sábado, 27 de novembro de 2021


27 DE NOVEMBRO DE 2021
LYA LUFT

Do fundo das águas secretas

"O que são essas coisas que ficam se mexendo dentro da minha cabeça?", perguntou a criança ao seu pai, que riu e disse algo como "São teus pensamentos, são as palavras. Todo mundo tem isso, todo mundo pensa".(Foi o que a criança respondeu quando a mãe mais uma vez repetiu seu refrão "criança não pensa".) Hoje muitas e muitas vezes me perguntam, a mim e a todos os que lidam com arte, de onde vêm as ideias, ou a chamada inspiração. Cada um vai dar uma resposta diferente, segundo seu jeito de ser, de viver, de trabalhar.

A minha resposta, sincera, que no curso do tempo não mudou, tem sido: tudo vem de dentro de mim, impreciso mas real. Eu só elaboro, arrumo, enfeito (ou pioro). Pois "o vento sopra quando e onde quer": posso ficar períodos sem nenhuma boa ideia, e de repente tudo começar a fluir. Não sou dos disciplinados, modelos para jovens escritores, que escrevem todos os dias. Quando nada tenho a dizer, fico quieta, que é, aliás, o que mais aprecio.

A chamada inspiração, palavra tão polêmica e questionável, é o movimento que nos leva a produzir alguma coisa. No meu caso, repito, está tudo lá dentro, no fundo das águas da mente, ou da alma, aqui a semântica pouco importa. Na verdade, tudo o que vivo, vejo, escuto, sonho, tudo o que me dizem, o que leio, o que vem em entrelinhas e no silêncio, as palavras duras e as amorosas, as alegrias e as injustiças, vai-se depositando no meu inconsciente (ou como quer que o chamemos), como aquela lamazinha no fundo de um aquário. Se ali mexo com um lápis (é só uma metáfora, gente...), esse depósito cria vida, se move, sobe à superfície. Em geral, é algo externo que de repente desperta o fundo das águas: um rosto, um telefonema, um movimento mínimo nas árvores, um sonho quando dormimos e do qual confusamente lembramos ao acordar, uma claridade na beira daquela nuvem. Move-se assim o material para a pintura, o romance, a música.

Assim são as ideias ou emoções que regem o que muitos artistas produzem: mas, embora vindo dessas águas escuras, não são necessariamente sombrias. Pois lá, junto com as pedras e perdas, estão depositados também os encantamentos que nos marcam para sempre. Não somos donos ou controladores dessa chamada inspiração: a palavra me incomoda, mas não tenho bom substituto. Por que me incomoda? Porque sugere algo caído do céu, uma luz que vem do alto, que nos faz sentar e trabalhar leves e alegrinhos. Às vezes, sim, escrevo com uma quase incontida alegria, se pudesse saía a dançar por cima dos telhados vizinhos(no meu caso, bastante improvável...). Outras vezes, me faz refletir, reescrever, desistir e deletar, andar pela casa, subir para o terraço, pensar em nunca mais escrever uma só palavra, depois voltar a este diminuto escritório e retomar a dura lida.

Assim emergem daquelas águas secretas, os primeiros pensamentos sobre o Natal: a árvore que vou enfeitar depois do feriado, as comidas a encomendar pensando nos que vão chegar, o carinho que me aquece sempre que penso neles (e nos que estão distantes e não poderão vir). Emoções como vaga-lumes luminosos que alegram os dias nada fáceis para ninguém neste planeta - que anda bem esquisito.

Texto originalmente publicado na edição de 12 e 13 de novembro de 2016

LYA LUFT

27 DE NOVEMBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

A quem encontrou a carteira que perdi

Prezado, prezada,

Nem por um segundo cogitarei que você enfiou a mão na minha bolsa num momento em que eu estava distraída. Minha intuição diz que você não cometeria essa indelicadeza. É mais provável que eu tenha esquecido a carteira sobre a bancada de uma loja, na hora que estava pagando algo, ou a deixei cair no chão do shopping durante uma manobra desastrada, talvez ao colocar a alça da mochila por cima do ombro - tenho a mania tola de deixar zíperes semiabertos. Você chegou logo depois e deparou com aquele objeto ali, abandonado, dando sopa.

Já soube que você não foi até o setor de achados e perdidos, ninguém me chamou pelos alto-falantes, ótimo, um mico a menos. Tampouco me mandou uma mensagem pelas redes sociais, deve ser um dos poucos tímidos que ainda restam. Por via das dúvidas, fiz um boletim de ocorrência, por favor não se ofenda. Agora você tem em mãos um cartão de crédito inútil, já que bloqueado, e R$ 1,1 mil em dinheiro vivo. Já não uso dinheiro pra nada, mas havia dois pagamentos em cash a fazer naquela tarde. Me conta, criatura de sorte, por onde vai começar?

Torço para que você se matricule em algum curso, que sonhe em fazer aulas de dança ou teatro, e que a quantia seja suficiente pra arrancada. Ou que você entre numa livraria e saia com três sacolas repletas de poesia e ainda compre ingressos para ir a um show com os amigos. O troco você destina a uma rodada de cerveja e bolinhos de bacalhau, avise a turma que é por sua conta. Não me decepcione sendo sovina com dinheiro que caiu do céu.

Puxa, você não tinha me dito. Seu filho sonha com a camiseta oficial do time dele, pediu de Natal. Agora ficou sem desculpa, atenda o garoto, mas seja um Papai Noel para sua mãezinha também, ela está devendo uma fortuna na farmácia. Se você ainda não está por dentro do preço dos medicamentos, vai cair duro quando souber o quanto a coitada desembolsa para se aliviar das dores da artrite.

Olha, não é porque estou ligeiramente envolvida no assunto que vou me sentir no direito de me meter, mas já me metendo: dá para lotar o carrinho do supermercado, dá para encher o tanque e dá para pagar as dívidas mais urgentes, se você tiver juízo. Ou entrar no primeiro ônibus para o litoral com seu amor e trocar um longo beijo em frente ao mar. Claro, dá para poupar, depositando cada centavo no banco, mas não vejo graça nenhuma. Se a carteira perdida fosse de um desempregado, seria calamitoso, mas vá que o desempregado seja você: gaste. Bombons, camisa nova, um corte de cabelo, outra tattoo, assinatura de um canal, luzinhas na sacada. Recompense minha perda fazendo bom uso do seu desejo. Lamentarei menos se você atenuar a falência geral e ser estupidamente feliz por um dia.

MARTHA MEDEIROS

27 DE NOVEMBRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Contagem regressiva para o Natal

- Sabe, doutora, quando eu entro no supermercado e vejo aqueles panetones todos, os espumantes empilhados na entrada, me dá um aperto. Se eu não sair do súper na hora, vira pânico.

