domingo, 31 de julho de 2011


DANUZA LEÃO

Liberdade, oh, liberdade

Ah, que maravilha: vai aonde quer, volta na hora que bem entende, sem ninguém para reclamar

TODO MUNDO quer ser livre; a liberdade é o bem mais precioso, almejado por homens e mulheres de todas as idades, e a luta para conquistá-la começa bem cedo. Desde os primeiros meses de idade só se pensa em uma coisa: fazer apenas o que quer, na hora que quer, do jeito que quer.

Crianças de meses rejeitam a mamadeira de três em três horas, mas choram quando têm fome (só querem comer quando têm fome, o que é muito justo) e quando um pouco mais grandinhas, brigam para não vestir a roupa que a mãe escolheu.

Ficam loucas para ir sozinhas para o colégio, e quando chegam em casa além do horário previsto, ai de quem perguntar onde elas estiveram. "Por aí", é o que respondem, quando respondem -e as mães que enlouqueçam.

Quando adolescentes, as coisas pioram: querem a chave da casa (e a do carro), e quando começam a sair à noite e os pais tentam estabelecer uma hora para chegar, é guerra na certa, com as devidas consequências: quarto trancado, onde ninguém pode entrar nem para fazer uma arrumação básica.

Naquele território ninguém entra, pois é o único do qual ele se sente dono -portanto, livre. A partir dos 12 anos, o sonho de todos os adolescentes é morar num apart -sozinhos, claro.

Mas o tempo passa, vem um namoro mais sério, e quem ama não é -nem quer ser- livre (para que o outro também não seja). Dá para quem está namorando sumir por três dias? Claro que não. Se for passar o fim de semana na casa da avó, em outra cidade, vai ter que dar o número do telefone, e isso lá é liberdade? Os celulares permitem, pelo menos, que eles não atendam, já que sabem quem está ligando.

Aí um dia você começa a achar que para ser livre mesmo é preciso ser só; começa a se afastar de tudo e cancela o amor em sua vida, entre outras coisas. Ah, que maravilha: vai aonde quer, volta na hora que bem entende, resolve se o almoço vai ser um sanduíche ou nada, sem ninguém para reclamar da geladeira vazia, trocar o canal de televisão ou reclamar do fumacê no quarto. Ah, viver em total liberdade é a melhor coisa do mundo.

Mas a vida não é simples, e um dia você acorda pensando em mudar de casa; fica horas pesando os prós e contras, mas não consegue decidir se deve ou não. Pensa em refrescar a cabeça e ir ao cinema, mas fica na dúvida -enfrentar a fila, vale a pena? Vê a foto de uma modelo na revista e tem vontade de cortar o cabelo igual, mas será que deve?

Acaba não fazendo nada, e depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a ninguém, começa a sentir uma estranha nostalgia.

Como seria bom se tivesse alguém para dizer que é loucura fazer uma tatuagem; que aconselhasse a não trocar de carro agora -pra que, se o seu está tão bom?

Que mostrasse o quanto foi injusta com aquela amiga e precipitada quando largou o marido, o quanto foi rude com a faxineira por bobagem. Que falasse coisas que iam te irritar, desse conselhos que você ia seguir ou não, alguém com quem você pudesse brigar, que te atormentasse o juízo às vezes, para poder reclamar bastante. Alguém que dissesse o que deve ou não fazer, o que pode e o que não pode, e até mesmo te proibisse de alguma coisa.

E que às vezes notasse suas olheiras e falasse, de maneira firme, que você está muito magra e talvez exagerando na dieta; alguém que percebesse que faltando dez dias para o final do mês você só tem R$ 50 na carteira e perguntasse se você não está precisando de alguma coisa. E que dissesse sempre, em qualquer circunstância, "vai dar tudo certo".

Que falta faz um pai.

danuza.leao@uol.com.br
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sábado, 30 de julho de 2011



31 de julho de 2011 | N° 16778
MARTHA MEDEIROS


Amputações

Estamos falando de tudo que é nosso, mas que teve que deixar de ser na marra, em troca da nossa sobrevivência emocional

Quando o filme 127 Horas estreou no cinema, resisti à tentação de assisti-lo. Achei que a cena da amputação do braço, filmada com extremo realismo, não faria bem para meu estômago. Mas agora que saiu em DVD, corri para a locadora. Em casa eu estaria livre de dar vexame.

Quando a famosa cena se iniciasse, bastaria dar um passeio até a cozinha, tomar um copo d´água, conferir as mensagens no celular, e então voltar para a frente da TV quando a desgraceira estivesse consumada. Foi o que fiz.

O corte, o tão famigerado corte, no entanto, faz parte da solução, não do problema. São cinco minutos de racionalidade, bravura e dor extremas, mas é também um ato de libertação, a verdadeira parte feliz do filme, ainda que tenhamos dificuldade de aceitar que a felicidade pode ser dolorosa. É muito improvável que o que aconteceu com o Aron Ralston da vida real (interpretado no filme por James Franco) aconteça conosco também, e daquele jeito.

Mas, metaforicamente, alguns homens e mulheres conhecem a experiência de ficar com um pedaço de si aprisionado, imóvel, apodrecendo, impedindo a continuidade da vida. Muitos tiveram a sua grande rocha para mover e, não conseguindo movê-la, foram obrigados a uma amputação dramática, porém necessária.

Sim, estamos falando de amores paralisantes, mas também de profissões que não deram retorno, de laços familiares que tivemos de romper, de raízes que resolvemos abandonar, cidades que deixamos. De tudo que é nosso, mas que teve que deixar de ser, na marra, em troca da nossa sobrevivência emocional. E física, também, já que insatisfação é algo que debilita.

Depois que vi o filme, passei a olhar para pessoas desconhecidas me perguntando: qual será a parte que lhes falta? Não o “Pedaço de Mim” da música do Chico Buarque, aquela do filho que já partiu, mutilação mais arrasadora que há, mas as mutilações escolhidas, o toco de braço que tiveram que deixar para trás a fim de começarem uma nova vida.

Se eu juntasse alguns transeuntes, aleatoriamente, duvido que encontrasse um que afirmasse: cheguei até aqui sem nenhuma amputação autoprovocada. Será? Talvez seja um sortudo. Mas é mais provável que tenha faltado coragem.

Às vezes o músculo está estendido, espichado, no limite: há um único nervo que nos mantém presos a algo que não nos serve mais, porém ainda nos pertence. Fazer o talho sangra. Machuca. Dói de dar vertigem, de fazer desmaiar. E dói mais ainda porque se sabe que é irreversível. A partir dali, a vida recomeçará com uma ausência.

Mas é isso ou morrer aprisionado por uma pedra que não vai se mover sozinha. O tempo não vai mudar a situação. Ninguém vai aparecer para salvá-lo. 127 horas, 2.300 horas, 6.450 horas, 22.500 horas que se transformam em anos.

Cada um tem um cânion pelo qual se sente atraído. E um cânion do qual é preciso escapar.


30 de julho de 2011 | N° 16777
NILSON SOUZA


A execução e o terremoto

Se o futebol é mesmo uma metáfora da vida – como já afirmaram vários autores, incluindo-se aí o uruguaio Eduardo Galeano –, o pênalti, do ponto de vista do cobrador, é a encruzilhada entre o dever e o fracasso. Parece fácil, mas até os maiores craques tremem quando se encaminham para a bola. É uma espécie de pelotão de fuzilamento ao contrário: o artilheiro é que corre maior risco de ser alvejado pelo próprio tiro.

São 11 metros entre a marca fatal e as balizas, que formam um retângulo com 7m32cm de largura e 2m44cm de altura. Qualquer criança é capaz de colocar a bola num espaço dessa dimensão.

Claro que há um goleiro lá dentro, mas com enormes limitações, sem poder tirar os pés da linha antes da bola ser chutada. Porém, tudo se modifica numa cobrança decisiva: o gol fica diminuto, o goleiro se agiganta e a bola se transforma em chumbo para o homem encarregado de arremessá-la às redes. É pressão demais.

O estádio, qualquer estádio, se transforma num coliseu romano lotado de espectadores impacientes que fuzilam o gladiador com olhares implacáveis, exigindo a execução. Ele sabe que não pode falhar. Se errar, os polegares acusadores apontarão inexoravelmente para o chão.

