quarta-feira, 31 de outubro de 2007



31 de outubro de 2007
N° 15404 - Martha Medeiros


Prioridades

Acabei de ler Sobre Alice, um breve relato publicado pelo jornalista Calvin Trillin, da revista New Yorker, a respeito da mulher com quem ele foi casado por 36 anos e que faleceu em 2001.

É praticamente uma crônica sobre uma família feliz, uma história em nada excepcional, a não ser pela delicadeza e qualidade do texto - Trillin não é jornalista da New Yorker por acaso - e pela raridade de ver alguém descrever com tão bons olhos a intimidade doméstica, o que, nos dias atuais, não deixa de ser um alento.

Mas o que me fez mencionar o livro foi uma frase a respeito da criação de filhos. "As peças de escola foram inventadas, em parte, para dar aos pais uma oportunidade fácil de demonstrar quais são suas prioridades."

Semana passada estive no colégio Anchieta assistindo a quatro peças de teatro encenadas pelos alunos da segunda série do Ensino Médio. Minha filha fazia parte do elenco de uma delas. Perdi um jantar entre amigas, mas prioridade é prioridade.

No entanto, para além das obrigações familiares, foi um prazer absoluto constatar a capacidade criativa dessa gurizada de 16 anos.

Eles conceberam texto, cenário, figurinos e ainda deram um show de interpretação, demonstrando coisas que considero fundamentais para que um estudante encontre seu rumo: empenho, bom humor e mente aberta.

A platéia se divertiu e eles, no palco, mais ainda. Não houve angústia, tensão ou cobranças. Foi apenas uma celebração, como a vida tem que ser.

É ou não é um privilégio ser testemunha ocular desse aprendizado, mesmo que perdendo todos os jantares do mundo?

Na mesma semana, assisti também a Inimigas Íntimas, peça com Ingra Liberato e Fernanda Carvalho Leite. São outras duas que se divertem no palco e oferecem à platéia uma hora e meia de risos e alegria de viver, através de um texto esperto e talento sobrando.

A peça deve voltar em breve no Theatro São Pedro, fique ligado. Ingra e Fernanda ensaiaram tanto, que a estréia da peça parecia a comemoração de 10 anos em cartaz, tão amaciado já estava o espetáculo.

Prioridade, mesmo? É valorizar o bem-feito, valorizar as tentativas de bem-feito e valorizar o que ainda está por ser feito.

Dentro desse espírito "a vida é boa", estarei hoje na Feira do Livro, às 18h30min, autografando meu novo livro, Tudo que eu Queria te Dizer. Coloque a literatura entre suas prioridades e apareça.

Um excelente dia para todos nós, este que como todas as quartas-feiras, é o Dia Internacional do Sofá.

Feliz Dia das Bruxas para todo mundo. Não creio, mas que elas existem ah se existem.

sábado, 27 de outubro de 2007


28 de outubro de 2007
N° 15401 - Martha Medeiros


Lúcifer e os lúcidos

O lúcido faz parte do time - cada vez mais desfalcado - dos que se desesperam como todo mundo, porém de um modo mais íntimo e refinado

"Lúcido deve ser parente de Lúcifer
a faculdade de ver deve ser coisa do demônio
lucidez custa os olhos da cara."

Estou embriagada pelos novos poemas de Viviane Mosé. Esta é só uma palhinha de Pensamento Chão, um livro essencial nesses tempos em que já sabemos que não convém circular de Rolex por aí, já sabemos que certos políticos nunca ouviram falar em honra, já sabemos que o verão vai ser sufocante e só nos resta olhar um pouco para dentro de nós, o único lugar onde ainda encontramos alguma novidade.

Essa visão inusitada que Viviane nos oferece sobre lucidez, por exemplo, é um convite para a reflexão.

Em tempos insanos, de tanta gente maluca por vaidade, maluca por juventude, maluca por dinheiro, maluca por poder, os lúcidos destacam-se pela raridade. São aqueles que não inventam personagens de si mesmos, não se trapaceiam, não criam fantasias, ao contrário: se comprometem com a verdade.

E se envolver assim com a transparência dos fatos requer uma integridade diabólica. Para olhar o bicho nos olhos é preciso ser bicho também. Enfrentar a verdade é quase um ato de selvageria.

Mas que verdade é essa, afinal? É aí que o demônio apresenta sua conta, pois o lúcido tem que se confrontar com uma verdade desestabilizadora: a de que não existe verdade absoluta.

Nossos pensamentos não estacionam, nossos desejos variam, o certo e o errado flertam um com o outro, não há permanência, tudo é provisório, e buscar um porto seguro é antecipar o fim: a única segurança está na morte, será ela nosso único endereço definitivo. Durante o percurso da vida, tudo é movimento, surpresa e sorte.

O lúcido faz parte do time - cada vez mais desfalcado - dos que se desesperam como todo mundo, porém de um modo mais íntimo e refinado.

O lúcido organiza sua loucura, acondiciona o que está solto no ar, interliga várias idéias independentes para que, agarradas umas nas outras, não se dispersem, estejam ao alcance da mente.

Quanto mais o lúcido pensa, mais percebe que lucidez plena não existe, o que existe são suposições, algumas até coerentes, o que nos mantêm no eixo. Lúcido é aquele que sabe que lucidez é uma falácia, e não pira com isso. Recebe a conta das mãos do demônio, calcula os ganhos e os prejuízos, e paga.

Custa sim, Viviane, os olhos da cara, esse vício de pensar e repensar, pensar e compensar, pensar, pensar, pensar e morrer do mesmo jeito. Por isso achei tão interessante seu poema. Você matou a charada: Lúcifer é uma espécie de padroeiro dos lúcidos - e lúcido é só um outro nome para louco. O louco que tem a cabeça no lugar demais.

