hipótese de ser algo diferente do que uma poupança.

O episódio transtornou o meu modo simplista e direto de entender as pessoas. Cada um tem sua fortuna misteriosa. Algo que é somente valioso pelo sentimento e que não tem como ser valorizado por quem é de fora: um brinco dado pelo marido, uma compilação de receitas herdada da avó, um álbum de figurinhas, uma caneta tinteiro, uma camisola.

Não menosprezo os objetos da casa dos outros. Não jogo nada fora que não seja meu. Toda recordação pode ser de amor, e o amor é um cofre onde nos protegemos do esquecimento.


sábado, 25 de abril de 2015


26 de abril de 2015 | N° 18144
MARTHA MEDEIROS

Os Largados

Sem computador, sem televisão e sem bateria

no celular, me restou o ato heroico de ler um livro

Antigamente eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, de um fôlego só. Por sorte, Os Largados, do italiano Michele Serra.

Divertir e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos, come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.

Enquanto o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a acompanhá-lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e Velhos. E é aí que Os Largados diz a que veio.

É só olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta, mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos – ou discutíamos, brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum.

Não é mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação – a suspeita? o terror? – de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos reconhecer, você e eu, no mesmo prazer”. E continua: “Partiu-se uma corrente – da qual eu sou o último elo”.

A questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica zonza e por vezes até paralítica diante das variadas opções disponíveis de sexo, amor, carreira?

Estão 100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não, o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado, mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se apresentar.


Leia, porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro, continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer circunstância. O cérebro não cai.

26 de abril de 2015 | N° 18144
CARPINEJAR

Noiva cadáver

Fingir felicidade é mais amargo do que a tristeza. Um veneno para almas sensíveis durante uma separação. Fui numa festa na Woods, em Porto Alegre. Sertaneja e à fantasia, ou seja, com todos os ingredientes para me sentir deslocado. Não tinha como demonstrar euforia.

Poderia rir com a boca, não com os olhos, que é o meu riso mais verdadeiro. Poderia rir como quem ri para tirar uma fotografia (obedecendo ao x), não como quem ri observando sua amada (admirando o y).

Entre gladiadoras, policiais, branca de neve e indígenas, o que mais vi foi noiva cadáver. Não se trata de uma fantasia, mas um estado de espírito, um matrimônio doentio com o lado escuro do amor.

Representavam mulheres recém separadas que forçavam a barra de sua alegria, estavam mais interessadas em se vingar do ex com fotos no instagram ou marcações no Facebook, estavam desesperadas procurando uma porta de incêndio da sua fossa com beijos fáceis ou sexo louco.

Falei com uma guria na escada, e ela terminou a relação há duas semanas. Falei com outra na frente do bar e ela encerrou um romance há um mês. Falei com mais uma fantasiada na fila do banheiro e ela lamentava o fim de seu namoro na semana passada. Entrei num camarote com cara de purgatório, penadas peladas. Aquela nudez proposital não me convencia. Os cílios postiços escondiam o caminho das lágrimas.

Elas não se movimentavam com a liberdade das palavras. Suas pulseiras brilhantes da casa noturna lembravam algemas de casos mal resolvidos. Ostentavam um contentamento fictício, que é diferente de ser feliz.

Não achariam ali sua solução, seu remédio. Tampouco desejavam trair o amor despedaçado, confinadas nas lembranças dos seus antigos pares. Por mais que rebolassem e se agachassem nas grades, o que se notava com nitidez é que berravam as músicas de dor de cotovelo. Conheciam vírgula por vírgula, como quem pede socorro. Eram mulheres casadas por dentro fingindo solteirice por fora.

No luto, o melhor é ficar em casa. O melhor é destruir um pote de sorvete e assistir a um filme romântico de pijama. O melhor é se tocar em segredo debaixo das cobertas, depois do choro. O melhor é não conferir o espelho e repetir os lamentos para os melhores amigos. O melhor é desaparecer para se acostumar com o fim ou reencontrar o início.

Jamais se violentar socialmente buscando ser agradável. Jamais chamar vítimas para ocupar o próprio lugar. Jamais tripudiar o que aconteceu de errado com novos pretendentes.

Jamais trazer para perto quem não tem nada a ver com sua angústia.

Reparar, enquanto é tempo, que você ainda está contaminada, ainda está reagindo à separação, ainda quer provocar atenção do ex, ainda vem conversando com os problemas do passado.

Não se envolva com rapidez para aumentar a culpa: quantos corações você precisa destruir para refazer o seu?


O ímpeto de sair de qualquer jeito do sofrimento lhe fará sofrer muito mais.

quarta-feira, 22 de abril de 2015


22 de abril de 2015 | N° 18140
MARTHA MEDEIROS

FORÇA MAIOR

Vou contar o início do filme Força Maior. Não é spoiler, pois esta cena importante, que desencadeia todo o resto, já foi comentada em outras resenhas, mas é melhor avisar.