Atletas treinam muito para executar com perfeição os movimentos do esporte. O cobrador de pênaltis já fez dezenas, centenas, até milhares de vezes o que vai fazer agora. Mas ele sabe que nenhuma daquelas vezes foi igual a outra. Sabe, também, que a bola tem as suas manhas, às vezes tem vontade própria, nem sempre cumpre a trajetória pretendida pelo pé que a impulsiona.

O torcedor não sabe disso. De pé na arquibancada, ou roendo as unhas diante da televisão, imagina que é moleza acertar o cantinho, colocar a bola no ângulo, enganar o goleiro com um chute de efeito.

Nem lhe passa pela cabeça que aquele homem encarregado da cobrança leva nos ombros um fardo maior do que pode suportar. É inadmissível, para a lógica da paixão, que um jogador profissional possa arrematar por cima do travessão daquela distância, chutar pela linha de fundo ou – o improvável que tanto se repete – acertar uma trave de, no máximo, 12 centímetros de espessura.

Mas o carrasco prestes a se transformar em condenado sabe que até um pequeno terremoto costuma ocorrer naqueles décimos de segundo em que ele avança para a bola. E o pior é que ninguém vai acreditar que a grama se desprendeu sob seus pés, que a própria marca do pênalti se movimentou e que o tremor do mundo (ou de suas pernas?) tirou-lhe a concentração.

RUTH DE AQUINO

O chororô dos meritíssimos

Estou com pena dos juízes. Seus 60 dias de férias anuais podem ser reduzidos à metade. É uma maldade com os meritíssimos. O tratamento cerimonioso vem da palavra mérito. Os juízes estão acostumados aos superlativos. Digníssimo, excelentíssimo. Os salários e os benefícios do Judiciário também são superlativos. Quando um juiz é afastado por um abuso, é “punido” com aposentadoria integral. Na semana passada, o direito dos magistrados a férias em dobro foi ameaçado.

Quem comprou a briga foi o presidente do STF, Cezar Peluso. Em entrevista ao jornal O Globo, ele defendeu a redução das férias – ou melhor, a “equiparação” do descanso dos juízes ao de todos os assalariados brasileiros, com base nas leis trabalhistas. A reação da categoria foi estridente e imediata. O chororô afeta a credibilidade de uma classe bem remunerada que estuda em princípio para defender direitos iguais.

A carta aberta dos juízes é comovente. Eles defendem seus 60 dias de férias por motivo nobre. Trabalham demais e sob pressão, não recebem por hora extra, levam “processos complexos” para casa nos fins de semana. Professores, médicos, motoristas, todos deveriam se inspirar no direito ao ócio dos meritíssimos.

Os juízes explicam que, livres das audiências, trabalham durante as férias. E, por isso, precisam dos 60 dias. Para resolver a lerdeza da Justiça, talvez devêssemos ampliar ainda mais as férias dos juízes. Os processos não se acumulariam tanto, sem solução. Noventa dias de férias anuais seriam suficientes para tirar o atraso?

Não é apenas em nome da eficiência que a Associação dos Magistrados do Brasil se amotinou. Os juízes afirmam que férias dobradas reduzem a aposentadoria por invalidez ou morte prematura. Esse argumento parece piada de humor negro com os demais trabalhadores.

E a comédia não para aí. O senador petista Eduardo Suplicy criticou o privilégio dos juízes e promotores: “Há tantas outras profissões que exigem extraordinária dedicação e nem por isso têm férias maiores que o normal”. Suplicy esqueceu que ele e seus companheiros no Congresso têm direito a 55 dias de descanso remunerado por ano.
Eles querem manter o privilégio das férias mais longas. Onde vai parar a guerra às castas no Brasil?

O professor da PUC do Rio Luiz Werneck Vianna, autor do livro Corpo e alma da magistratura brasileira, defende as longas férias dos juízes. “É uma profissão estressante. Isso é coisa de classe média ressentida”, diz ele. O presidente da OAB, Ophir Cavalcanti, discorda: “ (A regalia) fere a igualdade que deve existir entre os cidadãos.

A Justiça brasileira é morosa também pelo excesso de férias, recesso e feriados”. A sociedade já não idealiza o magistrado, afirma o professor de história do Direito da FGV de São Paulo, José Reinaldo de Lima Lopes: “Está cada vez mais forte a mentalidade de que o juiz é um prestador de serviço como outro funcionário”. Foi-se o tempo em que o juiz era indicado pelo imperador ou pelo ministro da Justiça. Há concursos públicos.

Em abril deste ano, a polêmica foi outra. Tentou-se em vão exigir dos tribunais o expediente integral, das 9 horas às 18 horas. Não adiantou o presidente da OAB brigar pela igualdade: “A toga é apenas uma indumentária, e não um escudo para justificar a diferenciação entre os trabalhadores”. Um dos argumentos dos juízes foi o calor excessivo no fim da tarde. O horário dos tribunais em alguns Estados vai das 9 horas às 14 horas. É por isso que precisam de tantas férias para trabalhar. A realidade não cabe num expediente assim.

Onde vai parar a guerra às castas no Brasil? Dilma começou a faxina ética no governo e no Congresso – e isso rende votos. Não importa se as razões da presidente são altruístas ou estratégicas. Alguém começa a peitar os mercenários da política.

Mesmo que nenhum ex-ministro mensaleiro devolva o dinheiro, Dilma pode dar uma de Peluso e questionar por que deputados e senadores trabalham dois dias por semana, discutem só o que importa a eles, vendem a consciência em troca de benefícios regionais ou pessoais, gastam as verbas extras sem prestar contas e se esbaldam em recessos com passagens aéreas financiadas por nós. Vivem todos vidas superlativas, alguns com ficha suja. Sem a menor culpa.

terça-feira, 26 de julho de 2011



26 de julho de 2011 | N° 16773
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Viagens de trem

Tomo um táxi e, sem razão nem porquê, o motorista começa a falar de trens. Nasceu na Fronteira e o tema lhe desperta agradáveis recordações. Era passageiro do Minuano, uma composição dotada de amplas poltronas e, especialmente, de um vagão-bar, onde você podia tomar sua cerveja ao ritmo sincopado dos trilhos. Havia também os Húngaros, nos quais lhe serviam o jantar numa badeja móvel, dessas que se encontra hoje nos aviões.

Escuto-o com atenção, mas sem poder me esquecer dos trens em que viajei nos Estados Unidos e na Europa. Os americanos eram burocráticos. O máximo que lhe alcançavam era um cobertor, quando a temperatura lá fora era muito baixa. Já os europeus eram todo um compêndio da arte de viajar.

Primeiro, lhe davam uma cabine, que você precisava dividir com ingleses, alemães, franceses. Segundo, um carrinho passava por sua porta e lhe oferecia drinques e petiscos. Terceiro, a companhia na cabine era agradável – às vezes graciosa e agradabilíssima – e você podia se sentir um eleito dos deuses.

Não esqueço também as viagens no TGV, que uniam Paris a Londres em três horas, sob o Canal da Mancha. Foi igualmente esse bólido que me levou de Paris a Nice, na Côte d’Azur, passando por Marselha. E ali ficava todo um mundo de charme e encantamento, cujo centro e capital era o Principado de Mônaco.

Mas se me perguntarem qual foi a viagem que mais me impressionou, porei de lado uma que me levou de Colônia, na Alemanha, a Paris, para me fixar em outra, bem mais ao sul.

Falo de um trajeto que me conduziu de Munique a Zurique. Era um dia em que nevava muito, e os flocos pintavam o mundo de branco. Eu estava só, numa cabine, quando entrou uma mulher de seus 30 anos, muito bonita.

Percebi, por seu rosto, que sofria. Era francesa e casada. Assim que a composição se movimentou, abriu as torrentes de suas confissões. O seu era um drama não muito incomum, mas mesmo assim emocionava. Escutei-a com atenção e lhe dei alguns conselhos, que nunca soube se usou.

Era uma cena surreal. Toda aquela neve caindo e uma mulher jovem e linda entregando confidências a um desconhecido.

Mas essas são coisas mágicas que só acontecem num trem.


26 de julho de 2011 | N° 16773
CLÁUDIO MORENO


A mão e a escrita

Diziam os antigos – talvez por pura maledicência – que a Academia de Platão tinha concluído que ser bípede e não ter penas bastava para distinguir o homem de todos os demais seres vivos. Pois essa lendária definição, tantas vezes ridicularizada no passado, não desagradaria de todo a uma importante corrente da ciência moderna, que afirma que a humanidade nasceu no momento em que nosso antepassado se pôs de pé.