Viviane Mosé, além de poeta, é aquela filósofa que teve um quadro no Fantástico. Estará palestrando amanhã no Instituto Goethe, em Porto Alegre. Eu vou.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007



25 de outubro de 2007
N° 15398 - Nilson Souza


Borboletas

A menina de asas me olha submissa, ajoelhada sobre a mesa do gabinete de trabalho, no recanto mais solitário da minha casa.

É neste local que atravesso madrugadas tentando extrair das teclas do computador algum texto legível.

Muitas vezes busco inspiração na sua doce figura. Ela me encanta mas não me engana: sei que a qualquer momento vai dar um sorriso maroto e levantar vôo. É o seu destino. É, também, o meu.

Ganhei o bibelô de presente de uma amiga cheia de sabedoria, que teve o cuidado de me advertir por escrito:

- Não te esqueças que um dia a menina dos teus olhos vai virar borboleta.

Guardo sua mensagem como um lembrete daqueles que se pendura na geladeira. De tanto ver, a gente o incorpora na paisagem e finge que não está lá - até que precisa dele.

Então, a realidade cobra o seu preço e não resta outra saída senão enfrentá-la. Eu sempre soube que a menina dos meus olhos alçaria vôos, como fazem todos os adolescentes, impulsionados pela urgência de viver esse período irrepetível da existência.

São borboletas inquietas, que querem experimentar o néctar de todas as flores antes que a primavera da vida se dissipe.

De festa em festa, elas vão se afastando. Ignoram nossas advertências e nossas apreensões, e vão conquistando espaço, sob o pretexto irrefutável da autonomia:

- Como vou aprender a me defender se não me deixam atravessar a rua sozinha?

Cansei de ouvir argumentos como esse, cheios de razão, mas insuficientes para me fazer largar seu pulso.

Numa cidade de ruas tristemente enfeitadas por borboletas brancas, o sentimento de proteção fala mais alto. Ainda assim, não se pode deixar de ouvir a voz do grilo falante que habita o fundo da nossa alma:

- Deixa-a voar!

Uma vez eu estava brincando com ela, criança, num parque da cidade, quando uma borboleta de verdade pousou no meu braço. Virei estátua por um instante, para não espantar o inseto, e lembro até hoje que ela riu muito da cena.

Jamais esquecerei aquele riso, que fazia lembrar o príncipe loiro de Saint-Exupéry. Durou pouco a magia daquele momento.

Aquela borboleta, momentaneamente atraída pelo calor do meu corpo ou pelo sal do meu suor, logo voou em busca de algo mais aprazível.

Nunca dei significado maior à insólita ocorrência. Hoje, porém, olho para a menina de asas e me dou conta de que a borboleta do parque também me trazia um recado eterno naquela tarde ensolarada de sábado: - Aproveita o dia!

Uma excelente quinta-feira para todos nós, se Deus quiser e Ele haverá de querer.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007



24 de outubro de 2007
N° 15397 - Martha Medeiros


Beatles forever

Em termos de música, minha filha mais velha é eclética: adora Cake, Gotan Project, Jorge Drexler e bandas japonesas. Minha filha mais nova, claro, é vidrada em High School Music. Outro dia elas se viraram pra mim e perguntaram: e tu, mãe? Qual tua banda preferida?

Meu Deus, lá vou eu dar a mesma resposta que dou desde que tinha a idade delas.

- Beatles.

Culpa da nostalgia. Desde menina tenho adoração pelos quatro rapazes de Liverpool. Por que esse assunto agora? Porque eles estão aí, de novo.

Estava tranqüila da vida zapeando com o controle remoto quando vi Oprah Winfrey entrevistando a diretora de cinema Julie Taymor, que falava sobre seu filme Across the Universe. Será o que estou pensando? Aumentei o volume.

Era o que eu pensava. Julie dirigiu um musical moderno, com elenco jovem e desconhecido, que conta, através das letras dos Beatles, uma história de amor com imagens totalmente oníricas, delirantes, criativas.

Instantaneamente, me veio à cabeça o filme The Wall, com trilha sonora do Pink Floyd (um marco da animação musical) e também do Hair, um filme que ressuscitou a Era de Aquário para adolescentes que não tiveram tempo de ser hippies.

Pois agora surge Across the Universe com o mesmo espírito forever young. Se você é um fanático por Beatles como eu e ainda não sabe nada desse filme, acesse www.sonypictures.com/movies/acrosstheuniverse e comece sua própria contagem regressiva.

Semanas atrás, escrevi sobre minha dificuldade em me programar para o futuro, e citei como exemplo o espetáculo que o Cirque du Soleil fará em maio de 2008 em Porto Alegre.

Não comprei ingresso, mas se o espetáculo, em vez do Alegrií, fosse o Love - todo com música dos Beatles - eu compraria ingresso nem que fosse para daqui a 10 anos. Isso diz muito sobre o que John, Paul, George e Ringo representam pra mim.

A estréia do filme, no Brasil, é em 7 de dezembro. Praticamente amanhã. Mas nunca vi um amanhã tão distante.

Isso de criar expectativa é uma cilada, porque geralmente ela reforça uma ilusão e na hora H a coisa nem é tão bacana assim. Vale para promessas de emprego, encontros amorosos e viagens: o mar do cartão-postal é sempre mais azul.