Uma família convencional (mãe, pai e um casal de filhos pequenos) vai passar seis dias esquiando nas montanhas. Na manhã do segundo dia, estão num avarandado ao ar livre, almoçando, quando percebem uma pequena avalanche na montanha em frente. Em princípio, tudo bem, são comuns as avalanches controladas, mas esta parece ligeiramente descontrolada, até que, por precaução, as pessoas em volta começam a se levantar das mesas, ouvem-se gritos e então o caos se instala: tudo indica que a neve soterrará a todos.

Diante do perigo súbito, o pai pega seu celular e corre para longe. Deixa a esposa e as duas crianças para trás, que se agacham e esperam pelo pior – mas nada acontece. Ou acontece?

O pior, no caso, seria um acidente com mortos e feridos, mas não: apenas uma névoa seca cobriu o ambiente e logo todos voltaram a seus lugares. O pai retorna a seu assento e a família prossegue com o lanche, mas dali em diante nada mais será igual, pois aconteceu, sim, o pior. Aquele pai fez o que não se espera de seu papel tradicional: fugiu sem pensar em mais ninguém.

A maneira como o filme foi dirigido faz a gente sentir uma angústia similar à de cada membro da família. Ninguém mais sabe como deve se comportar. Tudo era tão certinho entre aqueles quatro, as “avalanches” emocionais eram sempre tão controladas, e, de repente, a descoberta: pessoas seguem impulsos, têm ímpetos, se desgovernam.

Poderíamos reduzir o filme a uma questão trivial: os homens não seriam tão protetores quanto as mães, mas isso é uma falácia. O que o filme mostra é que criamos um padrão de comportamento que sustenta nossas emoções, e nos desestabilizamos quando esse padrão é quebrado.

Em uma cena significativa, a mãe conversa com uma turista que está no mesmo hotel e que, apesar de casada e com filhos, está viajando sozinha e tem algumas aventuras sexuais com outros hóspedes. São duas mulheres com visões antagônicas sobre o casamento – uma é conservadora, a outra, extremamente liberal –, mas o que poderia ser uma simples troca de experiências descamba para uma cobrança raivosa. A mãe não consegue disfarçar sua perplexidade (e uma pontinha de inveja, suponho) diante daquela estranha que se permite viver de forma tão livre, arriscando perder seus afetos. De que, aliás, a outra discorda, pois acredita que é justamente a honestidade em relação a seu desejo que fortalece seus vínculos.

Não temos domínio sobre ninguém, e o domínio que temos sobre nós mesmos é relativo. O que o filme deixa claro como a neve é que, se queremos tanto nos sentir protegidos, um bom começo seria aceitar que estamos deslizando em meio ao risco o tempo todo. Incluindo o risco de agirmos como nunca imaginamos.


sábado, 18 de abril de 2015


19 de abril de 2015 | N° 18137
MARTHA MEDEIROS

Camarim

O que eu menos queria naquele momento era comer, mas e a desfeita?

E o desperdício?

Como se sabe, escritores são convidados a palestrar em Feiras do Livro, Bienais e demais eventos literários. É uma forma de passar nossa experiência adiante, de estimular a leitura, de conhecer os leitores e de faturar um cachezinho, já que também pagamos contas.

Trilhei o Estado e boa parte do país realizando esses encontros, porém hoje quase não viajo a trabalho: preciso ficar mais tempo em casa escrevendo, as demandas aumentaram. Mas, de vez em quando, abro exceções, como quando estive numa cidade do interior do Rio. Tinha mesmo que ir para a capital, então dei uma esticada. Tudo certo, até que, dias antes de eu embarcar, a organização do evento me enviou um e-mail pedindo que eu fizesse as exigências de camarim.

Como é que é? Por alguns segundos, me senti o Axl Rose. A Lady Gaga. Me vi diante daqueles espelhos circundados por lâmpadas e elaborei mentalmente uma lista básica: champanhe brut, queijos franceses, bombons trufados, patê de foie gras, torradas italianas e Coca-Cola com meu nome no rótulo, ou nada feito. Acordei do transe com minha própria risada.

Respondi: olha, nem imaginava que haveria um camarim, mas, havendo, ficaria feliz com um banheiro e água mineral. Muito grata, até breve.

Eu não sabia, mas o bate-papo seria no sambódromo local. Havia centenas de pessoas me aguardando. Fui conduzida ao camarim por guarda-costas. Tinha alguma coisa errada: será que me confundiam com a Rihanna? Atravessei um longo corredor no backstage e por fim abriram uma porta com uma estrela dourada, como nos filmes.

Ao entrar, me deparei com uma mesa que humilharia nossos cafés coloniais. Nunca vi quantidade igual de frios, pães, salgadinhos, cachorrinhos, sanduíches, cupcakes, minipizzas, canapés, amanteigados. E, no centro, um grande pote de vidro repleto de MM´s coloridos. Lembrei da banda Van Halen, que sempre exige MM´s antes dos shows, só que sem a casquinha que reveste o chocolate. Os meus tinham a casquinha, era a graça da coisa. Guloseimas com monograma.