Ao nos tornamos bípedes, aquelas que seriam nossas patas dianteiras ficaram livres para se transformar em mãos – as quais, juntamente com a linguagem, são consideradas os traços fundamentais para a caracterização de nossa espécie.

A mão não se comporta como os outros órgãos – ela tem algo de particular e extraordinário. Como a linguagem, ela é veículo de significação; ela está ligada ao gesto, ao sinal; ela aponta, ela mostra, ela toma, ela oferece. Ela é a extensão mais importante do cérebro, e dele recebe, com justiça, um tratamento privilegiado.

Na escrita, mais do que nunca, os dois atuam juntos – um não manda no outro, mas são parceiros, num diálogo em que os músculos e a mente ensinam e aprendem ao mesmo tempo. Depois de automatizada, a escrita passa a ser uma dança em que o corpo e o espírito se movem em harmonia; só então se pode dizer, como Cervantes, que a mão que empunha a pena se tornou a língua de sua alma.

A partir desse momento, o jeito de traçar as letras, de ligar umas às outras, de cortar os tês ou pôr os pingos nos is passa a ser uma característica tão particular e inconfundível quanto o meu rosto ou minha voz.

Da mesma forma, os sinais que os pintores depõem em sua tela valem como verdadeiras impressões digitais. Quando o Papa enviou a Florença um emissário para pedir que Giotto, um dos grandes mestres do Renascimento, fornecesse uma amostra de seu trabalho, o pintor simplesmente tomou uma folha em branco e com sua pena, usando um vermelho muito vivo, traçou à mão livre um círculo tão perfeito que, diz Vasari, “era uma maravilha de se ver” – e isso foi suficiente.

Minha letra é também tão pessoal que basta minha assinatura para provar quem sou eu – e por isso mesmo, quando não quero ser identificado, vou me esconder na neutralidade da letra de fôrma.

Pois não é que agora, indiferentes a tudo isso, surgem vozes delirantes a dizer que é desnecessário o ensino da escrita cursiva na escola? Afinal, alegam, se nosso jovem só escreve mesmo no computador ou no celular, por que não alfabetizá-lo diretamente no teclado ou, no máximo, em letras de bastão? Mas estão cegos e surdos? Não veem o que vamos perder?

A criança de hoje deve aprender a usar o teclado, sem dúvida, mas como um acréscimo necessário à sua formação, e não à custa desta aliança essencial entre a mão e a linguagem. A perda seria irreparável.

sábado, 23 de julho de 2011


RUTH DE AQUINO

A patrulha do amor

Era uma festa de interior paulista em São João da Boa Vista. O pai, de 42 anos, abraçou o filho, de 18. Eles se veem uma vez por mês. “A gente fica no maior chamego, é a saudade”, disse o pai. Um grupo de seis homens se aproximou e perguntou se eles eram gays. O pai ainda respondeu que não. Foi desacordado por um soco no queixo. Sua orelha direita foi decepada por um dos agressores. Era um serralheiro de 25 anos que odeia homossexuais.

O serralheiro, preso dias depois, foi solto logo. E provavelmente só se arrepende pelo erro de avaliação: se pai e filho fossem um casal, teriam merecido o castigo. Ele é um entusiasta da tese defendida pelo deputado federal Bolsonaro: pais devem dar palmadas em filhos com “desvios” para “curar a doença” que está destruindo a família brasileira.

Essa legião homofóbica é muito maior do que se pensa em nosso país. Ela começa a sair do armário. Os novos direitos iguais dos gays cumprem uma função importante: mostram quem é quem. Preconceitos ficavam escondidos pela legislação discriminatória.

Agora, emergem com fúria viril e religiosa. Agressões como essa e tantas outras terão de ser punidas exemplarmente, até que a sociedade se civilize e se modernize. O racismo é crime? A homofobia também precisa ser crime.

“Estava eu, meu filho, minha namorada e a namorada dele. Elas foram no banheiro. Aí eu peguei e abracei ele”, contou o pai, vendedor autônomo que vive numa chácara em Vargem Grande do Sul, cidade vizinha.

O filho mora com a mãe em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. “Passou um grupo, perguntou se nós éramos gays, eu falei ‘lógico que não, ele é meu filho’. Ainda falaram: ‘Agora que liberou, vocês têm que dar beijinho’. Houve um empurra-empurra, eles foram embora, mas voltaram. Não sei se eu tomei um soco, apaguei. Quando levantei, senti.

A minha orelha já estava no chão, um pedaço.” Uma mulher pegou o pedaço da orelha e colocou em um copo com gelo. No hospital, os médicos disseram que a orelha foi decepada por algum objeto cortante e muito bem afiado. “Não se pode nem mais abraçar um filho”, disse o autônomo.

Esse episódio dantesco numa festa agropecuária não choca apenas pelo ódio aos gays. Parece cada vez mais difícil ser pai amoroso quando, por todo lado, espreita a malícia alheia.

Há dois anos, em setembro de 2009, um turista italiano foi preso por acariciar e beijar com “selinhos” a filha de 8 anos numa piscina pública em Fortaleza. Um casal de Brasília chamou a polícia. Estavam indignados com o “gringo pedófilo”. Ele branco, ela mais escura. A menina era filha do italiano com uma brasileira. A mulher também estava na piscina e protestou quando levaram o marido.

O ataque dos homófobos ao pai que abraçava o filho revela o cerco àqueles que exibem afeto em público

Pode-se entender o engano inicial numa região como o Nordeste, onde a prostituição infantil e o turismo sexual são uma tragédia quase oficial. Mas, mesmo depois de esclarecer que o italiano era pai da menina e estava com a mulher, como explicar sua detenção por dez dias de férias?

Foi liberado sem pedido de desculpas. Daqui a pouco, um pai não poderá mais ajeitar o biquinizinho da filha, levar a menina ao banheiro, colocar no colo, abraçar e beijar.

Essa polícia do comportamento afetivo é dura, humilhante e cultural. Persegue sobretudo os homens. Em vários países, beijos entre heterossexuais não põem em dúvida sua masculinidade. São expressões de carinho. No Brasil, é mais complicado. Escrevi uma vez sobre o simbolismo de homens fantasiados de mulher no Carnaval.

“O homem se veste de mulher porque quer ser mais afetivo de maneira escancarada, sair beijando todos, de qualquer sexo. Homem afetivo, nos outros dias do ano, é coisa de gay”, diz o psicoterapeuta Sócrates Nolasco. “É um momento do ano em que ele não precisa afirmar sua masculinidade. Mulher pode ser afetiva, carinhosa, extrovertida, e nem por isso será tachada de piranha.”

Deve ser cansativo e frustrante tentar se enquadrar o tempo todo no que a sociedade espera do macho. As novas gerações de homens deveriam fazer uma revolução.

quarta-feira, 20 de julho de 2011



20 de julho de 2011 | N° 16767
MARTHA MEDEIROS


Espírito de coletividade

Recebi um texto sem autoria, e só tive como comprovar sua autenticidade através do google, que ora avaliza os fatos, ora nos faz de bobos. Mas, ao ler seu conteúdo, tive forte impressão de que é verdade.

O fato: um grupo de 200 aposentados japoneses, engenheiros em sua maioria, está se oferecendo para substituir trabalhadores mais jovens no perigoso trabalho de manutenção da usina nuclear de Fukushima, que foi seriamente afetada pelo terremoto de quatro meses atrás. Os reparos envolvem altos níveis de radioatividade cancerígena, como se sabe.

Em entrevista à BBC, o voluntário Yaseturu Yamada, de 72 anos, diz que tem procurado convencer o governo sobre as vantagens de se aceitar a mão de obra da terceira idade. Conclui ele: “Em média, devo viver mais uns 15 anos. Já um câncer vindo da radiação levaria de 20 a 30 anos para se manifestar. Logo, nós que somos mais velhos temos menos risco de desenvolver a doença.”

Ou seja: cidadãos que estão na faixa entre 60 e 70 anos, muitos deles inativos, querem dar sua última contribuição à sociedade e, ao mesmo tempo, liberar os jovens de um trabalho que lhes subtrairia muitos anos produtivos de vida, enquanto que, para homens de idade mais avançada, não haveria diferença significativa.