- Panetone tem o ano inteiro, de uns tempos pra cá. Espumante, nem se fala.

- Eu sei, mas em abril eu não fico aterrorizada se vejo um chocotone recheado com avelãs e coberto com amendoim glaceado, seja o que for. Porque não tem significado, entende? Mas lá por outubro, quando eles passam pra ponta da gôndola, aí dispara um gatilho. O Natal chegou.

- Lembra de algum fato na infância que possa ter desencadeado esse medo?

- Imagina, eu adorava o Natal. Nunca ganhava bem o que eu queria, eram muitos filhos em casa, só o pai trabalhava fora, mas vinha presente das tias, dos avós. E que comilança. Eu comia de passar mal. Daí levantava da mesa e ia brincar com os primos até tarde.

- Nenhum trauma? - Eu nunca gostei de peru, mas pra trauma isso não serve. Também não me faltou comida, nem presente. Ah, uma vez eu pedi a Susi espanhola e ganhei a mexicana, mas até que gostei.

- Pergunto pra gente tentar trazer do passado as raízes da tua fobia.

- Não tem a ver com a minha infância, doutora. Eu sei direitinho quando começou. Os gêmeos nasceram em novembro e a família resolveu se reunir no meu apartamento pra nos deixar mais à vontade. Aí o caldo entornou.

- Vocês brigaram, teve algum evento marcante? 

- Teve eu arrumando a casa, quer dizer, tentando arrumar entre uma mamada e outra. Entre uma troca de fraldas e outra. As pessoas esquecem que, a cada mamada, corresponde uma fralda cheia em seguidinha. Eu me sentia o Sísifo empurrando a pedra, lembra? Quando chegava lá em cima, a pedra rolava e começava tudo outra vez.

- Não é a imagem mais bonita da maternidade, mas no puerpério...- Deixa o puerpério fora disso. Eu tinha que arrumar a casa pra receber a parentada e ainda fiquei de fazer a sobremesa, que precisava gelar. Mas vai explicar isso pra dois nenês berrando ao mesmo tempo.

- Podia ter chamado alguém pra ajudar. Uma diarista, uma das tuas irmãs. - Todos estavam ocupados. E o meu marido precisava trabalhar, ele era autônomo.

- Não é mais? - Autônomo, é. Não é mais marido. - Como terminou a noite?

- Todo mundo foi embora e o meu então marido e eu ficamos nos revezando entre lavar toneladas de louça e lavar a bunda dos gêmeos depois que eles mamavam.

- Na minha análise, por mais difícil que tenha sido, tudo isso parece pouco pra justificar a tua fobia.

- Foi só a primeira vez. De lá pra cá teve sempre o estresse de comprar presente pras crianças, a senhora não imagina o preço do carro do Homem-Aranha, e depois pensar no cardápio, cozinhar, arrumar a casa, lavar toda a louça e ainda dar um jeito na bagunça, tudo isso com as crianças brigando. Tive mais dois meninos além dos gêmeos.

- Eu sei que, na hora, é difícil, mas tenta pensar que logo os teus filhos estarão maiores e tudo vai ficar menos pesado, tanto emocional quanto financeiramente. Vocês poderão curtir o Natal juntos, sem que um panetone desencadeie um ataque de pânico. Qual a idade dos teus filhos hoje?

- O Lipe e o Gabi têm 32. O Dani tem 30 e o Rafa, 28.

- O que a senhora acha? - Eu te receitei 20mg na vez passada, né? Vamos aumentar pra 60. Depois das festas a gente vê como fica.

- Feliz Natal pra mim, doutora. Te vejo em 2022. 


27 DE NOVEMBRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

O maior drama da pandemia no Brasil é o número absurdo de mais de 600 mil mortes. O segundo efeito nefasto foi a crise econômica e o aumento da miséria, inclusive da fome. O terceiro foi menos debatido e terá efeitos enormes a médio e longo prazo: a catástrofe na área cultural.

O desastre foi sobre todo o setor cultural. Atrás de cada nome fulgurante que possuía reservas para a crise, havia uma multidão de nomes quase invisíveis, iluminadores, cenógrafos, auxiliares de produção, pessoal da bilheteria, divulgadores e tantos outros que viviam mês a mês do que recebiam. De repente: nada mais entrava...

Falarei mais da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), pela importância da orquestra e porque sou conselheiro dela. Tenho menos conhecimento e nenhuma autoridade para tratar dos múltiplos setores que também enfrentaram dificuldades. Arthur Nestrovski, diretor artístico da Osesp, em artigo para a revista Piauí (edição 175, abril de 2021), traçou um itinerário da luta quase épica. Um regente inglês não pôde vir: os voos do Reino Unido haviam sido cancelados. O solista testou positivo. A Sala São Paulo foi fechada. Depois, foi reaberta, mas com limites enormes de público. Tanto Arthur como Marcelo Lopes demonstraram uma resiliência acima do normal. Todos os trabalhadores são dignos e toda ocupação honesta é válida. Porém, minha querida leitora e meu estimado leitor: algumas funções profissionais são mais fáceis de ser substituídas do que outras. É complexo encontrar um novo pianista que tenha o difícil Concerto para Piano n.º 2 de Shostakovich estudado no seu repertório, agenda livre e que esteja em algum ponto que permita um voo até São Paulo. Está mais fácil substituir ministro de Estado do que solistas.

As orquestras planejam sua temporada de concertos (32 no caso da Osesp) com anos de antecedência. Como escreveu Arthur Nestrovski: "Seria o eufemismo dos eufemismos dizer que tudo isso exige planejamento. A capacidade de planejar e a tradição de honrar o que foi planejado são, aliás, dois fatores dos muitos que dão credibilidade a uma instituição cultural. Alta qualidade artística será sempre o mais importante, mas cumprir acordos, ter uma produção que funciona e ser bom pagador são qualidades básicas. Não mudar de ideia no meio do caminho, também. Era assim que as coisas funcionavam no passado pré-pandêmico, antes da avalanche de pedras que agora obstrui diariamente a vida de nossas retinas tão fatigadas".

O novo holofote incidiu na adaptação virtual. Exemplo? Houve 53 transmissões dos concertos digitais 2020/2021. O YouTube Osesp, de 14 de março de 2020 a 8 de agosto de 2021: 1.788.750 views, 212.800 horas assistidas; Facebook Osesp, de 14 de março de 2020 a 8 de agosto de 2021: 2.930.626 pessoas alcançadas e 752.498 engajadas. Os concertos eram gravados desde 2011, e 10 deles foram recuperados do arquivo para exibição nas noites de domingo Houve 56 vídeos publicados dos músicos fazendo música em suas casas. Foram realizadas edições virtuais do projeto Falando de Música que analisava e debatia os programas. Surgiu o projeto Semibreve, com os músicos da Osesp respondendo a perguntas do público. Oito das nove sinfonias de Beethoven foram ao ar, comentadas por Thierry Fisher.

