sábado, 28 de julho de 2018


28 DE JULHO DE 2018
LYA LUFT

Me ajuda a entender?


Anda difícil demais, nestes tempos, dar sentido a tantas coisas que nos acontecem. Digo "nos acontecem" porque tudo ou quase tudo deste mundo chega a nossa casa por TV, computador ou iPhone sempre que queremos... e queremos quase sempre.

Como agora, com a intensificação da coisa política, que sempre me assusta e intriga. Quem, como, quando, onde, e por que motivo? Quem vai melhorar a cidade, o Estado, o país, o mundo? Por todas as loucuras que se desenrolam onde menos esperávamos (tiroteio na civilizadíssima Toronto, gente morrendo assada na linda Grécia, comemorações na França virando pancadaria, o Japão morrendo de calor, nos Estados Unidos temos o Trump. Todo dia, dezenas de assassinatos aqui no Brasil, confusões jurídicas e políticas), cadê os líderes sensatos, poderosos, honradíssimos, cadê quem nos ajude a refazer este Brasil tão descosturado?

Não sei. Aliás, nunca soube e, quando acreditei, em geral, me desiludi. Mas continuo tendo esperança, e desejo, ardentemente, que a coisa melhore, que as pessoas parem de querer sair do país, que não fiquemos só nas mãos dos corruptos ou sonsos ou incompetentes. Perguntam se tenho preconceito contra política. (Uma de minhas netas, quando pequena, certa vez perguntou se eu tinha preconceito. Respondi, muito sincera, que sim, tenho preconceito contra mau caráter, falsidade e burrice. Devo ter outros, mas esses já me bastam.)

Sobre política, escrevi muito modestamente em Paisagem Brasileira: dor e amor pelo meu país. Prefiro falar de gente. O que não é menos complicado, mas aí eu me entendo um pouco mais. Porque gente sempre foi meu fascínio, objeto de meus tantos livros, de minha eterna contemplação e estranheza - porque gente é bicho muito esquisito.

E porque a vida é bela e difícil, ninguém controla a vida, isso a gente sabe. Mas podia ser um pouco menos enigmática. E eu gosto disso. Eu iria entregar ao editor meu primeiro romance, As Parceiras, então decidi tirar os parágrafos finais, muito explicativos. Vai ficar muito mais interessante, pensei. E foi, e causou aflição a muitos vestibulandos quando o livro esteve em lista de leituras obrigatórias. O não explicado, não entendido, exige que a gente aplique sensibilidade e intuição, com alguma liberdade: susto.

Pois então eu deveria, com tantos outros da minha raça mental ou emocional ou seja o que for, andar animadíssima. Porque quase tudo ao redor carece de significado tranquilizador. Os males pelo planeta se acumulam, o gigantesco iceberg na Groenlândia, a cessação ou não das tramas nucleares na Coreia do Norte, o misterioso veneno que alguém anda largando por ruas bucólicas da Inglaterra, as elucubrações trumpianas e os caminhos desta minha amadíssima pátria. Sem falar nas complicações da chamada "nova família", que parece de verdade mudar - mas as emoções humanas não mudam.

Enfim, alguém me ajude a entender o mundo, como minha mãe resolveu lindamente num certo momento em que, olhando as árvores do terraço de casa, escutando e vendo aproximar-se um vendaval com aqueles rumores das folhagens, ela botou a mão no meu ombro e disse: "Waldrausch": rumor do bosque. E achei lindo, e me emociono até agora. Mas e o mundo, o Brasil, e tudo, quem bota a mão no meu ombro e me ilumina?

LYA LUFT

28 DE JULHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Adoráveis malucos

A cena: o primeiro vinho da vida de vocês. Sentados frente a frente, cada um fala sobre as músicas favoritas, se prefere praia ou campo, se gosta de ler, se pratica esporte, se já morou em outra cidade. Sem esquecer o indefectível: qual o seu signo?

Ao fim da noite, haverá mesmo uma pista segura sobre as chances da relação? A gente pensa que sim, mas a vida mostra que nada disso interessa: nem o time que torce, nem se sabe cozinhar, nem se é de áries ou libra. Segundo o filósofo Alain de Botton, a gente deveria perguntar no primeiro encontro: qual é a sua loucura? Este seria um bom começo para avaliar se temos capacidade de segurar a onda do outro.

Não há como negar que somos todos meio esquisitos. Quem é que tem todos os parafusos no lugar? Combinado: ninguém. Então admitir isso seria um jeito mais honesto de iniciar uma história. O cara se abre: "Costumo fazer caminhadas durante a madrugada, preciso ficar totalmente sozinho no dia do meu aniversário, tenho um histórico de assédio moral que me perturba até hoje, fico meio enfurecido quando alguém insiste em saber sobre minha infância".

Sua vez de alertá-lo: "Não consigo ficar sozinha nem por cinco minutos, não posso engordar 200 gramas que fico sem comer por três dias, janelas abertas me causam pânico, desconfio que sou filha da minha tia".

Achou que iria ser facinho? Praia ou campo?

O ser humano, qualquer um, é um depósito de angústias, carências, traumas, neuras. Não somos apenas o nosso gosto para cinema, o nosso jeito de vestir, o nosso prato favorito - se fôssemos apenas isso, amar seria como jogar dominó. Mas o jogo entre dois amantes é mais complexo. Aos poucos, vão aparecendo os medos secretos, a dificuldade em lidar com certas emoções, a fixação em ideias estapafúrdias, o complexo de inferioridade, a ansiedade incontrolável, as perdas pelo caminho.

Nada disso é exatamente uma loucura, mas é um pacote existencial que é colocado no colo de quem deseja se relacionar conosco. A pessoa terá que amar não apenas nosso par de olhos verdes e nossa bicicleta na garagem, mas todas as estranhezas que cultivamos e a dor que tentamos subestimar.

O amor, em si, não é difícil. O amor é fácil. Difíceis somos nós. Somos uma simpática encrenca para quem se atreve a entrar na nossa vida e ficar conosco por mais de 10 dias, prazo suficiente para lembrar que perfeição não existe.

Alguém vai desistir de amar por causa disso? Ao contrário: o desafio é estimulante. Quase competimos para ver quem é mais maníaco, quem tem mais problemas familiares, quem se irrita mais com a rotina, quem explode mais - pra tudo terminar em chamegos embaixo do lençol, onde é obrigatório se entender.

Taí a graça e a desgraça de quem resolve dividir o mesmo teto, taí a bagagem surpresa que cada um traz de casa. Qual é a sua loucura? A minha, só conto depois do segundo cálice.

mar­thamedeiros@terra.com.br - MARTHA MEDEIROS

28 DE JULHO DE 2018
CARPINEJAR


O melhor amigo está namorando, o que faço? O grande desafio da amizade é ver o parceiro feliz e não se sentir deslocado. É quando o outro está amando e você não se vitimiza, não identifica o namoro alheio como uma ameaça à rotina ou como um roubo da cumplicidade.

Aguenta o ciúme e a inveja e não cobra absolutamente nada. Respeita o sumiço, o sequestro da paixão, o cativeiro da cama. Pois todo mundo desaparece no início de um envolvimento.

Entende o momento diferente do seu e que o amigo experimenta uma nova relação que exige exclusividade para dar certo.

Se antes vocês se telefonavam todo o dia, o amigo apaixonado ligará uma vez por semana. Se antes vocês batiam ponto num boteco, o amigo apaixonado deixará de beber. Se antes vocês se aventuravam juntos nas festas, o amigo apaixonado terá agora novos programas a dois. Se antes vocês não se largavam no WhatsApp, o amigo apaixonado estará off-line a maior parte das horas.

A mudança de hábitos não significa desprestígio, a transformação da rotina não é desimportância. Não estar mais sempre junto não desfaz a cola da intimidade. É um intervalo necessário para o autoconhecimento.

Há pessoas que se acham abandonadas, corneadas, excluídas e desenvolvem uma saudade histérica, possessiva, que pode levar a falar mal de quem não merece e destruir um companheirismo de muito tempo.

Não adianta realizar uma caça às bruxas e vodu. Não adianta fazer torcida para o término e avisar dos perigos. Não adianta vestir a roupagem pessimista e agourenta de urubu.