Essa é uma notícia que deve fazer refletir a todos nós. Não se trata apenas de generosidade, mas de consciência. Os idosos japoneses não estão sendo bonzinhos, e sim exercendo o sentido de responsabilidade, que a eles é muito comum. Estão pensando na sociedade como algo que só funciona em conjunto, e não individualmente.

Acredito que quando a gente faz o bem para si mesmo, com ética e respeito à lei, sem ônus para nossos pares, está fazendo também o bem para todos, mas não basta: é preciso ir além, desconectar-se das vantagens pessoais para pensar no futuro, no que temos para doar em benefício daqueles que têm mais a perder.

Um jovem de 18 anos pode contrair câncer aos 38 se trabalhar numa usina nucelar acidentada. A sociedade japonesa perde se abrir mão da força de trabalho de cidadãos de 38 anos. A família japonesa também. É essa visão macroscópica da funcionalidade que faz evoluir um país.

Dizem que a gente fica com o coração mole à medida que o tempo passa. Não é por causa de coração mole que esses aposentados japoneses estão se candidatando a um trabalho insalubre. É porque estão acostumados a transformar intempéries em oportunidades, tanto pessoais quanto coletivas, sem distinção. Coração mole tenho eu que me emociono ao ver como seria fácil ser grande, se tivéssemos a grandeza necessária.

Na próxima sexta-feira, dia 22, às 19h, estarei na livraria Saraiva do Moinhos Shopping autografando meu novo livro de crônicas, Feliz Por Nada. Se puder, apareça.

terça-feira, 19 de julho de 2011



19 de julho de 2011 | N° 16766
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Vidas idas e vividas

Uma amiga que esteve me visitando telefonou depois para comentar o que definiu como o museu de antiguidades que, segundo ela, guardo em casa. Primeiro devo dizer que minha amiga foi exagerada. Guardo alguns objetos antigos, mas nada suficiente para formar um museu. Segundo, preciso conservá-los como testemunhos de bons momentos do passado.

Estas duas cadeiras de alto espaldar, por exemplo. Foram esculpidas ambas no século 18, por algum fino artesão e mantêm a majestade com que foram concebidas. Eu não as trocaria por nada no mundo, pois datam da mesma e distante época do console que é a primeira visão de quem me visita neste apartamento.

A sala de jantar já conta bem mais de meio século, e com sua cristaleira, seu grande espelho, seu balcão, sua mesa de oito lugares é um atestado presente e vivo do talento dos artífices dos anos 40 e 50.

E há os quadros. Gosto de pensar que tenho duas pequenas obras-primas. Um autorretrato de Pedro Weingartner e uma gravura de Lasar Segall, ambos de minha particular estima e consideração.

Não posso esquecer os cristais. Sou dono de uma razoável coleção deles, mas nenhum é tão antigo e intrigante do que uma taça azul. Nela está gravado, em letras douradas, Bons Annos, assim mesmo, com dois enes. Quem a ofereceu a quem no dia de seu aniversário? Um filho, um amante, um amigo? Eis aí algo de problemática certeza. A única que tenho é a de que o ofertante era pessoa de extraordinário bom gosto.

E não devo deixar de lado os livros. Acumulei-os ao longo de anos. Tenho as obras completas de um bom número de autores, como Machado, Simões Lopes e Erico. Mas junto a estes colecionei algumas preciosidades, como um exemplar de Os Lusíadas, que caminha para entrar em seu terceiro século.

Tudo isso é nada, se comparado com os quadros, cristais, móveis, livros e outros bens de dezenas e dezenas de residências de Porto Alegre. Esses tempos visitei uma mansão que abrigava em Van Gogh. Não coleciono acervo algum distantemente parecido. Mas gosto do que tenho e protejo a sete chaves, minha amiga. São marcas bem guardadas de existências idas e vividas.


19 de julho de 2011 | N° 16766
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Mais Simões Lopes Neto

Não sei por quê, mas o fato é que os pelotenses se referem ao grande escritor Simões Lopes Neto como “João Simões”, nada mais. Concordo que dizer sempre “Simões Lopes Neto”, ou “João Simões Lopes Neto”, é um tanto comprido demais; por isso mesmo há costume de abreviar o nome dos grandes escritores, como forma de simplificar a vida e de mostrar intimidade – assim é que Joaquim Maria Machado de Assis vira “Machado”, Graciliano Ramos fica em “Graciliano” e Guimarães Rosa se reduz a “Rosa” (mas também a “Guimarães”, para desconforto da minha audição).

Então “João Simões” se explica por esses dois fatores, acrescido de outro, a eufonia, aquele simpático eco da nasal.

Um pelotense versado em João Simões, Carlos Francisco Sica Diniz, biógrafo e pertinaz leitor do grande escritor de cem anos atrás, acaba de dar ao mundo mais uma edição da obra daquele conterrâneo que deveria ser muito mais lido.

E não apenas nova edição: trata-se de uma edição artesanal, levada a efeito pela famosa Confraria dos Bibliófilos do Brasil, presidida por José Salles Neto. (Para eventual contato, há o email conbiblibr@yahoo.com.br.) A edição vale a pena conhecer, por duas ordens de motivos.

O primeiro tem a ver com a materialidade do livro. Trata-se de um álbum, capa dura e, mais importante ainda, impresso artesanalmente, conforme a nota final esclarece, dando nome e sobrenome dos tipógrafos envolvidos, do serígrafo, da encadernadora e da artesã responsável pela confecção do papel. O papel é um gosto ao tato, como dá para imaginar. Não menos importante, a edição é toda ilustrada por gravuras de Zorávia Bettiol, que dispensa apresentação.

O segundo é de ordem literária. O organizador optou por reunir 14 contos e a lenda do Negrinho do Pastoreio, passando portanto ao largo das organizações originais dos textos simonianos. Mais ainda, entre os contos recolheu nove contos do livro Contos gauchescos, de 1912, e os colocou entremeados com outros cinco contos dos Casos do Romualdo, livro póstumo de Simões Lopes Neto, saído à luz por esforço de Carlos Reverbel, em 1952.

Resultou uma vizinhança inédita, que faz o leitor passar de tragédias como No Manantial para o drama de Trezentas Onças e daí ao bom humor de Ataque de Marimbondos.

Novo ritmo para a leitura é o que a dinâmica de Sica Diniz proporciona, renovando o interesse pelo sensacional escritor, que atende quando chamado por qualquer das combinações de nomes, bastando o apelo do leitor, aqui e agora.

domingo, 17 de julho de 2011


DANUZA LEÃO

Preferências

Tudo o que é considerado bom dá trabalho. As coisas condenadas são fáceis, e você se habitua logo

VOCÊS JÁ REPARARAM que tudo o que é considerado ruim é absorvido pelas pessoas -por nós- bem mais facilmente do que tudo o que faz bem, seja à saúde, seja à alma? E não é só: é muito mais fácil -e prazeroso- fazer o que é proibido do que o que pregam os governos, as religiões, a família, a medicina. Exemplo: você prefere um suco de beterraba com nabo ou uma caipirinha?

Tudo o que é considerado bom para a saúde e para o espírito costuma ter péssimo paladar, dá trabalho e leva tempo para dar resultado: já as coisas condenadas são fáceis, deliciosas, e você se habitua a elas em poucos dias.

Digamos que você resolva adquirir uma forma física impecável: vai ter que malhar três, quatro horas por dia, durante meses, anos, para poder exibir aquele feixe de músculos que vai deixar todo mundo morrendo de inveja. Mas, se resolver parar tudo, em quatro semanas volta à estaca zero. Dura, a vida.

Capítulo dieta: quanto tempo se leva para perder 15 quilos? Meses, e passando por sacrifícios permanentes, pois nada mais insuportável do que comer legumes no vapor com pouco sal e bebendo água. Insuportável, não: um verdadeiro inferno.

Aí um dia, prestes a cortar os pulsos, você resolve jogar tudo para o alto e cai de boca numa feijoada.

Toma todas as caipirinhas a que tem direito -com açúcar- e quando chega em casa abre aquela caixa de chocolates e vai ver um filme na televisão, fe-li-cís-si-ma. Nesse dia você recupera três quilos, que para perder vai levar pelo menos 40 dias, oh, vida.

