sábado, 26 de abril de 2008



27 de abril de 2008
N° 15584 - Martha Medeiros


Nós, os homens

Recentemente participei de um evento em um bar de Porto Alegre, onde foi organizado um sarau filosófico (totalmente informal e divertido, senão nem estaria lá) cujo tema a ser debatido era a felicidade.

Na hora de dar início ao papo, um dos anfitriões da noite pegou o microfone para me apresentar à platéia e então fui surpreendida. Ele disse mais ou menos o seguinte: "Eu deveria chamar agora uma das melhores colunistas do país, mas eu prefiro dizer que ela é um dos melhores colunistas do país, porque acho que ela já ultrapassou esse sexismo".

E me chamou. Tirado o susto de eu estar, na opinião dele, entre os the best of, o que me agradou é que não sou mesmo chegada a clubes da luluzinha e sempre defendi que homens e mulheres fazem parte da mesma turma, logo, adorei essa ampliação de mercado.

Foi um bom começo para debater a felicidade, sensação que se atinge, entre outras coisas, pelo espírito aberto e pelo bom humor, e não pelo complexo de perseguição: "Humm, será que ele foi machista e quis dizer que sou boa porque escrevo como um homem?".

O gênero humano é designado pelo masculino: quando se diz que o homem está destruindo o planeta, não significa que não haja mulheres contribuindo para a devastação. Somos todos homo sapiens, expressão que sugere uma figura de barba e bigode, mas também podemos ser chamados de pessoas, substantivo feminino plural. Tudo retórica, né?

Nós, os escritores. Nós, os brasileiros. Nós, os cozinheiros. De que sexo somos nós enquanto coletividade? Neka Menna Barreto, Roberta Sudbrack, Carla Pernambuco e Carol Heckmann, pra citar a categoria profissional homenageada nesta edição do Donna ZH, estão entre os grandes chefs de cozinha do Brasil, ao lado (não atrás, nem na frente) de Alex Atala, Felipe Bronze, nosso estimadíssimo José Antonio Pinheiro Machado e os franceses que aqui se instalaram, Philippe Remondeau, Claude Troisgros e Olivier Anquier, quase brazucas, não fosse o sotaque.

Toda essa confusa e delirante introdução é pra dizer que, além de não me importar em ser considerada "um deles" (sejam eles quem forem) e prometer me esforçar mais para continuar sendo um bom colunista (ops, quis dizer boa), a partir de agora vou me dedicar a ser também uma cozinheira ao menos razoável.

Porque é inadmissível que, ao contrário da maioria dos meus amigos machos, que são ótimos de forno e fogão, eu não consiga preparar meus próprios suflês, não saiba o ponto certo de cozinhar um camarão, não tenha noção de como se deixa uma batata frita bem sequinha, deixe sempre o bife passar do ponto e mal saiba como temperar uma salada decentemente.

Está decidido: às panelas. A partir deste mês vou ter aulas com uma mulher e serei ainda mais feliz: vou cozinhar feito um homem.

Um excelente domingo e um ótimo início de semana.

Diogo Mainardi

Caiu na rede é peixe

"Em 2006, o ministro da pesca foi a Limoeiro do Ajuru, no Pará. Ele decidiu transformar o compromisso oficial num ato da campanha eleitoral de Lula. O deputado Carlos Sampaio declarou que nunca viu um caso mais vexatório de uso da máquina pública"

Quem? Altemir Gregolin? Sim, Altemir Gregolin. É o ministro da Pesca. Para enquadrá-lo melhor: é do PT. Para enquadrá-lo melhor ainda: pertence à corrente mais à esquerda do partido, "A Esperança É Vermelha", cuja plataforma é "fazer do Brasil uma democracia digna desse nome".

Em 6 de outubro de 2006, Altemir Gregolin foi a Limoeiro do Ajuru, no Pará. Ele participou de um ato para a entrega de carteiras de pescador aos moradores locais. Fato número 1: era um compromisso oficial, organizado pelo Ministério da Pesca e financiado com dinheiro público.

Fato número 2: o ato ocorreu em plena campanha eleitoral, espremido entre o primeiro e o segundo turnos. Altemir Gregolin, cumprindo a promessa de fazer do Brasil uma democracia digna desse nome, decidiu transformar o compromisso oficial num ato da campanha eleitoral de Lula. Lá pelas tantas, em seu discurso, ele disse o seguinte:

– Eu estou achando que vocês são peitudos. Vocês deram para o presidente Lula 6.495 votos, 54% dos votos daqui vocês deram para o presidente Lula. Eu quero agradecer em nome do presidente. Isso é muito importante, vou levar para o presidente, vou mostrar para o presidente.

Depois conclamou, em meio aos aplausos:

– E ainda vai aumentar mais essa votação no segundo turno, não é verdade?

Verdade. Lula aumentou seus votos no segundo turno. O tempo passou e, como todos os outros abusos cometidos no primeiro mandato, o assunto parecia definitivamente enterrado.

Até que, no último dia 10 de abril, Altemir Gregolin foi à CPI dos Cartões. Vic Pires, deputado do DEM, interrogou-o sobre os fatos de Limoeiro do Ajuru.

O ministro, mais peitudo do que seus pescadores, negou que pudesse ter feito campanha política num ato oficial. A seguir, entrevistado na TV, desafiou Vic Pires a apresentar provas de sua denúncia.

Se é isso que ele quer, eu apresento as provas. O ato público foi todinho filmado. Fiz um pot-pourri dos melhores momentos do DVD e o descarreguei no site de VEJA. Está lá: a chegada do ministro, a entrega das carteiras, o ministro agradecendo em nome de Lula, o ministro pedindo votos para Lula no segundo turno.

Depois de ver as imagens, o deputado Carlos Sampaio o denunciou ao Conselho de Ética e à procuradoria-Geral da República. Declarou também que nunca viu um caso mais vexatório do que esse de uso da máquina pública e de improbidade administrativa.

Lula gosta de pesca e de pescado. Entre seus gastos sigilosos, disponibilizados pelo TCU, há desde o caviar comprado no Mercadinho La Palma até os 30 quilos de bacalhau que fartaram sua ceia de Natal.

Em 7 de abril de 2003, foi feita uma despesa de 1.480 reais para comprar 1 quilo de barbatanas de tubarão, iguaria conhecida por suas propriedades afrodisíacas. A pesca de tubarões para a retirada de suas barbatanas é proibida no Brasil.

A gente sabe, no entanto, que nada é proibido no Brasil lulista, nem a pesca de tubarões, nem o uso de dinheiro público para a pesca de votos.

Para quem já defendeu o impeachment de Lula, como eu, agora só resta defender o indiciamento do ministro da Pesca. É uma perspectiva bem mais mísera. Mas foi o que aconteceu com o país: nossas perspectivas se tornaram bem mais míseras.


Ponto de vista: Lya Luft
Menina quase morta, sozinha

"Não a vi abraçada, levada no colo por alguém desesperado que tentasse lhe devolver a vida, que a cobrisse de beijos, que a regasse de lágrimas. Estava ali deitada, a criança indefesa, como um bicho atropelado com o qual ninguém sabe o que fazer"

Como grande parte do país, acompanho obsessivamente o caso da menininha de 5 anos brutalmente maltratada, espancada, jogada no chão, esganada, e finalmente atirada pela janela como um gato morto. Corrijo: nenhum de nós jogaria pela janela um gato morto.

Talvez um rato: se encontrasse um rato morto em minha casa, num gesto insensato eu o pegaria pela ponta do rabo e o jogaria pela janela (a minha também fica num 6º andar). Seria, além disso, mal-educado: não se jogam coisas pela janela de apartamentos. Nem menininhas, mortas ou vivas.

Escrevo aqui com o maior cuidado: não devo afirmar que pai e madrasta trucidaram a menina e se livraram dela como se fosse um pedaço de lixo. Para isso temos a polícia, num trabalho de primeiríssimo mundo.

Então: alguém a espancou, atirou-a ao chão, talvez lhe quebrando ossinhos da bacia, e a esganou por três minutos. O termo "esganar" é meio antigo: como será apertar por três minutos o pescoço de uma criança de 5 para 6 anos?

É difícil entender o tempo de agonia e dor de três minutos. Quem faz fisioterapia eventualmente é instruído: contraia esse músculo por vinte segundos. Tentem contar os 180 segundos que compõem três minutos de pavor.

Ilustração Atômica Studio

Essa história terá sua explicação em breve. Mas quem cometeu essa bestialidade terá seu merecido castigo neste país das impunidades e das leis atrasadas e frouxas?

Recentemente, aqui perto, um menino de 15 anos confessou na maior frieza o assassinato de dezessete pessoas. Quinze deles já foram confirmados. "Matei, sim." Talvez tenha acrescentado, num dar de ombros: "E daí?".

Por ser menor de idade, como tantos assassinos iguais a ele, foi para uma dessas instituições de ressocialização nas quais não acredito para esses casos pavorosos. Logo estará livre para reiniciar com alegria sua atividade de serial killer. E, se perguntarem a razão, talvez diga como um jovem criminoso que assaltou um amigo meu: "Nada.

Hoje saí a fim de matar alguém". Nossas leis vão finalmente, segundo entendi nas palavras do novo presidente do Supremo, ser realistas, graves, portanto justas? Eu quero mais: pena de morte para casos como os que citei, independentemente da idade.

Pelo menos prisão perpétua, sem misericórdia. Quem cometeu o horrendo crime de São Paulo deve apodrecer numa prisão pelo resto de sua miserável vida.

A menininha atirada no minúsculo jardim de seu edifício, ainda viva, ficou ali por muito mais que três minutos. Imagino sua alminha atônita e assombrada, no escuro. Ainda presa ao corpo, ainda presente.

Na loucura que o caso provoca, porque ela poderia ser nossa criança sobre todas as coisas amada, o que mais me atormenta é a sua solidão.

Não a vi, em nenhum momento, abraçada, levada no colo por alguém desesperado que tentasse lhe devolver a vida que se esvaía, que a cobrisse de beijos, que a regasse de lágrimas, que a carregasse por aí gritando em agonia e pedindo ajuda. O que teria feito a pobre mãe se estivesse presente.

Estava ali deitada, a criança indefesa, como um bicho atropelado com o qual ninguém sabe o que fazer. Na nossa sociedade, em que as sombras mais escuras do nosso lado animal andam vivas e ativas, lá ficou, por um tempo interminável, caída, quebrada, arrebentada, e viva, a menina quase morta. Sozinha.

Lya Luft é escritora


A arte de envelhecer

As novas descobertas que ajudam a abrandar os sinais da passagem do tempo e garantir uma velhice cheia de vida

IRENE RUBERTI, CAROLINA MELO E SUZANE FRUTUOSO

EM PAZ COM O ESPELHO
Adriana, de 58 anos, com as filhas gêmeas Bianca (à esq.) e Chiara, de 24. “O importante é viver bem todas as fases da vida”, diz a mãe

A paisagista Adriana Giuliano Miniguini, de 58 anos, é daquelas mulheres maduras que, sem esforço, atraem olhares. Na juventude, a beleza da italiana criada no Brasil era tamanha que as pessoas paravam para observá-la. Adriana continua feliz com sua aparência.

Tem rugas, mas nunca quis aplicar Botox ou se submeter a grandes tratamentos estéticos. “As rugas são o sinal de uma nova fase na minha vida.

O importante é viver bem todas elas”, diz. A forma como encara o envelhecimento é tão positiva e sábia que influencia as três filhas, Bianca, Chiara (gêmeas de 24 anos) e Natália, de 34. “Queremos seguir os passos de nossa mãe. Há pessoas que fazem mil tratamentos, mas não são felizes. Nunca se sentem realmente bonitas”, diz Natália.

Além da genética, que parece favorecer as mulheres da família Giuliano Miniguini, elas se beneficiam de bons hábitos adquiridos na infância. A alimentação sempre foi saudável, com frutas, verduras, legumes e carnes magras. Todas fizeram balé, como a mãe.

As quatro freqüentam academias, para manter o corpo em forma. Cuidam da pele, com limpeza, hidratação e filtro solar, diariamente. Não têm o menor interesse em disfarçar os anos vividos, uma das maiores obsessões contemporâneas.