Mas no caso do filme Across the Universe, duvido que me frustre. Ao contrário, mal posso prever o que vou sentir, o tamanho da emoção. Por via das dúvidas, já estou estocando lenço de papel. Em se tratando de Beatles, nenhum exagero é pouco.

Ótima quarta-feira, dia que representa sempre o Dia Internacional do sofá. Aproveite.

sábado, 20 de outubro de 2007



21 de outubro de 2007
N° 15395 - Martha Medeiros


Fecha e deixa solto

Para que as relações durem mais do que três semanas, é bom ter um relacionamento fiel, bacana - mas com espaço para respirar

Muitos leitores mandam sugestões de tema para crônica, e nem sempre posso aproveitá-las, não porque não sejam boas, mas é preciso que eu comungue da mesma idéia, senão vira uma simples encomenda e o texto sai frio.

Mas semana passada um internauta chamado Paulo me contou um papo que teve com um amigo e eu não pude desprezar o depoimento dele, até porque, além de divertido, considero o assunto de utilidade pública.

Ambos maduros, com alguns casamentos nas costas, estavam se queixando das namoradas. Não agüentavam mais a ladainha: "onde foi, onde estava, por que não ligou, não me disse que foi, de quem é esse número, liguei e não atendeu, eu vi que você olhou pra ela, a que horas você chegou, você não me convidou, por que você não atendeu, o que vamos fazer no Carnaval, você quer que eu vá ou não, assim não vou".

Ri muito quando ele reproduziu esse pout-pourri de lamentações. É bem assim. Os apaixonados costumam massacrar. Eu só acrescentaria que esse massacre não é só feminino: tem muito homem que age da mesma forma.

Mas prosseguindo. O amigo de Paulo, durante a conversa, apontou uma saída: "Elas precisam aprender com os flanelinhas".

Como? "O flanelinha te indica um lugar pra estacionar e diz: fecha e deixa solto". Não é simples?

Eis a fórmula sugerida por eles para fazer as relações durarem mais do que três semanas: fecha (sim, um relacionamento fechado, fiel, bacana), mas deixa solto. Mantenha um espaço para respirar.

Permita um mínimo de mobilidade: poder empurrar um pouquinho pra frente, um pouquinho pra trás. Possibilite uma manobra, um encaixe. Não puxe o freio de mão.

Essa crônica foi praticamente escrita pelo meu leitor Paulo, cujo sobrenome não vou revelar para que suas namoradas não se sintam expostas.

Mas seja para Paulos, Marias, Anetes ou Ricardos, a regra do flanelinha deve ser seguida e regulamentada: fecha e deixa solto. Confia. Ninguém quer invadir seu relacionamento, mas é preciso que haja flexibilidade, ajuste às novas situações, enfim, tem que relaxar um pouco.

Tem quê? Bom, talvez não tenha que relaxar, se esse tipo de queixa (onde foi, com quem estava, por que não ligou) for considerado um carinho, um cuidado, parte do jogo do amor, sem causar maiores irritações. Mas, antes de iniciar um interrogatório desse tipo, sonde o terreno, veja se está agradando.

Geralmente, pessoas maduras já estão com a paciência esgotada para investigações minuciosas. Desconfio até que a irritação se dá por que "onde fomos, com quem fomos e por que não ligamos" não tem nada de excitante ou misterioso: fomos almoçar com a mãe e o celular ficou sem bateria.

Se estivéssemos fazendo algo realmente condenável, aí sim, justificaria uma crucificação verbal. Ao menos as respostas exercitariam nossa criatividade e cinismo.

Mas como somos todos inocentes, feche e deixe solto.

Well, um excelente domingo e um ótimo início de semana ainda que com chuva.

Lya Luft

O que deixar para nossas crianças

"Que as crianças possam ter a seu lado a Senhora Esperança: ela será a melhor companheira e o mais precioso legado"

Ilustração Atômica Studio

Aos que detestam datas marcadas, porque as consideram exploração comercial, digo que concordo em parte: explora-se a nossa burrice existencial básica, que se submete aos modismos, às propagandas, ao consumismo desvairado.

Pais se endividam para comprar brinquedos e objetos caros e supérfluos para crianças que poderiam fazer coisa bem mais interessante, como jogar bola, pular corda, ler um livro, armar um quebra-cabeça, praticar esporte. Isso acontece na Páscoa, no Dia das Crianças, no Natal, em cada aniversário.

Nesse aspecto, acho que os dias marcados para celebrar coisas positivas se tornam – para os tolos e frívolos, os desavisados – coisa negativa, fonte de tormento e preocupação.

Mas, visto sob outro prisma, não acho ruim existirem datas em que a gente é levada a lembrar, a demonstrar o afeto que se dilui no cotidiano, a fazer algum gesto carinhoso a mais.

A prestar uma homenagem: refiro-me agora à data vizinha do Dia das Crianças, o Dia do Professor, celebrado na semana passada. Ofício tão desprestigiado, por mal pago, pouco respeitado e mal amado, que milhares e milhares de jovens escolhem outra carreira.

E não me falem em sacerdócio: o professor, ou a professora, precisa comer e dar de comer, morar e pagar moradia, transportar-se e pagar transporte, comprar remédio, respirar, viver. Além disso, deveria poder estudar, ler, comprar livros, aperfeiçoar-se e descansar para enfrentar o dia-a-dia de uma profissão muito desgastante.

Então, reunindo a idéia das duas datas, crianças e mestres, reflito um pouco sobre o que me sugeriu dias atrás um amigo:

– Escreva sobre que mundo estamos deixando para nossas crianças, pois vai nascer minha primeira neta, e essa questão se tornou premente em minha vida.