Talvez o mais complicado para os laços seja não falar do seu próprio sofrimento quando o amigo engata um romance, e somente partilhar a felicidade das confidências. E não jogar na cara a repentina conversão de objetivos, de um modo que soe como denúncia de uma hipocrisia. Natural que o amigo que festejava a solteirice agora pense em casar, previsível que o amigo que endeusava a independência agora queira filhos.

Apoiar as decisões durante a ausência é maturidade, gesto de nobreza reservado aos longevos álibis de nossa existência.

carpinejar@terra.com.br - CARPINEJAR

28 DE JULHO DE 2018
PIANGERS

Como criar um idiota


É um trabalho fácil que não exige tempo nem dedicação. Apenas péssimos exemplos. Comece se esforçando para ser um idiota, você mesmo. Desrespeite tudo. Tenha um bebê com uma pessoa de quem você não gosta. Assim que nascer, mostre aos outros dizendo: "Este vai ser comedor!". Deixe seu filho na frente do tablet desde cedo. Patati Patatá em looping no iPad, televisão durante o dia todo. 

Ofereça seu celular para seu filho ficar no YouTube, enquanto você cuida das coisas importantes da sua vida. Não perca tempo interagindo com o bebê. Não estimule, não crie conexões afetivas. Contrate uma babá. Se ela não puder dormir no serviço, contrate outra. Arrume uma creche que funcione no fim de semana. Você tem que descansar. Tenha pessoas para cuidar do seu filho o tempo todo. Esteja sempre ocupado.

Substitua sua presença por brinquedos. Dê tudo o que seu filho pedir. Use seu filho como sinal de status, mostrando a todos as roupas caríssimas que ele usa. Faça festas monumentais de aniversário. Não se envolva na escola do seu filho. Destrate garçons, motoristas e atendentes na frente de seu filho. Jogue lixo pela janela do carro. Beba e dirija. Dê um iPhone de última geração antes de ele completar 10 anos. Reforce sua aversão ao diferente, demonstrando nojo de qualquer pessoa que seja de outra classe social, tenha outra cor ou pense de forma diferente de você. Diminua as mulheres, com comentários e piadas.

Revolte-se com qualquer pessoa que avise que você está cometendo erros na criação de seu filho. Brigue com professores que ousarem dar nota baixa para seu pequeno gênio. Desafie psicólogos. Diminua a opinião de especialistas. Permita que ele tenha uma adolescência de excessos. Que beba cedo, seja o primeiro da turma a ganhar um carro, antes mesmo de completar 18 anos. Incentive-o a ser macho: que brigue em festas, ande armado, dirija em alta velocidade. Bata palmas quando destruir carros, atropelar pessoas, escapar de blitz. Desrespeite qualquer policial que tente punir seu filho. Pague as multas e as fianças.

Sustente seu filho até ele fazer 30 anos. Arrume um emprego pra ele na empresa. Coloque-o em um cargo de chefia. Entenda que todos tentaram ser injustos com ele, mas ele é uma pessoa boa. Tudo o que ele conseguiu foi por esforço próprio. Vai ser uma pessoa de bem, como você.

piangers@atlantida.com.br - PIANGERS


28 DE JULHO DE 2018
ENTREVISTA

O veredicto das mulheres

Conversamos com as três juízas à frente das associações de magistrados no RS sobre igualdade de gênero, feminicídio, aborto e reforma trabalhista

Pela primeira vez, as três entidades que representam os magistrados do Rio Grande do Sul são presididas por mulheres. A posse da juíza Rafaela Santos Martins da Rosa na Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs), no começo de julho, fechou a trinca formada pela juíza Vera Lucia Deboni, presidente da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul, e por Carolina Hostyn Gralha, da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região. Não é a primeira vez que uma mulher toma posse como presidente em nenhuma delas mas, considerando a discrepância entre o número de presidentes mulheres e homens em todas essas associações, é, de fato, simbólico que os mandatos dessas juízas sejam concomitantes.

São mulheres diferentes com trajetórias distintas. Quando entrou na magistratura em 1987, Vera Lúcia Deboni fazia parte dos 20% de juízas mulheres. Agora, a presidente da Ajuris lembra que, no Estado, as mulheres representam um total de 53% dos magistrados.

- Obviamente, isso veio acontecendo devagar, mas foi sem revés. Depois que começaram a aceitar as mulheres, e realmente foi difícil que isso acontecesse, não houve como voltar atrás. Hoje, dois dos maiores tribunais são presididos por mulheres - afirma, lembrando da ministra Cármem Lúcia, presidente do Superior Tribunal Federal, e da ministra Rosa Weber, à frente do Tribunal Superior Eleitoral.

Rafaela Santos Martins da Rosa e Carolina Hostyn Gralha, têm 12 e 13 anos de carreira, respectivamente. Reconhecem que fazem parte de outra geração, mas que algumas questões ainda se mantêm.

- Ainda é difícil de se aceitar a presença da mulher em um papel de liderança e confiança. Fica claro o quanto se identifica os papéis de poder com a figura masculina, e nós três chegarmos em 2018 sendo as representantes dos nossos juízes é uma virada de mesa - avalia Carolina.

A juíza Rafaela vê o momento como uma oportunidade para trabalhar as questões de gênero internamente:

- Conseguimos representatividade e estar em todas as instâncias, mas ainda existe uma diferença de tratamento quando é um juiz ou uma juíza falando. Acho que agora temos um papel importante nisso também, em trabalhar internamente, porque sabemos que, no seio das instituições, também há muito a ser feito.

E fora das instituições também: nossa vida é pautada por diversos temas que ganham ainda mais força por causa dessas questões de gênero. Aproveitamos o momento para ouvir o que as três juízas têm a dizer sobre assuntos que tocam a nossa rotina, como a diferença salarial entre homens e mulheres, feminicídio, aborto e reforma trabalhista.

CAMILA MACCARI, ESPECIAL

28 DE JULHO DE 2018
HORIZONTES

HORIZONTES



Gerações de fãs cresceram assistindo ao capitão Kirk e aos tripulantes da nave interplanetária Enterprise, na série Star Trek, materializarem no food replicator drinks e pratos elaborados em segundos. Embora as novas tecnologias ainda não permitam produzir instantaneamente bebida e comida ao toque de um botão, a realidade é que a impressão 3D de substâncias comestíveis, como chocolate e massas, já é uma ideia possível há alguns anos. Mais recentemente, no remake de outro clássico da ficção científica, a série Perdidos no Espaço, a espaçonave Júpiter 2 aparece equipada com uma sofisticada impressora 3D utilizada, já nos primeiros episódios, para produzir ferramentas, componentes da nave e até uma arma letal.

No mundo real, as oportunidades abertas pela popularização da impressão 3D e outras formas de fabricação digital são inegáveis, já que, por meio delas, processos avançados de manufatura, anteriormente só disponíveis em empresas de alta tecnologia, passaram a estar acessíveis a qualquer ser humano mortal.

Fala-se com entusiasmo, até certo ponto justificável, que o mundo testemunha, neste início de século 21, a Terceira Revolução Industrial, provocada pela crescente disseminação das ferramentas digitais. Diz-se que a partir de agora será possível produzir em casa grande parte dos objetos que anteriormente só se podia adquirir em lojas.

Os equipamentos que tornaram possível a realização dessa tecno-utopia são as máquinas de comando numérico computadorizado (CNC), que seguem, via de regra, o mesmo princípio tecnológico: guiar por meio de um computador os movimentos de um equipamento eletromecânico informatizado, com o auxílio de um software. Com base nesse conceito, máquinas de corte a laser, impressoras 3D e fresadoras, entre outros dispositivos, alimentam nos dias atuais a proposta de uma cultura maker, ou "cultura do fazer", que aparece como um revival da contracultura que, nos anos 1960 fez do "faça você mesmo" uma de suas marcas mais conhecidas.

As transformações causadas pela fabricação digital já são visíveis no dia a dia, por meio de objetos produzidos em espaços físicos apresentados como makerspaces, locais identificados com a cultura maker. Esses espaços são laboratórios (como os Fab Labs, rede mundial de fábricas digitais) dedicados a produzir diferentes tipos de inovação, relacionadas a imaginários utópicos, mas também ideologias nem sempre perceptíveis.