Artistas sofrem essa pressão contra o envelhecimento com freqüência. Recentemente, uma maquiadora perguntou ao ator Stepan Nercessian, de 54 anos, por que não fazia uma plástica para tirar as bolsas sob os olhos.

“Não quero matar o velho que vou ser”, disse ele. “Quero me olhar no espelho com 70 anos e ver como realmente sou.” Essa reação é uma exceção.

Para camuflar a idade, homens e mulheres se entregam aos mais variados tratamentos estéticos sem medir esforços e conseqüências. Alguns exageram no Botox e ficam com a expressão paralisada. Submetem-se a sucessivas cirurgias plásticas e ganham um aspecto de boneco de cera.

Quase sempre, o excesso de intervenções provoca mais estranhamento que admiração (Clique aqui e confira a opinião de internautas sobre o visual de celebridades).

Apesar dos avanços da medicina, a descoberta da pílula da juventude continua sendo um sonho distante

Um dos motivos que tornam a velhice um fantasma é o medo das restrições impostas pelo envelhecimento. O corpo começa a dar sinais de cansaço.

A pele perde o viço. O cérebro murcha. Aos 50 anos, o encéfalo pesa em média 1,3 quilo. Quinze anos depois, costuma ter 200 gramas a menos. O sistema nervoso fica mais lento. A massa muscular diminui. A gordura aumenta.

Apesar dos avanços da medicina, que têm contribuído para o aumento da expectativa de vida, a ciência está muito longe de descobrir uma pílula da juventude. Mas existe uma receita para envelhecer com mais qualidade de vida. Ela consiste em cinco simples recomendações:

comer menos
movimentar-se mais
usar e abusar do cérebro
realizar atividades em grupo
nutrir alguma forma de espiritualidade


26 de abril de 2008
N° 15583 - Nilson Souza


Balões ao vento

A não ser que ocorra um milagre, dificilmente será encontrado com vida o padre paranaense que decolou pendurado num cacho de balões de festa, cheios de gás hélio.

A aparente loucura me lembra uma poesia do simbolista Alphonsus de Guimarães, que exemplifico com a primeira e a última estrofes: "Quando Ismália enlouqueceu,/ pôs-se na torre a sonhar.../ Viu uma lua no céu,/ viu outra lua no mar./(...) As asas que Deus lhe deu/ ruflaram de par em par.../ Sua alma subiu ao céu,/ seu corpo desceu ao mar...

Mas somente 24% das pessoas que responderam à enquete do programa Polêmica, da Rádio Gaúcha, acham que o religioso agiu movido pela loucura. A maioria dos votantes (66%) cravou na palavra "irresponsabilidade".

Especialistas na arte de voar confirmam que o padre realmente desprezou algumas precauções básicas, como o manejo do equipamento que serviria para indicar sua localização às equipes de acompanhamento.

Mas ele não era marinheiro de primeira viagem: já havia, inclusive, voado do sudoeste do Paraná até a Argentina, num percurso de mais de cem quilômetros e pendurado no mesmo tipo de balões. Só que desta vez o vento soprou para o lado errado.

O curioso desta tragicômica história é que o pároco de Paranaguá teve um antecessor histórico ilustre, o também padre Bartolomeu de Gusmão, que no século 18 levantou do chão um prosaico balão de papel grosso, cheio de ar aquecido.

Na época, o engenhoso jesuíta imaginou o seu balão mágico depois de observar uma bolha de sabão flutuando numa camada de ar quente. Só que também fez as suas trapalhadas. Numa das tentativas, o balão pegou fogo e quase provocou um incêndio no palácio do rei português dom João V, seu protetor.

O padre brasileiro que inventou a Passarola - este era o nome da máquina voadora - é também personagem de um dos melhores romances do português José Saramago, O Memorial do Convento, que conta a história da construção de uma catedral em Mafra, como agradecimento do monarca a Deus por lhe ter dado um herdeiro.

Meu personagem favorito do livro é Blimunda, uma mulher com o poder extraordinário de enxergar dentro do corpo das pessoas e no interior de objetos.

Só ela mesmo seria capaz de prospectar o que se passou na cabeça do padre aventureiro quando ele resolveu assumir o risco de decolar com mau tempo e sem a garantia de que seria localizado pelo resgate em caso de acidente.

Entre os ouvintes do Polêmica, 5% acham que ele fez isso por simples aventura. Outros 5% concluíram que foi por fé.

De onde se conclui que a fé até pode mover montanhas, mas não guia balões.

sexta-feira, 25 de abril de 2008



25 de abril de 2008
N° 15582 - Liberato Vieira da Cunha


Com nome e sobrenome

Tem um sentimento que fui perdendo sem aviso, ao longo de meus caminhos.

Eu ia a uma reunião dançante numa das mansões dos Moinhos de Vento. A música era agradável, as meninas-moças em flor apetecíveis, de vez em quando pintava uma cuba libre, e então eu olhava o relógio Lavina: era uma da madrugada.

Como todo mundo estava mesmo indo embora, eu simplesmente andava até o Centro: àquela hora não havia mais bondes.

Tinha um filme com a Doris Day no Cine-Teatro Presidente, ali na Benjamin Constant. A Doris Day jamais ganhou o Prêmio Nobel, muito menos um Oscar, mas eu gostava dela, em especial numa fita chamada (unicamente em português) Confidências à Meia-Noite.

Eu ia à sessão das 10 e na saída encarava a Cristóvão Colombo, a Alberto Bins, a Coronel Vicente, trechos da Independência, da Dom Feliciano, da Duque e me via entregue são e salvo na Rua João Manoel, onde morava.

Estudava à noite na Faculdade de Direito da Avenida João Pessoa. Saía às 11 e 15, tomava a André da Rocha, a Praça Sévigné, a Fernando Machado, respirava fundo e escalava a escadaria, margeada de paineiras, dotada de terraços e de um túnel emparedado, até voltar à já mencionada Rua João Manoel.

Minhas únicas companhias eram os casais de namorados que decoravam o belvedere.

Fui perdendo esse sentimento, de que falei lá no começo, ao longo de meus muitos caminhos.

De súbito, se tornaram raras as mansões dos Moinhos de Vento - e ainda mais raras as reuniões dançantes. De súbito, não havia mais bondes. De súbito, foram fechando um a um os cinemas com entrada na calçada. De súbito, a Faculdade de Direito da Avenida João Pessoa tornou-se mais recôndita que seus jardins fugidios.

De súbito, me dei conta de que o sentimento que fui perdendo sem aviso ao longo de meus caminhos tinha nome e sobrenome: ausência de insegurança.

Uma ótima sexta-feira e um excelente fim de semana.

quarta-feira, 23 de abril de 2008



23 de abril de 2008
N° 15580 - Martha Medeiros


Não sorria, você está sendo filmado

Sou incentivadora de alguns métodos clássicos para garantir a segurança pública - por exemplo, policiais bem remunerados e bem treinados, e em quantidade suficiente para monitorar as ruas.

Mas não sou fanática. Tenho me constrangido com um procedimento que está se tornando comum nos "prédios inteligentes", todos eles de escritórios. Falo dessa mania irritante de nos ficharem na recepção.

Antes de pegar o elevador, é preciso passar por uma catraca. E, antes da catraca, há os recepcionistas que, não bastasse pedirem nossos documentos (até aí, ok) pedem para nos fotografar e também para que a gente aplique nossa digital num sensor para que a visita fique registrada para a posteridade.

Não deve ser muito diferente de entrar num presídio, só que não estou visitando nenhuma cadeia de segurança máxima, quero apenas consultar um dentista.

Outro dia fui bem antipática num desses halls de entrada. Logo eu, que costumo ser uma flor de condescendência.

Pediram documentos, dei.

Pediram para tirar foto, tirei.

Pediram para aplicar minha digital numa máquina, apliquei.

Mas minha digital não ficou registrada. Sei lá, o teclado do computador deve ter gasto meus dedos.

Então, a recepcionista me perguntou: posso passar um hidratante na sua mão?

Juro, sou calma, uma monja beneditina, mas não vou passar um hidratante qualquer no meio de uma tarde calorenta só porque minha digital não está sendo bem registrada por uma máquina incompetente.

Vim trazer minha filha para uma consulta de revisão, e não trazer escondido um celular para um traficante.

Coitada da moça, estava ali apenas cumprindo ordens. Eu não disse nada disso, não nesse tom, mas admito, me recusei a passar o tal creme.

Acabaram me deixando entrar, a contragosto, temendo que eu violasse todos os códigos de segurança e estivesse escondendo uma Uzi embaixo do vestido a fim de cometer uma carnificina naquele prédio todo espelhado.

Ah, me deu vontade mesmo de incorporar um Javier Bardem, de cabelinho chanel e portando uma arma de matar gado. Onde os fracos não têm vez, rá-tá-tá-tá.

Da mesma forma, meu espírito selvagem aflora cada vez que vejo uma placa avisando: sorria, você está sendo filmado! Sorrio nada. E quase viro um Hannibal Lecter quando passo por aquelas portas giratórias e intimidatórias dos bancos, onde revistam nossa bolsa como se vasculhassem nossa alma.

Sei que são tempos difíceis e paranóicos, sei que todo esse aparato serve para identificar criminosos, mas cá entre nós: é uma praga essa histeria com segurança.

Daqui a pouco essa vigilância insana vai se tornar mais desconfortável do que ser gentilmente assaltado.

Dia Internacional do sofá - Aproveite a quarta-feira.

domingo, 20 de abril de 2008


FERREIRA GULLAR

O cachorro como obra de arte

A arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização, é refém da instituição

ANO PASSADO, em 2007, um costarriquenho, que se diz artista e se chama Guillermo Habacuc Vargas, pegou na rua um cão vira-lata, amarrou-o numa corda e o prendeu à parede de uma galeria de arte, onde o animal ficou definhando até morrer de fome. Tratava-se, segundo ele, de uma "instalação perecível", uma obra de vanguarda.

Pois bem, para o espanto das pessoas que já se tinham revoltado com a crueldade de Habacuc, a Bienal de Arte Centro-Americana de Honduras acaba de convidá-lo para dela participar com a referida "obra" e concorrer a um dos prêmios do certame.

Será tudo isso verdade ou apenas uma "pegadinha"? Custa crer que o dono de uma galeria de arte permita que um exibicionista pirado amarre ali um pobre cão e o deixe morrer de inanição. Como se deu a coisa?

O animal urinava e cagava preso à parede, ganindo desesperado? As pessoas iam assistir a esse espetáculo de sadismo e ninguém se revoltou nem nenhuma sociedade protetora dos animais protestou?

A possibilidade de ter o cão morrido sem que ninguém tenha sabido está fora de questão, uma vez que o objetivo desse tipo de "autor" é precisamente chamar a atenção sobre si, já que nenhum outro propósito pode ser considerado.

Mais surpresa causa ainda a notícia de que a Bienal de Honduras o tenha convidado a repetir, nela, aquele mesmo espetáculo de crueldade e sadismo.

Não obstante, essa informação está em vários sites, e surgiu até um movimento de protesto -um abaixo-assinado- para impedir que a Bienal mantenha o convite. Se o que Habacuc queria era escandalizar e ganhar notoriedade, conseguiu, ainda que a notoriedade própria aos torturadores e carrascos.

Não obstante, apesar da repercussão que o cerca, esse fato não é tão novo assim. Sem a mesma dose de cocô e urina nem a mesma animalidade, outras "obras" e atitudes ocorridas antes são reveladoras do impasse a que chegaram a arte dita de vanguarda e as instituições que a exibem, particularmente as Bienais.

Uns poucos anos atrás, um gaiato enviou para a Bienal de São Paulo, como sua obra, a seguinte proposta: abrir uma segunda porta na exposição por onde as pessoas entrariam sem pagar.

Não podia ser aceita, pois implicaria sério prejuízo ao certame, mas também não poderia ser rejeitada, porque, sendo a Bienal "de vanguarda", tal rejeição comprometeria sua imagem.

Em face disso, adotou-se a seguinte solução: improvisar, nos fundos do prédio, uma portinha meio secreta, garantida por um guarda que a manteria aberta por apenas uma hora e só permitiria a entrada de dez visitantes, no máximo. E assim as coisas se acomodaram, salvando-se a audácia do artista e o caráter vanguardista da instituição.