E o famoso Festival de Campos do Jordão que a Osesp administra? Após o hiato de 2020, a 51ª edição aconteceu essencialmente por meio de plataformas digitais - o público presente no Auditório Claudio Santoro (39 apresentações) e na Sala São Paulo (quatro apresentações) foi reduzido devido aos protocolos de segurança. Estive em um evento na Mantiqueira. O módulo pedagógico também foi afetado, com os alunos se revezando entre o presencial e o virtual. 

Nesse modelo híbrido, foram ministradas mais de 900 horas-aula. Além disso, foram realizadas 20 masterclasses virtuais com grandes nomes da música de concerto universal, como a pianista Yulianna Avdeeva, a flautista Silvia Careddu (Hanns Eisler e da Barenboim-Said Akademie), o violinista Boris Brovtsyn (solista internacional), o contrabaixista Martin Heinze (Filarmônica de Berlim) e o trombonista Joe Alessi (Filarmônica de Nova York). Em plena crise econômica, sanitária e política, o público e os jovens instrumentistas foram agraciados com trabalhos ousados e estratégicos.

O que eu testemunhei como conselheiro da Osesp em 2020 e 2021 foi uma jornada emocionante de adaptação e de esforço. Citei os nomes extraordinários do Arthur e do Marcelo. Há um grupo enorme junto a eles e, principalmente, os músicos profissionais da sinfônica. De muitas nacionalidades, todos tiveram o estresse natural do transe que ainda vivemos. Insegurança, medo, angústia pelo futuro e questionamento sobre tanta dedicação de anos e anos de estudos e de práticas agora esbarrando neste momento aziago e sombrio.

Não sei quando sairemos da escassez. Não consigo ver oásis neste deserto de estadistas. Sei apenas que, para atravessar a tempestade, necessitamos de música. Precisaremos de mais música para saber o que fazer no novo momento. Imagino a Sala São Paulo como uma arca de Noé atravessando uma tragédia mundial. Que os variados seres a bordo possam chegar a um monte tranquilo e repovoarem a terra da música. Minha esperança, hoje, reverbera notas musicais. Dia 22 de novembro foi o Dia do Músico. Parabéns a todas e a todos que pensam, realizam, lutam e fazem sons em meio à peste. Como Arthur Nestrovski narrou em um diálogo: "Música acima de tudo e Beethoven acima de todos". O resto é caco dissonante.

LEANDRO KARNAL

27 DE NOVEMBRO DE 2021
ELIANE MARQUES

ENGENERARIZAÇÃO

Dificilmente alguém deixou de ouvir algo sobre o Complexo de Édipo, descrito como o processo psíquico cujo resultado final, se exitoso, redundará na identificação da menina com a mãe, dado seu amor ao pai, e do menino com o pai, dado seu amor à mãe. Em face de tais identificações, o objeto amoroso eleito mais tarde pela mulher será o homem, substituto do pai, proibido; e o objeto eleito pelo homem será a mulher, substituta da mãe, proibida. No Édipo, concebido como o ingresso do/da infante em determinada cultura, ele (dono do phallus) se constituirá homem, ativo, masculino e heterossexual; ela se constituirá mulher, feminina, passiva e heterossexual. Ambes serão exogâmicos, ou seja, terão incorporada a si a lei da vedação ao incesto.

Para os meninos, a vedação alcançará apenas as mulheres da "família". Para as meninas, o tabu abrangerá o universo das mulheres, familiares ou estrangeiras. Considerado que, no início do Édipo, elas ocupam posição homossexual quanto à mãe - toda a criança tem a mãe como primeiro objeto de amor -, a heterossexualidade, dominante na cultura, a envolverá em maus lençóis, porque não é permitido que ela ame alguém sem phallus. Assim, ela não poderá continuar amando a mãe. E ela não poderá amar outra mulher. Dessa operação de menos, impõe-se à pequena mulher o contrato social da heteronormalidade. Se tiver a coragem de o rechaçar, correrá o risco de ser etiquetada nos manuais de homoanormalidade.

A criação da feminilidade e da mulheridade no processo de socialização, que é o Édipo, consiste, por certo, em uma engenerarização (imposição de um gênero). Por isso, concordo com Gayle Rubin quando, em O Tráfico de Mulheres: Notas Sobre a "Economia Política" do Sexo, ela o toma como um ato de brutalidade psíquica que nos marca com um grande ressentimento pela supressão de algo. A imposição da passividade, nesse mesmo processo, também nos retira os meios para expressar a raiva residual, diz ela.

Muites não concordarão com isso. Contudo, ainda no dizer de Gayle Rubin, a depender da posição em que nos situamos para a leitura da feminilidade em Freud, relativamente às mulheres, podemos tomá-la como racionalização da submissão a nós imposta, como panorama dos processos que nos subordinam ou como descrição dos efeitos e dos modos pelos quais uma cultura fálica nos domestica. Ela considera a primeira, justificável; a segunda, um erro; e a terceira, de grande valor.

Do ponto onde me encontro, considero a última de grande valor, apenas.

ELIANE MARQUES

27 DE NOVEMBRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

TRATAMENTO PRECOCE EFICAZ, SEM CLOROQUINA, PODE NOS LEVAR A OUTRA ERA

Vou dar uma notícia boa, alvissareira, como dizia minha avó: estamos perto de um tratamento precoce para impedir que a covid se agrave.

Entre nós, o uso político da cloroquina, apresentada como droga milagrosa no combate ao coronavírus, desviou a atenção da possibilidade de surgirem antivirais capazes de evitar que a doença se agrave.

Insistir no famigerado kit covid, depois que todos os estudos metodologicamente bem conduzidos demonstraram que cloroquina e ivermectina não passaram de tentativas infrutíferas, é coisa de médicos despreparados, gente desinformada ou espertalhões com interesses subalternos.

A confusão política armada nessa área, no entanto, não impediu que a indústria farmacêutica testasse drogas que pudessem ser indicadas nas fases mais iniciais da infecção.

Você, caríssima leitora, poderá argumentar que o vírus da gripe está entre nós há séculos, sem que tenhamos antivirais realmente eficazes contra ele. Por que não seria assim com o SARS-CoV-2?

Porque na gripe o quadro já se instala com todos os sintomas: dor de garganta, febre, dores musculares, fraqueza, perda de apetite etc. Os primeiros dias são justamente os piores, você começa a melhorar por conta própria depois do terceiro ou quarto dia, não daria tempo de o medicamento interferir com a evolução.