Um dos personagens centrais da Cultura Maker, Neil Gershenfeld, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e criador dos Fab Labs, afirma que a fabricação digital permitirá aos indivíduos projetar e produzir objetos tangíveis sob encomenda, onde e quando precisarem deles, concluindo que o acesso generalizado a essas tecnologias desafiará os modelos tradicionais de negócios, cooperação internacional e educação.

Apesar do entusiasmo que move os makers e as aspirações de Gershenfeld, no entanto, assiste-se também ao surgimento e ao crescimento em escala global daquilo que estudiosos chamam de "cyberproletariado". Nesse sentido, uma reflexão para o universo maker vem de um dos mais notáveis cientistas de todos os tempos, Stephen Hawking (1942-2018), que em um de seus últimos posts no site de mídia social Reddit.com comentou: "Todos podem desfrutar de uma vida de luxo e prazer se a riqueza produzida pelas máquinas for compartilhada, ou a maioria das pessoas pode acabar miseravelmente pobre. (...) Até agora, a tendência parece ser a segunda opção, com a tecnologia levando a uma desigualdade cada vez maior".

Desde 2016, São Paulo conta com a maior rede pública de laboratórios de fabricação digital do mundo, a rede municipal Fab Lab Livre SP. É interessante notar como a democratização do acesso às tecnologias avançadas presentes em locais como esse passou a ser encarada como um direito social adquirido. Essa iniciativa mostra-se como o primeiro e grande passo para a utilização dos laboratórios em sua, talvez, maior potencialidade: a inovação social participativa, descentralizada e articulada com outros atores do poder público e da sociedade civil.

Repensar o papel da tecnologia no contexto de países como o Brasil implica compreender como as ferramentas de fabricação digital podem coadjuvar processos sociais na solução de problemas reais que são, em grande parte, vinculados ao território e à escala local. Caso contrário, como reflete Gui Bonsiepe, um dos mais conhecidos designers e teóricos do mundo, referindo-se às impressoras 3D: "Não se pode excluir a possibilidade de que se termine em uma fabricação massiva de bibelôs".

Professor da Faculdade de Arquitetura da USP, coordenador do Fab Lab SP - PAULO EDUARDO FONSECA DE CAMPOS

28 DE JULHO DE 2018
SINGULAR

Onde fica o Cafundó


Aos pés da Serra de São Martinho, na Região Central, os cerros cobertos de mata retiram o horizonte da vista, e o emaranhado de estradinhas de chão abertas pelos imigrantes italianos da Quarta Colônia vai levando aonde nem Judas chegaria não fosse a ajuda de uma ou outra placa.

É o caminho do Cafundó, o Cafundó mesmo, de batismo oficial e escrito com o C maiúsculo, lugar onde a dona de casa Vera Quatrim Dal Molin, 55 anos, e o marido dela, o agricultor Dilmar Dal Molin, 49, escolheram para travar a luta diária pela sobrevivência. Trata-se de uma localidade dentro dos limites de Ivorá, município com pouco mais de 2,1 mil habitantes - a maioria deles na zona rural - a cerca de 50 quilômetros de Santa Maria. Não há quase nada por lá, o que talvez justifique o gracejo do nome, que foi, anos atrás, até motivo de vergonha para Vera.

- A gente achava ruim o nome, não gostava. Mas agora fiquei velha, não tenho mais vergonha. E foi aqui que, com honestidade e muito trabalho, criei meus filhos. Esse chão é meu, vou morrer aqui, por que ter vergonha? - ufana-se a mulher, no chalé de madeira ao sopé de um dos morros que compõem a paisagem.

A comunidade do Cafundó é uma espécie de resistência aos apelos da cidade e às dificuldades naturais do lugar. Não passa de duas dezenas de famílias, apostam os moradores, já que dados oficiais não dão conta do número atual exato da população. As plantações de milho, feijão, fumo e outras culturas assentam-se em peraus impiedosos que exigem dos moradores força nas pernas e serenidade para esperar que do terreno pedregoso germine fartura.

Vera já sofre as dores provocadas pelo esforço contínuo de apoiar no quadril os cestos com batata e alimentação dos animais no sobe e desce das trilhas íngremes. Esperar pela terra é a sina de quem se destina a existir por aquelas bandas, desde muito antes de os imigrantes italianos abrirem as primeiras picadas e linhas da Quarta Colônia.

O Cafundó, pelos registros históricos de Ivorá, foi ocupado por gente de São Martinho da Serra e Júlio de Castilhos, gente esta que fugia da violência da Revolução Federalista de 1893. Boa parte era formada por descendentes de portugueses, negros ou indígenas que habitavam as proximidades da sesmaria dos Mello, o grande proprietário da área de aproximadamente 3 mil hectares na época do Império.

- Os italianos não foram os primeiros a chegar no Cafundó, mas sim pessoas da região que queriam se esconder das lutas, daqueles tempos de degola nos campos mais altos. Só mais tarde é que os colonos começaram a adquirir essas terras, porque as áreas mais planas, das várzeas, já estavam ocupadas pelos alemães. Mas, desde aquela época, sempre foi um lugar escondido - conta o professor de História Sergio Venturini, um ivorense dedicado à memória do município.

Venturini explica que, muito antes da imigração de famílias italianas do Vêneto e de Friuli, em 1883, Cafundó e a comunidade de Barreiro, outra nos limites de Ivorá, registravam a presença de povos indígenas, que já tinham contato com o cristianismo por conta do primeiro período das reduções jesuíticas no Estado - a Redução da Natividade ficava onde atualmente é Júlio de Castilhos.

Acredita-se que esses locais periféricos da região tenham sido palco dos primeiros contatos entre imigrantes italianos e nativos. Inicialmente, os novos moradores vindos da Europa ignoravam costumes, língua e cultura dos locais, a quem chamavam, não importando se negros ou índios, de "nacionais", ou "brasileiros", por vezes, como uma maneira de distingui-los pejorativamente dos italianos.

Nas levas seguintes de novos proprietários de terras no Cafundó, estava a família do agricultor Alexandre Paulo Simonetti, 75 anos. Ele chegou ao local aos quatro anos, acompanhando os pais e outros 10 irmãos e de lá não arredou mais pé. Saíram da chamada Linha Simonetti, a oito quilômetros dali, em busca de mais espaço para plantar, ainda que o relevo acidentado pouco oferecesse a uma roça plana.

- Aqui, a gente planta com espingarda e colhe com o laço - diverte-se Simonetti, apoiando-se no ditado popular entre os colonos para explicar a dificuldade de se trabalhar naqueles terrenos.

O Cafundó já teve mais plantações e mais gente também. Muitos dos antigos moradores morreram e outra parte preferiu seguir rumo à cidade, num movimento que desfigura a vocação dos mais jovens para a vida no campo - não só em Ivorá, mas também em outras cidadezinhas da Quarta Colônia.

- As lavouras são limitadas, porque há muito cerro. Então, o pessoal vai embora por falta de condições - diz João Paulo Simonetti, filho de Alexandre e atual morador do centro de Ivorá.

Vera também lembra que, anos atrás, a localidade tinha mais atrativos. Vizinha da antiga "brizoleta" (a escola criada em 1960 por Leonel Brizola quando governou o Rio Grande do Sul de 1959 a 1963 e na qual ela estudou até a quarta série), a moradora recorda dos adjutórios, frequentes nas comunidades rurais e católicas da região, e das celebrações que reuniam gente de linhas vizinhas ao Cafundó em partidas de bocha e futebol. O período na escola era divertido e valorizado. Ivorá tem uma tradição em educação. Quando ainda pertencia a Júlio de Castilhos, foi o primeiro distrito do Rio Grande do Sul a ter uma escola pública com Ensino Médio.

A cidade é, pela forte tradição católica, um celeiro de padres. Por anos, funcionou no atual prédio da prefeitura uma espécie de pré-seminário para rapazes na modalidade de internato. O empreendimento foi idealizado por Monsenhor Busato, o primeiro pároco do município depois que a Capelania de São José do Núcleo Norte, antigo nome de Ivorá, tornou-se uma paróquia, em 1918.