Pode ser que me engane, mas a impressão que tenho é de uma luta farsesca entre falsos inimigos que necessitam um do outro para existir: sem o espaço institucional (galeria, museu, Bienal), não existe a vanguarda e, sem a vanguarda, não existem tais instituições. E a gente se pergunta: mas a vanguarda não nasceu contra a arte institucionalizada? Pois é...

Voltemos ao cachorro. O tal Habacuc pegou o cachorro na rua e o levou para a galeria de arte a fim de fazer dele uma "instalação perecível", ou seja, uma obra de arte.

Se o tivesse levado para um galpão qualquer e o deixasse lá morrendo de fome, ele não passaria de um pobre vira-lata vítima de um maluco. Mas, como o Habacuc é artista -ou se diz-, levou-o para uma galeria de arte e aí o pobre cão, de cão virou instalação, por obra e graça do espaço em que o puseram para morrer.

Esse é um dado que os críticos de arte (também de vanguarda) teimam em ignorar, ou seja, que, nessa concepção estética, é o espaço institucional que faz a obra: por exemplo, um urinol igualzinho ao de Duchamp, se estiver no Pompidou, é arte; se estiver no banheiro de um boteco, é urinol mesmo, pode-se mijar nele à vontade.

É, portanto, diferente da Mona Lisa, que depois de roubada do Louvre, em 1911, e levada para um quarto de hotel na Itália, continuou a obra-prima que sempre foi.

É que a chamada arte conceitual dispensa o fazer artístico e afirma que será arte tudo o que se disser que é arte, mas desde que o ponham numa galeria ou numa Bienal.

Ou seja, a essência da arte de vanguarda, que nasceu contra a institucionalização da arte, é contraditoriamente, a instituição; não está nas obras e, sim, no espaço institucionalizado em que ela é posta.

Talvez por isso, a próxima Bienal de São Paulo não terá obras de arte: exibirá apenas o espaço institucional vazio, que as dispensa.

DANUZA LEÃO

Noiva pobre, marido rico

Será que ele abre uma conta em nome dela, dá cartão de crédito ou diz para mandar as contas para a secretária?

CASAMENTO JÁ é difícil; casamento com marido rico, por incrível que pareça, é mais difícil ainda. Costuma caber à família da noiva bancar o vestido, o enxoval e todas as despesas.

Afinal, um casamento é um casamento, e existem a igreja, as flores, a música, o vestido da mãe da noiva, da irmã da noiva, da avó da noiva, as damas de honra, e a festa propriamente dita. E o champanhe, claro.

Se o noivo for rico e se oferecer para bancar todas as despesas, fica tudo mais fácil. Afinal, tem que fazer bonito perante a família dele, os amigos dele etc.

Mas depois da lua-de-mel começa a vida real, e chega a hora de conversar sobre as despesas da casa. Falar de dinheiro é sempre um estresse, e entre apaixonados, pior ainda.

Será que ele abre uma conta no banco em nome dela, dá um cartão de crédito, ou diz para mandar as contas para a secretária?

Ela precisa saber até quanto pode gastar; será que ele diz? Assunto difícil, mesmo vindo de um marido. E se ele não disser, será que ela pergunta? E se resolver passar num shopping e comprar um vestidinho, tudo bem, ou ele pode achar ruim?

Detalhe: quanto mais rico ele for, pior. Se houver um teto para os gastos, ela pode achar que, diante da fortuna dele, é pouco; se não houver limite, ela pode sair gastando que nem uma louca -afinal, quem nunca comeu melado etc. Ele vai ter que dizer qual o limite, ela pode não gostar, aí já viu.

E em viagem? Um homem ao lado, pagando cada conta, nem pensar; e toda mulher precisa de um dinheirinho de bolso para comprar um chocolate, um batom, umas coisinhas de farmácia, pagar um táxi. Será que de manhã, na hora de sair, ele põe uma nota de cem dólares na bolsa dela, assim como quem não quer nada?

Pedir ela não pede, mas se tiver um cartão de crédito daqueles dourados, ou o mais mais de todos, o de platina, pode ouvir um "vê lá se não exagera nas compras, hein?"

Detalhe: se gastar muito pouco é capaz de ele achar que ela tem cabeça de pobre -é, tem homem assim. São raros mas existem. Digamos que o casal seja convidado para uma festa.

Uma festa não é só um lindo vestido: tem sapato, bolsa e jóias. Ela faz charme e diz que quer comprar um vestido bem bonito para ser a mais linda da festa -para ele. Mas pergunta até quanto? E homem lá sabe quanto custa roupa de mulher? Uma complicação.

Outro problema: se ela -que é pobrinha- se casa com ele -que é rico-, como fica a família dela? O irmão, que nunca foi nem a Búzios, passa a ter direito a férias em Nova York ou continua a ter como sonho de consumo ir a Porto Seguro, de ônibus, passar uma semana?

Um terreno mais do que fértil para grandes embates: ou ela briga com o marido, ou o irmão briga com ela. Ele pode dizer, cheio de razão, que se casou com ela, não com a família dela.

Mas na hora em que ele negar a seu querido cunhado o que para ele seria uma migalha, ela vai continuar no mesmo bom humor?

Exceto nos romances, filmes e novelas, essa história de mulher pobre que se casa com homem rico é muito complicada; mas Deus é grande e o final é sempre feliz -as mulheres têm jogo de cintura e se habituam a qualquer coisa na vida, até a um marido rico.

Difícil, mas difícil mesmo, é quando um homem pobre se casa com uma mulher rica. Começa no namoro; na hora de pagar a primeira conta do restaurante, quem puxa o cartão de crédito?

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 19 de abril de 2008



20 de abril de 2008
N° 15577 - Martha Medeiros


All we need is love

Recentemente manifestei meu entusiasmo com o documentário Shine a Light, que mostra um impactante show dos Rolling Stones intercalado por alguns poucos depoimentos e rápidas cenas de bastidores.

Recebi vários e-mails (como tem roqueiro no sul), porém três pessoas ficaram desapontadas por eu enaltecer a obra dirigida pelo Scorsese e não ter escrito uma única linha sobre Across the Universe, que ainda segue em cartaz, com trilha dos Beatles, banda que meu eleitorado sabe bem o quanto sou fã.

Um ainda lembrou que escrevi a respeito antes mesmo de assisti-lo, mas por que não depois? Passei pro lado do diabo?

O musical vale pela trilha sonora (ave, Beatles!) e por alguns bons momentos de psicodelismo, mas achei um filme sem vigor, irregular, de uma rebeldia pueril.

Pra quem viu Tommy, Pink Floyd The Wall e Hair, pra citar alguns parentes próximos, Across the Universe me pareceu apenas simpático.

Mas pra não dar a impressão de que virei a casaca, e já que o assunto principal desse DonnaZH são os verdadeiros luxos, me rendo: Across the Universe narra uma história de amor, e o amor é o luxo supremo, ao lado da arte, outro luxo indispensável.

Aqui fora das telas, na vida real e mundana, os amores não têm sido eternos e nem infinitos enquanto duram, até porque não duram. São rápidos flashes de entusiasmo, são apostas, são ensaios, são tentativas, são experiências para constar do currículo pessoal de cada um.

Parecem mais fugas do que encontros. Amores quase perversos em sua instantaneidade, em sua fragilidade, em seu medo. Medo de quê? Sei lá, de vingarem: vá que dê certo.

Melhor fazer a fila andar, já que não é fácil administrar um amor. Porém, mais difícil ainda é viver sem ele, e lá vão todos em busca de beijos a granel e realizações automáticas de desejos, tudo muito aflito, sem norte e sem calma. Onde estão as grandes e verdadeiras paixões?

O reconhecimento do amor, a dedicação a esse sentimento, o usufruto dessa emoção passa por uma sensibilidade especial que nada a tem a ver com as urgências de uma sociedade que não sabe mais frear e aquietar-se. Quem nos ajuda a resgatar o amor, aquele amor que merece ser chamado como tal, é a arte.

É ela que nos treina para o exercício da contemplação e para o respeito à solidão, porque só ama direito quem não tem medo de ficar sozinho, quem não usa o amor como salva-vidas, como muleta. E é aí que vou tergiversar e recomendar um terceiro filme que já saiu de cartaz há um tempo, mas está disponível em DVD:

Um Lugar na Platéia, produção francesa sem grandes pretensões, de uma delicadeza hoje incomum, que conta várias pequenas histórias de pessoas que amam e outras que não possuem ninguém, mas todas elas apaixonadas pela música, pela escultura, pelo teatro, pelo cinema, pelos livros e por tudo o que faz a gente se emocionar e se reconhecer como seres humanos.

Foi o filme de amor mais bonito a que assisti nos últimos tempos, um filme sobre o amor-próprio, sem o qual nenhum outro amor funciona.

Um ótimo domingo e um excelente feriado.

Diogo Mainardi

O quilombo do mundo

"O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade das leis que instituíram as cotas raciais no Brasil. É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras"

Barack Obama, num debate eleitoral, na última quarta-feira, respondendo a uma pergunta sobre as cotas raciais:

– Se olharem minhas filhas, Malia e Sasha, e disserem que elas estão numa situação bastante confortável, então (raça) não deveria ser um fator. Por outro lado, se houver um jovem branco que trabalhe, que se esforce, e que tenha superado grandes dificuldades, isso é algo que deveria ser levado em consideração.

Barack Obama costuma mudar o discurso de acordo com a platéia. O que ele disse a uma platéia branca em Filadélfia pode perfeitamente ser desmentido daqui a uma semana, diante de uma platéia negra numa igrejinha batista, no interior da Carolina do Norte.

Mas o fato é que ele quebrou um tabu e defendeu abertamente o fim das cotas raciais. O poder público, segundo ele, tem de ajudar os pobres em geral, conforme os méritos de cada um, e não os negros em particular.

O Brasil macaqueou o sistema de cotas raciais dos Estados Unidos. E macaqueou tarde, num momento em que o próprio candidato negro à Casa Branca já admite aboli-lo.

O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade das leis que instituíram as cotas raciais no Brasil. É uma chance para acabar de vez com o quilombolismo retardatário que se entrincheirou no matagal ideológico das universidades brasileiras.

O ministro Carlos Ayres Britto deu um voto a favor do sistema de cotas raciais, argumentando o seguinte: "É pelo combate a situações de desigualdade que se concretiza o valor da igualdade". Isso se aplicaria se a desigualdade se originasse na universidade. A gente sabe que a realidade é outra.

A gente sabe que a desigualdade nasce no ensino básico, e é lá que ela tem de ser combatida. A má qualidade da escola pública cria uma casta de párias analfabetos, os intocáveis da tabuada, dalits brancos e negros, que nunca poderão se igualar aos que estudam na escola particular.

É desolador ter de repetir sempre a mesma lengalenga. E a lengalenga é: o Brasil gasta dinheiro de mais na universidade e dinheiro de menos no ensino básico. Se é para macaquear os Estados Unidos, temos de macaqueá-los por inteiro.

A universidade pública americana cobra mensalidade dos alunos. Quem pode pagar, paga. Os outros se arranjam com bolsas, empréstimos ou bicos.

Se o Brasil fizesse o mesmo, cobrando mensalidade na universidade pública, sobraria mais dinheiro para investir onde importa: no bê-á-bá.

O sistema de cotas raciais foi rapidamente introduzido na universidade brasileira, beneficiando-se de um ambiente que sempre soube acolher as idéias mais regressivas, como o petismo bandoleiro e o parasitismo estatal getulista. O Brasil se refugiou no passado. O Brasil é o quilombo do mundo.


Uma manchete histórica

"Juro nominal não é juro, minha gente, é a grande mentira que ministros e banqueiros divulgam para facilitar a colocação de seus títulos financeiros nas mãos dos desavisados. O importante não são as reuniões do Copom, mas, sim, saber o valor do juro real e quando ele vira negativo"

A manchete de primeira página da Folha de S.Paulo de 19 de março de 2008 foi um marco na história do jornalismo brasileiro, que merece comentário e elogios. A manchete noticiou o seguinte: "Juro real dos EUA fica negativo com o sexto corte seguido".