Já a infecção pelo coronavírus oferece uma janela de oportunidade: a instalação é mais insidiosa, é raro alguém precisar de internação nos primeiros dias. Os sintomas costumam piorar no fim da primeira semana, mesmo nos casos graves. Por falta de uma, surgem agora duas medicações com atividade documentada na fase inicial da doença.

Uma delas é o molnupiravir desenvolvido pela Merck, uma molécula capaz de se incorporar à informação genética do vírus, provocando mutações que interrompem sua multiplicação. No mês passado, a companhia anunciou que um esquema de cinco dias de tratamento, administrado logo após o início dos sintomas, reduz em 50% o risco de hospitalizações.

A preocupação dos especialistas é com a possibilidade teórica de aquisição de mutações que possam facilitar o aparecimento de cepas virais resistentes ou mais contagiosas. Como até o momento não há evidências desse efeito indesejável, o Reino Unido aprovou a indicação do molnupiravir para as pessoas com risco aumentado de complicações da doença. É a primeira medicação oral aprovada para impedir a progressão para as formas graves da covid.

A outra pertence à classe dos inibidores de protease, drogas dotadas da propriedade de inibir a ação de uma enzima essencial para a multiplicação de diversos vírus, que revolucionaram o tratamento da aids.

O primeiro ensaio clínico com esse inibidor foi realizado com pacientes não vacinados, em que os sintomas tinham se instalado no máximo havia três dias. Os participantes foram divididos ao acaso em dois grupos: placebo versus cinco dias do medicamento. Todos tinham pelo menos um fator de risco para as formas mais graves da doença.

O grupo de pesquisadores independentes encarregado de acompanhar os dados suspendeu o estudo precocemente, porque os resultados entre os que receberam a droga foram tão superiores que seria antiético prosseguir com ele.

Embora parciais, os números divulgados pela Pfizer são contundentes: das 389 pessoas tratadas a partir dos três primeiros dias da instalação dos sintomas, apenas 3 (0,8%) foram hospitalizadas, contra 27 (7%) no grupo placebo.

Num estudo paralelo, o antiviral foi iniciado pouco mais tarde: nos cinco primeiros dias após o aparecimento dos sintomas. Dos 607 pacientes tratados, apenas 6 (1%) foram hospitalizados, contra 41 (6,7%) entre os 612 do grupo placebo.

No total, ocorreram 10 mortes no grupo placebo; zero no grupo do medicamento.

A Pfizer já iniciou estudos em pacientes sem fatores de risco, bem como em contactantes que dividem a casa com alguém infectado. A companhia está para apresentar esses resultados ao FDA, o órgão americano correspondente à nossa Anvisa.

Se esses e outros antivirais forem lançados a preços acessíveis, tudo indica que vamos entrar em outra era. A pandemia será controlada quando vacinarmos o maior número possível de pessoas e tratarmos precocemente com medicamentos eficazes as não imunizadas e as que foram infectadas apesar da vacinação.

DRAUZIO VARELLA

VIVA O TESÃO!

Muita gente me escreve dizendo que perdeu o tesão, tanto no sentido figurado como literal nesses tempos difíceis. E como disse Roberto Freire, décadas atrás, "Sem tesão não há solução".

Naquela época, a discussão era outra. O tesão se opunha ao moralismo, à hipocrisia e repressão. Era o desejo libertário de ir contra valores impostos por uma sociedade fechada, especialmente para as mulheres. Imagine que ser desquitada era um ostracismo social que condenava apenas a mulher.

Hoje, a questão é vencer um desânimo generalizado, uma exaustão, um cansaço de lutar contra o noticiário assustador cotidiano e assistir de uma forma desconsolada o cenário da nossa indignação. Essa realidade dura e embrutecida nos rouba a vitalidade e tenta apagar o fogo do nosso estímulo, o entusiasmo que mantém a chama acesa.

Vemos por aí o sexo usado com esse mesmo embrutecimento truculento, um tesão distorcido associado a um comportamento de vulgaridade que resulta em brutalidade e violência. E não podemos nos identificar com isso.

Sinto que precisamos urgentemente resgatar a beleza do desejo. O tesão de viver, a maravilha do erotismo, da sensualidade, a delícia do sexo natural da vida. Descobrir dentro de nós o que isso significa e em qual fase estamos e saber respeitar nosso momento.

A energia sexual é uma força da vida. A nossa pedra filosofal que nos transforma com seu prazer e sua alegria. Tesão é um misto de bom humor e uma doce loucura que faz um bem danado. Preste atenção: troque tensão por tesão.

Tesão não significa apenas transar. Na verdade, é compreender que a força vital do sexo representa a chave da nossa libertação. Quebramos nossas amarras com essa energia. Descobrimos a auto estima e o poder do sagrado feminino.

Mesmo quando nos sentimos distantes da ideia da sensualidade, mesmo em casa, de pijama, cara lavada, querendo colo, sopa e consolo, a energia sexual está dentro de nós adormecida. Nem sempre precisa ser sexo desvairado, pode ser só carinho, pequenos gestos de ternura, de cuidado.

Você pode transcender, sublimar, estar em outra, ter interesses variados, não importa. Respeite seu momento e seu sentimento. Passamos por ciclos, períodos, mudanças e cada tempo tem sua descoberta e sua beleza.

Sejam quais forem suas circunstâncias, é sempre tempo de reacender o tesão de viver que jamais se apaga completamente. Mesmo que esteja esquecido, escondido, mesmo se o coração estiver machucado, tudo o que vivemos foi importante pra escrever a nossa história.

O amor é a nossa força renovadora, o verdadeiro elemento alquímico que nos liberta. Que nos tira do casulo que nós mesmos criamos. Muda a estação, uma nova corrente percorre o ar e a gente sente a vibração. Somos movidos a desejo, movidos a paixão. Essa é a nossa verdadeira natureza.

"L?amor che move il sole e l?altre stelle", escreveu Dante Alighieri em sua Divina Comédia. O amor nos conecta a tudo e move todo o universo. É hora de despertar o amor que começa dentro de nós, deixar irradiar sua luz que nos transporta.

BRUNA LOMBARDI 


27 DE NOVEMBRO DE 2021
J.J. CAMARGO

DE NOVO E SEMPRE, A ESPERANÇA

O condicionamento humano à prática da esperança é surpreendente na saúde e comovente na doença. A nossa relação com a esperança na vida cotidiana é muitas vezes ilógica e envolve escolhas absurdas, resultando em frustrações que quem olhasse à distância as consideraria previsíveis. É assim na vida sem propósito definido, nos empreendimentos que exigem determinação e coragem indisponíveis, nas relações pessoais com afeto comedido e nas promessas sem convicção.