Ela, que fumava dois maços de cigarro por dia, resolve deixar o vício. Compra as piteiras milagrosas, usa o tal esparadrapo americano, testa sua força de vontade até o limite máximo, fica de péssimo humor, e vai diminuindo, diminuindo, até chegar a quatro, cinco cigarros por dia -isso depois de seis meses com os nervos à flor da pele.

Do alto de sua superioridade, começa a fazer o discurso habitual, e no qual nem acredito muito: está sentindo mais o cheiro das coisas e o paladar dos alimentos -isso fora a resistência física. Já sobe 12 andares direto, corre dez quilômetros sem cansar e a performance sexual -bem, a modéstia impede de falar.

Com tanta coisa boa acontecendo, só pela cabeça de um louco passaria voltar a esse vício maldito. Mas uma noite sai com uns amigos, se distrai, toma três uísques e resolve botar um cigarro na boca -para nada, só para mostrar que é capaz de fumar um só e não sucumbir.

Acaba fumando um maço inteiro e vai ter que começar da estaca zero, pois o vício já se instalou, igualzinho ao que era antes. Para desviciar, meses de sacrifício: para reviciar, basta uma noite -é possível? É justo?

E com o amor, a mesma coisa; entre um rapaz de bom caráter, trabalhador, aquele que já se sabe que vai ser um marido fiel -teoricamente, o homem certo-, ela costuma preferir um cafajeste, que não tem trabalho fixo (vive de expedientes), aquele que faz com que ela passe noites em claro esperando que ele apareça -ele, que não pode ver um rabo de saia e que apronta sempre.

E, se ele aparecer, ela abandona o rapaz certo e volta para os braços dele quantas vezes ele quiser; por que será que entre o que nos faz bem e o que nos faz mal -e quanto mais mal, melhor-, a gente sempre prefere o pior?

A vida é mesmo complicada: não podia ser ao contrário?

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 16 de julho de 2011



17 de julho de 2011 | N° 16763
MARTHA MEDEIROS


Escrever à mão

Assim como não há mais razão para aprendermos a revelar uma foto, não haverá razão também para que se aprenda a letra cursiva

Não é nenhuma novidade que estamos nos desacostumando a escrever à mão. Quando ainda o fazemos? Ao assinar um documento, ao deixar um bilhete na porta da geladeira, ao organizar a lista de compras para o supermercado. É por isso que o Estado americano de Indiana já estuda a possibilidade de retirar do currículo escolar o ensino da letra cursiva, já que os teclados serão uma extensão de nossos dedos.

Acompanhei a discussão desse assunto na rádio CBN, num programa em que a filósofa e escritora Viviane Mosé contrapôs-se ao jornalista Artur Xexéo.Viviane não acredita que esse projeto vá pegar e pensa que a vida ficaria menos poética e menos livre sem o uso da mão como ferramenta para se comunicar.

Já Xexéo não tem dúvida de que esse é um caminho sem volta: assim como não há mais razão para aprendermos a revelar uma foto – prática que constava do currículo de todas as faculdades de comunicação – não haverá razão também para que se aprenda a letra cursiva.

Quem se perder numa ilha deserta não precisará mais escrever “socorro!” na areia com um pedaço de pau, basta mandar um e-mail. Aliás, quem ainda fica perdido em ilhas desertas, havendo GPS?

Obviamente que meu lado nostálgico pendeu para o lado das argumentações da Viviane. Impossível não lembrar dos nossos primeiros cadernos da escola, da magia de aprender a unir uma letra na outra e de assinar pela primeira vez o próprio nome. A assinatura da gente faz parte da nossa identidade.

Lindo, mas está na hora de acordar: em breve as assinaturas serão todas digitalizadas e ninguém mais usará cadernos, e sim tablets. Canetas, lápis, apontadores, cadernetinhas, irá tudo para o museu, e dê-se por feliz se o livro impresso também não for.

Sei que é bobagem tentar parar o tempo: recusar-se a aceitar os avanços da tecnologia é uma forma de lutar contra a ideia da morte. O problema é que nem tudo considero um avanço: viver sem poesia é evoluir? Aprecio muito a vida prática e funcional, mas às vezes bate saudade das coisas que davam defeito, como o ruído do disco de vinil ou a longa espera da chegada de uma carta. Até a caligrafia enigmática dos médicos há de fazer falta.

Menos mal que, a esta altura do campeonato, não preciso me preocupar em me adaptar a tantas inovações. Estou entrando naquela idade em que a resistência ao futurismo passa a ser perdoada – quem vai bater boca com uma senhora em via de ficar senil?

Então, enquanto pertencer a este mundo, ainda pretendo encontrar bilhetes escritos à mão no travesseiro ao lado do meu e poder deixar um recado escrito com batom no espelho do banheiro. Mas pra já. O direito de sermos deliciosamente cafonas está encurtando.


16 de julho de 2011 | N° 16762
NILSON SOUZA


Arabescos e biscoitos

Meu colega Erni é um consertador de palavras. Todos os dias desabam sobre sua mesa de trabalho textos com defeitos de fabricação, frases com vazamento nas juntas, vocábulos estropiados, com falta de letras ou mesmo de sentido.

Pacientemente, ele abre sua caixa de ferramentas, que contém não apenas as chaves de fenda da gramática, mas também compartimentos com estoques de vírgulas, hifens, crases, circunflexos e, suspeito, até alguns antigos tremas, por puro saudosismo.

Como aqueles carpinteiros que seguram pregos nos lábios enquanto medem, aplainam e parafusam, o nosso faz-tudo das letras revisa títulos, legendas, extensas reportagens, entrevistas, artigos e colunas, operando reparos sem alarde. É o anjo da guarda dos redatores distraídos.

Com a última reforma ortográfica, tornamo-nos ainda mais dependentes do nosso revisor. Invariavelmente, ele é chamado para elucidar as dúvidas sobre acentos que desapareceram e palavras compostas que se uniram de forma promíscua e inexplicável. Quando entra em férias, como ocorre atualmente, ficamos desorientados.

Além do suporte técnico preciso e eficiente que nos proporciona, ele ainda permite que os enjeitados do idioma sirvam-se nos pacotes de biscoitos que mantém sobre a mesa para enfrentar os serões da madrugada na Redação.

Erni é, sempre, o primeiro leitor desta crônica semanal e também uma espécie de termômetro da atratividade do texto. Sem nenhuma combinação prévia, desenvolveu um sistema de avaliação muito particular, mas que invariavelmente bate com a percepção dos leitores.

Quando me devolve a mensagem de confirmação da revisão com arabescos, estrelinhas, cobras, lagartos e outros símbolos gráficos, tirados não sei de que arquivo de fontes, é porque leu alguma coisa interessante. Quando manda uma resposta monossilábica, já sei que estou apenas cumprindo tabela.

Revisores são imprescindíveis, até mesmo para grandes e consagrados escritores. García Márquez confessou certa vez que a ortografia sempre foi o seu calvário, mas que, felizmente para ele, revisores mais benévolos costumavam atribuir seus erros à má caligrafia.

Como não escrevemos mais à mão, nosso bode expiatório passou a ser a digitação – embora o esse e o cê-cedilha sequer sejam vizinhos no teclado. A tecnologia também nos proporcionou um revisor eletrônico, o tal corretor ortográfico automático, que ajuda bastante, mas não é de total confiança. De vez em quando, apronta alguma armadilha. Neste texto mesmo, sugeriu substituir o cê por crê...

Além disso, não distribui biscoitos. Volta, Erni!

quarta-feira, 13 de julho de 2011



13 de julho de 2011 | N° 16759
MARTHA MEDEIROS


Uma tarde com Claude Troisgros

Quando recebi o convite para ser uma das participantes do programa especial de inverno que o chef Claude Troisgros estaria gravando em Gramado, na Pousada La Hacienda, minha primeira reação foi repetir em voz alta o nome do programa:

“Que marravilha!” Gosto do canal GNT, admiro o cozinheiro, sou fã de Gramado e estava doida para conhecer o La Hacienda, que todo mundo dizia ser um lugar encantador – e é. Então respondi que sim, sim, sim e só quando fui colocar a cabeça no travesseiro é que me perguntei: será que deveria ter avisado que sou uma negação na cozinha?

Já escrevi uma crônica intitulada Chata Pra Comer que foi inspirada na adolescente que fui. Hoje já não sou tão abominável, mas ainda guardo características daquela garota que não comia nenhuma verdura, nenhum legume e só uma ou duas frutas.