A liderança religiosa de Busato, aliás, até hoje é motivo de controvérsia na comunidade. É venerado pelo espírito empreendedor e por obras que deixou na cidade, mas, ao mesmo tempo, retratado como um homem severo e implacável na disciplina de seus fiéis. Em seu livro Ivorá - Sangue Italiano na Quarta Colônia, Venturini descreve a figura do religioso como protagonista de episódios de violência, como uma bofetada em uma noiva e um pontapé, à porta da casa canônica, em um viúvo que havia casado novamente sem as bênçãos do pároco.

Monsenhor Busato também mantinha seu rebanho atento ao que chamava de "ameaça protestante". Em áreas de colonização alemã da Quarta Colônia, via-se as religiões protestantes ganharem força, e ele, orientado por circulares enviadas pelos bispos, deixava claro a excomunhão daqueles que se aventurassem longe da Igreja Católica. O povoado vivia, conta Venturini, sob o medo onipresente dos anos 2000, pois acreditava-se que seria o fim do mundo, do terceiro segredo de Fátima, à época não revelado pela Igreja, e do diabo.

- As pessoas tinham muito medo. Onde fosse, ele (Busato) queria saber se tinha gente fazendo reuniões dançantes ou culto protestante. Não se podia dançar. Enquanto o Monsenhor existiu, não se dançou em Ivorá. Teve gente que morreu sem nunca ter ido a um baile - conta o professor.

O Cafundó também entrava na área de jurisdição de Monsenhor Busato, mas por lá pouco se lembram dele. A herança educacional dos primórdios da cidade ficou relegada às lembranças. As crianças atravessavam o barro, encaravam o frio dos dias de inverno para aprender a "ler e fazer conta" e aproveitar a merenda, feita na instituição mesmo.

- A gente comia repolho temperado. Era bem bom. Sempre tinha - recorda Vera.

A brizoleta, oficialmente chamada Escola Municipal Senador Alberto Pasqualini, em homenagem ao político que virou o filho mais ilustre de Ivorá, quando teve as atividades escolares canceladas em 1995, tornou-se uma espécie de salão comunitário, onde ocorrem missas mensais, palestras e encontros da terceira idade, cada vez mais raros.

- Olha, era muito divertimento por aqui. Faziam as promoções na comunidade. Não tem mais nada disso. Por quê? Não sei. Só sei que era tudo diferente - lamenta Vera, em frente ao antigo colégio e ao campo de futebol tomado pelo mato.

O tempo no Cafundó passa devagar, marcado por verões escaldantes e invernos úmidos, entrecortados por um ou outro episódio rumoroso. Diferentemente das grandes cidades, a violência não faz parte do dia a dia de quem vive por lá. O que mais tira o sossego da Polícia Civil e da Brigada Militar são os abigeatos e os rebuliços por brigas em bailes do interior, mas, em 2012, um agricultor foi morto a pauladas em casa, vítima de latrocínio. Um ano depois, dois homens foram presos pelo crime. O assassinato brutal comoveu e assustou os moradores da localidade, desde então mais atentos ao movimento de estranhos que volta e meia cruzam por ali em busca de aventura.

Cafundó, além das gentes, esconde belezas naturais quase inexploradas pelo turismo. Há pelo menos duas cachoeiras na área, mas que ainda não integram roteiros turísticos. Ivorá tem mais de 30 cascatas e piscinas naturais que atraem visitantes para a área rural do município nos meses mais quentes.

- As cachoeiras do Cafundó têm acesso muito difícil, fica complicado de levar o pessoal lá por causa da falta de segurança e da trilha. É no cafundó mesmo - reforça Leandro Sarzi, engenheiro elétrico formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Sarzi diplomou-se e voltou para sua terra natal para abrir um comércio e se dedicar ao projeto Caminhos de Ivorá, que promove roteiros pela Quarta Colônia, incluindo a visita a pontos turísticos, como o Monte Grappa e a Cruz Luminosa, e almoços preparados por famílias de origem vêneta ou friulana.

O relevo da região atrai ao longo do ano grupos de trilheiros que encontram terreno ideal para o esporte. O Cafundó, por ser um cafundó, não está contemplado na programação oficial dos passeios, mas o entusiasmo de Sarzi em impulsionar o turismo local já vislumbra o potencial da localidade, banhada pelo Rio Mello, com cascatas escondidas e córregos.

Décadas atrás, atribuía-se ao nome dessa remota localidade qualquer infortúnio ou a ausência do progresso. Pensou-se até em trocá-lo, mas a falta de consenso entre moradores não só manteve a alcunha como também sequer conseguiu oficializar o nome de uma das sangas do lugar, deixando o curso d?água ser chamado ao gosto de cada um.

E não é que mais tarde foi justamente a denominação de Cafundó que deu fama ao lugarejo? Programas de TV de diversos lugares do país (incluindo o Fantástico, anos atrás), estudantes universitários em busca de um peculiar objeto de estudo, fotógrafos e repórteres aportam por lá para entender o lugar onde não tem quase nada aos olhos de quem pensa que tem tudo, mas quase tudo para quem, por opção ou destino, vive nesse esconderijo protegido pela natureza.

BRUNA PORCIÚNCULA - ROBINSON ESTRÁSULAS 

28 DE JULHO DE 2018
LEANDRO KARNAL

IMIGRAR



O Brasil é um mosaico. Houve migrações internas (grupos indígenas da Amazônia que desceram o litoral para o Sul); migrações forçadas (africanos) e migrações em busca de melhores condições de vida (como muitos europeus). Houve sentimentos variados: a vista do Pão de Açúcar na capital do império poderia representar o início desolador de um cativeiro brutal ou a promessa de uma nova chance social e econômica.

Entre os governos de D. João VI e de D. Pedro I, existiu a ênfase em atrair imigrantes de fala alemã. Os motivos eram variados: da necessidade militar de preencher os vazios demográficos da fronteira Sul até os declaradamente racistas como "branquear a raça".

Ocorreram experiências anteriores com suíços e alemães no Rio de Janeiro e na Bahia. A experiência mais bem-sucedida da primeira fase de imigração teutônica foi no Rio Grande do Sul. Um grupo de colonos partiu de Hamburgo para o Brasil e chegou a Porto Alegre em 18 de julho de 1824, ou seja, há exatos 194 anos. Na semana seguinte, chegou à Real Feitoria do Linho e Cânhamo, futura São Leopoldo. Trinta e nove "alemães" (não existia ainda a Alemanha como Estado) desembarcaram na margem do Rio do Sinos naquele dia 25 de julho que, desde então, passou a ser o Dia do Colono Alemão.

Nascido em São Leopoldo, fui educado na admiração a tais pioneiros corajosos que vieram desbravar os rincões do Sul. Em 1974, ano do sesquicentenário da data, encenou-se a chegada do grupo de argonautas loiros para aplauso dos seus descendentes. O nome da imperatriz Leopoldina, adepta do movimento, era lembrado entre fogos de artifício. O próprio topônimo, São Leopoldo, era uma homenagem a um imperador austríaco. 

Desde o início de 1974, o Poder Executivo no Brasil era liderado por um luterano, o segundo protestante a governar o Brasil, exatamente um descendente de imigrantes alemães, Ernesto Geisel. Tudo parecia ter lógica. Cantamos o hino que se iniciava com o verso: "Loiro imigrante só a natureza, te viu chegar para trabalhar aqui, e o gigante vale com certeza, se engalanou para esperar por ti". Eu estava lá e cantava no coro "Großer Gott, wir loben dich", um clássico Te Deum alemão que agradecia por todas as graças acumuladas.

Éramos pouco críticos em um momento pouco crítico. Ignorávamos as dificuldades, não aquelas que eram louvadas como uma prova de fogo para os imigrantes, mas outras igualmente graves. O agente da imigração para o Brasil (von Schäffer) recebia por cabeça, e tratou de pintar o quadro mais róseo possível aos candidatos no Porto de Hamburgo. Todos ganhariam terras imediatamente e teriam plenos direitos políticos. Não era um Mayflower puritano de "povo escolhido" que se inaugurava na travessia, mas um grupo agitado. 