Tive vontade de chorar. O que eu menos queria naquele momento era comer, mas e a desfeita? E o desperdício? Havia umas quatro pessoas esperando eu avançar, incluindo um fotógrafo. Alcançavam guardanapos e sugeriam: comece por este, não deixe de provar o folhado, esse bolinho foi minha tia que fez, aquele papo-de-anjo é o predileto da prefeita.

Minha conversa com o público durou uma hora e meia, e passei o tempo todo aflita com um miolinho de pão que teimou em se instalar entre o incisivo e o canino superior. Essa coisa de escritor ser tratado como astro pop, convenhamos, é meio constrangedor. Mas, por via das dúvidas, incluirei na minha próxima lista uma dúzia de escovas de dente. Com cerdas de nylon ultra soft e de alguma marca dinamarquesa, pra não me mixar.



19 de abril de 2015 | N° 18137
FABRÍCIO CARPINEJAR

Homem ideal

A mulher tem implicância com o homem engraçado, diz gostar mas não aguenta. Tem repulsa do piadista, aquele que desfia seu repertório de piadas depois de um almoço ou janta, transforma seus dentes num palco iluminado e mergulha num stand up de duas horas.

Mulher prefere quem entende o momento de rir e de ser sério e não demora demais nem num espírito, nem no outro. Espera versatilidade e pontualidade, que veja a hora de ser leve ou solidário, de modo nenhum alguém que invente comédia e force bom humor quando ela está sofrendo.

Deseja mesmo o gracejo, não o sorriso escancarado de chorar. A mulher reserva a gargalhada para seus amigos, já para seu namorado anseia rir com o rosto, rir bonito, não rir de qualquer jeito.

Complicado corresponder às expectativas femininas. É preciso definir um ponto de equilíbrio. Não encarnar um extremo, mas compor sutilezas dentro do comportamento.

Homem tem que ter firmeza, não força. Demonstrar segurança em suas ideias e atitudes, não necessariamente ostentar músculos e barriga tanquinho. Virilidade vem da determinação, surge do caráter. Carregar a alma de uma mulher é mais difícil do que levá-la nos braços pela casa.

Homem tem que ser corajoso, não confundir com precipitação. Coragem é sequência, manter a vontade imperiosa de amar, apesar das dificuldades e senões. Jamais desistir no primeiro obstáculo.

Homem tem que ser romântico, não desesperado. Surpreender e se declarar como se fosse simples e natural, evitando a soberba da emoção e o autoelogio.

Homem tem que ser sincero, não grosseiro. Pontuar a verdade olhando nos olhos e sempre perguntando como sua companhia vê a situação. Decidir junto enquanto é dúvida, não relatar o que já foi feito.

Homem tem que ser sensível, mas não chorão. É se emocionar sem ocupar o papel central, flertar a tristeza com muita alegria, como faz o samba, e não exagerar na tinta de suas lágrimas.

Homem tem que ser compreensivo, mas não submisso. Ouvir, entender e se posicionar, ainda que provoque discordância.


Homem tem que ser sexy, mas não performático. Não invente de fazer um strip-tease e pole dance. Estragará toda a reputação construída ao longo deste texto.

quarta-feira, 15 de abril de 2015


15 de abril de 2015 | N° 18133
MARTA MEDEIROS

Amor a distância

Homens e mulheres têm viajado pra lá e pra cá e, mesmo quando em casa ou no trabalho, não param de se comunicar com nativos de outras cidades através das redes sociais. Logo, é natural o incremento de parcerias amorosas entre pessoas que residem a quilômetros umas das outras. O par protagonista do filme Ponte Aérea, que estreará amanhã em Porto Alegre, é só mais um entre tantos. Ela, interpretada por Leticia Colin, mora em São Paulo, e ele, vivido por Caio Blat, no Rio. Considerando o tamanho do planeta, praticamente vivem a uma esquina de distância.

No entanto, o ótimo e delicado filme de Julia Rezende vai além desse pequeno inconveniente geográfico. O que vemos na tela é o retrato da fragilidade das relações numa era em que todos estão ocupados demais para se entregar a alguém. O casal do filme é jovem, ambos estão em início de carreira e, segundo a diretora, são representativos de sua geração: fazem mil coisas ao mesmo tempo, atuam em todos os canais e mídias possíveis, querem engolir o mundo, mas morrem de medo de ser engolidos por ele.

Afinal, com tantas solicitações, compromissos, projetos e alternativas, sobrará tempo para se dedicar a um envolvimento profundo?

Não sei se esta é uma questão só dos jovens. Hoje, entre os avulsos de todas as idades, existe o mesmo pé atrás. Os solteiros que nunca foram casados antipatizam com a ideia de se amarrar sem antes fazer um test drive em todas as outras opções possíveis – o que levaria umas três vidas, por baixo. E os solteiros que já passaram por uma ou duas uniões estáveis e já viveram seu “eterno enquanto dure” não morrem de amor pela ideia de ter que voltar a prestar contas, negociar, conceder, programar, comprometer-se.