E tudo se repete nas expectativas irracionais de que os toscos, quem sabe se comovidos pela dor dos outros, mostrem alguma empatia, que os jovens um dia se convençam que os velhos sabem mais por mais terem vivido, que os corruptos com currículo riquíssimo tenham um surto inesperado de decência, a até que ex-atletas com históricos brilhantes sejam milagrosamente ressuscitados para salvar nosso time e justificar o esforço de quem os contratou a peso de ouro.

Quando o exercício da frustração se generaliza, minando a alegria que tem geração espontânea na esperança de que tudo vai melhorar, de repente nos descobrimos tristes. E de tanto não dar certo, nos deprimimos. Nada de surpreendente que a letargia se transforme nessa doença inominada que enruga a pele, retira o brilho do olho, diminui a libido, produz dores itinerantes, coloca cabelos onde não têm utilidade, encurva a coluna e aumenta o perímetro abdominal.

O quanto esse estado de espírito é classificável como doença depende dos critérios e das exigências de quem os acolhe, e com que tolerância. A maioria das pessoas, pachorrentas na mesmice, agradeceria se as pessoas simplesmente não se importassem tanto com elas, ou seja, que parassem de chatear.

Um degrau acima nesse conflito entre o que nos enfara sem ameaçar-nos de verdade e a descoberta súbita, e sempre sentida como extemporânea, de uma peste qualquer que possa por um fim à nossa vida muda tudo. Porque, afinal, mesmo que o portador tenha noção do quanto a sua vidinha é monótona e chata, outra não lhe restou, por falta de sorte ou preguiça.

Também por isso, quando uma doença grave dá as caras, fé, promessa e esperança se misturam tanto que até a espera de um milagre parece bem razoável. Ou como me disse um ranzinza: "Claro que acredito em milagre, porque, se não, como explicar tanto santo por aí, se precisam de dois ou três milagres para canonizarem o vivente?".

A Marina tem um tumor enorme entre os pulmões, inoperável a menos que tenha uma resposta incomum à combinação de químio e radioterapia. Com o início do tratamento e aparente redução da lesão, o discurso adensou: "Minha relação com Deus ainda vai produzir surpresas maravilhosas. Pode crer".

Que Deus nos ajude para que a certeza esperançosa que Ele plantou se confirme.

J.J. CAMARGO

27 DE NOVEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Quero ser Tex Willer

Uma vez, um medicamento que eu tomava fez as minhas sobrancelhas mudarem de cor. Elas sempre foram pretas, ou quase pretas, sobrancelhas fortes, tão densas que minha madrinha Sônia às vezes insistia em eliminar a junção delas com uma pinça. Hoje, aquela ponte entre as duas sobrancelhas não existe mais. Minha madrinha fez um bom trabalho.

Eu tinha, e tenho ainda, o hábito de erguer as sobrancelhas. Às vezes uma única, a esquerda. Achava engraçado. Faço tanto isso que fiquei com um sulco no meio da testa, uma rugona profunda, que deriva para a direita, como se fosse a curva de um rio. Minha mãe diz:

- Por que tu não faz um botox?

Eu: - Nunca! NUNCA! Um homem tem de envelhecer com alguma dignidade.

Não é preconceito, entende? É que não combina com a minha personalidade. Você precisa manter coerência na sua vida. É por isso que não pedia o chocolate Lollo no bar da redação da Zero Hora. Ficava imaginando a cena: eu chegando ao bar, fincando o cotovelo no balcão e rosnando:

- Me dá um Lollo!

Não, não, esse não sou eu. Nada contra o chocolate Lollo nem contra seus apreciadores, mas o que quero, ao entrar num bar, é fazer como faziam Tex Willer e Kit Carson depois de irromper num saloon do Texas. E ordenar:

- Estalajadeiro! Me veja uma boa bisteca e uma montanha de batatas fritas! E, para tirar a poeira da garganta, uma grande caneca de cerveja!

É o que vou comer todo este fim de semana, por Manitu!

O que estou dizendo é que você faz uma imagem de si mesmo, baseada na sua própria história, e você só conseguirá ser íntegro se não macular essa imagem. Que imagem é essa? Depende de você. Você se sente autêntico usando calças legging cor de abóbora? Pois use! O que não pode é você fazer algo em confronto com a sua autoimagem. Aí você fratura a sua personalidade, fica cheio de problemas e vai gastar uma fortuna com psicanalistas.

Acontece que, bem, as minhas sobrancelhas mudaram de cor. Clarearam, ficaram loiras. É óbvio que isso não iria me causar trauma algum, era algo fora do meu controle, mas eu detestava aquelas sobrancelhas pálidas. Não era eu, compreende? Não era eu!

Evitava me mirar no espelho, quando estava com sobrancelhas alouradas. Não por vaidade, juro. É que eu parecia outra pessoa. Mas, tudo bem, fui em frente, tentando não pensar muito naquilo, até que, um dia, elas começaram a pretear de novo, para júbilo meu. Não voltaram a ser negras como eram, mas pelo menos não estavam mais loiras.

Pensei muito nisso, nesta semana, porque, no Timeline, da Gaúcha, falamos sobre mulheres que perdem os cabelos no tratamento contra o câncer. Compreendo o sofrimento delas. Imagine uma mulher que cultiva com tanta dedicação aquelas melenas que lhe descem quase até o meio das costas, ela passa cremes, ela leva duas horas no banho, e depois tem de se ver careca. É uma dor. Admiro quem faz o gesto singelo de doar cabelo a fim de que sejam confeccionadas perucas para mulheres em quimioterapia. É um grande bem que essas pessoas fazem.

Você tem de se esforçar para preservar sua autoimagem, mesmo que ela seja o reflexo de um personagem idealizado. Lembro sempre do Bukowski. Uma vez, ele estava discutindo com uma namorada e ela disse algo que o ofendeu. Ele gritou:

- Como você pode dizer isso? Eu sou Bandini! Eu sou Arturo Bandini!

Referia-se ao imortal protagonista dos romances de John Fante. Bukowski queria ser Bandini. Eu, Tex Willer. Assim neste final de semana beberei um bom uísque de milho e comerei bistecas com uma montanha de batatas fritas. Cáspite! Preparem-se, estalajadeiros!

DAVID COIMBRA

27 DE NOVEMBRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

O BEIJO

Em qualquer idioma, beijo significa a forma mais profunda de amor, seja ele terno ou erótico. O beijo aproxima e faz com que dois se tornem apenas um, integrados entre si. Foi talvez assim que deram àquela boate de Santa Maria o nome de Kiss, que é beijo em inglês, compreensível até a quem não fale inglês.

O beijo da Kiss, porém, foi mortal, numa mortandade traiçoeira que convidava a uma atração ou relaxamento de corpo e mente, mas que, de fato, era horror. Daqui a alguns dias, em 1º de dezembro, após quase nove anos de protelações, será julgado o crime que matou 242 jovens e deixou sequelas físicas ou psicológicas em 636 outros.