Não havia apenas colonos. Foram recrutados soldados entre indivíduos que príncipes alemães queriam despachar para longe. Houve rebelião a bordo e até execuções. Chegaram 39 pessoas a São Leopoldo de maioria protestante (apenas seis eram católicos) e logo descobriram que as terras não estavam demarcadas, as sementes não tinham chegado e o voto era restrito a católicos. O paraíso era mais áspero do que fora apresentado. Em breve, em outras ondas migratórias, alguns colonos chegaram a enlouquecer em função das dificuldades, provocando proibição de novas levas para o Brasil da parte de alguns governos alemães.

Apesar de todos os desafios, o projeto continuou crescendo e se espalhando pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, serra fluminense e pelo Espírito Santo. Abaixo dos africanos e lusitanos, os alemães chegaram a ser o terceiro maior grupo de imigrantes para o Brasil.

O Brasil é um mosaico de imigrantes, eu disse à partida. Nenhum veio para cá por gozar de plena prosperidade na sua terra natal. A crise despertou o grosso do êxodo de italianos, portugueses, espanhóis, alemães e outros. Perseguições religiosas e restrições atraíram muitos judeus para o Novo Mundo. Quase todos aqui somos descendentes de imigrantes que saíram de situações ruins para sonhar do outro lado do oceano. Há pobreza, falta de perspectiva e perseguição na base das nossas árvores genealógicas. Quase sempre temos um miserável entre os ancestrais.

Ser descendente de imigrantes pobres deveria nos tornar muito receptivos aos novos grupos de pessoas em fuga. Especificamente, imigrantes atuais como bolivianos, venezuelanos e haitianos, que repetem o que nossos avós alemães, italianos, japoneses, portugueses e espanhóis fizeram. Nem sempre temos a solidariedade que nossa condição imporia. Pelo contrário, é comum que o imigrante da segunda-feira olhe o da quinta-feira como um invasor arrivista, um perigo. Acontece no Brasil. 

Acontece nos EUA, onde Trump, descendente de imigrantes alemães e casado com uma imigrante eslovena, aperta o cerco contra "forasteiros". Sempre me pareceu que, entre a utopia pouco praticável de escancarar fronteiras e a ideia de uma muralha xenofóbica, poderiam existir soluções equilibradas. Temos espaço no território. Talvez tenhamos pouco espaço nos corações. É sempre estranho que um ser humano possa ser ilegal no planeta Terra. Muita esperança para os imigrantes de ontem e de hoje.

LEANDRO KARNAL

28 DE JULHO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

A PRESSÃO DOS MAIS VELHOS


No passado, éramos condescendentes com a hipertensão arterial dos mais velhos. Na faculdade, aprendíamos que a pressão de 12cm x 8cm, considerada normal, deveria ser mantida até os 40 anos. Daí em diante, eram aceitos aumentos de 1cm para cada década de vida. Assim, entre 40 e 50 anos, os limites da normalidade se estendiam para 13cm x 9cm. Dos 50 aos 60 anos, até 14cm x 10cm; dos 60 aos 70 anos, até 15cm x 11cm; e dos 70 aos 80 anos, até 16cm x 12cm. Acima dos 80 anos, não havia regras nem pessoas que vivessem tanto.

Estudos posteriores comprovaram que limites tão frouxos tinham consequências. Mesmo nos mais velhos, níveis pressóricos acima de 12cm x 8cm estavam associados a aumentos da incidência de infartos do miocárdio, acidentes vasculares cerebrais, insuficiência renal crônica e insuficiência cardíaca, entre outras complicações.

Publicações mais recentes sugerem que níveis de 11cm x 7cm são mais seguros do que os tradicionais 12cm x 8cm. Ficou estabelecida, então, a regra de que, quanto mais baixa a pressão, melhor, em qualquer idade.

Acaba de ser publicado um estudo realizado na cidade de Leiden, na Holanda, que questiona esse rigor no caso das pessoas mais velhas e mais frágeis. Os autores levantaram os níveis de pressão sistólica (máxima), as taxas de mortalidade e de declínio cognitivo em 570 mulheres e homens com mais de 85 anos, dos quais 44% recebiam tratamento medicamentoso anti-hipertensivo. Vários participantes estavam internados em casas de repouso, apresentavam déficit cognitivo e tomavam diversos medicamentos para outros agravos de saúde.

Os níveis de pressão sistólica foram relacionados com a mortalidade geral por qualquer causa e com as funções cognitivas avaliadas por meio da aplicação de um teste, o Mini-Mental State Examination. Para estimar o estado de fragilidade física, foi realizado o teste de "força de apreensão", no qual o participante comprime um pequeno dispositivo manual dotado de mola e uma escala que mede a força da mão empregada no aperto. Os autores excluíram os casos de morte no primeiro ano de seguimento, bem como os que já sofriam de doenças cardiovasculares.

Os dados revelaram mortalidade mais alta no grupo dos que tomavam medicamentos anti-hipertensivos e apresentavam pressão sistólica mais baixa. Para cada redução de 1cm na pressão sistólica, o risco aumentou 29%. Da mesma forma, esse grupo experimentou declínio mais rápido das funções cognitivas. A fraqueza muscular medida pelo teste de força de apreensão também esteve relacionada com o declínio cognitivo mais acelerado. Entre os participantes que não receberam tratamento anti-hipertensivo não houve associação direta com o aumento da mortalidade nem com o declínio cognitivo.

Portanto, reduzir a pressão sistólica com tratamentos agressivos nos mais velhos e mais frágeis pode ter repercussão negativa na mortalidade geral e na progressão do declínio cognitivo. É preciso levar em conta o estado de saúde e a cognição na indicação de hipotensores para os que passaram dos 85 anos.

DRAUZIO VARELLA


28 DE JULHO DE 2018
J.J. CAMARGO

ÉTICA PRÊMIO E CASTIGO

Dois vídeos circularam pela rede nas últimas semanas, e o contraste é tão ostensivo que ficou impossível não comentar, especialmente neste momento em que a autoestima dos brasileiros anda ao rés do chão e só não se espatifa porque, apesar de tudo e do trocadilho, todos reconhecem que só a minoria é patife.

Em 2003, em um jogo entre a Dinamarca e o Irã, um atleta iraniano, quase no final do segundo tempo, confundiu um apito da torcida com o do juiz e segurou a bola com as mãos, dentro da área. Apesar dos protestos, o juiz não teve outra alternativa senão marcar o pênalti para a Dinamarca, que a esta altura estava perdendo a partida por 1 a 0.

Com a torcida vibrando diante da perspectiva do empate, justo quando tudo parecia perdido, o jogador Morten Hieghorst, responsável pela cobrança após consultar o treinador da Dinamarca, Olsen, caminhou lentamente e, com um leve toque, mandou a bola para a linha de fundo. A Dinamarca perdeu por 1 a 0, mas ganhou o mundo como um modelo ético que, 15 anos depois, ainda emociona. A arquibancada aplaudindo freneticamente depois que entendeu o que ocorrera ajuda a explicar por que este pequeno grande país se orgulha de ter o menor índice de corrupção no mundo.

Era uma tarde ensolarada e, ao fundo, se identificava a Praça do Comércio, um dos pontos turísticos mais famosos de Lisboa. De repente, a câmera de vídeo passou a acompanhar um cidadão que, com sua barriguinha fora de controle, bermuda e camiseta branca pouco recomendável para o sobrepeso e um ar de turista descomprometido, caminhava tranquilamente e, depois, acelerou o passo na tentativa vã de se livrar do cinegrafista inconveniente.

Todos os brasileiros honestos, que não têm condições de se refestelar amiúde no generoso verão português, se sentiram representados quando o repórter improvisado iniciou um rosário de impropérios, dirigidos com fúria crescente a quem, feito surdo por total conveniência, tentava seguir seu passeio, definitivamente arruinado por um tipo indiscreto que brandia acusações graves, inclusive a de ter emigrado para Portugal porque o Brasil se tornara insuportável por culpa, veja só, daquele venerando senhor que, por alguma razão, tem tido dificuldade de circular no seu país de origem onde se alojam multidões de implicantes.