Pois é. Criança tem entre muitos outros esse dom de nos dar um belo susto existencial: abala as estruturas da nossa conformidade, nos torna alertas, nos deixa ansiosos.

O que estou fazendo por ela, o que posso fazer por ela, quem devo ser ou me tornar para representar um bem para esse neto ou neta, filho ou filha, aluno ou aluna?

Se forem as crianças de minha casa, a questão se torna crucial, e o amor é a dádiva primeira. E aí entram também os casais, tema por vezes espinhoso.

Temos em casa um clima fundamentalmente bom e harmonioso, apesar das naturais diferenças e dificuldades? Por baixo do cotidiano de aparente rotina corre um rio de afeto ou grassam discórdia e rancores?

Como apresentamos ao imaginário infantil a figura do nosso parceiro ou parceira? Lembro aqui a atitude infeliz de tantas mulheres: desabafar diante dos filhos, pequenos ou adultos, sua raiva e insatisfação.

Pior: usar os filhos para manipular emocionalmente o parceiro, usando-os para promover a própria vitimização e tornar quase um monstro o pai deles.

Vão mais uma vez dizer que privilegio os homens, mas essa postura, vingativa, cruel e mesquinha, é muito mais freqüente nas mulheres, sobretudo nas separadas.

Não somos todas umas santas, não somos boazinhas. A mãe-vítima e a santa esposa me assustam: hão de cobrar, com altos juros, todo esse sacrifício.

Enfim: que legado deixamos para as crianças? Primeiro, vem o legado pessoal: quem somos, quem podemos ser, quem poderíamos nos tornar, para que elas tenham um mínimo de confiança, um mínimo de amor por si próprias, um mínimo de otimismo para poder enfrentar a dura vida.

Depois, podemos olhar para fora e imaginar um mundo, pelo menos um país, onde elas não tenham de presenciar espetáculos degradantes de corrupção, melancólicos jogos de interesse ou de poder.

Onde os líderes sejam honrados, onde seus pais não se desesperem nem descreiam de tudo. Onde todos tenham escolas sólidas com professores bem pagos e bem preparados.

Onde, em precisando, elas disponham de hospitais excelentes e médicos em abundância, de higiene em sua casa, comida em sua mesa, horizonte em sua vida.

E que as crianças possam ter a seu lado, mais que um anjo da guarda, a Senhora Esperança: ela será a melhor companheira e o mais precioso legado.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007



18 de outubro de 2007
N° 15392 - Nilson Souza


Dona Maria Olívia

Descobriram no Paraná uma velhinha com 127 anos. Segundo os parentes e os vizinhos, ela nasceu em fevereiro de 1880 - nove anos antes da Proclamação da República.

É duro de acreditar, mas os fiscais do Censo Previdenciário tiveram que engolir a desconfiança quando constataram que dona Maria Olívia estava viva, lépida e faceira em casa.

E com um histórico familiar impressionante: dois casamentos, 10 filhos naturais e quatro adotivos, memória suficiente para relatar suas andanças pela colheita de algodão e café no interior de São Paulo. Estava encantado com sua história quando li o comentário de uma de suas acompanhantes:

- O único pecado dela foi ter fumado até os 80 anos.

Aí tem mutreta, pensei, do alto da minha arrogância antitabagista. Mas os colegas fumantes não quiseram saber. Elegeram Dona Maria Olívia madrinha do fumódromo da Redação.

Não fui lá conferir, mas aposto que a página do jornal em que saiu sua fotografia está pendurada na parede do cubículo enfumaçado. Quem não fecharia este contrato? Você se diverte e comete excessos por oito décadas e depois ganha mais 50 anos para meditar sobre a vida que levou.

Com todo o respeito a dona Maria Olívia, exijo o teste do carbono 14. Não posso crer que a velhinha de Itapetininga tenha dobrado o Cabo da Boa Esperança há tanto tempo e ainda esteja aí para contar vantagem. Tem alguma coisa errada nesta conta.

Sei que a população brasileira está envelhecendo rapidamente, mas, a ser verdadeira a idade atribuída a ela, seria a pessoa mais velha do mundo. Como gosta de dizer o nosso presidente, nunca antes na história deste país se viu semelhante coisa.

Claro que não estou duvidando da reportagem nem da honestidade da velha senhora. Ela existe, foi entrevistada e fotografada. É provável até que tenha a sua carteira de identidade em dia, embora o texto não esclareça sobre isso.

Mas, num país em que se falsificam até ingressos de futebol, documentos não podem ser considerados prova definitiva. Testemunhas? Quem teria legitimidade para atestar sua verdadeira idade?

Torço para que ela tenha uma vida ainda mais longa e continue recebendo por muito tempo sua pensão previdenciária, mas reservo-me o direito de ficar com o meu ceticismo. Alguém se enganou nesta conta. Nem as tartarugas brasileiras vivem tanto tempo. E não fumam.

Uma excelente quinta feira de primavera a todos nós.

domingo, 14 de outubro de 2007


DANUZA LEÃO

Fazendo as pazes

Ele chega mais perto e abre os braços para um grande abraço. É a hora do perdão, do não se fala mais nisso

SUPONDO QUE ele te traiu; difícil, perdoar a traição. No início são aquelas intermináveis conversas pela madrugada; depois, os silêncios.

Ele, que traiu, não sabe o que dizer; você sofre, tem vontade de matar, não tem coragem de se separar porque ainda ama, tenta conservar a cabeça fria, mas não dá para ser a mesma de sempre.