Nenhum jornal do mundo alertou seus leitores de que os juros viraram negativos e de que quem aplicasse em títulos públicos americanos iria, a partir daquele dia, perder dinheiro.

Jornais como o The New York Times e o Wall Street Journal publicaram o contrário, que os investidores continuariam a ganhar dinheiro, à taxa de 2,25% ao ano, uma informação incorreta e enganosa.

Jornais e jornalistas americanos discutem há mais de vinte anos por que o jornalismo econômico está lentamente perdendo espaço. Mais intrigante ainda é analisar por que o leitor médio não está disposto a pagar o preço justo da informação, justamente na era da informação. A imprensa precisa subsidiar o custo do jornalismo em geral com a verba dos anunciantes.

Você pagaria uma boa soma em dinheiro para receber manchetes corretas, avisando-o de que você poderia perder dinheiro? Claro que sim! Talvez esse seja o âmago da questão.

O jornalismo econômico nem sempre fornece informação útil suficiente para motivar o leitor a pagar o custo desse jornalismo informativo. Pagar caro para ler informação incorreta, como nesse caso, e ainda ter de ler sobre a desgraça alheia, dossiês e escândalos, simplesmente não compensa.

A Folha de S.Paulo, portanto, fez história ao mostrar que o importante para o leitor é o juro real, e não o juro nominal. Sonhei vinte anos para ver esse dia, razão de meu contentamento e aprovação. Abusei da paciência dos leitores de VEJA nestes anos escrevendo nada menos que seis Pontos de vista batendo sempre nessa mesma tecla.

Juro nominal não é juro, minha gente, é a grande mentira que ministros e banqueiros divulgam para facilitar a colocação de seus títulos financeiros nas mãos dos desavisados.

Professores de jornalismo deveriam ensinar a seus alunos que juro real é pleonasmo, é uma redundância lingüística. Nenhum jornalista econômico escreve dinheiro real, dólar real, câmbio real, importações reais. Juro (real) é simplesmente juro, como o dinheiro, o dólar e o câmbio. O juro nominal é propaganda enganosa.

Pior: o juro (real) varia toda semana, todo mês, mas essas mudanças nunca são noticiadas. O importante não são as reuniões do Copom, mas, sim, saber o valor do juro real e quando ele vira negativo, como apontou a Folha com todas as letras.

Em 1981 o Fed aumentou o juro nominal americano, o que desencadeou a moratória da dívida e o início da década perdida. Nenhum jornalista econômico publicou corretamente o fato na época, que coincidentemente seria semelhante ao noticiado pela Folha: "Juro real americano se torna negativo com o aumento da inflação americana".

O Brasil ficaria mais rico pagando juros negativos, e não mais pobre, como noticiaram os demais jornais. O juro (real) caíra, e não subira, como noticiaram.

Intelectuais como Celso Furtado, que iniciaram o movimento em prol da moratória, teriam caído no ridículo se a população tivesse sido informada da verdade. Recusar-se a pagar uma dívida quando os juros se tornam negativos ou menores é um equívoco monumental.

Outro exemplo foi a crise de 1929, causada em parte por um erro semelhante do jornalismo econômico da época. Nenhum jornal publicou em 1931 a notícia que explicaria a quebra dos bancos nos anos seguintes. "Deflação nas commodities eleva os juros (reais) de 1% para 10% ao ano".

A maioria dos jornais da época publicou, como agora, que os juros nominais foram reduzidos para 2%, para evitar uma recessão! Um jornalista da época que informasse corretamente que o juro (real) subira 1 000% teria alertado leigos e estudiosos para o óbvio.

Aumentar juro em 1 000%, no início de uma pequena recessão, é jogar lenha na fogueira e transformá-la numa enorme recessão – como de fato aconteceu.

Por isso, tenho o dever de aplaudir essa manchete da Folha de S.Paulo publicamente. Não é um mero detalhe ou diletantismo jornalístico, é a quebra de um paradigma de mais de setenta anos que teria evitado duas enormes recessões que atrasaram o Brasil uns vinte anos no mínimo.

Stephen Kanitz é administrador (www.kanitz.com.br)


Hannah nas alturas

Como a atriz Miley (Destiny) Cyrus, de 15 anos, virou uma pop star e estrela do novíssimo cinema em 3-D

Fábio Barreto, de Los Angeles

FANTASIA
Miley Cyrus no traje da pop star Hannah Montana


Desde 2006, a atriz Destiny Hope Cyrus estrela o seriado Hannah Montana, no Disney Channel. No programa, sua personagem é a estudante interiorana Miley Stewart.

Durante o dia, Miley vai à escola, vê os colegas – enfim, leva o que se chama de “vida normal”. O que ninguém suspeita é que a ingênua e frágil garota tem uma identidade secreta: a pop star Hannah Montana, que só se manifesta em grandes shows de música alto-astral.

Miley prefere o arranjo porque deseja conciliar a vida de estrela com a de garota comum. O sucesso foi tamanho que a atriz Destiny Hope adotou o nome artístico Miley Cyrus e passou a fazer shows pelos Estados Unidos. Em sua última turnê, ela lotou todos os shows.

É o que mostra o filme Hannah Montana & Miley Cyrus: o Melhor de Dois Mundos, reproduzido com efeitos tridimensionais. Miley se tornou uma estrela pop de fato – é a garota-propaganda de uma revolução tecnológica em Hollywood. E só tem 15 anos.

O sucesso do seriado pode ser explicado pela identificação do público com a protagonista Miley. Essa personagem, como os milhões de adolescentes que a acompanham, tem duas interpretações de si mesma.

A primeira, na esfera privada, depende da aprovação de pais e colegas. A segunda, exercitada em público (no caso das garotas, nos sites de relacionamento como o Orkut), é a projeção do que gostariam de ser.

Os conflitos entre as duas auto-imagens dão fôlego à trama de Hannah, e encantam as garotas. Além da identificação do público-alvo, Hannah é sucesso porque agrada aos pais. De dia, Miley vai à escola, tem amigos e enfrenta os dilemas da adolescência. Ela ajuda os colegas e cultiva amizades sinceras.

O filme/show Hannah Montana & Miley Cyrus: o Melhor de Dois Mundos – que estréia no dia 25 no Brasil – começa com Miley na pele de Hannah, cantando as músicas do seriado.

Em seguida, abre espaço para Miley, a intérprete, com suas composições próprias. Para atrair ainda mais a garotada, a Walt Disney Pictures gravou o espetáculo com tecnologia 3-D (tridimensional). O efeito é de volume e profundidade realistas. As crianças ficam tão imersas no truque que, vez por outra, tentam tocar a estrela.

O filme arrecadou US$ 35 milhões apenas no fim de semana de estréia. Nas 683 salas 3-D dos Estados Unidos, o filme faturou mais que todas as estréias em formato convencional. Esse fato acelerou a assinatura de um acordo que prevê a ampliação dos circuitos americano e canadense para 10 mil salas 3-D nos próximos três anos, com investimento de US$ 700 milhões.

A Disney, que desenvolveu um formato chamado Disney Digital 3-D, planeja relançar os dois filmes Toy Story em 2009 e 2010 atualizados com essa tecnologia. No Brasil, todas as cinco salas 3-D em operação receberão Hannah Montana.

Quatro são da rede Cinemark (duas em São Paulo, uma no Rio de Janeiro e uma em Florianópolis) e uma da rede UCI (no Rio de Janeiro). Dados da Cinemark mostram que cópias em 3-D atraem 30% mais espectadores que os filmes em tradicionais 35 milímetros.

Mesmo assim, a oferta no novo formato ainda é pequena. Os estúdios se empenham em seguir a tendência tridimensional de Hannah Montana. O sucesso de O Melhor dos Dois Mundos encabeça uma série de filmes 3-D em Hollywood. Há 25 projetos em andamento, com estréia prevista até 2012.

Entre eles estão Avatar, de James Cameron, e Tintin, de Steven Spielberg. Foi dada a largada para o comando da primeira onda de sucessos no gênero. A Disney é a favorita. Hannah Montana e seus milhões de fãs armados de óculos esquisitões comprovam.


19 de abril de 2008
N° 15576 - Nilson Souza


A outra menina

Todos estamos sofrendo com este episódio horroroso da menina lançada pela janela do edifício em São Paulo. Tudo é doloroso no caso: a crueldade do crime, as suspeitas sobre as pessoas que deveriam amá-la e protegê-la, as acusações, as defesas, os testemunhos e também as notícias em torno da tragédia.

Muitas notícias. Notícias demais. Repetitivas. Extenuantes. Revoltantes, até. Como costuma acontecer em casos policiais que se arrastam em ritmo de novela, já tem muita gente querendo matar o mensageiro.

Todo dia ouço alguém responsabilizando a mídia por fazer sensacionalismo, por explorar o sentimento de morbidez do público, por manter o assunto nas manchetes supostamente para vender jornais.

Até parece que algumas pessoas, inconformadas com a falta de explicação para a insanidade cometida contra uma criança, tentam transformar a imprensa no bode expiatório de suas dúvidas e aflições.

Ora, vamos devagar. Se todos corremos para a frente da TV quando o apresentador fala no caso, ou se procuramos nos jornais e revistas os detalhes que ainda não conhecemos, é porque nós estamos alimentando esse monstro midiático que nos assusta e nos causa desconforto. Claro que a mídia comete seus erros e exageros.

Pior do que isso: na ânsia de informar rapidamente e de interpretar, muitas vezes opera injustiças, condena inocentes, arranha reputações e atua de forma irresponsável. Mas a mídia é uma hidra de muitas cabeças - e é injusto considerá-las uma coisa só.

Quem erra, quem faz sensacionalismo e quem age de forma leviana geralmente paga caro por isso, seja pela via judicial, seja pela mais justa e eficiente das punições, que é a rejeição do público. Numa democracia, o poder está com os indivíduos, que podem trocar de canal, escolher outra publicação, acessar a informação pela maneira que melhor lhes convier.

Mas é injusto condenar à execução sumária o mensageiro da má notícia.

Alguém tem que fazer esse trabalho. Nós, jornalistas, não gostamos de dar notícias ruins, até mesmo pelo fato de que somos os primeiros a conhecê-las e a sofrer com elas. Esse episódio da menina paulista é daqueles que todos preferiríamos não relatar.

Porém, uma suposta omissão nesse caso seria quase uma cumplicidade com quem cometeu o crime e um descaso com outra menina extraviada que precisa urgentemente ser encontrada para ser protegida. Ela se chama Verdade.

sexta-feira, 18 de abril de 2008



18 de abril de 2008
N° 15575 - Liberato Vieira da Cunha


Universos opostos

Entrei numa livraria e pedi uma caneta. A moça do balcão me serviu um variado sortimento de exemplares de plástico e eu desisti na hora da compra.

Me bateu uma estranha sensação de pertencer a um outro tempo. Era como se eu estivesse em busca de um chapéu, de uma bengala, de um par de polainas. A senhorita que me atendeu, percebi logo, não tinha remota noção do objeto do meu desejo.

Eu não estava atrás de uma Parker 51, de uma Crown, de uma Compactor, delicadas esculturas mecânicas com as quais aprendi a escrever e que não dispensavam o competente vidro de tinta. Queria não mais do que uma esferográfica que as imitasse, revestida de metal, se possível dotada de uns ares dos anos 50.

Tenho a impressão de que pessoas como eu estão ficando obsoletas.

Esses dias me surpreendeu na rua uma dessas súbitas chuvas de outono. Chuvas pedem guarda-chuvas. Tudo o que encontrei, aliás sem muita procura, o que atesta a ampla aceitação do modelo, foram uns exemplares frágeis e chineses, só absolvidos pelo preço.

Não esperava nada de seda ou finamente lavrado em bambu. Queria apenas algo sólido, que me protegesse da intempérie. Pois bastou uma rajada de vento mais forte para que o produto oriental se desfizesse.

Adquiri, depois de demorada pesquisa, um rádio portátil que esperava me servisse o trivial variado: a temperatura, os noticiosos, os jogos de fim de semana.