O júri, porém, não será em Santa Maria, mas na Capital, como se a cidade do crime não tivesse sido afetada, também, pela tragédia.

É impossível falsificar a verdade e qualificar o crime de mero "acidente" em que o horror foi obra do acaso. A madrugada de 27 de janeiro de 2013 na Kiss foi criminosa em si. Tudo havia sido disposto para um beijo de morte e terror. Vale relembrar o descaso e desdém com que os donos da boate trataram a segurança dos frequentadores, encerrando todos eles numa infernal ratoeira humana.

A brutalidade de janeiro de 2013 não se extingue nesse dezembro de 2021. Ao contrário, permanece escancarada nos depoimentos dos réus publicados por este jornal, dias atrás. De fato, nenhum deles assume sequer as responsabilidades, menos ainda as culpas pela tragédia.

Tratam a morte de 242 pessoas como se fosse uma rixa banal, quando se tratou de um crime fundado na cobiça. Ou o que foi quando truculentos "seguranças" impediram a tapas que os clientes se salvassem do fogo por não terem pago a conta?

Para os donos da boate, o dinheiro valia mais do que a vida? A rede que levou ao crime é extensa. Um dos donos da Kiss alega, até, que forrou o teto com inflamáveis placas de "isopor" só para aliviar o ruído.

O minucioso inquérito policial foi abrandado pelo Ministério Público e, agora, os réus se limitam aos donos da boate e membros da banda. Bombeiros e funcionários da prefeitura que concederam o alvará não são réus, mesmo que sejam parte da teia do crime.

Na Amazônia, no extremo norte do país, o Rio Madeira está sendo revolvido (e seu leito destruído) por dragas de garimpeiros em busca de ouro. Trata-se de outro crime, tão brutal quanto o desmatamento.

Quando substituiremos a cobiça por um beijo terno na natureza?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

27 DE NOVEMBRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

A CRISE DO TRANSPORTE PÚBLICO

Serviços públicos, por definição, são aqueles destinados a suprir as demandas básicas da população. Podem ser prestados pelo próprio Estado ou delegados. É função de todo gestor, eleito ou indicado para funções decisórias, trabalhar para que sejam assegurados aos usuários com qualidade e a custos justos, mas remunerando de maneira adequada os concessionários, quando a atividade estiver a cargo de empresas privadas, em nome da sustentabilidade do sistema. 

São exatamente estas condições que estão desafiadas hoje no transporte coletivo urbano, que atravessa uma crise que se arrasta há alguns anos em Porto Alegre, outras cidades gaúchas, como Caxias do Sul, e na esmagadora maioria dos mais populosos municípios do país. Os desequilíbrios, com queixas de passageiros e prestadores, têm soluções complexas e que provavelmente não estão apenas ao alcance das prefeituras.

O sistema convive com problemas que se realimentam. Há perda de passageiros, tanto para o transporte individual quanto para os aplicativos. Essa evasão reduz a receita das empresas, o que se reflete na qualidade do serviço e na renovação inadequada da frota. Do outro lado, há grande pressão dos custos, especialmente dos combustíveis, que naturalmente as empresas tentam repassar às tarifas, o que gera mais insatisfação dos usuários e conflitos a cada processo revisório. 

Como o principal propósito dos serviços públicos é atender em primeiro lugar a população, todas as medidas que visem cortar custos, com o objetivo de segurar os preços das passagens em valores razoáveis, devem ser implementadas. Mesmo que gerem naturais resistências. O encarecimento do diesel ao longo de 2021 agrava o quadro e promete tensionar as negociações em torno da definição das tarifas no próximo ano.

Na busca de saídas, além dos repasses emergenciais às empresas para não deixar as tarifas subirem mais, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, conseguiu aprovar na Câmara medidas como a privatização da Carris, a extinção gradual - para minimizar traumas - da função de cobrador até o final de 2025 e a revisão de uma série de isenções. Não há milagre. Se alguém deixa de pagar parte da tarifa, os demais usuários acabam onerados, embora manter benefícios seja justo para certos grupos, principalmente pelo perfil socioeconômico mais baixo ou com necessidades específicas. 

Estudantes carentes, por exemplo. Mas é preciso recordar: parte destas medidas foi proposta pelo prefeito anterior, Nelson Marchezan, que acabou derrotado no Legislativo. Ao fim, perdeu-se tempo na implementação de soluções, enquanto o serviço continuou a se deteriorar, prejudicado ainda mais pelos reflexos da pandemia, que diminuiu drasticamente o números de passageiros nos últimos anos anos.

Parece claro que o colapso dos serviços de mobilidade urbana só será evitado se existirem receitas extra tarifárias. Mas algo estrutural, e não paliativo. Não prosperaram as ideias de Marchezan de taxar aplicativos ou criar pedágios urbanos para subsidiar as passagens. Agora, Melo propõe criar uma loteria municipal para este fim ou reajustar os preços dos estacionamentos na área azul da cidade. Não há porque se interditar o debate em busca de respostas objetivas para a crise, mesmo controversas ou que contrariem interesses localizados. 

Mas as saídas também possivelmente passam por um uma colaboração federal e pelo apoio possível dos Estados. Dirigentes da Frente Nacional de Prefeitos estiveram na quarta-feira em Brasília para agendas com o Executivo e o Congresso. Prometem retornar dia 8 de dezembro. A entidade pleiteia algum tipo de subsídio, como um fundo emergencial que socorra o transporte público e a desoneração dos combustíveis para o setor. O inequívoco é que o tempo está se esgotando e a ruína do sistema, se não existirem ações articuladas e complementares, é iminente.


27 DE NOVEMBRO DE 2021
POLÍTICA +

Todo o cuidado é pouco nos aeroportos

Com a variante Omicron assustando o mundo e os países mais precavidos fechando suas fronteiras para viajantes da África e proibindo viagens de seus cidadãos, o governo não poderia fazer ouvidos moucos às recomendações da Anvisa. No final da tarde, o ministro chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, informou que a partir de segunda-feira o Brasil fechará as fronteiras aéreas para seis países da África (África do Sul, Botsuana, Eswatini, Lesoto, Namíbia e Zimbábue).

"Vamos resguardar os brasileiros nessa nova fase da pandemia naquele país. Portaria será publicada amanhã e deverá vigorar a partir de segunda-feira", escreveu Nogueira.

Só fechar as fronteiras para esses seis países da África poderá ser insuficiente. Nada garante que o vírus não tenha se espalhado para outras regiões (Bélgica e Israel confirmaram um caso cada um). O óbvio, dizem médicos envolvidos desde 2020 com o combate à pandemia, seria exigir passaporte vacinal e testar todos os recém-chegados a qualquer aeroporto, porto ou fronteira terrestre. Se a situação se agravar, impor quarentena aos visitantes ou brasileiros que regressam do Exterior.