Até tenta; fala das coisas que foram manchete no jornal, evitando de todas as maneiras citar o caso Renan Calheiros e Monica Veloso, mas tudo é forçado, sem alegria, sem espontaneidade, pois quem foi traído fica imaginando seu grande amor nos braços da outra.

E na hora de irem dormir, viram um de costas para o outro e apagam logo a luz do abajur para não ter que falar, ou repetir tudo que já foi dito, até porque sabem que não adianta.

Quando as crianças estão por perto, pior ainda; elas não devem saber do que está acontecendo, e só Deus sabe o que é fingir que está tudo bem.

Os dias vão passando, você não pensa em outra coisa e ele, que traiu -nem foi por paixão, apenas uma dessas coisas que acontecem-, quer se matar, dizer mil vezes que aquilo não significou nada, mas não há clima para isso nem para nada.
Tentar um contato físico, nem pensar.

Cada tentativa é um fracasso, e por aí é que não é. Chegar levando flores jamais, se chamar para jantar num restaurante, vai ter como resposta um não, e se sair à noite para escapar do clima pesado da casa, é perigoso: pode dar a impressão de que vai encontrar com a outra.

Ah, essa história de trair é complicada, e pode render meses, isso quando não há uma separação imediata. Se ele pudesse voltar atrás teria resistido, mas quem pensa nisso quando bate a vontade?

Agora já foi, e é agüentar as consequências, a cara amarrada, o mau humor e às vezes um toque seu que é pior do que uma facada pelas costas. Ah, se arrependimento matasse.

Mas existe o tempo, e só ele, para curar certas feridas. Um dia chegam uns amigos e a conversa flui quase como antes; quando vão embora vocês trocam algumas palavras sobre como fulana estava bonita, sicrano mais gordo, e vislumbra-se uma trégua, até porque não há ninguém que consiga ficar sofrendo por uma traição para o resto da vida.

As coisas vão melhorando, vocês passam a viver numa certa harmonia, já conversam normalmente, mas o contato físico continua zero. E ele lá tem coragem de tentar, levar um não e voltar tudo ao que era antes?

Mas um sábado qualquer, um sábado comum, com um sol lindo, vocês resolvem sair e dar uma caminhada num parque da cidade.

A caminhada acaba virando uma corrida, e quando chegam em casa, suados, comentam como foi bom terem conseguido correr, que devem fazer isso mais freqüentemente, pois faz bem ao corpo e à alma.

Nesse momento ele sente que é a hora -e é mesmo; chega mais perto e abre os braços para um grande abraço. É a hora do perdão, do -sobretudo- não se fala mais nisso; um abraço bem generoso, bem demorado, bem apaixonado, e a paz volta a reinar no universo.

Porque, pensando bem, não há nada melhor na vida do que um abraço bem sincero, bem apertado, bem encaixado, melhor do que todos os beijos na boca do final dos filmes.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 13 de outubro de 2007



14 de outubro de 2007
N° 15392 - Martha Medeiros


E l a

Todos tem uma, grande, média, pequena. Todos querem perdê-la, caminhando, correndo, nadando, suando. Raros estão felizes com a sua

Se você não tem problemas com a sua, levante as mãos para o céu e pare agora mesmo de reclamar da vida. O que são algumas dívidas para pagar, um celular sempre sem bateria, um final de semana chuvoso?

Chatices, mas dá-se um jeito. Nela não. Nela não dá-se um jeito. Para eliminá-la, prometemos cortar bebidas alcoólicas, prometemos fazer mil abdominais por dia, mas ela não acusa o golpe, segue com sua saliência irritante.

A gente caminha, corre, sobe escada, desce escada, vibra quando nosso intestino está bem regulado, cumprindo suas funções à perfeição, mas ela não se faz de rogada, mantém-se firme onde está. "Mantém-se firme" é força de expressão. Ela é tudo, menos firme. Você sabe de quem estou falando.

Ela é uma praga masculina e feminina. Os homens também sofrem, mas aprendem a conviver com ela: entregam os pontos e vão em frente, encarando a situação como uma contingência do destino.

As mulheres, não. Mulheres são guerreiras, lutam com todas as armas que têm. Algumas ficam sem respirar para encolhê-la, chegam a ficar azuis.

Outras vão para a mesa de cirurgia e ordenam que o médico sugue a desgraçada com umbigo e tudo. Mas passa-se um tempo e ela volta, a desaforada sempre volta.

Quem não tem a sua? Eu conto quem: umas poucas sortudas com menos de 15 anos. Umas poucas malucas que acordam, almoçam e jantam na academia.

Algumas mais malucas ainda que não almoçam nem jantam. As que nasceram com crédito pré-aprovado com Deus. E aquelas que nunca engravidaram, lógico.

As que ignoram totalmente sobre o que estou falando são poucas, não lotariam o Gigantinho. Já as que sabem muito bem quem é a protagonista desta crônica, pois alojam a infeliz no próprio corpo, povoam o resto da cidade, estão por toda parte. Batas disfarçam, vestidinhos disfarçam, biquínis colocam tudo a perder.

Nem todas a possuem enorme. Cruzes, não. Às vezes é apenas uma protuberância, uma coisinha de nada, na horizontal nem se repara.

Aliás, mulheres acordam mais bem-humoradas do que os homens porque de manhã cedo somos todas magras. Todas tábuas. Todas retas. Passam-se as primeiras horas, no entanto, e a lei da gravidade surge para dar bom-dia. Lá se vai nosso humor.

Falam muito de celulite. Falam de seios, de traseiros, de rugas, de pés grandes, de falta de cintura, de caspa, de tornozelos grossos, de orelhas de abano, de narizes desproporcionais, de ombros caídos, de muita coisa caída. Temos uma possibilidade infinita de defeitos. Mas ela é que nos tira do prumo.