Que não passava manteiga no pão, tinha medo de molhos e o único tempero que tolerava era o sal. Hoje as coisas mudaram bastante, mas ainda tenho implicância com alimentos cuja textura é viscosa, como o champignon, e tenho verdadeiro horror a ovo.

Quando se aproximava a data da gravação, a produtora me avisou que o prato que Claude prepararia, durante nossa conversa em frente às câmeras, seria ovos pochê. E agora, meu São Benedito? Falo ou não falo? Falo. “Olha, não tenho boa relação com ovos”. Ela foi gentil como eu esperava e disse que não haveria problema algum, que poderia trocar de prato. Eu gostava de croque monsieur? Uau, quem não gosta? Perfeito, então seria croque monsieur com champignons. Hummm... agora sim.

Foi uma tarde adorável. Claude é um homem simpático, divertido e cozinha sem nenhuma afetação, com entrega e prazer genuínos. Um francês típico que mete o dedo dentro da panela e o leva à boca, que pega tudo com as mãos, faz sujeira, derrama, ou seja, quase igual a nós, não fosse pelo resultado sublime.

Na minha lista de 50 coisas a fazer antes de morrer (100 é para quem tem tempo para esbanjar), está aprender a cozinhar. Fazer das refeições uma arte, mas uma arte sem esnobismo, uma arte sem stress, uma arte que nem pareça arte pela facilidade da coisa.

Ficar íntima dos aromas, deixar de ser maníaca e transformar em festa qualquer lanche mais incrementado. E, claro, compartilhar com as pessoas que amo, pois a culinária é uma atividade generosa por natureza – ainda que eu também me excite com a ideia de cozinhar só para mim mesma, pelo menos na etapa dos ensaios.

Está na hora de me aventurar em terreno estranho. Cozinha sempre foi para mim o melhor lugar da casa para conversar, nada além. Daqui para frente, espero que vire meu segundo escritório. Tudo por causa do croque monsieur mais delicioso que comi na vida – apesar do champignon.

terça-feira, 12 de julho de 2011



12 de julho de 2011 | N° 16757
CLÁUDIO MORENO


Não dou a mínima

Quando a filha de Clístenes, o tirano de Sícion, chegou à idade de casar, uma proclamação foi divulgada por todos os reinos que compunham a Grécia: todo jovem que se julgasse digno o bastante para desposá-la deveria submeter-se a um ano inteiro de provas e entrevistas, ao cabo do qual seria conhecido o nome do felizardo. Em sessenta dias, a flor da juventude grega estava reunida em Sícion, onde o rei havia destinado um estádio e um ginásio especialmente para a seleção do seu futuro genro.

À medida que iam chegando, Clístenes interrogava-os sobre sua família, sobre a cidade de onde provinham, sobre seus hábitos e sobre sua educação. Para conhecê-los ainda melhor, manteve-se junto deles a maior parte do ano, observando suas conversas, seus exercícios e, sobretudo, o seu comportamento nos festins que ele próprio organizava. Embora todos os pretendentes fossem do mais alto quilate, o mais aquinhoado parecia ser Hipóclides, filho de uma extensa linhagem de heróis atenienses.

No dia fixado para o anúncio, o soberano deu uma grande festa para toda a população. Quase ao final do banquete, Hipóclides, para o qual se voltavam todas as atenções, aproveitou que o flautista tocava uma ária bem compassada e começou a dançar, o que fazia com muito gosto e evidente satisfação.

Entusiasmado, mandou vir uma grande mesa para o meio do salão e sobre ela continuou dançando, primeiro à moda de Esparta, depois à moda de Atenas; finalmente, arrebatado pela música, apoiou a cabeça na mesa, equilibrou-se com as pernas para cima e, com extraordinária maestria, pôs-se a movimentar-se em todas as direções, seguindo o compasso da flauta.

Clístenes, que já estava chocado com as primeiras danças e fazia um grande esforço para ocultar a aversão diante daquele espetáculo, não pôde mais se conter quando viu seu candidato favorito gingando e rodopiando com as pernas para o ar, e exclamou, indignado: “Jovem, perdeste a noiva dançando!” – ao que o ateniense retrucou, alegremente: “Pois Hipóclides não dá a mínima!”.

Heródoto conta que, com o tempo, essa resposta curta e espontânea acabou se tornando uma expressão popular no mundo grego.

Para uns, servia como crítica à irresponsabilidade dos jovens; para outros, no entanto, era uma afirmação de liberdade, de independência diante da opinião dos outros. Não foi por acaso que o discutido T. E. Lawrence, tradutor da Odisseia e agente secreto britânico, mais conhecido como Lawrence da Arábia, entalhou esta frase no alto da porta de sua casa de campo, a indicar que, se não podemos eliminar as preocupações – já que isso é privilégio dos deuses –, devemos lutar para tornar nossa vida mais leve, deixando de levar tão a sério o julgamento que os outros, inevitavelmente, haverão de fazer sobre nós.


12 de julho de 2011 | N° 16757
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma garota na neve

Fez frio em Porto Alegre e quando me levantei os termômetros marcavam três graus, sinal de que mais cedo haviam mergulhado em temperaturas bem mais profundas.

Sou um habitante do outono e do inverno. Detesto cordialmente os trinta e tantos graus de nosso verão e guardo amenas recordações de dias e noites em que vivi abaixo de zero. Lembro que certa vez em Munique os meteorologistas anunciavam de manhã menos 17 graus, e ainda assim saí à rua, desafiando os ponteiros glaciais com a cara e a coragem.

Em Hamburgo, na mesma ocasião, abri as cortinas do apartamento de hotel e deparei com uma camada branca , cobrindo telhados, ruas, praças, pessoas, animais e coisas.

Eu próprio senti a neve pousando mansamente em meus cabelos ao desembarcar no aeroporto de Dresden, mas o espetáculo era belo demais para que me importasse com a recepção gélida e imprevista. Depois tomei um trem para Berlim, e os flocos me acompanharam durante toda a viagem pelas janelas panorâmicas da primeira classe.

A maior sensação de frio por que passei não ocorreu no entanto na Europa, mas nos Estados Unidos. Eu estava no topo das Montanhas Rochosas, numa cidadezinha chamada Steamboat Springs, famosa por suas pistas de esqui, e acordei, num sábado, prisioneiro da neve. Parecia que o mundo havia sumido num imenso painel branco. Gente, árvores, casas tinham sido engolidas por um imenso manto alvo, com ares de eternidade. Depois tudo virou uma múltipla escultura de gelo, que durou dias e semanas.

Mas a impressão mais duradoura de neve me ficou mesmo desta nossa Porto Alegre.

Na tarde de 24 de agosto de 1984 assisti da Redação de Zero Hora aos flocos caindo na rua que tem o nome do jornal. Foi um espetáculo lindo, ainda que não tenha durado muito. A lembrança mais impressiva que me restou foi a de uma garota anônima e belíssima que passava lá fora e cujos cabelos loiros foram decorados em momentos por efêmeros ornatos.

Escrevo ainda sem saber se vai nevar de novo em Porto Alegre. O frio permite supor que sim.

Contudo me comove, tantos anos depois, a recordação da garota anônima.

Quem era? Para onde ia? São perguntas de difícil resposta. Mas me agrada pensar que ia para um encontro de amor.

sábado, 9 de julho de 2011



10 de julho de 2011 | N° 16755
MARTHA MEDEIROS


O amor, um anseio

Recebi de presente de uma querida amiga um livrinho com pensamentos de Carl Jung sobre o amor, esse tema fascinante que nunca se esgota. Pai da psicologia analítica, Jung faz várias considerações, até que em certo momento da leitura me deparei com a seguinte frase: O amor da mulher não é um sentimento isso só ocorre no homem mas um anseio de vida, que às vezes é assustadoramente não sentimental e pode até forçar seu autossacrifício.

Peraí. Isso é sério. O que eu entendi dessa afirmação é que o homem é o único ser capaz de sentir um amor genuíno e desinteressado. O homem só atende ao seu mais puro sentimento – e se esse sentimento não existir, ele não compactua com uma invenção que o substitua. O homem não cria um amor que lhe sirva.

Já para a mulher o amor não é uma reação emocional, é muito mais que isso: aliado a esse sentimento latente, existe um projeto de vida extremamente racional que precisa ser levado a cabo para que ela concretize seu ideal de felicidade.