Nascerá um dia em que a sociedade culturalmente mais diferenciada não tolerará a prepotência boçal dos que não conseguiram ser respeitados nem por seus pares e, ao invés de se comportarem como símbolos da Justiça que representam, parecem se orgulhar da repulsa que provocam no povo humilde que deviam proteger. Quando este dia chegar, que a arquibancada se prepare para aplaudir, porque os vendilhões serão todos chutados para a linha de fundo. E não haverá segunda instância para socorrê-los.

J.J. CAMARGO

28 DE JULHO DE 2018
ARTIGO

CONFIAR NA MENTIRA


Amaldade maior da vida é aquela que surge da ignorância posta a serviço do engano. Ou quando engano e ignorância disputam carreira entre si para ver quem faz mais vítimas. O resultado único é, sempre, a coroação da mentira como verdade incontestável.

Foi o que ocorreu em Pelotas, onde um laboratório (ou dito como tal) simulou centenas ou milhares de exames de mama para detecção de câncer. Não se trata de uma dessas falcatruas que povoam o cotidiano, em que "os mais espertos" enganam a quem tenha a virtude da boa-fé, mas de um crime atroz planejado pela cobiça. Nele, todas as formas de horror se somam e põem em jogo a saúde humana feminina. O câncer é enfermidade assustadora, exige atenção redobrada e - no caso das mulheres - pode incidir também nos seios, que são parte da beleza corporal.

Não se trata de um pequeno equívoco fortuito, em que (nestes tempos de frio úmido) confundamos resfriado com gripe, resolvendo o problema com chá de guaco e repouso. O crime é brutal, estendeu-se durante anos e é impossível saber quando começou ou, até, quando terminará. Mesmo que "o laboratório" deixe de funcionar, como vamos identificar, hoje, de um a um, os falsos exames de tempos atrás?

Mais ainda: como saber se o horror se limita a Pelotas e a um único laboratório, ou se foi copiado noutros lugares?

A sociedade de consumo especializou-se em adulterar o que puder, em busca de lucro fácil. Do amor à gasolina, das palavras aos falsos atos, adultera-se tudo. Lembram-se do leite envenenado com soda cáustica e outras pestilências? Alguns envenenadores mudaram a marca da empresa e seguem aí.

Onde está a responsabilidade humana e empresarial? Terá desaparecido o velho orgulho dos pequenos ou grandes empresários de apresentar o melhor, sem mistificações?

Ou já confiamos na mentira?

Porto Alegre recebeu do imperador Pedro II o título de "mui leal e valerosa" por ter sido fiel à monarquia que a Revolução Farroupilha tentou derrubar. Agora, os vereadores decidiram gastar um dinheirinho montando uma "ópera-rock" baseada no belo texto em que o poeta Luiz Coronel (junto com o pintor Danúbio Gonçalves) homenageou os revolucionários. Esqueceu-se a Câmara Municipal, porém, de revogar o monárquico lema da capital rio-grandense?

Assim, no lema, permanecemos leais à monarquia que Bento Gonçalves e os revolucionários de 1835 chamavam de absolutista e perniciosa. Simulamos uma história e confiamos na mentira que fere a própria História.

Jornalista e escritor- FLÁVIO TAVARES

28 DE JULHO DE 2018
POLÍTICA +

NA FREEWAY, RETRATOS DA INCOMPETÊNCIA

Os problemas da freeway, que passou de melhor do Estado a rodovia esburacada em 23 dias, fornecem uma série de retratos da incompetência do governo federal e lançam dúvidas sobre a capacidade da ANTT para gerenciar a licitação do polo que será concedido à iniciativa privada, com leilão marcado para 1º de novembro. Um governo que foi surpreendido pelo fim de um contrato cuja data de vencimento era conhecida 20 anos antes não tem defesa.

Não é preciso ser uma pessoa de grandes luzes para saber que uma licitação não se faz do dia para a noite. O governo de Michel Temer começou um ano e dois meses antes do vencimento do contrato com a Concepa. Como Temer e vários dos seus ministros já estavam no governo e conheciam a situação, poderiam ter agido antes para impedir o caos que se instalou agora.

A discussão sobre nova concessão começou torta. Como até o ministro dos Transportes à época, Maurício Quintela Lessa, chamava de "Concepão" o futuro polo formado por freeway, BR-101 (Torres-Osório), BR-448 (Sapucaia-Porto Alegre) e a BR-386 (Canoas-Carazinho), surgiu a suspeita de que o edital em construção fosse um jogo de cartas marcadas para que a empresa vencesse a concorrência.

Com o edital travado, a concessão da Concepa foi renovada por um ano, com redução da tarifa porque seria apenas de conservação. Os usuários aplaudiram porque aprovavam a qualidade do serviço prestado, mas a alegria durou pouco.

Agora, os técnicos do Tribunal de Contas da União concluíram que, mesmo com o corte de 50%, houve superfaturamento e que a empresa lucrou R$ 72 milhões além do previsto em um ano. Esse número adiciona novos elementos no caldeirão de confusões cujo resultado é o prejuízo para o usuário, com a deterioração do asfalto, a falta de socorro mecânico e a transferência do atendimento médico para as prefeituras.

Como não quis aceitar uma nova redução, a Concepa entregou a rodovia no dia 4 de julho. Nada garante que o novo contrato será de fato assinado em janeiro, já com o próximo governo empossado. Em licitações desse porte, é comum o perdedor entrar com recursos que atrasam a homologação do resultado.

Convidada para a reunião-almoço da Federasul, a candidata da Rede ao Planalto, Marina Silva, brincou com a falta de tempo na propaganda de rádio e TV:

- Tenho quatro segundos em cada bloco. Vou dizer Marina de manhã e Silva à noite. Geraldo Alckmin tem 10 minutos.

A brincadeira embutia uma queixa contra a forma como são divididos o tempo da propaganda e os recursos do fundo eleitoral, com vantagem para os partidos que reúnem maior número de deputados federais. A Rede tem apenas dois e, por isso, terá somente R$ 10 milhões do fundo público para dividir entre todos os seus candidatos.

Marina disse que não se conforma quando perguntam como vai governar sem maioria:

- O que pergunto é por que a Dilma não conseguiu e o Temer não consegue governar com 300 deputados. Quero fazer uma aliança com os 200 milhões de brasileiros e não com partidos.

Para montar o governo, em caso de eleição, Marina disse que convocaria "os melhores".

- Vou aposentar aqueles que estão fazendo gol contra e chamar para o campo os que estão no banco de reservas, como o senador Pedro Simon.

Amigo e conselheiro, Simon dividiu a mesa com ela e com a presidente da Federasul, Simone Leite. DESAFIANDO A ESCASSEZ

ROSANE DE OLIVEIRA

domingo, 22 de julho de 2018


21 DE JULHO DE 2018
PIANGERS

Queremos crianças felizes?



Eu quero que você feche os olhos e imagine uma criança feliz. Faça isso, por favor, e volte aqui em cinco segundos. (Espero que você não esteja no escritório. Seus colegas vão achar que você caiu no sono.) Pois bem, você imaginou uma criança feliz. Ela estava fazendo o dever de casa? Ela estava sentada e quieta? Esta criança feliz estava prestando atenção na lição de matemática?

Adorei quando um amigo me contou sobre uma pesquisa informal que fez com alguns alunos de até 10 anos. Perguntadas como seria a escola ideal, as crianças responderam: um lugar onde pode correr e pode conversar. Ou seja, o oposto das escolas de hoje, onde você não pode correr e não pode conversar. Os escritórios das empresas mais modernas hoje em dia têm pista de corrida para os funcionários fazerem reuniões enquanto se exercitam. Pode correr e pode conversar. Steve Jobs, uma das mentes mais criativas da história, adorava fazer reuniões caminhando e defendia a ideia de que, em movimento, temos ideias melhores. Pode correr e pode conversar.