Ela é que compromete nossa silhueta. Ela é que arrasa com a nossa elegância. Ela. Nem ouso pronunciar seu nome. Você sabe bem quem. Se não sabe, sorte sua: é porque não tem.

Tenhamos todos um ótimo domingo e uma excelente semana. E no dia 15 os nossos parabéns para os nossos Professores, os de agora e aos de antigamente.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007



11 de outubro de 2007
N° 15390 - Nilson Souza


As pedras de Salvador

Passei uma semana em Salvador, cidade cheia (mas cheia mesmo) de gente e de história. São mais de 3 milhões de habitantes, um verdadeiro formigueiro humano. Fiquei verdadeiramente perplexo com a quantidade de pessoas que habitam e circulam pela terceira capital mais populosa do país.

E o espantoso é que aquela multidão se espreme, mas passa sem estresse pelas ruelas estreitas, pelas ladeiras seculares e pelas portas de todas as igrejas. O que não falta é religiosidade. A melhor definição do tipo local saiu da letra de uma canção e caiu no gosto do povo:

- O baiano tem Deus no coração e o diabo nos quadris.

Nada mais preciso. São centenas de templos, capelas e centros religiosos. Todos os santos e todos os orixás convivem em total harmonia. Tive a oportunidade de acompanhar um espetáculo fascinante no Pelourinho. Foi uma apresentação do Balé Folclórico da Bahia - cantigas de candomblé, dança afro e acrobacias de tirar o fôlego.

Jovens bailarinos revezam-se num balé sensual e alucinante, que inclui homenagens aos principais orixás, um número impressionante de dança do fogo e saltos mortais de dar inveja a Daiane dos Santos.

Tudo isso tendo como fundo musical o batuque dos tambores e as vozes melodiosas de duas cantoras negras, que intercalam gritos ancestrais saídos do coração da África e belas canções de Caymmi.

Conheci a praia de Itapuã, a lagoa de Abaeté, Amaralina, o Mercado Modelo, a Baixa do Sapateiro e outros lugares que a inspirada música baiana levou ao conhecimento do Brasil.

O que mais me impressionou nesse Estado onde o Brasil começou foi exatamente o espírito pacífico e divertido de sua gente. O baiano, ao contrário do estereótipo, trabalha muito, mas não se estressa. Claro que não se pode rotular uma população inteira.

Outra coisa interessante é a divisão da população local, não apenas entre Bahia e Vitória (o Já ia e o Vicetória, na provocação do torcedor), que andam pela terceira e segunda divisão do futebol brasileiro, mas também entre os Carlistas e os anti-ACM.

Para uns, o falecido senador era tão amado que já deveria ter ingressado no panteão dos orixás. Para outros, o apelido de Malvadeza era até elogioso demais.

Mas a política e o futebol ficam em segundo plano quando os baianos falam de sua história, que é uma parte importante da história do país.

Eu mesmo tratei de tirar uma foto ao lado do monumento ao meu ancestral, Tomé de Souza, fundador da cidade. Fiz o mesmo com uma estátua de Irmã Dulce, que deixou uma obra social maravilhosa.

As pedras de Salvador são registros indeléveis de uma história absolutamente fantástica, escrita pelas armas e pela fé, por conquistadores e santos.

Well, ainda que com chuva, muita chuva... segundo a meteorologia, que tenhamos todos uma ótima quinta-feira e um excelente feriado.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007



10 de outubro de 2007
N° 15383 - Martha Medeiros


Futebol feminino

Não há quem não vibre com a eleição de "Magic" Marta como a nova fera do esporte nacional. Salve minha xará, a Marta boa de drible, a Marta que se consagrou como a melhor jogadora de futebol feminino do mundo.

No entanto, mesmo entre os brasileiros fanáticos por bola, ainda há dificuldade em se considerar o futebol feminino um belo espetáculo. Não é uma questão de preconceito e falta de visão, como uma análise apressada poderia julgar.

Talvez o futebol feminino venha a ser um esporte popular e difundido mundialmente, gerando ídolos, patrocínios milionários e altas audiências. Mas quem realmente aposta nisso?

Obviamente que o nosso futebol feminino pode se profissionalizar, bastando que as empresas invistam, que sejam organizados mais torneios e que se transmitam os jogos pela tevê. Craques já temos.

Porém, quase ninguém discute um aspecto importante da questão, justamente aquele que resvala para o politicamente incorreto: esporte, mais do que nunca, é espetáculo e depende da imagem. E futebol é um esporte viril. Tanto ou mais que o halterofilismo ou o boxe.

É sabido que as mulheres podem ser iguais ou melhores que os homens em talento, conhecimento, desempenho, inteligência, determinação.

Não temos diferenças no que concerne à nossa mente e capacidade. Mas nossos corpos são distintos. E quando um esporte "viriliza" o jogo de corpo feminino, cria-se um impasse.

É bacana ver uma mulher ser combativa na vida, lutando pelos seus ideais, conquistando seus direitos. Mas quando o combate conduz à masculinização do físico e dos gestos (em campo, saliento), perde-se o poder da sedução, no sentido mais amplo do termo.

As mulheres já estão dentro do futebol, como torcedoras, como comentaristas ou como jogadoras. As escolas e clubes oferecem a modalidade desde cedo e as meninas se divertem e se exercitam, não há nada de errado nisso.

O problema é como sair do amadorismo e partir para a profissionalização sem violar as regras de outro jogo: o da natureza humana. Os investimentos no esporte só são compensados quando existe uma torcida entusiasmada. O futebol feminino entusiasmará um dia como o vôlei e o basquete feminino?