O amor é uma ponte que a levará a outras realizações mais profundas, o amor é um condutor que a fará chegar a um estado de plenitude e que envolve a satisfação de outras necessidades que não apenas as de caráter romântico.

Ou seja, romântico mesmo é o homem.

A mulher necessita encontrar seu lugar no mundo, a mulher precisa completar sua missão (ter filhos, geralmente a mais prioritária), a mulher deseja responder seus questionamentos internos, a mulher sente-se impelida a formatar um esquema de vida que seja inteiro e não manco, a mulher possui uma voracidade que a faz querer conquistar tudo o que idealizou.

O amor é um caminho para a realização desse projeto que é bem mais audacioso e ambicioso do que simplesmente amar por amar. O amor pode nem ser amor de verdade, mas é através de algum amor, seja ele de que tipo for, que ela confirmará sua condição de mulher. O homem já nasce confirmado em sua condição.

Será isso mesmo ou estou viajando na interpretação que fiz? Se eu estiver certa, então talvez o verdadeiro amor seja o amor da maturidade, o amor que vem depois de a mulher já ter atingido seu anseio original, o amor que surge da serenidade, depois de tanto ter se empenhado, o amor que vem quando não há mais perseguição a nada: o amor maduro e íntegro da mulher pode enfim se conectar com o amor maduro e íntegro que o homem sempre sentiu. Os amores puros de um e de outro finalmente se encaixariam – o amor real dele e o amor dela desprovido de ansiedades secretas. Enfim, juntos?

Indo mais longe, talvez isso explique por que são as mulheres as que mais pedem o divórcio: já atingiram seus propósitos e procuram agora vivenciar um amor que seja unicamente sentimental, sem cota de sacrifício, enquanto que o homem só pede o divórcio quando se apaixona por outra mulher, pois ele sempre foi movido pelo amor desde o começo, deixando as racionalizações fora do âmbito do coração.

Jung, me perdoe se delirei a partir de uma única frase sua, mas me permita realizar esse meu anseio de pensar o amor, além de vivenciá-lo. Que jeito, sou mulher.


O amor bom é facinho
Ivan Martins

Por que as pessoas valorizam o esforço e a sedução?

Há conversas que nunca terminam e dúvidas que jamais desaparecem. Sobre a melhor maneira de iniciar uma relação, por exemplo. Muita gente acredita que aquilo que se ganha com facilidade se perde do mesmo jeito. Acham que as relações que exigem esforço têm mais valor. Mulheres difíceis de conquistar, homens difíceis de manter, namoros que dão trabalho - esses tendem a ser mais importantes e duradouros. Mas será verdade?

Eu suspeito que não.

Acho que somos ensinados a subestimar quem gosta de nós. Se a garota na mesa ao lado sorri em nossa direção, começamos a reparar nos seus defeitos. Se a pessoa fosse realmente bacana não me daria bola assim de graça. Se ela não resiste aos meus escassos encantos é uma mulher fácil – e mulheres fáceis não valem nada, certo? O nome disso, damas e cavalheiros, é baixa auto-estima: não entro em clube que me queira como sócio. É engraçado, mas dói.

Também somos educados para o sacrifício. Aquilo que ganhamos sem suor não tem valor. Somos uma sociedade de lutadores, não somos? Temos de nos esforçar para obter recompensas. As coisas que realmente valem a pena são obtidas à duras penas. E por aí vai. De tanto ouvir essa conversa - na escola, no esporte, no escritório - levamos seus pressupostos para a vida afetiva. Acabamos acreditando que também no terreno do afeto deveríamos ser capazes de lutar, sofrer e triunfar. Precisamos de conquistas épicas para contar no jantar de domingo. Se for fácil demais, não vale. Amor assim não tem graça, diz um amigo meu. Será mesmo?

Minha experiência sugere o contrário.

Desde a adolescência, e no transcorrer da vida adulta, todas as mulheres importantes me caíram do céu. A moça que vomitou no meu pé na festa do centro acadêmico e me levou para dormir na sala da casa dela. Casamos. A garota de olhos tristes que eu conheci na porta do cinema e meia hora depois tomava o meu sorvete. Quase casamos? A mulher cujo nome eu perguntei na lanchonete do trabalho e 24 horas depois me chamou para uma festa. A menina do interior que resolveu dançar comigo num impulso. Nenhuma delas foi seduzida, conquistada ou convencida a gostar de mim. Elas tomaram a iniciativa – ou retribuíram sem hesitar a atenção que eu dei a elas.

Toda vez que eu insisti com quem não estava interessada deu errado. Toda vez que tentei escalar o muro da indiferença foi inútil. Ou descobri que do outro lado não havia nada. Na minha experiência, amor é um território em que coragem e a iniciativa são premiadas, mas empenho, persistência e determinação nunca trouxeram resultado.

Relato essa experiência para discutir uma questão que me parece da maior gravidade: o quanto deveríamos insistir em obter a atenção de uma pessoa que não parece retribuir os nossos sentimos?

Quem está emocionalmente disponível lida com esse tipo de dilema o tempo todo. Você conhece a figura, acha bacana, liga uns dias depois e ela não atende e nem liga de volta. O que fazer? Você sai com a pessoa, acha ela o máximo, tenta um segundo encontro e ela reluta em marcar a data.

Como proceder a partir daí? Você começou uma relação, está se apaixonando, mas a outra parte, um belo dia, deixa de retornar seus telefonemas. O que se faz? Você está apaixonado ou apaixonada, levou um pé na bunda e mal consegue respirar. É o caso de tentar reconquistar ou seria melhor proteger-se e ajudar o sentimento a morrer?

Todas essas situações conduzem à mesma escolha: insistir ou desistir?

Quem acha que o amor é um campo de batalha geralmente opta pela insistência. Quem acha que ele é uma ocorrência espontânea tende a escolher a desistência (embora isso pareça feio). Na prática, como não temos 100% de certeza sobre as coisas, e como não nos controlamos 100%, oscilamos entre uma e outra posição, ao sabor das circunstâncias e do tamanho do envolvimento.

Mas a maioria de nós, mesmo de forma inconsciente, traça um limite para o quanto se empenhar (ou rastejar) num caso desses. Quem não tem limites sofre além da conta – e frequentemente faz papel de bobo, com resultados pífios.

Uma das minhas teorias favoritas é que mesmo que a pessoa ceda a um assédio longo e custoso a relação estará envenenada. Pela simples razão de que ninguém é esnobado por muito tempo ou de forma muito ostensiva sem desenvolver ressentimentos. E ressentimentos não se dissipam.

Eles ficam e cobram um preço. Cedo ou tarde a conta chega. E o tipo de personalidade que insiste demais numa conquista pode estar movida por motivos errados: o interesse é pela pessoa ou pela dificuldade? É um caso de amor ou de amor próprio?

Ser amado de graça, por outro lado, não tem preço. É a homenagem mais bacana que uma pessoa pode nos fazer. Você está ali, na vida (no trabalho, na balada, nas férias, no churrasco, na casa do amigo) e a pessoa simplesmente gosta de você.

Ou você se aproxima com uma conversa fiada e ela recebe esse gesto de braços abertos. O que pode ser melhor do que isso? O que pode ser melhor do que ser gostado por aquilo que se é – sem truques, sem jogos de sedução, sem premeditações? Neste momento eu não consigo me lembrar de nada.

Ruth de Aquino

A lição do caso Strauss-Kahn

O homem que domina todas as conversas em Paris é Dominique Strauss-Kahn – e sua ressurreição. A mídia francesa ataca o moralismo americano e a condenação antecipada de DSK. A dúvida é se, inocentado, ele tentará ser eleito presidente da França em 2012 ou se o desgaste do sexo com a camareira do hotel foi forte demais. DSK está nesta página porque eu acreditei na versão da camareira da Guiné – assim como o FMI, o promotor americano e a maioria da imprensa mundial. Uma versão que vem sendo demolida aos poucos.

Tudo leva a crer que eu, como tantos, me precipitei e cometi um erro ao analisar o caso pela ótica da africana descrita como “exemplar” no emprego e em sua comunidade. De “estuprador de muçulmana”, DSK teria passado a ser apenas o cliente pão-duro de uma prostituta imigrante e mentirosa, namorada de um presidiário traficante de drogas.