Quantos de vocês eram ótimos alunos, estudiosos e dedicados, tiravam notas boas mas a professora reclamava que eram "muito conversadeiros"? Como se conversar fosse uma habilidade ruim. Como se conversar não possibilitasse conexões, aprendizados, contato com outras opiniões, outras culturas. Conversar é uma habilidade fantástica, completamente demonizada na sala de aula. Algumas pesquisas mostram que as pessoas aprendem mais quando estão discutindo em grupo. Está provado que aprendemos mais quando ensinamos outras pessoas. Falar é melhor do que prestar atenção. Pode correr e pode conversar.

Os países com os melhores níveis de aprendizado do mundo estão diminuindo a quantidade de tempo dentro da sala de aula. "Eles precisam brincar mais", afirmam os pedagogos. Em países como a Finlândia e a Suécia as crianças não levam tarefas para casa. O tempo com a família deve ser aproveitado sem pressão ou estresse.

Me impressiona a quantidade de cursos de humanização e criatividade para adultos - sinal apenas de que o sistema educacional nos desumaniza e nos tira todo o potencial criativo. Temos que, depois de formados, buscar cursos de humanização. Você já presenciou um desses cursos? São cheios de adultos brincando de pega-pega e escravos de Jó. Passamos anos perdendo uma série de habilidades para depois tentar recuperá-las.

Eu quero que você imagine uma criança feliz. Ela provavelmente está fazendo barulho, dando risada, correndo e pulando, dançando e, talvez, abraçando os amigos ou familiares. Ela não está em uma sala fechada olhando para um quadro negro e copiando a lição em um caderno. Ela está viva, inspirada, desenvolvendo seu senso crítico. Queremos crianças felizes?

PIANGERS


21 DE JULHO DE 2018
CARPINEJAR

A dor nos transforma em crianças

Ninguém sofre com maturidade. Sofrer é se tornar novamente uma criança.

É ansiar pela ajuda de um adulto mesmo sendo um adulto. Você dependerá de colo e de um apoio, de alguém para ouvir e justificar as suas dificuldades, de alguém para inspirar e motivar a ter resistência. Alguém por perto para não se ver tão desamparado pela inércia. Alguém para acender e apagar as luzes da casa. Alguém para controlar os horários dos remédios. Alguém para espiar o seu sono e levantar as cobertas caídas pelo seu movimento.

Temos que pedir socorro quando sofremos - esse é o segredo da vida. Não achar que é necessário ser forte e invencível.

Resolver tudo isolado é se piorar, pois não existe como entender a gravidade do que está acontecendo e identificar os próprios avanços e recuos.

Não há independência penando, só cama e escuro. A debilidade é traiçoeira e mexe com o controle dos pensamentos.

Seremos mentalmente menores de idade. O cansaço assusta e traz angústia, fecha as portas das lembranças, cria labirintos, chama o Minotauro por engano. Os medos de pequeno vêm nos assombrar, os pesadelos vêm roubar o nosso suor de madrugada.

Estar solitário sofrendo é ser um menino trancado no apartamento sem nenhum responsável, é ser uma menina aguardando na janela o retorno da família.

A dor tem dentro de si a solidão da infância. É uma hipnose regressiva. Retornamos a uma fase em que não sabíamos nos proteger. Tanto faz a consternação física ou emocional, não importa que seja uma separação ou uma dor de dente ou uma doença ou a morte de um afeto.

Fica-se prostrado, saudoso dos carinhos e da vigília. O sofrimento não tem pai nem mãe. O sofrimento é órfão. Não queira ser maior do que ele, porque vai engoli-lo usando os seus traumas e fraquezas.

Telefone a um amigo ou parente e apenas diga "Não estou bem, pode me cuidar?". A humildade é saúde.

CARPINEJAR



21 DE JULHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

O FUTURO daqui a 5 minutos


Era uma conversa trivial, falávamos sobre amenidades, e então ela me perguntou: Onde você vai passar o Réveillon?. Fiquei alguns segundos em silêncio, tentando processar o que havia escutado se é que havia escutado bem. Antes que eu abrisse a boca, ela insistiu no assunto: Você ainda não decidiu?. Eu só consegui balbuciar: Estamos em julho. Minha interlocutora olhou para mim como se eu fosse lesada da cabeça: Agosto, você quer dizer. Hello! A primeira metade do ano já foi.

Não, ainda estávamos em julho, eu tinha certeza. Aliás, ainda estamos em julho, ou não? Tudo bem, agosto é daqui a cinco minutos, mas, mesmo assim, não seria cedo demais para falar em Réveillon? 2018 começou ontem. Que dia é hoje? Que maluquice é essa? Por que estou suando fora de época? Alguém, por favor, me traga um copo d´água, não estou me sentindo muito bem.

Meu aniversário é daqui a um mês e já me vejo recolhendo os cálices com restos de vinho que ficaram em cima da mesa. Setembro é daqui a 10 minutos, o alarme já está programado para recepcionar a primavera. As eleições serão amanhã, e ainda não sei em que gaveta guardei o meu título. Aquelas nuvens negras que estão no horizonte despencarão daqui a pouco, em novembro. Toc, toc, toc. É dezembro batendo à porta. Feliz Ano Novo!

As atrizes de Hollywood já estão recebendo os vestidos e as joias que usarão na festa da entrega do Oscar. A polícia rodoviária já arma um esquema de segurança nas estradas para o feriadão de Páscoa. Daqui a uma hora é meu aniversário de novo. Onde é que você vai passar o Réveillon, querida? Capriche na escolha, 2020 será bissexto, ganharemos um dia a mais que passará correndo feito um rato na sala, como diz o Domingos Oliveira - aliás, 2020 foi o ano do rato no calendário chinês, lembra?

Você ainda não fez a lista de convidados para sua festa de 60 anos? Mas já decidiu onde passará o Réveillon, espero. Melhor se apressar, não tem vaga nos hotéis em parte alguma. O futuro é daqui a meia hora, honey, aguardando o quê? Num piscar de olhos a Copa do Mundo no Catar começa, e você ainda nem tomou seu café da manhã.

Parabéns, já é seu aniversário de novo. Onde você vai passar a virada de 2025? Tem que ser mais ágil, doçura. Daqui a instantes, a vida passa. Em breve, a vida ficou pra trás. Não dou cinco minutos pra você estar em outro lugar. Falta um fiapo de tempo pra você não se reconhecer mais no espelho, pra você não caber mais no seu jeans, pra você perder a memória, pra você ver a vida girar uma, duas, 15 vezes: segure-se, não tonteie, não vacile, você sabe que ano é hoje? Feliz ano novo, feliz ano novo, feliz ano novo!!

Pronto, aqui está seu copo d´água. Relaxe, querida.

MARTHA MEDEIROS


21 DE JULHO DE 2018
LYA LUFT

Predadores de almas


Nunca entendi bem essa nossa avidez por julgamentos. Sobretudo por julgamentos que nós fazemos dos outros. Possivelmente, numa interpretação rápida que alguém chamaria "psicanálise de fundo de quintal", eu diria que, criticando os outros, estamos erguendo biombos entre nós mesmos. Como meninos de escola que, tendo feito alguma malandragem, ligeiro dizem "não fui eu, profe", e apontam o dedo para alguém do lado.

Quanto mais inseguros, mais julgamos. Quanto mais culpados - ainda que por nada ou por alguma bobagem -, mais sentenciamos: por que ela não corta esse cabelo? Por que ele não muda de emprego? Por que ela educa tão mal as crianças? Por que frequenta esse restaurante tão caro? Por que nunca tira férias? Por que fala tão mal dos outros? Por que está sempre com essa cara de velório?

Alguém também me disse, há anos, esta frase que nunca esqueci: "Lya, todos têm a sua dor". Sim. Ela pode não cortar o cabelo simplesmente porque gosta assim. Ele não muda de emprego pois tem família a sustentar e não está fácil encontrar outro. As crianças dela não são mal-educadas: são felizes e naturais. Ele frequenta esse restaurante caro porque pode!!! Ele nunca tira férias porque não quer!!! Ela fala mal dos outros porque você também fala, neste momento, aliás. Quem sabe ela está com cara de velório porque perdeu um filho e essa dor não tem cura?