No início da pandemia, o vírus entrou no Brasil pelos aeroportos, trazido por turistas ou por brasileiros que passaram as férias no Exterior, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. À época não se tinha vacina nem conhecimento acumulado para evitar a proliferação do vírus. Culpa-se o Carnaval, mas, mesmo que as festas tivessem sido canceladas, o coronavírus teria chegado de qualquer forma.

Com o que se sabe hoje, é possível reduzir as chances de que essa variante detectada primeiro na África do Sul se espalhe pelo Brasil. Aeroportos, portos e fronteiras terrestres são pontos de atenção. Quem faz essas recomendações é a Anvisa, o órgão do governo brasileiro responsável pela vigilância sanitária.

A Anvisa não manda, sugere. O diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, passou o dia dando entrevistas e alertando para a necessidade de medidas imediatas.

A secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann, disse que a nova variante preocupa muito as autoridades do Rio Grande do Sul:

- Estamos melhor preparados tecnicamente para enfrentar uma possível nova variante, mas as precauções devem ser tomadas. Temos população vacinada, rede assistencial constituída, temos testagem, equipes treinadas, vigilância genômica para identificar o mais rápido possível a presença da nova variante, mas o Brasil precisa fechar o ingresso de pessoas dos países onde se constatou o vírus. No mais, é seguir rastreando todas as possíveis mutações do vírus.

ROSANE DE OLIVEIRA

27 DE NOVEMBRO DE 2021
J.R.GUZZO

Quatro meses de espera

Caminha para o seu desenlace, enfim, mais um episódio miserável na vida pública brasileira: a sabotagem comandada pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, durante quatro meses seguidos, contra a apreciação do nome indicado pelo presidente da República para ocupar a vaga existente no Supremo Tribunal Federal.

Algum dos marechais-de-campo das “instituições”, esses que vivem dizendo que Senado, STF, o “regimento interno” e o resto da banda são entidades sagradas e intocáveis, seria capaz de dizer o que o interesse público ganhou com essa palhaçada? É claro que não. O atraso na votação do novo ministro foi apenas uma aberração – mais uma, na longa sucessão de agressões diretas ao Estado Democrático que a falsa legalidade tem feito em todos os níveis no Brasil de hoje.

A democracia brasileira, cada vez mais, é um objeto de curiosidade. Para o ministro Alexandre Moraes e o seu inquérito ilegal sobre “atos antidemocráticos”, ela está ameaçada de morte por cantores de música caipira, motoristas de caminhão e candidatos de “direita”. Mas um político sozinho, por rancores e interesses puramente pessoais, pode bloquear por quatro meses, ou quanto tempo quiser, o funcionamento da ordem constitucional. Aí ninguém acha que a democracia está sendo agredida.

O exame pelos senadores do nome indicado para o STF agora vai – ou pelo menos parece que vai. Mas quem pagará pela desmoralização completa do processo de escolha? Quem pagará pelos prejuízos que esses quatro meses de paralisia trouxeram para a máquina pública? O responsável único por esse absurdo, com certeza, não pagará nada. Ninguém paga, nunca.

Como a democracia pode estar sendo defendida, estimulada ou fortalecida pelos quatro meses de atraso na aprovação do novo ministro do STF? O que aconteceu é exatamente o contrário: o uso descarado das regrinhas inventadas pelos políticos para satisfazer a desejos pessoais. O senador “zé” ou o senador “mané” querem isso ou aquilo; o Estado tem se curvar para eles, e o interesse comum que vá para o diabo que o carregue.

Impedir por quatro meses inteiros, sem nenhuma razão decente, que o maior Tribunal de Justiça do país complete o seu efetivo legal não é um “ato antidemocrático”. O que será, então?

J.R. GUZZO

27 DE NOVEMBRO DE 2021
J.R.GUZZO

Quatro meses de espera

Caminha para o seu desenlace, enfim, mais um episódio miserável na vida pública brasileira: a sabotagem comandada pelo presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, durante quatro meses seguidos, contra a apreciação do nome indicado pelo presidente da República para ocupar a vaga existente no Supremo Tribunal Federal.

Algum dos marechais-de-campo das “instituições”, esses que vivem dizendo que Senado, STF, o “regimento interno” e o resto da banda são entidades sagradas e intocáveis, seria capaz de dizer o que o interesse público ganhou com essa palhaçada? É claro que não. O atraso na votação do novo ministro foi apenas uma aberração – mais uma, na longa sucessão de agressões diretas ao Estado Democrático que a falsa legalidade tem feito em todos os níveis no Brasil de hoje.

A democracia brasileira, cada vez mais, é um objeto de curiosidade. Para o ministro Alexandre Moraes e o seu inquérito ilegal sobre “atos antidemocráticos”, ela está ameaçada de morte por cantores de música caipira, motoristas de caminhão e candidatos de “direita”. Mas um político sozinho, por rancores e interesses puramente pessoais, pode bloquear por quatro meses, ou quanto tempo quiser, o funcionamento da ordem constitucional. Aí ninguém acha que a democracia está sendo agredida.

O exame pelos senadores do nome indicado para o STF agora vai – ou pelo menos parece que vai. Mas quem pagará pela desmoralização completa do processo de escolha? Quem pagará pelos prejuízos que esses quatro meses de paralisia trouxeram para a máquina pública? O responsável único por esse absurdo, com certeza, não pagará nada. Ninguém paga, nunca.

Como a democracia pode estar sendo defendida, estimulada ou fortalecida pelos quatro meses de atraso na aprovação do novo ministro do STF? O que aconteceu é exatamente o contrário: o uso descarado das regrinhas inventadas pelos políticos para satisfazer a desejos pessoais. O senador “zé” ou o senador “mané” querem isso ou aquilo; o Estado tem se curvar para eles, e o interesse comum que vá para o diabo que o carregue.

Impedir por quatro meses inteiros, sem nenhuma razão decente, que o maior Tribunal de Justiça do país complete o seu efetivo legal não é um “ato antidemocrático”. O que será, então?

J.R. GUZZO

27 DE NOVEMBRO DE 2021
INFORME ESPECIAL

O ex-aluno de escola pública que virou referência na Europa

Fila da merenda do Grupo Escolar Anne Frank, década de 70: Ricardo Saltz Gulko aguarda a vez de entregar a ficha mimeografada e de receber, em troca, um cachorro-quente. Esperar, de fato, nunca foi o forte daquele aluno irrequieto, nascido em Uruguaiana e nem sempre entre os mais disciplinados da turma.