Virou exagero se doar. A ordem agora é se emprestar. Toma aí um pouquinho de mim, mas me devolve.

Resultado? Um sem-número de relacionamentos a distância, mesmo o casal sendo vizinho de bairro. Os dois sentados à mesma mesa, mas cada um teclando seu smartphone. Os dois saindo de férias, mas cada um para um destino diferente. Os dois com problemas, mas sem disposição para conversar a respeito. Os dois com muitos planos, mas sem nenhuma intenção de abrir mão do seu sonho em função do sonho do outro. Os dois com dúvidas, mas sem reparti-las para não ter que se explicar muito. Os dois juntos, mas não por inteiro, que nada mais é inteiro, tudo é fragmentado.


É uma contingência dos novos tempos, reconheço, mas não impede que a relação evolua. Que o namorico, a ficada, o rolo, o lance, o caso, a pegação se transforme em amor. E amor a gente não empresta, entrega de bandeja. É quando a distância deixa de existir. Mesmo um lá e o outro acolá, ela será suprimida por algo que verdadeiramente unifica: vínculo.

sábado, 11 de abril de 2015


12 de abril de 2015 | N° 18130
MARTHA MEDEIROS

ZZZZZZZZZ

O sono profundo talvez seja uma recompensa apenas aos que se esgotam em viver bem

Durmo bem, mas apenas seis horas por noite. Gostaria que fossem mais. Como você é bom de matemática, já fez as contas: se adormeço às 23h, acordo às 5h. Se adormeço às 23h30min, acordo às 5h30min. E o que faz uma pessoa que acorda às 5h30min? Fica tentando dormir um pouco mais e às vezes até consegue uma cochilada extra, mas o corpo e a mente já descansaram o suficiente e querem sair logo da cama para mostrar serviço. Acordar cedo é um hábito saudável, reconheço, mas inclusive nos fins de semana e feriados?

Deixei de reclamar depois que li Sono, do celebrado escritor japonês Haruki Murakami, que entre outros livros escreveu Do que eu falo quando eu falo de corrida. Com sua prosa seca e objetiva, agora ele conta a história de uma mulher que, de uma hora para outra, deixa de dormir. E não sente falta. Está há 17 dias sem pregar o olho e tinindo.

De certa forma, um terceiro turno acordado é tudo o que sonhamos, já que tempo virou artigo de luxo. Não seria uma bênção ter oito horas a mais no dia, todos os dias? Imagine. Oito horas sem tráfego, sem barulho, sem compromissos – e sem fadiga. Oito horas a mais para desenvolver um hobby, para pedalar por ruas vazias, para o sexo, para organizar gavetas, para testar receitas, para ouvir música, para olhar para o teto, oito horas para o que bem entender. Menos dormir.

É possível que, se tivéssemos essas hipotéticas horas suplementares, as gastaríamos nas redes sociais, bisbilhotando o Facebook dos outros, dialogando com outros insones, compartilhando vídeos, fotos e textos que falam por nós. Ou seja, daríamos continuidade ao isolamento a que nos autoimpomos desde que nos viciamos no contato online.

Mas a fictícia personagem de Sono não cai nesta. Usa suas horas noturnas para reler romances que já havia lido anteriormente, mas que não havia prestado atenção. Agora, no silêncio de sua nova condição de zumbi e a fim de se reconectar consigo mesma, ela percebe nuances que nunca havia percebido nas histórias – e, junto, descobre o real sentido da palavra concentração.

Chegaremos a esse ponto de precisar de um terceiro turno insone para nos mantermos despertos para o que verdadeiramente importa? Francamente: não dormir é um pesadelo. Precisamos dormir. O corpo precisa. A mente precisa. Por que será que 16 horas alertas não têm nos bastado?

O livro é de uma simplicidade perturbadora. Termina de forma enigmática e deixa reflexões no ar. De minha parte, fiquei com a sensação de que as pessoas não estão descansando à noite porque não estão se cansando de dia com coisas que valham a pena – apenas cumprem tarefas enfadonhas e à noite se culpam pela maneira como estão desperdiçando seu tempo. O sono profundo talvez seja uma recompensa apenas aos que se esgotam em viver bem.



12 de abril de 2015 | N° 18130
FABRÍCIO CARPINEJAR

Caixão pequeno

Ele me confidenciou um segredo dentro do bar 512, na Cidade Baixa, que sua ex nunca soube.

Antes das férias, a então namorada comentou que passou diante da vitrine de uma joalheria e quase escolheu alianças para renovar os votos da convivência. Ele transformou o quase em certeza. Só que estava magoado com ela, porque descobriu que sua companhia mentira durante muito tempo, logo ela que dizia não admitir deslealdade olhando nos olhos, logo ela que argumentava que mentir era pior do que agredir fisicamente.

Na véspera da viagem, ele comprou um anel de noivado vintage, de ouro branco 18k, cravejado de pedras. Experimentou no seu menor dedo, o que tinha exatamente o tamanho do dedo dela. Pois temos, entre os nossos dedos, o dedo de nossa mulher.