Não durou um mês. Logo começou a apresentar uma repentina rouquidão, uns assovios esquisitos, quando não um silêncio obstinado. Era um voraz consumidor de pilhas e da paciência do próximo.

Acho que as coisas estão ficando provisórias.

Mas há nisso um paradoxo difícil de deslindar.

Ao mesmo tempo em que objetos são desenhados para uma curtíssima vida, outros são projetados para uma existência complicada e sofisticada.

Um aparelho de som, um forno de microondas, uma televisão são hoje dotados de tantas teclas, que o comum dos mortais nunca chega a abarcar sua inteira finalidade.

Se você liga para uma organização de algum porte, logo surge a voz da senhorita da múltipla escolha. Quer um conserto? Aperte no botão 2. Vai fazer uma reclamação? Pressione o botão 4. Quer uma informação? Comprima o botão 6.

É a convivência de dois universos opostos. Um concebido para durar menos do que as rosas de Malherbe. Outro desenhado com a vocação da Esfinge.

Ótimo fim de semana e um excelente feriadão para todos vocês. Aproveitem que eu terei que estudar.

quarta-feira, 16 de abril de 2008



16 de abril de 2008
N° 15573 - Martha Medeiros


Antes e depois de João Hélio

A expressão "banalização da violência" tem sido usada há anos para designar crimes estarrecedores que não estarrecem mais, brutalidades fora do comum que viraram comuns, casos inacreditáveis em que passamos a acreditar fácil, fácil. Com isso, a expressão caducou. Dizer que hoje há uma banalização da violência também virou banal.

Eu não sei em que momento a morte passou a ser nada. Nada. Acho que foi a partir do João Hélio, aquele menino de sete anos que foi arrastado pelas ruas por um carro conduzido por assaltantes, preso a um cinto de segurança.

Aquilo foi um divisor de águas, ao menos pra mim. O tempo passou a se dividir entre A.J.H. e D.J.H. (Antes e Depois de João Hélio).

Depois de João Hélio, tudo poderia acontecer. E acontece. Crianças entre oito e 10 anos planejam assassinar uma professora porque ela deixou de castigo um aluno indisciplinado (não fosse um coleguinha dedurar, o assassinato teria acontecido, numa escola dos Estados Unidos - atenção: crianças entre oito e 10 anos!).

E tem o discutidíssimo caso da menina Isabella, jogada viva do sexto andar por causa de quê? De algum surto de raiva, de algum destempero, alguma falta de controle, essas oscilações de humor que a gente costuma ter normalmente.

Normalmente, a morte virou rotina.

O que é que ainda surpreenderia você? Consegue imaginar algo que o deixaria boquiaberto, incapacitado de entender? Eu, não. Nada mais pode me deixar de queixo caído, estarrecida.

Um pai abusar sexualmente de seu bebê de dois meses, um padre esquartejar uma moça que não rezou o pai-nosso direito, um adolescente se matar porque não ganhou um carro ao passar no vestibular.

O que é que faria você pensar que esse mundo está perdido? O mundo não está perdido, a morte é que deixou de ser uma exceção. A morte não veste mais preto, não é mais trágica, perdeu a importância e o respeito.

A morte é apenas um acidente de percurso, como um tombo, um atraso, um descuido. Ops, estrangulei minha filha num acesso de loucura, me excedi, desculpe.

Isso não é exatamente novo. Esses "acidentes de percurso" acontecem desde o big bang, quando deu-se o início da vida e da morte. O instinto humano é animal, somos bichos domesticados que às vezes esquecem as lições de casa e põem-se a agir feito feras. Até aí, sociologia, psicologia, tudo explica.

O que não se explica é que tenha se tornado tão corriqueiro. Fico tentada a dizer que isso pode ser conseqüência de estímulos cinematográficos demais, porém corro o risco de ser linchada - vai condenar a tevê, o cinema, os jogos de computador?

Vou. Nunca defenderia a censura, mas proponho mais consciência por parte dos realizadores. Chega de tanto catastrofismo a título de diversão. Parafraseando Rimbaud, por falta de delicadeza, estamos perdendo a vida.

domingo, 13 de abril de 2008



13 de abril de 2008
N° 15570 - Martha Medeiros


A mulher banana

Não sei se você já conhecia a Mulher Melancia e a Mulher Jaca. Eu só soube da existência dessas criaturas na semana passada. São duas dançarinas de funk que ganharam notoriedade por possuir quadris avantajados (respectivamente, 121cm uma, 101cm a outra). Essa é toda a história, com começo, meio e fim.

Tem também a Mulher Rodízio, forma bem-humorada que a onipresente Preta Gil se autobatizou, justificando que ela tem carne pra todo mundo.

Pois agora vou apresentar pra vocês a grande novidade desse mercado tão nutritivo: a Mulher Banana.

A Mulher Banana, se tivesse um quadril de 120cm, correria três horas por dia numa esteira. Se isso não adiantasse, correria para uma mesa de cirurgia a fim de tirar uns cinco bifes de cada lado, porque ela considera bundão uma coisa muito vulgar.

Faria isso por vaidade, pois acredita que, na prática, não faz a menor diferença para os homens se a mulher tem 90cm ou 120cm. Eu avisei que ela é banana.

Essa questão da vulgaridade quase a deixa doente. Ela não se conforma de que a rafuagem ganhe tanto espaço na imprensa, incentivando um monte de menininhas a também rebolarem no pátio da escola.

Ela morre de vergonha ao ver a mãe da Mulher Melancia dizer para um repórter que sente muito orgulho de ter uma filha vitoriosa. Ela se pergunta: pelamordedeus, não existe ninguém pra avisar essa gente que eles perderam o senso do ridículo? A Mulher Banana é totalmente sem noção, coitada.

A Mulher Banana não se dá conta de que há pouco assunto para muito espaço na mídia. Não há novidade que chegue para preencher tanto conteúdo de internet, tanta matéria de revista, tanto programa de tevê, e é por isso que qualquer bizarrice vira notícia.

Sem falar que, hoje em dia, tudo é cultura de massa, tudo é passível de análise para criarmos uma identidade nacional. Não, não, não pode ser!! Pode, Mulher Banana.

A Mulher Banana, como o próprio nome diz, é ingênua, inocente, tolinha. Ela acredita que o discernimento nasceu para todos e que ser elegante vale mais do que ser ordinária. É boba, mesmo. Não no mercado das mulheres hortifrutigranjeiras, minha cara. Aliás, mercado ao qual você também pertence. Banana.

A Mulher Banana ainda se choca com certas imagens, com certas fotos. Não que ela não acredite no que está bem diante do seu nariz (já sondei e não tem parentesco algum com a Velhinha de Taubaté).

Ela vê, ela sabe, ela está bem informada. Só que não consegue tirar isso pra piada, não leva na boa, não passa batido: ela é tão banana que se importa!!

Aviso desde já que a Mulher Banana não tem empresário, não posa para sites eróticos, não dá entrevistas e muito menos aceita sair de dentro de um bolo gigante usando só um tapa-sexo. Ela é banana. Vai morrer sem dinheiro, só é rica em potássio.

E não pense que é movida à inveja. Se fosse, invejaria a bundinha da Gisele Bündchen, que também andou à mostra esta semana e tem um tamanho bem razoável.

A Mulher Banana, tadinha, ainda sonha com um padrão estético razoável e um comportamento social menos nanico. Não pode ser brasileira! Mas é, conheço-a como a mim mesma.

sábado, 12 de abril de 2008


Diogo Mainardi

É Créu neles! É Créu nelas!

"Para proteger a imagem de Lula, todas as maiores figuras do PT foram sacrificadas. E as menores também. Dou um conselho aos mais aflitos: pendurem na parede uma fotografia do primeiro ministério lulista, de 2003. A mortalidade entre seus membros foi maior do que a do politburo de Stalin"

Dilma Rousseff encolheu. Sua candidatura presidencial durou menos de duas semanas. Foi logo ceifada pelo bando de José Dirceu. Ou pelo bando de Marta Suplicy.

Ou por seu próprio bando. Eu, que defendia ardorosamente a candidatura da princesinha do Créu, terei de escolher outro nome do PT. Qualquer um é pior do que ela. Qualquer um tem mais chance de ser eleito.

Fala-se muito sobre a popularidade de Lula. É espantoso que o eleitorado ainda o apóie desse jeito. Mas ninguém contabiliza o ganho que isso pode representar para o futuro. Para proteger a imagem de Lula, todas as maiores figuras do PT foram sacrificadas. E as menores também.

Dou um conselho aos mais aflitos: pendurem na parede uma fotografia do primeiro ministério lulista, de 2003. A mortalidade entre seus membros foi maior do que a do politburo de Stalin. A velha-guarda petista sumiu do cenário político.

Agora só pode agir às escondidas, nos bastidores. De José Dirceu a Humberto Costa, de Luiz Gushiken a Miguel Rossetto, de Antonio Palocci a – qual era o nome dele? – José Fritsch.

Lula é o Ricardo III de Garanhuns. Só falta a corcunda. E o pé manco. Nos últimos seis anos, para conseguir manter-se no poder, ele se desfez de fosse quem fosse. Os herdeiros do trono foram degolados um a um, sem o menor remorso, sem a menor piedade. Lula tem até aquele ar insolente de Ricardo III. Seu mote shakespeariano:

Consciência é apenas uma palavra que os covardes usam.

A inescrupulosidade de Ricardo III foi premiada por algum tempo, garantindo-lhe o poder absoluto. Mas tudo se perdeu depois de sua morte. Ele foi o último rei da casa de York. Assim como Lula será o primeiro e último presidente eleito pelo PT.

O aniquilamento que ocorreu na política se estendeu também às outras áreas. O lulismo se tornou um estigma. Quem se associou a Lula está condenado para sempre.

Os lulistas do cinema, os lulistas da música, os lulistas da academia, os lulistas da imprensa – o engulho que a gente sente por eles jamais poderá passar. Lula canibalizou todos os seus aliados, em particular os do PT. Ele é a bolha que engole o que está por perto. Os lulistas ganharam um bocado de dinheiro nestes anos.

Uns se transformaram em lobistas. Outros receberam financiamento estatal ou renegociaram suas dívidas com o BNDES. Mas um dia isso passa. Porque a imunidade que os brasileiros concederam a Lula é limitada a ele. Só a ele.

Se o Ricardo III shakespeariano é elaborado demais para Lula, ele pode recorrer a outro mote, ligeiramente menos refinado:

É Créu! É Créu neles! É Créu nelas!

Olhe a fotografia pendurada na parede. Olhe aquele ministro. Olhe aquele outro. Repito: um dia isso passa, garanto que passa.

Ponto de vista: Lya Luft

Diagnóstico: Alzheimer

"Como sempre nas doenças graves, devemos lembrar que a vítima não somos nós: é o outro. Nesse processo não há nada de bom, de belo, a não ser o exercício da ternura, sem esperar muito retorno"

Ilustração Atômica Studio

Almocei com um amigo semanas atrás e, quando perguntei a razão de seu abatimento, ele me disse sem rodeios: "Esta manhã recebi o diagnóstico de minha mãe: é Alzheimer". Imaginei essa senhora, alegre e vital, enveredando pelas sombrias trilhas de uma enfermidade diabólica, e entendi a tristeza de meu amigo como se fosse minha.

Minha própria mãe morreu aos 90 anos, depois de bem mais de uma década sendo paulatinamente envolvida na mortalha mental e emocional do Alzheimer. Uma bela mulher ativa tornou-se inexoravelmente uma estranha, raramente ostentando uma vaga semelhança com a que fora minha mãe.

A doença se manifesta em geral muito sutil: um esquecimento aqui, uma confusão ali. Uma atitude estranha aqui, outra ali, intercaladas por fases de aparente normalidade. A sociabilidade muda, os bons modos parecem esquecidos, o controle do dinheiro se torna caótico, e é dificílimo interferir. Há enorme resistência dos familiares em aceitar essa enfermidade.

Para mim, minha mãe sofria episódios naturais de esquecimento. Só o choque de um dia a encontrar com uma pintura bizarra no rosto, ela tão recatada, me fez cair na duríssima realidade. Ela já não sabia – ou em longos períodos não sabia – o que estava fazendo. Algumas pessoas mais chegadas tinham me avisado: eu havia me recusado a ver.