Enfim, não somos grande coisa, o que de certa forma nos consola. Não precisamos ser heróis, nem santos, mas sempre podemos ser um pouco mais humanos, solidários, compreensivos, pelo menos aceitar os demais com suas diferenças, suas manias, suas ainda que ocultas dores. Mas muitos de nós cultivam e curtem jogar pesadas pedras sobre quem nem conhecemos direito, ou que secretamente invejamos. Olhamos e avaliamos o que nos parece serem defeitos dos outros para animar nossa vida tediosa, ou apenas satisfazer nosso caráter não tão bonito.

Grande passatempo, barato, a ser exercido a qualquer hora e em qualquer lugar. Já vi mulheres ridicularizando maridos: "Olhem como está careca! Que barriga de cerveja! Por isso ronca a noite toda!", e outras gracinhas mais pesadas ainda - mesmo diante de um ou dois amigos, é público, e machuca. Ou homens que (bem mais raramente do que mulheres, acreditem) sentenciam sobre sua mulher, namorada, algo como "está gorda, não se veste direito, a casa anda um lixo, sempre de mau humor, quando quero carinho está com dor de cabeça...". Fico imaginando como será o convívio em casa. Na intimidade. Filhos e filhas certamente também são alvos dessas "bondades", então acabam isolados, muito mais bem aceitos com amigos do que em casa, pais ainda se queixando de que não sabem por que perderam o contato com eles.

Difícil assunto esse de nos alçarmos em julgadores, juízes, críticos eternos. Muito mais difícil encontrar quem pouco, ou raramente, fale mal de alguém. Porque estamos infelizes? Porque não conhecemos (ou não aprendemos...) ternura e compreensão? Porque - generalizando eu sei que erro -, no fundo, sem saber, sem notar, somos predadores de almas?

LYA LUFT

sábado, 14 de julho de 2018


14 DE JULHO DE 2018
LYA LUFT

Pequena clareira na confusão


Nestes tempos de tanta loucura, confusão e agitação, as coisas pequenas e simples nos ajudam a pensar que afinal o mundo deve fazer sentido. Mesmo quando nos parece distorcido como um quadro de Dalí ou desfeito e mal remontado como alguns Picassos, a gente aqui e ali sente uma punhalada doce no coração: sim, é isso, sim, era isso.

Assim, nos incríveis dramáticos dias dos meninos tailandeses na sinistra caverna, me fez rir o desejo deles para quando chegassem em casa: arroz e frango frito ou arroz e porco frito. Comove-me o entusiasmo de torcedores com os jogos da Copa, e a tristeza dos que perdem, o delírio dos que ganham. Pois, diante de algumas tragédias, tudo isso nada significaria. Que bom que não sabemos.

E remexendo (tentando arrumar) algumas inacreditáveis gavetas e o armário de meu escritório, que é minúsculo, achei antiquíssimas crônicas minhas contando graças familiares. Minha filha tinha menos de dois anos e resolvemos que estava na hora de lhe dar um primeiro cachorro-quente. Era uma manhã de frio e sol no Joe?s da Ramiro, morávamos quase diante do Hospital Moinhos.

Ela teve de segurar com as duas mãozinhas, para ela era grande, mas era um cachorro absolutamente simples, pão com salsicha sem nenhum requinte. Segurou, parada firme nas duas perninhas, analisou muito séria, levantou os olhos querendo entender por que lhe dizíamos: "Come, filhinha, é um cachorro-quente!".

Ela acreditava nos adultos, então botou o dedinho numa ponta de salsicha que emergia do pão, e confirmou confiante: "Sim, aqui tá o rabinho dele!".

Continuando com essa crônica tão antiga e tão viva ainda: o gurizinho da mesma idade, sentado na piscina de plástico no pátio, de repente olhou para baixo e gritou arregalando aqueles incríveis olhos azuis: "Mãe, mãe, olha aqui, eu tenho um buraco na minha barriga!".

Corri para ver se era verdade: a criança tinha feito uma descoberta, o umbigo de um anjo.

O menorzinho da casa, também nessa idade absolutamente encantadora dos dois anos, brincando no mesmo pátio, responde quando chamo para que entre em casa porque está chovendo (chuva miúda):

"Mãe, só tá chovendinho!".

Não acho que éramos felizes sem saber: éramos, e sabíamos disso.

Como tenho plena consciência e sei da graça e do valor das conversas de meus netos e netas quando almoçam comigo: a escola, professores e colegas, amizades, descobertas, problemas e façanhas, decepções, passeios, festas, algumas preocupações adultas.

Tudo fascinante para mim que os vejo e escuto, descobrindo aqui e ali traços dos pais deles, ou meus mesmo. Que mágica corrente de genes lhes transmite esse modo de falar, de olhar e gesticular, de sorrir ou se zangar, às vezes até de pensar?

Atravessando o tempo da vida e da morte, essa permanência em coisas tão simples como um desenho de lábio ou sobrancelha, um jeito de virar a cabeça, me faz entender que viver é mistério, dádiva e milagre. E que vale a pena seguir em frente - mesmo em tempos de desarrumação, dúvidas e às vezes dor.

Alguém me escreve que falo muito em mistério nos meus livros. Sim. Acredito que estamos mergulhados nele, numa floresta intricada, abrindo caminhos, varando torrentes, procurando sol ou estrelas, arranhados, tropeçando, mas encontrando, inesperadas, as pequenas clareiras de fatos ou memórias como estas que aqui divido com meu leitor.

LYA LUFT

14 DE JULHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

A FOME


É embaraçoso admitir, mas eu nunca tinha ouvido falar em Anthony Bourdain, prestigiado chef norte-americano que foi encontrado morto no início de junho em plena efervescência de seus 61 anos. Muitos ficaram perturbados diante do suicídio de um homem tão bem-sucedido, esquecendo que os bem-sucedidos também têm direito a uma alma atormentada. Quem era ele, afinal? Com atraso, resolvi conhecer Bourdain através da literatura e mergulhei em Cozinha Confidencial, o livro que o projetou em 2000, onde ele abre as tampas das panelas e revela os bastidores do universo gastronômico, além de servir ao leitor, como acompanhamento, sua apimentada biografia.


Devorei o livro. Encontrei todos os ingredientes que me satisfazem. Prosa ligeira, inteligente, sarcástica. Histórias interessantes, surpreendentes, divertidas. Um ser humano que erra, se confunde, arrisca. Doses possantes de entusiasmo, obstinação, bizarrices. O conhecido ritmo dos outsiders: 10 anos em um. Tudo muito vertiginoso, com finais felizes e infelizes se revezando, tal qual a vida, que não deve ser julgada apenas pelo o que acontece no salão principal, mas também pela bagunça dos fundos.


Comida é energia e sobrevivência. Vida, a mesma coisa: energia e sobrevivência. É o que nos faz pular da cama pela manhã com vontade de se superar, e não de se repetir. O que nos estimula a aprender, aprender, aprender, até chegar ao fim do dia e se dar conta do tanto que falta ainda. A fome nunca cessa.


Em meio à porra-louquice de Bourdain, há também muito pé no chão, como na parte do livro em que ele conta o que aprendeu com seu amigo Bigfoot, um cozinheiro que era uma lenda no West Village. "Ele me ensinou que um cara que aparece para trabalhar todos os dias, que nunca liga pra dizer que está com gripe, e que faz o que disse que ia fazer, tem muito menos probabilidade de estrepar com você no fim das contas do que um cara que tem um currículo incrível mas é menos confiável na questão do horário de chegada. Habilidade se ensina. Caráter, você tem ou não. Bigfoot sabia que existem dois tipos de pessoas no mundo, aqueles que fazem o que dizem que vão fazer, e todos os demais."


Entendida a lição, caráter passou a ser a prioridade deste chef alucinado, que quando garoto fez todas as besteiras a que tinha direito e mais algumas, até se tornar um homem respeitado em seu meio e conhecido em todo o mundo, a ponto de sua morte ter sido lamentada até por quem nunca chegou perto de um fogão. Aos 43 anos, quando escreveu Cozinha Confidencial, Bourdain era excitado, motivado, insaciável. Por que resolveu colocar fim à própria vida 18 anos depois? Por mais que se procurem razões, agora já era. Pra nosso espanto, um dia a fome pode cessar.


MARTHA MEDEIROS