Demonstrava confiança que, no descanso alegre e romântico, seu par seria arrebatado pela sinceridade e corrigiria seus erros. Sem nenhuma pergunta. Sem nenhuma pressão.

Acreditava que era uma fase ruim, acreditava que ela poderia mudar, que poderia nascer de novo na paixão (a paixão é o renascimento constante do amor).

Ele carregou a caixinha preta aveludada em sua mala, escondida no forro interno. Esperava a chance de oferecer a joia e consagrar a sinceridade.

Quando ela ensaiava declarações, quando puxava o fio da memória, ele tentava criar um jeito de pegar o anel e disfarçar sua existência. Saía por um minuto e já voltava. Nunca foi tanto ao banheiro imaginário.

Carregou o anel no bolso da calça, do casaco, na sacola de praia, na capinha do celular, em todos os esconderijos, para que ela jamais descobrisse.

Sofro ao imaginar seu desgaste prestando atenção aos desdobramentos dos diálogos, soletrando a boca de sua mulher a cada frase, tentando se antecipar ao momento da confissão.

Quantas vezes ele buscou o presente, eufórico, e guardou de novo, abatido? Quantas noites ele não dormiu sonhando com a reparação? Quantas vezes ele acordou, esperançoso, e se despediu do mar, amargurado? Quantas vezes pescou a sereia da transformação e não obteve o brilho da verdade?

Ao longo do verão, ele rezava em silêncio. Simplesmente porque era otimista e a amava demais. Era otimista porque a amava demais.

Mas não aconteceu um final feliz e, pior, ela mentiu de novo. E jamais se retratou. E jamais pediu desculpa.

O anel ficou como uma pérola confinada na ostra e levada para longe pela maré do infortúnio.

Não era um porta-joias, e sim um caixão. Escuro como um caixão. Lacrado como um caixão.


Um caixão pequeno para o amor imenso daquele homem.

quarta-feira, 8 de abril de 2015


08 de abril de 2015 | N° 18126
MARTA MEDEIROS

Wimbelemdon

Em meio ao nosso descrédito com o país, vale destacar uma ONG que é da maior relevância e que merece o nosso apoio: o projeto Wimbelemdon, do Marcelo Ruschel.

Há 15 anos, Marcelo sustenta uma área em Belém Novo voltada para meninos e meninas em estado de vulnerabilidade social que são reintegrados à comunidade através do tênis. Além de praticarem o esporte, eles têm aulas de matemática, português e inglês, e também oficinas de leitura e cinema.

Quando completam 18 anos, são desligados do grupo, porém encaminhados ao mercado de trabalho. O projeto, além de ter ganhado vários prêmios internacionais, tem o apoio de Guga, Meligeni, André Sá, Thomas Koch, entre outros expoentes do tênis brasileiro, e tal é a expansão de suas conquistas que já alcançou a admiração também de Nadal e Federer.

Só que tem um probleminha. O terreno onde está a sede da escola foi colocado à venda, e se for parar em outras mãos, Marcelo terá que recomeçar do zero. Ele não tem condições de, sozinho, bancar essa compra, já basta o que investe para manter o projeto funcionando. Então lançou uma campanha de financiamento coletivo (crowdfunding) chamada Fixando Raízes, em que pretende sensibilizar a população para a causa.

É preciso arrecadar R$ 400 mil até o final de junho. O país está paralisado diante das incertezas da nossa economia e os empresários puxaram o freio de mão. Então, que tal a gente mesmo ajudar? Ao abrir a página da campanha (www.kickante.com.br/campanhas/fixando-raizes-wimbelemdon), basta clicar em “quero contribuir”.

O valor mínimo para doação é de R$ 15. Ou você pode optar por recompensas exclusivas com valor fixado, e aí receber o livro do Guga autografado, uma camiseta ou raquete do Nadal autografadas, e até jogar uma partida de tênis com o Meligeni. A raquete do Federer em breve também entrará no rol. Dá uma espiada lá.

Mas voltando ao preço mínimo: R$ 15 já ajudam. Por R$ 15, você não ganhará suvenires espetaculares, a não ser a consciência de estar colaborando com um projeto que visa tirar crianças da marginalidade para inseri-las numa sociedade focada em educação, cultura, trabalho e ética – sem partido político envolvido.

Conheço o Marcelo Ruschel desde quando a gente ainda não sabia o que queria ser quando crescesse. Fotógrafo talentoso, autor dos clicks mais antológicos do primeiro Rock in Rio, foi também fotógrafo exclusivo do Guga na época em que o catarinense brilhou em Roland Garros, até que largou a fotografia para fundar o Wimbelemdon. Marcelo é um cara que não está aqui a passeio. Quer deixar esse mundo melhor do que encontrou.