O que eu disse a meu amigo, disse a mim mesma nos muitos longuíssimos anos daquela jornada: o doente em geral não sofre. A família, sim. O que se pode fazer? Muito pouco, além de cuidar para que ele esteja bem alimentado, bem abrigado, medicado e tratado com carinho. Nada de criticar quando não sabe mais quem somos, porque no fim não sabe mais quem ele próprio é.

Quando já não se porta à mesa como antes, quando faz "artes" às vezes perigosas, ele precisa ser protegido, não mais ensinado.

Não vai mesmo aprender. Como sempre nas doenças graves, devemos lembrar que a vítima não somos nós: é o outro. Nesse processo, que em geral dura muitos anos, não há nada de bom, de belo, de encantador, a não ser o exercício da ternura, da paciência e dos cuidados, sem esperar muito retorno, pois em breve seremos chamados de senhor, senhora, moça, não mais de filha, filho, meu querido.

O ser amado se distancia, sem volta, sem saber, sem querer e sem que nada possa evitar: agora havia ali uma velhinha da qual eu cuidava como podia. Por fim, para a proteger de si própria, por insistência dos médicos ela foi posta na melhor clínica que pude assumir. Jamais esquecerei a dor e a culpa que me assaltaram, contrariando qualquer raciocínio.

Milhares de vezes tentei me convencer de que minha mãe nem existia mais, era apenas uma velhinha de quem eu tinha de cuidar. Como ficção, funcionava; como realidade, a cada uma das centenas de visitas meu coração se partia outra vez.

Cuide de sua doente, eu disse a meu amigo, da melhor forma. Não alimente nenhuma esperança vã, pois tudo é triste, infinitamente desalentador.

Uma coisa que ajuda, um pouco, é tentar entrar no universo do doente, em lugar de querer que ele retorne ao nosso. Mas cuide também de si mesmo.

Tente pegar-se no colo, proteja-se da culpa insensata que nos espreita, siga sua vida.

Na natureza morrem árvores jovens, e velhas árvores tortas vivem muito além da última floração. Estamos mergulhados no mistério: isso torna a vida possível mesmo quando não a entendemos.

Lya Luft é escritora


O quebra-cabeça se fecha

Libertados na sexta-feira, Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni devem ser indiciados pela morte de Isabella. As últimas descobertas sobre o caso - algumas, ruins para o casal - deixaram a polícia mais próxima da solução

SOLANGE AZEVEDO E JULIANO MACHADO

EM LIBERDADE
A madrasta de Isabella, Anna Carolina (foto acima), e o pai, Alexandre, ao serem soltos.
Os dois colaboraram com a polícia

Na manhã da sexta-feira passada, o desembargador Caio Canguçu de Almeida decidiu soltar Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni. Presos desde o dia 3, são suspeitos do assassinato de Isabella, de 5 anos, enteada de Anna e filha de Alexandre, jogada do 6º andar de um edifício em São Paulo. A libertação do casal era esperada.

Segundo a decisão do desembargador, nenhum dos dois deu, “ao menos até aqui, prova alguma de deliberado propósito de comprometer, dificultar ou impedir a apuração dos fatos”. Isso não significa, porém, que a situação deles tenha melhorado ao fim da segunda semana de investigações.

Os indícios colhidos por meio de recursos científicos (leia o quadro abaixo) e depoimentos de testemunhas levavam a polícia a considerar inevitável o indiciamento dos dois como únicos acusados pelo crime.

É possível que eles acompanhem o processo em liberdade, pois têm bons antecedentes e têm colaborado com a Justiça. “Eles dizem categoricamente ser inocentes”, afirma Marco Polo Levorin, advogado do casal. O promotor Francisco Taddei Cembranelli disse haver “vinculação” entre “o casal” e “os ferimentos de Isabella”.

As últimas revelações sobre o caso reforçaram o foco no papel da madrasta, Anna Carolina, na noite do crime. Uma blusa preta da marca Young Connection e um par de sapatilhas Adidas azul que estavam com ela na delegacia foram levados para perícia.

A polícia quer saber se eram as roupas que a madrasta usava na noite da morte de Isabella e verificar se foram essas sapatilhas, com solado de borracha, as que deixaram uma pegada na cama do quarto de onde a menina foi jogada.

Aparentemente, Anna Carolina trocou de blusa na noite do assassinato. Imagens do circuito interno de um supermercado em Guarulhos, onde ela esteve com Alexandre, Isabella e os filhos cinco horas antes do crime, mostram-na de blusa preta, a mesma com que teria chegado ao prédio.

Depois do crime, Anna usava uma blusa verde-água. Nas roupas dele haveria manchas “semelhantes a sangue”, segundo os peritos. Só exames suplementares poderão determinar se é mesmo sangue, e de quem.


12 de abril de 2008
N° 15569 - Nilson Souza


Retratos de nós

Por imposição didática de minha teacher, com quem ando em falta, terminei de ler na semana passada O Retrato de Dorian Gray, na língua do próprio Oscar Wilde. Já conhecia a história da pintura que envelhece enquanto o modelo envilece, mas permanece jovem - resultado de um pacto não explícito do homem com a própria perversidade.

Confesso que na juventude esta fantástica história não me tocou tanto. Agora, que tenho uma bagagem maior de observações sobre o comportamento humano, incluindo evidentemente o meu próprio, tudo passou a fazer mais sentido.

Dorian Gray e sua obsessão pela beleza física e pela imortalidade continuam atuais, especialmente nestes tempos em que homens e mulheres fazem qualquer sacrifício para espichar um pouco mais a juventude. Outro dia não pude evitar uma comparação com a história ao ver a foto de uma mulher com o rosto totalmente deformado por sucessivas cirurgias e pela aplicação descontrolada de botox.

Na antevéspera do último Carnaval, uma dama carioca fez a sua 41ª cirurgia plástica para repuxar os olhos e transformar-se numa japonesa quase legítima, personagem adequado à temática de sua escola. Um dia o corpo cobra o preço de tanta intervenção.

Há também um efeito Dorian Gray gerado pela tecnologia. Não faz muitos dias, recebemos na Redação deste jornal o telefonema de uma senhora entrevistada numa reportagem sobre sua comunidade. Ela queria agradecer pelo destaque que recebeu, mas não resistiu a fazer uma observação de natureza estética:

- Vocês deviam ter fotochopado a minha fotografia!

O photoshop, programa de computador que permite alterar fotografias, inverte a lógica do romance. Permite que um modelo trintão, por exemplo, apareça na foto com um rosto adolescente.

Funciona a mil nas campanhas eleitorais. Basta conferir os chamados "santinhos" de candidatos com os originais nos palanques ou neste novo alcagüete da idade que é a tevê de alta definição.

Mas o livro de Oscar Wilde, publicado pela primeira vez em 1890, não trata apenas da vaidade.

Seu foco central é a alma humana e suas angústias diante da inexorável ação do tempo e das marcas deixadas pela vida. O que você escolheria, a juventude eterna ou a amizade e o amor?

Ainda bem que inventaram o tal photoshop.

sexta-feira, 11 de abril de 2008



11 de abril de 2008
N° 15568 - Liberato Vieira da Cunha


Viver não é fácil

Tem vezes em que penso que a vida seria mais simples se as pessoas dissessem o que estão pensando. Mas seria mesmo?

Um dia desses encontrei um cavalheiro que me cumprimentou cordialmente, perguntou por parentes, comentou uma de minhas crônicas. Enquanto isso, eu fazia um esforço danado para me lembrar quem era ele, coisa que não consegui.

Eu poderia ter confessado que não recordava dele, mas isso seria ofendê-lo. Despedimo-nos com mútuos protestos de estima e consideração, mas até agora não faço noção de sua identidade.

Recebo muitos livros e nem sempre tenho vagar para lê-los. Um dos autores me escreveu faz tempo cobrando uma opinião sobre o ensaio histórico que me enviara. Tive de desculpar-me, explicando-lhe que ainda não conseguira abri-lo.

O escritor tinha montanhas de razão. Fizera-me uma gentileza e eu não lhe mandara duas linhas com uma apreciação, ainda que breve, sobre sua obra. Faltou confessar-lhe que não sou um crítico, mas um mero leitor comum, desprovido de engenho e arte para analisar estudos alheios.

Uma dama submeteu-me há alguns anos uma coletânea de versos, na companhia de um pedido para que compusesse um prefácio. Ela estava me fazendo uma distinção. Entre tanta gente importante do território das letras, escolhia justamente a mim para apresentá-la ao público.

Tive de remeter-lhe um e-mail explicando que andava ocupado, que tentasse escribas de superior categoria e valimento. Tudo seria menos constrangedor se eu houvesse usado de franqueza: seus poemas eram densos, herméticos demais para a minha vã filosofia.

Vivo da arte de comunicar-me e no entanto volta e meia não consigo sintonizar com minha circunstância. É um pecado grave para quem se entrega ao ofício de juntar letrinhas.

As gentes, contudo, são demasiado sensíveis. Se admito a alguém, que me trata com intimidade, que não o reconheço, ele há de julgar-me no mínimo indelicado.

Se não leio um livro que me submeteram à espera de algumas palavras de estímulo, sou injusto.

Se não componho um prefácio por julgar a tarefa superior à minha capacidade, termino por magoar quem me encomendou o favor.

Viver não é fácil. E não sei se seria menos difícil se todos nós só disséssemos a verdade.

quarta-feira, 9 de abril de 2008



09 de abril de 2008
N° 15566 - Martha Medeiros


Muito barulho por tudo

Tem uns que acabaram de completar 30 anos de idade e já começam a falar coisas como: "no meu tempo" isso, "no meu tempo" aquilo. Imagina então quem está fazendo 40. Ou 50. Ou mais. Está todo mundo em pânico, com medo de envelhecer. O que é um medo mais razoável do que ter medo da morte: essa virá a qualquer hora e crau.

Com sorte, a gente não vai nem perceber o que está acontecendo. Já envelhecer é um processo lento e com muitos dissabores. A perda da energia. A perda do pique. A perda do charme. A perda da saúde física.

Por essas e outras, recomendo a quem ama bossa nova, chorinho, jazz, música clássica, música barroca, música instrumental, pagode, samba e bolero que vá assistir imediatamente ao documentário Rolling Stones - Shine a Light.

Você pode odiar rocknroll, mas se ama a vida e anda sendo rondado pelo fantasma da decrepitude, o filme é um tratamento de choque da melhor qualidade. Você sai do cinema com uma visão renovada da terceira idade.

Mick Jagger fará 65 anos em julho. Keith Richards, 65 em dezembro. O baterista Charlie Watts tem 67, e o caçula Ron Wood, 61. Não dá para dizer que eles possuem uma pele de anjo - seus rostos mais parecem o Grand Canyon.

O brilhante Martin Scorsese (66 anos), que dirigiu Shine a Light com o talento que a gente conhece não é de hoje, simplesmente não teve condescendência alguma com os quatro rapazes da banda: dá pra enxergar até suas cáries.

Mas não é um filme de terror. Assistir por duas horas a Mick Jagger no palco é a prova inconteste de que lá adiante, ou ali adiante (não sei em que idade você se encontra) não há, necessariamente, perda de energia, nem perda de pique, nem perda de charme. Perda nenhuma de charme, aliás.

O homem é um dínamo.

Aparece uma cena de Jagger bem garoto, recém começando a fazer sucesso, com aparência de quem cheirava a leite (mas já com ar de quem cheirava outra coisa). Um jornalista pergunta a ele: "Você se imagina fazendo a mesma coisa aos 60"?

Resposta: "Fácil". Era provocação, mas o fato é que ele chegou a 2008 fazendo exatamente a mesma coisa. Só um pouquinho mais ofegante, mas menos do que muito quarentão que faz meia hora de esteira na academia.

Além de um registro histórico da banda mais longeva e mais importante depois dos Beatles, esse documentário é de tirar o fôlego.

Dá um tapa na cara do nosso cansaço, nos envergonha pela nossa falta de atitude (palavrinha manjada, mas é a que define os Stones, não tem outra), e nos avisa: velhice? Sem essa! Nós também temos um palco: aqui, este. A vida.