Não se trata de vestir as atletas com um uniforme mais decotado, o assunto é sério. Falo sobre a exigência de uma energia máscula e dos aspectos culturais que envolvem essa discussão no Brasil, um país que não é a Alemanha.

Ao meu ver, é este o grande desafio que nossas jogadoras terão que enfrentar - e espero que vençam - para escapar do cruel destino de talentosas halterofilistas e boxeadoras: a invisibilidade.

Ótima quarta-feira esta que marca sempre o Dia Internacional do Sofá. Que bom que ela existe e que a gente pode se encontrar, imaginem não fossem as quartas, o sábado e domingos ficariam tão distantes...

terça-feira, 9 de outubro de 2007



09 de outubro de 2007
N° 15382 - Liberato Vieira da Cunha


Das águas transparentes

Há certos desafios em minha vida que duvido ter enfrentado. Não falo aqui dessas tormentas que abalam as raízes de qualquer existência sobre a Terra. Trato de coisas mais banais.

Nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro dos anos de 62/63, saltava da cama antes das cinco da matina, tomava um banho frio e me entregava então a todos os mistérios do latim, do português e do francês, sem esquecer a filosofia.

Poderia estar em Capão, em Torres ou no Cassino, em qualquer paisagem que me recordasse que eu era um garoto de 17 anos.

Ao invés disso me aprisionava em Porto Alegre, via o dia ir nascendo por entre trechos de Cícero, versos de Camões, incursões a Racine, mergulhos no rio sem reprise de Heráclito.

Sabia absolutamente tudo o que pudessem me perguntar no vestibular de Direito da Universidade Federal. Mas não me contentava com todas essas toneladas de conhecimento.

Às oito e meia da manhã freqüentava um cursinho instalado no edifício do Krahe. Encontrei ali amigos para toda a vida e me enamorei de duas ou três deusas que infelizmente não flertavam com a minha timidez.

Quando chegaram os exames, percebi que poderia ter tirado o primeiro lugar. Não tirei, por um detalhe. É que na prova escrita de latim acertei todas as questões, mas esqueci de escandir duas frases que abriam o teste, tão seguro me achava da sabedoria reunida em tantas madrugadas.

Sexta-feira passada se comemoraram 40 anos de formatura de minha turma de Direito. Foi tudo algo solene, sem faltar a inauguração de uma placa na faculdade da Avenida João Pessoa. Eu, contudo, me lembrei de mim.

E, evocando uma das deusas do cursinho do Krahe, fiquei pensando se, em vez de tantas madrugadas, não teria disposto melhor de meu tempo levando-a a imergir nas águas transparentes do litoral de Torres.

Uma feliz terça-feira - Aproveite o dia

domingo, 7 de outubro de 2007


Xico Sá

O seu orgulho não vale nada

Somente um chifre, como é vulgarmente batizado o incômodo adereço das nossas frontes, humaniza um macho

Embora o ato de pular a cerca se constitua em um dos principais esportes masculinos, o pânico diante da possibilidade de ser traído tira o sono, a concentração, o prumo, é capaz de cegar um homem e fazê-lo um monstro, um animal paranóico ruminando o capim do ciúme.

Mas não podemos nos esquecer, moços, pobre moços da canção de Lupicínio, que somente um chifre, como é vulgarmente batizado o incômodo adereço das nossas frontes, humaniza um macho _faz dele uma criatura menos arrogante, menos tosca, mais meiga e sensível para futuras histórias.

Motivo de tragédias e canções, o tema da traição, no banquete filosófico do botequim, muitas vezes ganha tintas humorísticas. Amigo provocando amigo ou narrando infortúnios alheios.

Momento adequado para uma antologia de frases e ditos populares machistas: “Chifre é coisa de homem, o boi usa de enxerido”; “Um homem sem um chifre é um animal desprotegido” etc. etc. No bar, aliás, está um dos personagens que mais entende do assunto: sua excelência o garçom.

É no ombro dele que muitos de nós choramos como vira-lata abandonado até pelas próprias pulgas. É o garçom também a testemunha ocular de novos flertes e enlaces que representam o fulgor de uns e a desgraça de outros.

O bom garçom, aliás, sente de longe o drama de um sujeito maltratado pelo destino amoroso. Você não precisa nem dizer nada. Quando a vida dói, drinque caubói, parece recitar o gravatinha enquanto serve o seu bourbon ao amigo sem rumo.

Para os moços, pobre moços, o pior da traição é que as pessoas do seu convívio, principalmente os outros homens, tomem conhecimento. Se o algoz for alguém próximo, da mesma rua, do mesmo bairro, da mesma firma...

É o fim do mundo. Se o algoz for seu concorrente direto, meu Deus, tirem as armas do seu alcance. É, amigo, é o velho ego de macho que não tolera rachaduras.

Às vezes está morrendo de amor e vontade de voltar para a ex. Não volta por questão de honra, fera ferida, o medo do homem diante do olhar dos amigos, dos vizinhos, do colega de trabalho.

Mal sabem eles que esse orgulho não vale uma canção triste e sofrida de Leonardo Cohen, do Chico ou do Roberto!

Xico Sá é colunista da Folha

DANUZA LEÃO

Momentos

São coisas bobas e boas que nos acontecem e que não notamos; se notássemos, poderíamos ser mais felizes

OUTRO DIA, depois do almoço, estava eu em casa, deitada num sofá, sem fazer nada. Liguei a TV bem baixinho, só por vício, e meus gatos, que não me largam um minuto, vieram e se instalaram pertinho de mim: Jujuba com a cabeça deitada na minha perna, Haroldo na barriga dela, os dois dormindo.