Tomara que consiga. Eu já colaborei. Sua vez.

sábado, 4 de abril de 2015


05 de abril de 2015 | N° 18123
MARTHA MEDEIROS

A vida, uma experiência

A ideia é não acionar o piloto automático, mas assumir o manche

De uns tempos para cá, as agências de viagens mais antenadas deixaram de oferecer pacotes turísticos incluindo apenas estada, passagens e visitas guiadas às principais atrações. O turista exigente deseja mais do que um lugar para dormir e uma selfie junto à Torre Eiffel.

Ele não quer apenas viajar, ele quer viver uma experiência, e isso inclui passeios de balão, acampamentos no deserto, uma ceia ao luar sobre a areia da praia, mergulho nas águas secretas de uma caverna, uma excursão de bicicleta em meio a ruínas ancestrais, uma aula de surfe num paraíso indonésio, escalar um vulcão ativo, participar de uma cavalgada, fazer meditação no topo de uma montanha. Não apenas ver o Big Ben, a Torre de Pisa, a Estátua da Liberdade, click, click, click e voltar pra casa.

Às vezes fico pensando se não deveríamos viver o dia a dia com esse mesmo espírito de aventura. A rotina impõe suas limitações, é vero, mas não custa expandir a mente e tentar – ao menos tentar, dentro das nossas possibilidades – fazer diferente.

Qual a graça de sair apenas com quem é igual a você? Que sempre frequentou os mesmos locais, conhece as mesmas pessoas e não irá lhe contar nada palpitante, nada que faça você morrer de rir, ou ficar admirado, ou pensar com seus botões: como é que não imaginei isso antes? A experiência de conviver com alguém que habite outro universo pode ser excitante e prazerosa, pois abre novos portais (porém, se o projeto for casar na igreja e gerar meia dúzia de filhos, é mais seguro apostar na alma gêmea para ter menos sobressaltos, combinado).

Caso você já esteja bem casado e com a vida ganha, ainda assim, por que não se desacomodar um pouquinho? Em vez de cumprir tarefas, viver experiências.

Não tem passeio de balão em Porto Alegre? Podemos cruzar o Guaíba de catamarã. Não temos deserto onde acampar? Podemos fazer um piquenique com os amigos num parque. E assim sucessivamente, usando a criatividade, buscando alternativas.

Quando falei lá no primeiro parágrafo em ceia ao luar sobre a areia da praia, é bem verdade que em meus delírios imaginava uma praia de mar cristalino cercado por falésias, com um clima romântico e música suave, mas nada impede de você levar sua churrasqueira portátil e o isopor para a beira da praia do Cassino, com o porta-malas do carro aberto para curtir seu pagodão. Também é uma experiência, vou eu negar?

A ideia é não ficar na plateia, mas entrar em cena. Não repetir os dias, mas torná-los únicos. Não acionar o piloto automático, mas assumir o manche.

Não toda hora, nem todos os dias, pois banalizaria as extravagâncias e, além disso, a vida real costuma nos chamar de volta para dentro do escritório, mas, de vez em quando, que sejam bem-vindos os sobressaltos, para lembrar que o coração não parou.



05 de abril de 2015 | N° 18123
FABRÍCIO CARPINEJAR

Meus Velhos

Meu amor pelos pais hoje é silencioso.

Não me interessa mais ser compreendido, ter razão, confirmar a inteligência. Não busco ganhar discussões, convencê-los de minhas ideias.

Não me sento rebelde à mesa, não parto da sala de jantar enfurecido com os sermões. Não puxo temas como aborto e pena de morte. Não me desgasto com política e futebol. Não fico em cima para mudar seus votos e denunciar seu conservadorismo. Eu me retiro da minha vaidade, por um breve tempo, para admirá-los envelhecendo e guardá-los em mim.

Às vezes pergunto que novela é aquela que está passando na televisão para, em seguida, retomar minha quietude. Outras vezes, nos intervalos comerciais, comento notícias rápidas sobre a saúde dos netos.

Esqueço o mundo, e também me esqueço. Não me importo se aprovam e desaprovam a minha nova mulher, se concordam e discordam com o meu estilo de vida.

Não compro briga, não vendo briga. Eles mal reparam em minha presença, não lembram que estou próximo, desapareço pela casa.

Não preciso que me digam que me amam e que se desculpem por alguma falha. Meus pais passam a ser unicamente meus pais. Não melhores, nem piores: meus pais. Não projeto minhas expectativas, não reivindico a fonte das frustrações. Sequer identifico traços de seus antigos ofícios. Parece que nasceram pais. São tão somente meus velhos e eu sou o filho deles.

Dedico um longo olhar atento e vigilante. Dedilho os lábios em oração. Torno-me menos carente e mais útil.

Acompanho os dois a um passo deles, jamais denunciando que estou seguindo.

Eu me preocupo em ajeitá-los com os dois travesseiros, em oferecer o braço para descerem do carro, em limpar o canto de suas bocas após uma refeição, em descalçar seus pés, em preparar um chimarrão e buscar água gelada na cozinha, em pagar as contas dos restaurantes, em ajudá-los a tirar o pulôver sem raspar o rosto.