Também temos platéia, luz, figurino, a não ser que você tenha optado por virar ermitão. Um resfriado violento pode nos jogar na cama e nos fazer nos sentirmos velhos aos 20 anos, mas se, temos saúde, não há velhice que nos detenha, a não ser que tenhamos, por vontade própria, deixado de usar o cérebro.

Vá assistir ao documentário mesmo gostando apenas de canto gregoriano. É uma injeção de adrenalina. E se você gosta de rock como eu, bom, então nem preciso recomendar nada: você já deve ter ido e está aí, fazendo planos para quando se aposentar aos cem.

Dia Internacional do sofá - Que tenhamos todos uma excelente quarta-feira.

sábado, 5 de abril de 2008



06 de abril de 2008
N° 15563 - Martha Medeiros


Erro favorito

O que me conforta é que o apego aos meus erros me inspira versos, crônicas e ficção. Me ajuda a construir personagens, a dar-lhes uma vida que parece de verdade

Essa coisa de que a maturidade nos ensina a viver melhor é mais ou menos verdade. Ao entrarmos na segunda metade da vida, realmente ficamos mais espertos, não perdemos mais tempo à toa, compreendemos melhor nossas escolhas e renúncias, enfim, a vida se torna mais ágil, mas quanto aos erros e acertos, fica tudo na mesma. Acertamos onde já acertávamos antes, e erramos igualzinho como sempre erramos.

Nem mesmo se consegue trocar erros antigos por erros novos.

Eu cometo os mesmos erros desde que me conheço por gente. Desde guriazinha. Meu erro maior é a impaciência. Eu não sei esperar as pessoas darem o passo em minha direção, eu avanço e atropelo, porque a ansiedade não me permite atitudes civilizadas tipo "aguardar o momento do outro". Que aguardar, que nada.

- "Já tem a resposta?"

- "Você já está vindo pra cá?"

- "Leu meu e-mail?"

Logo eu, a defensora número 1 da placidez humana. A que considera a coisa mais notável do mundo ser calma e respeitar o ritmo natural da vida. A que faz poesia sobre o magnificência do tempo. A que estimula a meditação e a contemplação do universo. Balela. Sou uma fominha.

E claro que, depois de receber minhas respostas - meio capengas, por causa da minha pressa - eu fico me martirizando. Por que não esperei? Por que dei bandeira? Por que forcei a barra?

Por que fui tocar naquele assunto espinhoso? Teria sido tão mais elegante ficar na minha. Prometo que da próxima vez ficarei de bico calado.

A próxima vez! Que piada. Nunca fui boa aluna, não vai ser agora que vou aprender alguma coisa.

Eu anuncio em primeira mão todos os meus atos e todos os meus sentimentos, extra, extra! Eu me jogo, me disponibilizo, me dispo, me coloco a serviço de deus e do diabo, eu não me economizo!

Sou controladora, mas não controlada, enfio os 10 dedos na tomada, levo choque, e mais tarde repito a dose, novo choque: sou uma viciada em arrependimentos emocionais.

O que me conforta é que esse apego aos meus erros me inspira versos, crônicas e ficção, me ajuda a construir personagens, a dar-lhes uma vida que parece de verdade, e enriquece minha própria história, dá a ela credibilidade, já que ninguém confia muito em quem apenas acerta. Qual o seu erro favorito? Pode ser um homem que lhe despreza.

Uma mulher que nunca retorna as ligações. Você se expõe demais. Ou de menos. Fala muito de você mesmo. Acredita nas mentiras que inventa. Em que erro você se apegou com tamanho carinho que nunca mais conseguiu abandonar?

Eu sei que a gente acerta muito, e os acertos nos transformam em alguém melhor, alguém que evolui, que sobe degraus no conceito da humanidade.

A cada acerto somos reinaugurados, ficamos mais longe das nossas imperfeições. Mas é a reincidência nas bobeadas que autentica nosso lado mais verdadeiro, humano e normal.


06 de abril de 2008
N° 15563 - Paulo Sant'ana


Pedestres escorraçados

Estou impressionado, na qualidade de eventual pedestre que tenho sido nas ruas e avenidas de Porto Alegre, com a fúria, que poderia chamar de assassina, dos motoristas que comigo cruzam.

Aqui na Avenida Erico Verissimo, basta que eu arranque para a travessia de uma das pistas, estimulado porque os carros vêm muito longe, os motoristas aceleram suas máquinas e quase passam por cima de mim, não fosse eu aligeirar meus passos, às vezes até um esforço supremo para a minha energia muscular, fugindo dos malfeitores.

É impiedosa a caçada que faz, a mim e aos outros pedestres, a maioria dos motoristas porto-alegrenses, sendo desanimador que os taxistas se dediquem também a esta sanha desumana.

Desse jeito com que me têm tratado, vão acabar me matando. Porque é só eu tropeçar e estarei frito.

Não há qualquer pudor em violar a lei e exceder em velocidade proibida nos motoristas da cidade.

São assassinos em potencial. E também não há qualquer fiscalização que os reprima. O pedestre ou é inimigo deles ou simplesmente eles o ignoram.

Por isso é que os índices de atropelamentos em Porto Alegre são assustadores.

E tenho sido também escorraçado nesse mesmo sentido pelas motos. Elas avançam contra mim furiosamente, desrespeitando que as antecedo com meu início de travessia das pistas, sob o cálculo da velocidade delas, acelerando para me espantar ou até mesmo sem ligarem para a possibilidade ilustre de que possam me atingir.

Chego a cogitar, tal é a minha revolta, de carregar comigo um peso de aço de dois quilos e arremessá-lo contra os que pretendem me atropelar, usando esse meu recurso de violência como legítima defesa.

E a prosseguir esse verdadeiro ataque de velocidade que sofro como pedestre por parte das motos, é bem possível que eu qualquer dia atire contra uma delas, no embate que se fere entre mim e elas nas ruas e avenidas - eu sempre me defendendo pela pressa em fugir e elas apressando na aceleração para me intimidar ou me atropelar - , a bolsa cheia de utensílios que sempre carrego aonde vou.

Qualquer dia eu arremesso minha bolsa contra um deles.

E tenho certeza de que a Justiça me dará ganho de causa por legítima defesa, tal o escândalo de suas atitudes agressivas.

Falta vergonha na cara desses patifes. E falta principalmente fiscalização.

Nunca foi autuado na história de Porto Alegre um motorista por tentar atropelar pedestre.

Por isso é que eles deitam e rolam nessa perversidade.

Recebo e publico: "Caro SantAna. Tuas palavras foram as pás que impediram de se varrer mais uma vez as bactérias para debaixo do tapete. Nós, médicos, temos muito pouca oportunidade de dizer as verdades sobre saúde.

Eu ainda sou um pouco privilegiado: tenho um comentário há 30 anos na Rádio Osório, intitulado Saúde para o Povo e a ZH e o Correio me dão oportunidades. Mas a maioria dos médicos não pode dizer a verdade.

São proibidos pelos diretores de hospitais (diretores políticos) e outras autarquias, todos politiqueiros. Portanto, a verdade sobre saúde pública ninguém fica sabendo, somente os engodos. Tais como os que disse nosso presidente da República, no Hospital Conceição, que a saúde estava chegando à perfeição.

Isso foi a maior mentira que já se ouviu de um presidente até hoje. Pois esse mesmo hospital está cheio de infectações e as filas aumentando e o povo acreditando na mentira. Somos um dos países com a pior qualidade de saúde e educação do mundo! Pode isso?

Pior vai ficar quando o feijão e o arroz acabarem, pois eucaliptos, acácia e pínus ninguém come. Portanto, SantAna, rogamos para que tua saúde continue forte e te ajude e te dê poderes para nos ajudar a tornar a verdade amarga em doçuras da vida.

Com um fraternal abraço, (ass.) Dr. Valdaí (José Valdaí de Souza), médico, Cremers 6701, Av. Carlos Gomes, 328/501 cjvaldai@terra.com.br, fone 3328-4928".

Ótimo domingo e uma excelente semana especialmente para você.

Diogo Mainardi

De volta ao escambo

"A compra da Brasil Telecom pela Oi está sendo

calculada em 8,5 bilhões de reais. Resta saber de onde sairá o dinheiro. Eu chutaria que sairá dos bancos estatais. Escambo é assim mesmo. O homem branco dá um espelho, o cacique tremembé entrega todos os bens da tribo"

A Oi está engolindo a Brasil Telecom. Chega ao fim aquela que Luiz Gushiken chamou grandiosamente de "a maior disputa societária da história do capitalismo brasileiro". O resultado mostra qual é o atual estágio do nosso capitalismo: com Lula, regredimos à economia do escambo.

Eu sei que metade dos leitores foi embora depois de ler "Oi". Eu sei que a outra metade foi embora depois de ler "Brasil Telecom". Na primeira linha do artigo, perdi todos os leitores.

Sem contar os que se enforcaram depois de ler "Luiz Gushiken". Lamento muito. O assunto é aborrecido. A disputa pelo controle da telefonia nacional foi manchete dos jornais por dez anos seguidos. Um espionou o outro. Um se aliou ao outro.

Um traiu o outro. No fim, chegou-se a um acordo nebuloso que satisfez todos os lados. Os processos judiciais que poderiam emperrar o negócio foram suspensos. Só sobraram os meus.

Minhas colunas sobre o tema me renderam dezoito processos. O que eu dizia nelas? Em primeiro lugar, que o lulismo se intrometera na disputa pelo controle da telefonia nacional, tomando o partido de alguns de seus maiores financiadores. Em segundo lugar, que a Oi acabaria engolindo a Brasil Telecom, com o apoio de Lula.

Isso é o que conta: o apoio de Lula. A compra de uma operadora pela outra é ilegal. Para que ela possa ser realizada, Lula tem de mudar a lei que regulamenta a telefonia.

O plano era mudá-la em 2005, mas tudo desandou quando se soube que a Oi dera uma bolada ao filho de Lula, para a compra de sua empresa de fundo de quintal. Agora ninguém mais se preocupa com isso.

O Brasil piorou. O Brasil se abastardou. Lula faz o que bem entende. O caciquismo aplicado à economia resultou num retorno à prática do escambo.

Por enquanto, o negócio está confinado nas páginas de economia dos jornais. A imprensa pegou bode do assunto. Muitos jornalistas se emporcalharam trabalhando para um lado ou para o outro.

Agora todos temem ser associados a uma das partes em disputa. Só para dar uma idéia de como isso funciona, um dos sócios da Oi, dois anos atrás, chegou a me acusar de beneficiar Daniel Dantas, embora eu sempre tenha responsabilizado o mesmo Daniel Dantas pelo pagamento dos mensaleiros.

Mas o que realmente importa nessa história – bem mais do que seu aspecto comercial ou a sordidez de alguns jornalistas – é o papel desempenhado pelo lulismo.

A compra da Brasil Telecom pela Oi está sendo calculada em 8,5 bilhões de reais. O mercado avaliou quanto deve sobrar para cada sócio: Citibank, 1,5 bilhão de reais; Daniel Dantas, 1 bilhão de reais; Previ, 1 bilhão de reais. Agora resta saber de onde sairá o dinheiro.

Considerando o atual estágio do nosso capitalismo, eu chutaria que ele sairá dos bancos estatais. Escambo é assim mesmo. O homem branco dá um espelho, o cacique tremembé entrega alegremente todos os bens da tribo.

Ponto de vista: Claudio de Moura Castro

"Educação não é mercadoria!"

"Das empresas bem administradas afloram conselhos proveitosos para as escolas. Nada disso fere a sacrossanta nobreza da educação nem a complexidade e a delicadeza dos seus processos. De fato, as melhores escolas
seguem tal figurino"


Aluno não é "matéria-prima". Nem "cliente"! Escola não é empresa! O "produtivismo" é inaceitável. E por aí afora. Educadores fervorosos não se cansam de denunciar a mercantilização do ensino. As palavras são usadas como tacapes, na esperança de abater os infiéis. Existem tais assombrações?

Há escolas que se declaram empresas (e ninguém demonstrou se são melhores ou piores do que as demais). Porém, o presente ensaio não se dirige a elas. Em vez disso, considera a "empresa" como uma metáfora para entender o "processo produtivo" (mais uma heresia!) de qualquer escola.