Era um momento de tal paz, que pensei: "ah, que momento bom estou vivendo". E pensei que durante os dias, todos os dias, se vive momentos bons, só que não nos damos conta porque não prestamos atenção.

Às vezes eu saio da ginástica e passo pela barraca da feira onde costumo comprar frutas, mas estou sem dinheiro, e o feirante, depois de dizer que eu posso pagar depois, insiste: "leva três mangas, estão doces como mel". Corta uma fatia com uma faca bem amoladinha e me dá para provar.

Não é maravilhoso? E quando eu digo que só vou levar uma, porque moro sozinha, e ele diz "mora sozinha porque quer", não dá vontade de dar uma boa risada? E não é para achar que a vida é boa?

Quando chego de viagem cansada, entro em casa e está tudo em ordem: a cama arrumada, os lençóis limpos, a geladeira com as coisas que gosto; aí tomo um bom chuveiro e me jogo na cama, sem um telefonema para dar, tem alguma coisa melhor?

Acordar, abrir a janela e ver que está um dia lindo, de sol e céu azul é uma alegria; mas quando o tempo está cinza e chovendo também pode ser muito bom; bom para ficar em casa, botar uma meia de lã, um suéter velho e ficar bem quietinha, lendo um livro.

Não é também glorioso? Todos esses momentos são especiais, mas é preciso prestar atenção; são muitos por dia, nenhum deles têm grande importância, são apenas momentos, e a maior parte das vezes a gente nem percebe; mas não é deles que a vida é feita?

Aprendi, não sei como, a captar muitos desses momentos; é sempre inesquecível, a chegada a uma cidade que não conheço e onde não conheço ninguém, onde tudo é novo, e se eu nem sei falar a língua, melhor ainda.

É o desconhecido, que pode amedrontar ou ser fascinante -e por que não escolher o fascínio?

E tem aquela hora em que, na sexta-feira, você terminou todos os trabalhos, fecha o computador com a sensação do dever cumprido, e aí também não tem nada melhor.

E quando você vai à praia cedinho, se deita na areia e sente aquele sol ainda morno no seu corpo, e pouco a pouco ele vai esquentando?

Aí você entra no mar, dá um belo mergulho, e volta com um pouquinho de frio e apanha mais um pouquinho de sol, tem melhor? E o chuveiro que você toma quando chega em casa e sai do banheiro enrolada numa toalha, cheirosa do sabonete e do shampoo, tem alguma coisa tão boa?

Não há um dia em que eu saia para caminhar na Lagoa que não pense em como a paisagem é linda, como é bom estar em boa saúde e poder andar bem depressa, que quando chegar em casa vou tomar um banho de banheira para relaxar e não tenho nenhum compromisso para a noite, isso não é felicidade pura?

São tantas coisas bobas e boas que nos acontecem e que não notamos, e que se notássemos poderíamos ser bem mais felizes.

Mas uma coisa me deixa curiosa: todas as lembranças que tenho desses bons momentos, momentos inesquecíveis em que não aconteceu nada de extraordinário, eu estava só. Claro que houve outros, de amor, amizade ou paixão que foram maravilhosos, mas dos que eu me lembre mesmo, eu estava só. O que será que isso quer dizer?

Que não precisamos dos outros para sermos felizes? Que dependendo de como somos podemos ter momentos de grande felicidade que não dependem de ninguém, como costumamos pensar? Desconfio que sim, e só sei que a vida, acredite, é muito simples e muito boa.

danuza.leao@uol.com.br

ELIANE CANTANHÊDE

Fidelidade no bordel

BRASÍLIA - Quando o PMDB tira Jarbas Vasconcelos e Pedro Simon de qualquer comissão no Senado, o bem está perdendo para o mal. Jarbas e Simon estão na origem do MDB e do PMDB, na sua história de lutas e de construção. Foram trocados pelos éticos e famosos quem?

É assim que o maior partido do país se transformou no principal símbolo da falência partidária, da fragilidade da representação parlamentar e da descrença da sociedade brasileira em seus políticos e no Congresso Nacional.

Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal enveredou na semana passada pela seara legislativa e fez o que o Congresso se recusa a fazer: deu um clique na fidelidade partidária.

Quem mudar de partido perde, ou pode perder, o mandato. A decisão do Supremo merece aplausos.

Não há quem possa discordar da medida, do objetivo moralizante e da necessidade de fortalecer os partidos. Mas, passada a festa, vem a realidade: como exigir fidelidade em bordel, quando ninguém é de ninguém?

No rol dos que mudaram de partido, chama atenção a quantidade dos que aderiram ao PR. Uns 20.

Por que será? Por "ideologia"? O PR é a fusão de PL com Prona e de Valdemar da Costa Neto (que renunciou ao mandato e voltou pelo voto depois) com Enéas Carneiro (do "Meu nome é Enéas!", que morreu).

Obviamente, quem saiu de qualquer partido para entrar no PR não quer ouvir falar de programa, de fidelidade partidária nem de fidelidade a coisa nenhuma.

A fidelidade partidária é uma cobrança antiga, para tentar um mínimo de compromisso dos parlamentares e reduzir o mercado de compra e venda. Mas isso é uma parte da história.

Sem reforma político-eleitoral, a origem dos vícios fica, a representação parlamentar continua ladeira abaixo. Mais do que Jarbas e Simon serem fiéis ao PMDB, o PMDB é que deveria ser fiel a eles. E a ele próprio.

ecantanhede@uol.com.br