Minha voz converte-se em gesto. Não quero sensibilizá-los além da conta. Acabaram as revoluções, os momentos de brabeza entre nós, anulamos as diferenças.

Não falo com meus pais. É um esforço meticuloso de mímica e de cuidado.


Tenho medo de irritá-los, tenho medo de estragar a nossa amizade, e que não dê mais tempo para a nossa reconciliação.

05 de abril de 2015 | N° 18123
RUBEN ÓLIVEN

De coelhos e ovos

Ruben George Oliven é Professor Titular de Antropologia da UFRGS e membro da Academia Brasileira de Ciências. Escreve mensalmente.

A Páscoa comemora a ressurreição de Cristo. Para católicos praticantes, ela também marca o fim da Quaresma, período de penitência que começa na Quarta-feira de Cinzas e termina na Semana Santa. Mas por que presentear e comer ovos na Páscoa, feriado em que se celebra a Ressurreição? E por que de chocolate? E por que é o coelho, um animal que não põe ovos, que os traz?

O ovo sempre foi um símbolo de fertilidade, renascimento e começo. Na mitologia egípcia, a fênix queima seu ninho para renascer mais tarde do ovo que sobrou. Escrituras hindus relatam que o mundo se desenvolveu de um ovo. Na ceia de Pessach, a páscoa judaica, o ovo é um dos elementos centrais da comemoração, simbolizando o começo da vida.

Muito antes do Cristianismo, no Hemisfério Norte, a troca de ovos no Equinócio da Primavera (21 de março) incluía a tradição de os camponeses enterrarem ovos nas terras de cultivo como forma de obter uma boa colheita. Acreditava-se que o ovo pudesse afastar o mal; ele também representava uma nova vida que surgia depois de um longo e duro inverno.

Durante a Quaresma, a ingestão de ovos estava banida. Mas, como as galinhas não param de por ovos, no final desse período havia uma grande quantidade deles disponíveis. O excesso tinha que ser consumido rapidamente para não estragar. Uma solução era cozinhá-los até se tornarem duros e preservá-los para serem o ingrediente principal de uma refeição de Páscoa, um prêmio para aqueles que se sujeitaram ao jejum da Quaresma. O Hornazo espanhol, prato comido na ou em redor da Páscoa, é um exemplo.

Nos países do Leste europeu, os cristãos ortodoxos tornaram-se especialistas em transformar ovos em obras de arte. Da Rússia à Grécia, os ortodoxos costumam pintar os ovos de vermelho, simbolizando o sangue de Cristo. Na Alemanha, a cor predominante é o verde. A tradição é tão forte que a Quinta-feira Santa é conhecida como Quinta-feira Verde.

Na Bulgária, em vez de se esconder os ovos, luta-se com eles na mão. Há verdadeiras batalhas campais. Todos têm de carregar um ovo e quem conseguir mantê-lo intacto até o final será a pessoa mais bem-sucedida da família até a próxima Páscoa.

O ápice do ovo como presente é o “Ovo Imperial Fabergé”, criado, sob forma de joia, por Peter Carl Fabergé, para os czares russos darem às suas esposas e mães na Páscoa. Os exemplares que sobraram são agora peças valiosíssimas que se encontram em mãos de colecionadores privados ou em museus.

A família Fabergé, que prosseguiu suas atividades fora da Rússia depois da Revolução Soviética, continua produzindo ovos desse tipo que são considerados um presente precioso. Um falso ovo Fabergé foi recentemente apreendido pela Polícia Federal na casa de Eike Batista.

Os primeiros ovos de chocolate começaram a ser produzidos na Alemanha e na França no século 19, quando se deu uma expansão no consumo desse alimento. Os primeiros ovos eram sólidos já que não não se conhecia uma técnica para produzi-los ocos. No começo, a produção de ovos de chocolate era lenta, pois ainda não havia sido inventada uma forma de fazer o chocolate fluir nos moldes.

Duas invenções estão na raiz da moderna produção de ovos de chocolate. A primeira, de 1842, na Holanda, foi uma prensa que separava a manteiga de cacau da semente de cacau; a segunda, de 1866, na Inglaterra, foi a introdução do cacau puro pelos irmãos Cadbury, marca até hoje associada a bons chocolates.

O processo inventado pelos Cadbury tornou disponível uma grande quantidade de manteiga de cacau, o que é essencial para produzir chocolate em moldes. A venda de ovos de chocolate cresceu de tal modo que, no final do século 19, no Reino Unido, havia 19 tipos diferentes de ovos de Páscoa na lista dos irmãos Cadbury.

Com a criação do processo de produção em massa, o costume de presentear ovos de chocolate começou a se difundir em diferentes países, entre eles, o Brasil. Esse é um mercado que movimenta grande quantidade de dinheiro, chocolate e afeto.


Chocolates amargos em pequenas quantidades fazem bem à saúde. Portanto, se você não puder presentear um ovo Fabergé, um ovo de chocolate sempre vem bem.