Tais conceitos se revelaram úteis na economia e podem ser aplicados na educação pública, mesmo sem considerá-la como atividade empresarial.

As empresas têm toda a liberdade de definir o seu "produto". Rolls-Royces? Ladas? Cirurgias cardíacas? Rolex? Relógios de camelô? As escolas também: ensino para poucos? Ou para muitos? Ensino de violino? Uma vez definido o produto, faz todo o sentido obter o máximo resultado com o mínimo de gastos.

Isso vale na "fabricação" de hóstias, seminaristas, doutores ou macarrão. Igualmente, é preciso controlar a qualidade e avaliar os resultados. Para isso, há inspetores de qualidade na fábrica e a Prova Brasil na educação. Nas artes, consideram-se os prêmios. Se isso é "produtivismo", três vivas para ele.

Das empresas bem administradas afloram conselhos proveitosos para as escolas: clareza ao definir (poucas) metas e assegurar que sejam compartilhadas (por diretores, alunos e professores); avaliação dos processos; e a regra pétrea de que é preciso tomar providências quando os resultados não correspondem ao esperado.

Nada disso fere a sacrossanta nobreza da educação nem a complexidade e a delicadeza dos seus processos. De fato, as melhores escolas seguem tal figurino.

Mas podemos ir mais longe, tomando como metáfora o mais poderoso motor da economia de mercado: o lucro ou sua nêmesis, o prejuízo. É fenomenal o poder de prêmios para quem faz melhor e puxões de orelha para quem pisa na bola.

À primeira vista, trata-se de uma heresia a ser afastada das escolas públicas. Mas o lucro é apenas uma das manifestações de bons resultados. A metáfora sugere o vínculo entre desempenho e recompensa.

Em vez de lucro, o sucesso pode ser mais pontuação na Prova Brasil. Ou menos deserção. Ou mais alunos aprovados na OAB.

De fato, não é preciso que haja mercados para que existam incentivos. Dentro da empresa não há mercados. O montador do automóvel não compra as peças do almoxarife e depois vende o carro. Por essa razão, as empresas criam incentivos e penalidades para os funcionários, visando a motivar seu comportamento.

Está nas livrarias o livro 1001 Maneiras de Premiar Seus Colaboradores.Tais regras internas não são desconhecidas das escolas e vão das medalhas até as medidas drásticas de expulsão.

Obviamente, errando nos prêmios provocamos impactos desastrados. Se apenas penalizamos a repetência, isso pode gerar a aprovação indiscriminada e uma degradação do ensino. É preciso recompensar também a qualidade (como faz o Ideb).

Não se trata de um mercado no sentido convencional, mas do que foi chamado (pelo economista Albert Hirschman) de "quase-mercado". Onde ele não existe, cria-se uma metáfora do mercado, com metas concretas, prêmios e penalidades para que os desvios sejam automaticamente corrigidos.

Até mesmo os incentivos financeiros podem estar presentes no ensino público. Em menos de meio século o Brasil saiu de uma produção científica próxima de zero e tornou-se hoje o 15º maior "fabricante" de ciência.

Sua pós-graduação passou a produzir anualmente quase 10 000 doutores e 40 000 mestres, uma das maiores colheitas do globo. O segredo? Prêmio ou puxão de orelha, acoplados a uma avaliação para decidir quem ganha qual. Há bolsas da Capes e do CNPq, há amplo financiamento da Finep, da Fapesp e de outras agências.

Quem brilha ganha mais. Quem tropeça perde. A pós-graduação (que não foi privatizada) opera em um "quase-mercado" criado com inteligência, e que tem apresentado bons exemplos para o restante da educação.

Claudio de Moura Castro é economista


Isabella

Nossa flor tão amada
Nunca vamos entender o porquê minha Peta
A Saudade será pra sempre
O amor é eterno
Minha princesinha que sonhava aprender a ler
Lia historinhas pra madrinha, adorava dançar e assistia tanto desenho
Quantas vezes nós duas ficavamos comendo salgadinho e assistindo Monstros S.A.,
Pequena Sereia, Lilo e Stitch
Madrinha ligava e vc contava td o desenho do Tom e Jerry (Chuva de Ovos)
Tão inteligente: falava o português perfeito, sem errar plural, nem nada...
Dizia tanto: calma madrinha, sou uma só!
Pedia pra madrinha buscar vc na escola, era o meu maior prazer te levar e te buscar na escola...
Preguiçosinha... não queria ir pra escola só ia qndo dizíamos q só assim vc aprenderia a ler
Chegava em casa e lá estava, vc e o Titi escondidos, madrinha achava e vc saia correndo...
Madrinha eu não sou Isabella, sou princess
E é princess msm, nossa princesa e que agora é nosso anjinho.
Madrinha nunca deixará vc sozinha, vc está no meu coração e rezo pr seu anjinho
tds os dias, ele esta c vc e vai cuidar de vc pra gnt...
Agradeço a Deus por papai e mamãe ter me escolhido pra ser sua madrinha. (...)
Amo vc para sempre! Que Deus te abençoe e te ilumine! Que vc esteja em um lugar
cheio de passarinhos, cachorrinhos pq vc amava os bichinhos.

Mensagem de Cristiane, tia e madrinha de Isabella Nardoni, publicada no Orkut (grafia original)

Ela gostava de ser chamada de “princess”, ou princesa, pela madrinha Cristiane, a autora do texto acima. Gostava de assistir a desenhos de Tom e Jerry e da Pequena Sereia. Gostava de dançar balé.

De passarinhos, cachorrinhos e bichinhos. Gostava de brincar na piscina de bolinhas plásticas e de almoçar na escola com crianças da mesma idade. Tinha dois irmãos que adorava. Falava um português perfeito para sua idade.

Adorava os livros, e seu sonho era aprender a ler. Mas a menina Isabella de Oliveira Nardoni morreu sem realizá-lo, 20 dias antes de completar 6 anos, depois de cair do 6o andar do prédio onde morava seu pai, na zona norte de São Paulo.

Sua morte prematura, em condições até agora não esclarecidas, foi manchete de jornais, tomou conta do noticiário da televisão, tornou-se tema de discussões e homenagens na internet e comoveu o país.

O motivo: os principais suspeitos de ter cometido o crime são seu pai, Alexandre Alves Nardoni, de 29 anos, e sua madrasta, Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá, de 24.


05 de abril de 2008
N° 15562 - Nilson Souza

Metamorfoses


A menina dos meus olhos está completando 15 anos neste sábado em que descarrego minha mudança de letrinhas num novo dia e numa nova página.

Quem acompanha há mais tempo esta crônica despejada das quintas-feiras sabe que a anônima jovenzinha já foi personagem de outros relatos neste espaço em que - a custa de auto-análise e contrariando o catecismo da objetividade jornalística - ouso exercitar a primeira pessoa do singular.

Mas o "eu", como ensina o mestre Scliar, só tem sentido quando significa "nós". Assim, sempre que registro alguma experiência pessoal ou falo de meus afetos mais caros, esforço-me para torná-los universais, de modo que ao menos alguma palavra toque o coração de quem lê.

Pois hoje volto a falar de Daniele, que é loira, linda e está passando pela metamorfose do seu 15º outono. Acompanho-a desde o seu nascimento. Carreguei-a no colo muitas vezes, embalei seus sonos e seus sonhos outras tantas.

Vi-a crescer, dar os primeiros passos, pronunciar as primeiras palavras, aprender a ler e a escrever. Na condição de padrinho desta filha do coração, fui testemunha diária e privilegiada de sua infância rica de descobertas.

Também tive a bênção de vê-la transformar-se, do dia para a noite, numa adolescente sensível, determinada e vaidosa. Passou a vestir-se com apuro, a pintar unhas e lábios, a fazer suas próprias escolhas, felizmente para os que a amam, quase sempre sensatas.

Mesmo em meio ao turbilhão de hormônios e fantasias da idade, jamais descuidou-se, por exemplo, de suas obrigações escolares. Acompanhei, com indisfarçável orgulho, seu crescimento intelectual e emocional.

E sempre que julguei oportuno, compartilhei com meus leitores alguns passos de sua caminhada, supondo que assim estaria retratando infâncias e adolescências semelhantes.

Hoje encaro outra transformação. Percebo, inquieto, no cristal esverdeado de seu olhar, uma mulher bela e misteriosa preparando-se para alçar vôo da plataforma dos seus sapatos de festa.

Cumpre-se, assim, a inexorável previsão. Eu já sabia, por alertas e também por intuição, que um dia a borboleta criaria asas para voar no rumo de seu próprio destino. Não posso nem quero retê-la.

Posso, apenas, seguir seu vôo com estes olhos que já há muito lhe pertencem.
Ueba! Osbourne come morcego diet!



05 de abril de 2008
N° 15562 - Cláudia Laitano


Casamentos

No ano em que se comemora o centenário do nascimento de Simone de Beauvoir, o tipo de casamento que ela e Sartre tornaram mundialmente famoso ainda não emplacou.

Relacionamento aberto, casas separadas, tolerância máxima para polígonos amorosos, todo o kit formatado por um dos casais mais célebres do século 20, permanecem como uma teoria interessante que raramente encontrou uma prática satisfatória - mais ou menos como o marxismo, com a diferença de que este foi testado por uma considerável fatia do planeta ao longo do século que passou.

Livros, cartas e depoimentos de pessoas que foram próximas (ou mais do que próximas) do casal lançam algumas luzes sobre esse relacionamento tão sólido e fluido ao mesmo tempo. Alguns dizem que Simone apenas acatou a idéia ousada de Sartre - e sofreu como qualquer mulher, antes e depois dela, ao dividir o homem amado.

Outros lembram que ela também teve muitos casos e que havia entre eles um pacto de honestidade e cumplicidade que jamais foi ameaçado pelos respectivos amantes e muito menos pelos olhares desconfiados da classe média bem-comportada.

Talvez fazer um balanço de prós e contras, colocar lado a lado os dias de céu e de inferno para descobrir se foram mais ou menos felizes do que um casal convencional, não seja a melhor abordagem da questão - que casamento não tem céu e inferno?

O fato é que eles fizeram história e hoje repousam, lado a lado, no cemitério de Montparnasse. Se o casamento "a la Sartre" não vingou é porque as relações amorosas são tão complexas que a maioria das pessoas, homens e mulheres, ainda prefere a privação de liberdade ao excesso de variáveis para equacionar.

Jornalista e filósofo nascido em Viena, André Gorz (1923 - 2006) foi um marxista-existencialista fortemente influenciado pelas idéias de Sartre. Nas décadas de 60 e 70, tornou-se referência para a chamada Nova Esquerda e foi um dos principais inspiradores do Maio de 68.

Gorz ficou conhecido pelos livros de filosofia política, mas seu testamento literário, o último texto que assinou, narra uma história de amor - um amor tão profundo e transformador, de ambas as partes, que parece ainda mais excepcional que o de Sartre e Simone. Carta a D., lançado há pouco no Brasil, tem um dos melhores começos de livro que eu já li: "Você está para fazer 82 anos.

Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que 45 quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz 58 anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca".

"D" é Dorine, a mulher com quem ele foi casado durante toda a vida e ao lado da qual se suicidaria, três meses depois de colocar o ponto final nessa comovente carta de amor - Dorine estava doente, e André não conseguia conviver com a idéia de sobreviver a ela. O livro é ao mesmo tempo uma homenagem e um acerto de contas.

A impressão que se tem é de que ele passou a vida inteira tão absorvido pelo trabalho que nunca teve tempo para render a esse amor o tributo que ele merecia.

Sartre e Gorz foram mestre e discípulo, partilharam convicções e garrafas de vinho até romperem, por motivos políticos, no início dos anos 70. É curioso que tenham inventado casamentos "existencialistas" tão distintos.

O existencialismo valoriza a autonomia do indivíduo e nega as correntes teóricas que dão prioridade às instituições e estruturas sociais, de onde podemos concluir que cada um tenha tentado fundar um modelo de relacionamento a sua imagem e semelhança - o que, no fim das contas, talvez seja o segredo do sucesso de qualquer casamento. Quando ambos os lados estão de acordo.