A paciência tem mesmo limites. Diante da falta de perspectivas profissionais no Brasil, em meio a uma das tantas crises, decidiu virar imigrante. Desembarcou em Tel Aviv, Israel, em 1988, cheio de esperanças. O começo foi desafiador. Trabalhou como garçom, faxineiro e cuidador, até conseguir um emprego em uma das maiores empresas israelenses, a Amdocs, especializada em sistemas tecnológicos de cobrança.

A partir daí, decolou. Cursou Engenharia Industrial e Informações de Sistemas. Mas faltava o grande sonho: um MBA nos EUA. Foi aceito em Kellogg, uma das mais prestigiadas universidades do mundo. Tudo certo, menos por um detalhe. Ele não tinha dinheiro. Esperar? Jamais.

Ricardo foi 12 vezes a uma das agências do banco Hapoalim, em Tel Aviv, pedir um empréstimo, sistematicamente negado. Lá pelas tantas, uma das funcionárias ameaçou chamar a polícia se ele voltasse. Ele voltou, é óbvio. E protagonizou um milagre de proporções bíblicas: um financiamento de US$ 150 mil, sem ter garantias nem renda fixa.

Embarcou para os EUA e lá concluiu a sua formação. Desde então, ocupou cargos executivos e liderou projetos em gigantes como SAP, Oracle e Ericsson. Atualmente, trabalha como consultor estratégico para a Samsung. De Munique, na Alemanha, onde mora com a esposa, lidera, com a ajuda da tecnologia, uma equipe que está na Coreia. Ao longo dos anos, se especializou em experiência do consumidor, área focada em melhorar as relações dos clientes externos e dos públicos internos com as empresas. Está, de acordo com revistas e publicações, entre os 50 melhores do mundo.

Em 2020, fundou a Organização Europeia de Experiência do Consumidor, voltada a incentivar as empresas do continente a inovar e a aperfeiçoar as interfaces com seus públicos. Ricardo, porém, continua com o olhar voltado ao Brasil e a Porto Alegre, onde estão as bases do que aprendeu.

- Estudar em uma escola pública foi uma das melhores experiências da minha vida, porque foi no Anne Frank que aprendi sobre a realidade da vida, sobre capacidade de adaptação e sobre respeitar e me relacionar com pessoas diferentes - afirma.

E, sorrindo, canta, meio desafinado, mas com profundo empenho, o hino da velha escola: "O Anne Frank, é nossa casa, que nos dá luz e saber..."

TULIO MILMAN

sábado, 20 de novembro de 2021


20 DE NOVEMBRO DE 2021
LYA LUFT

Frases desfeitas

Impressionante como acumulamos palavras em frases, em primeiros poemas tímidos, em retorcidas imagens moderníssimas, tudo listrado, tudo xadrez, tudo tão longe... por favor, não quero assim.

Quero sossego. Quero solidão plena de afeto e aquela florzinha cor-de-rosa de alegria.

Mas ao meu redor revoam frases em geral não muito generosas: "Olha a cara dela! Se achando a tal!" "E ele com seu carrão!" "Já trabalhei naquela empresa e me demiti porque o chefe estava a fim da minha mulher"... "Quem disse que político não presta? Pura inveja!" "Vou votar nele apesar do nojo..."

Frases burras, frases cretinas, rancorosas, amargas. Poucas solidárias. Poucas úteis. Poucas que iluminam.

Somos coelhos assustados correndo num mundo que se desorganizou ainda mais?

Eu queria frases e fases harmoniosas, ao menos sugestivas.

Mas vejo minhas bebês Melanie e Penelope imaginando que cara triste a mãe faz neste universo burocrático do qual não quer saber, mas ao qual pertence. RG, CPI, CIC, INSCRIÇÕES a,b,c,d.

Quem está dodói devia ter suspensão imediata de todas as chatices. Nem pensar. Tudo empilhado, cabeça vagamente confusa. Filho, filha, amigo ajudam, e nora como ajuda.

Mas eu quero dormiiiiiiir.

Hoje a coluna é brevíssima, mas fiel aos meus amados leitores. Sorry, da outra vez será melhor, vou até aceitar listras e quadradinhos.

LYA LUFT

20 DE NOVEMBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Seu tempo de vida depois da morte

Morremos, acabou. O que pensarem de nós, pouco importará. Humm. Será mesmo que somos tão indiferentes à impressão que deixaremos? Alguma curiosidade há de se ter sobre como nosso nome circulará nas rodas de conversa (numa projeção otimista, dando como certo que alguns ainda falarão a nosso respeito). Quanto tempo de vida você imagina que terá depois de expirado seu prazo de validade?

A boa notícia: enquanto alguém lembrar de você, sua morte será parcial. Minha avó Iby ainda vive (morreu aos 90), meu colega Rooney ainda vive (morreu aos 34), meus dois primos Flavio ainda vivem (um partiu aos 60, outro aos 56). É como contribuo para a imortalidade que lhes coube, eles que nunca foram pilotos de Fórmula-1, jogadores de futebol, ídolos populares. Quem não é famoso precisa garantir a própria imortalidade através da autêntica e sincera saudade.

Soube pelo obituário que um querido amigo perdeu o pai. Fazia anos que eu não tinha contato com ele, mas recordava que os dois eram muito próximos, e imaginei seu abalo emocional. Já nem sabia onde esse amigo morava, ele que vivia trocando de país, mas descobri um e-mail antigo e tentei: mandei uma mensagem de condolências. A resposta veio em poucos dias. Meu amigo contou que, apesar de muito ligado ao pai, desconhecia certas atitudes de seu passado que nunca foram alardeadas. Sua morte fez brotar revelações comoventes. 

Os relatos chegavam de ex-colegas de profissão do pai, de habitantes da cidade do Interior onde o pai morou quando jovem, de funcionários que haviam trabalhado para ele, de gente que nem ao menos o conheceu pessoalmente, mas que havia sido beneficiado por seus gestos. Para além de todo seu histórico de bom pai, bom marido e bom avô, meu amigo descobriu que ele havia sido, dentro da sua universalidade, um homem gentil, portanto, eterno não só para a família.

Como uma coisa puxa a outra, me veio a palestra online que a The School of Life promoveu, semana passada, com o psicanalista Irvin D. Yalom. Já com a idade avançada e vivendo o luto de uma recente viuvez, Yalom, autor de Quando Nietzsche Chorou e outros livros sobre relações pessoais, confirmou: "Nossa imortalidade está condicionada à nossa gentileza, à maneira como tratamos conhecidos e desconhecidos". Prosaico e profundo. É a cordialidade que nos manterá vivos na lembrança de quem conviveu conosco. Nem bens materiais, nem prêmios, nem festas, nem feitos: quando chegarmos ao final, nada contará tanto quanto nossos bons modos, nosso olhar amoroso e nossa disponibilidade para o afeto. É um alento. Morre cedo quem quer.

MARTHA MEDEIROS