05 de abril de 2015 | N° 18123
 L. F. VERISSIMO

Mulher, homem

O feto começa feminino, depois é que são acrescentados os atributos, digamos assim, masculinos. Por isso os homens têm mamilos, e não sabem o que fazer com eles. Quer dizer: a história biológica do ser humano é exatamente inversa à do seu principal mito de criação, em que a mulher sai de dentro do homem. O mito é não apenas um desmentido do fato, e do feto, como uma apropriação masculina de um feito feminino.

Ao pôr o primeiro homem para dormir, retirar sua costela e produzir a primeira mulher, Deus fez uma paródia de parto. E com anestesia, um detalhe que não deve escapar às mulheres, depois condenadas por Ele a padecer de todas as dores da procriação enquanto o homem, responsável por tudo, só é condenado a folhear Caras antigas na sala de espera.

Todos os mitos, desde os inaugurais, como toda a cultura humana, têm sido masculinos, num contraponto ressentido com a história biológica, verdadeira, feminina, da espécie. Freud, que, sendo homem, era suspeito, inventou que a mulher tem inveja do pênis.

O homem é que não aguenta a ideia de não estar aparelhado, como a mulher, para se integrar aos grandes dramas reincidentes da natureza, ovulando de acordo com as fases lunares, gestando, parindo e amamentando filhos, e identificando-se com os ciclos de fertilidade da Terra, sentindo as variações de clima e de idade com mais intensidade do que os homens, e ainda encontrando tempo para ir ao cabeleireiro, almoçar com as amigas e dirigir empresas.

Enquanto ele fica de lado, como um penetra, esperando em vão que a vida o chame para as suas graves verdades, e obrigado a inventar uma história de fantasia paralela à história biológica.

A civilização se explica como uma angústia de potência do homem. O que Freud quis dizer era que a mulher invejava o poder falocrata, ou justamente o que o homem inventou para compensar o fato de não ser mulher. Outro mito usurpador.


Em tempo: esta manifestação não é encomendada e não, não pretendo mudar de sexo. É que sempre fui simpatizante.

quarta-feira, 1 de abril de 2015


01 de abril de 2015 | N° 18119
MARTHA MEDEIROS

Não pegue essa carona

A atitude do copiloto que voava de Barcelona para Düsseldorf foi estarrecedora, pra dizer o mínimo. São muitas as perguntas: uma pessoa profundamente deprimida pode perder o discernimento entre certo e errado? Andreas Lubitz teria se inspirado no primeiro episódio do filme Relatos Selvagens? Ter seu nome reverberado pelo mundo é motivação suficiente para uma insanidade cuja repercussão ele nem testemunharia, já que o insano também morreu?

Conduzir um avião lotado em direção a uma montanha a fim de espatifá-lo é um caso isolado. Lamentamos, perplexos, mas não temos medo de que venha a acontecer de novo, ao menos não tão cedo. No dia seguinte à tragédia, embarquei num avião e nem por um segundo pensei que na cabine de pilotos pudesse estar alguém incapacitado para realizar sua tarefa e com ideias estapafúrdias na cabeça. Essas coisas simplesmente não se repetem com trivialidade.

Não se repetem num avião, mas e nas estradas, e nas ruas? Inúmeros ônibus de turismo despencam ribanceira abaixo porque o motorista corria demais ou porque dormiu ao volante, e por causa de sua pressa e cansaço levam várias vidas embora com ele. Não é considerado suicídio porque não foi de propósito, mas o propósito pode se esconder em camadas menos aparentes. Ausência de responsabilidade pode ser um jeito escamoteado de cair fora.

O cara que atravessa três noites sem dormir e pega um carro. O cara que pega um carro e dirige a 180 km/h. O cara que dirige a 180 km/h pelo acostamento. O cara que dirige pelo acostamento de um penhasco. São várias tentativas de se matar sem dar na vista, sem assumir nem para si mesmo o que está fazendo.

O problema é que, não sendo uma tentativa de suicídio assumida, dá-se carona.

Não foram poucas as vezes em que eu disse para um motorista destemido: quer se matar, deixa eu descer antes, não me leva junto. Soava dramático, mas funcionava. Graças a um resquício de noção, o sujeito tirava o pé do acelerador.

Há sempre alguém por perto que tem menos amor à vida. Ou menos condição psicológica. Ou menos sensatez, menos senso de dever, menos tolerância a seguir regras – vá saber. E, uma vez que não se preocupa com o perigo que corre, envolve outras pessoas que poderão ser passageiros de uma viagem com destino indesejado.

Então, abandone os táxis que voam pelas avenidas. Assuma o volante de carros de namorados que estão sem condição de dirigir. Denuncie motoristas de ônibus que estão pisando fundo. Não ande com gente armada. Afaste-se de quem é muito estourado. As inocentes vítimas do voo da Germanwings não tiveram nenhuma dessas prerrogativas porque existia uma cabine trancafiada e um propósito consciente. Mas sejamos sensíveis aos propósitos inconscientes.