Isso, claro, se as últimas informações surgidas sobre o escândalo forem verdadeiras – porque, como percebemos, indícios não são provas. A mídia está escaldada. Todos aprendemos com esse episódio. DSK também aprendeu, espera-se.

O mais provável é que nunca se saiba o que realmente aconteceu na suíte 2.806 do Hotel Sofitel entre DSK e Nafissatou Diallo. Ela é mesmo prostituta? O sexo foi consensual? DSK foi violento ao cobrar o serviço sexual e ela quis se vingar? Ele não pagou o que devia?

Ela quis chantageá-lo após o sexo oral e ele não cedeu à pressão de uma oportunista? Sabe-se que o ex-diretor do FMI não foi execrado apenas pela palavra da camareira. O passado o condenou. Outras mulheres, que ele supostamente tentou seduzir à força, resolveram falar – e contribuí­ram para dar veracidade ao crime de estupro.

A convicção do promotor americano parecia forte. Sem provas definitivas, como a Justiça dos Estados Unidos poderia algemar um passageiro já embarcado na primeira classe do avião com destino à Europa, proibir liberdade sob fiança e, depois, submetê-lo à prisão domiciliar, em troca de um cheque-depósito de US$ 5 milhões?

DSK foi obrigado a usar bracelete eletrônico. Em Manhattan, vizinhos do apartamento alugado por sua mulher se recusaram a tê-lo no prédio. De executivo poderoso e político influente, tinha se tornado, para a opinião pública, um homem asqueroso e inconveniente.

Caso o processo seja realmente anulado, DSK poderá exigir dos Estados Unidos uma indenização bilionária por danos morais. A reviravolta deixa uma lição conhecida. Com todas as evidências em contrário, o réu pode ser inocente. Mesmo condenado em tribunal, a Justiça pode errar. Inocentes chegam a ficar muitos anos na prisão.

No final, a mulher de DSK sorriu ao lado dele e celebrou sua libertação. Que homem faria o mesmo?

A sociedade adora culpados, especialmente quando são ricos e poderosos. Hoje, em reuniões sociais, há sempre uma turma barulhenta que odeia o empresário Eike Batista simplesmente porque ele nasceu rico, ficou mais rico ainda e admite abertamente que quer ser o homem mais rico do mundo. Não importa se é empreendedor, se cria empregos.

Dar R$ 20 milhões por ano para a pacificação no Rio de Janeiro até 2014 se torna um acinte, prova de culpa em troca de favores escusos, jamais uma benfeitoria ou uma aposta na cidade onde vive. Para essa turma, Eike já nasceu condenado. É vilão.

DSK foi aparentemente injustiçado, mas não dá para exaltar suas qualidades como homem. Não é louvável seu alegado ataque a uma jornalista francesa, Tristane Banon, que o acusou formalmente na quarta-feira passada de tentar estuprá-la em 2003. O episódio recente no hotel de Manhattan não engrandece a biografia de DSK. Não engrandece a Justiça americana. Nem muito menos a camareira imigrante. Está difícil encontrar um mocinho ou uma mocinha nesse filme.

Talvez a única “mocinha” seja a mulher de DSK, Anne Sinclair, que ficou a seu lado, leal e fiel. Um leitor me pediu para discorrer sobre o que leva uma mulher a sorrir para as câmeras depois de sofrer uma traição pública. Eis algo surpreendente. Que homem no mundo pagaria a fiança e celebraria a libertação de sua mulher num restaurante caro se ela admitisse ter feito sexo consensual com o faxineiro?


09 de julho de 2011 | N° 16754
NILSON SOUZA


Estatuto do homem do gelo

Com a devida vênia do poeta Thiago de Mello e do meteorologista Cleo Kuhn.

Artigo 1

Fica decretado que o inverno deste ano será abreviado, terminará neste sábado, e uma primavera perfumada e eterna ocupará o coração dos homens e das mulheres do sul do Brasil.

Artigo 2

Fica decretado que os habitantes das calçadas geladas, que dormem sob as marquises das grandes cidades, passarão a receber o Bolsa-Calor Humano, com direito a cama confortável, café quente e total liberdade para ir e vir, e também para sorrir e rir.

Artigo 3

Fica decretado que as aulas matinais começarão ao meio-dia e terminarão 15 minutos depois, para que as crianças recebam sopão, chocolate quente e até sorvete, pois gosto é gosto e ninguém tem o direito de questionar a sabedoria infantil.

Artigo 4

Fica decretado que as frentes frias ficarão definitivamente na Argentina.

Artigo 5

Fica estabelecido que a água do chuveiro, das torneiras e até mesmo da chuva será sempre morna, mas o banho continuará sendo opcional.

Parágrafo único:

As mulheres manterão a fragrância das flores do campo.

Artigo 6

Por decreto irrevogável ficam banidas de nossas vidas as viroses, todas as ites, a dor de garganta, a tosse e as filas nas portas dos hospitais.

Artigo 7

Fica decretado que uma força-tarefa resgatará os sobreviventes de São José dos Ausentes e os hospedará numa estação de águas termais pelo tempo necessário para o degelo.

Artigo 8

Ficam suspensos, até segunda ordem, o vento minuano na fronteira, os arremedos de neve na Serra e a geada nos campos de todas as querências.

Artigo 9

Fica proibido usar casaco de lã grossa com cheiro de naftalina, ponchos e assemelhados, toucas, gorros, chapéus de feltro e, sobretudo, sobretudo.

Artigo 10

Fica permitido correr no parque de bermuda e camiseta, tomar banho de sol ou de mar (que saudade!), andar de bicicleta à noite, passear com o cachorro na primeira hora da manhã, levar as crianças na pracinha, dançar com vestido de festa, descer a rampa de skate, dormir sem cobertor e levantar sem ter que prestar continência para o General Inverno.

Parágrafo único:

Revogam-se as disposições em contrário.

quinta-feira, 7 de julho de 2011



07 de julho de 2011 | N° 16752
ARTIGOS - José Fortunati*

Eu Curto, Eu Cuido

A relação de amor do porto-alegrense com sua cidade é inquestionável. Está presente na forma orgulhosa com que afirmamos de onde somos, no modo aguerrido com que defendemos Porto Alegre diante de quem é de fora, nos domingos em família na Redenção, no Marinha, no Gasômetro ou no Parcão, no modo crítico com que encaramos seus problemas e dificuldades e também na participação democrática de seus cidadãos, uma bandeira que carregamos com muita felicidade e tradição e que nos projeta além-fronteiras.

Contudo, expressar o amor por nossa cidade não pode se resumir a isso. Precisamos converter esse carinho todo em atitudes cotidianas e concretas. Não há demonstração maior de amor por uma cidade do que ajudar que ela esteja sempre limpa, combater o vandalismo em relação ao patrimônio de todos, conservar a própria calçada, separar o lixo, respeitar a vida no trânsito, entre outras tantas manifestações cidadãs.

Por isso, buscando valorizar essas ações, iniciamos nesta semana um movimento ambicioso e desafiador. Uma mobilização que não é apenas da Prefeitura, mas de toda a cidade. Trata-se da campanha Porto Alegre: Eu Curto, Eu Cuido. Um convite para que possamos unir esforços para tornar nossa cidade em um local cada vez melhor de se viver e conviver.

Essa contribuição compartilhada de todos é fundamental. E estamos buscando fazer da melhor forma a parte que cabe à Prefeitura. Tanto é assim que definimos a qualificação dos serviços prestados à população como prioridade número um de nossa gestão. Apesar do desafio ser grande, a cidade já está colhendo os resultados. Cerca de 80% da Capital já recebeu nova iluminação, mais potente, econômica e menos poluente.

As obras do Projeto Socioambiental estão em franca evolução, que elevará de 27% para 80% o índice de tratamento de esgotos, implantamos a segunda passagem gratuita para os usuários de ônibus por meio do cartão TRI, qualificamos o sistema Fala Porto Alegre/156, estamos implantando novo modelo de coleta de lixo, totalmente automatizada e disponível 24 horas, entre outros tantos projetos e iniciativas.

Assim, com o poder público cumprindo com sua missão focada na qualidade e cada cidadão participando de modo crítico mas colaborativo, vamos conseguir fazer com que a cidade que tanto amamos nos proporcione cada vez mais motivos para enchermos a boca quando alguém nos perguntar onde vivemos e dizermos: vivo, curto e cuido de Porto Alegre com muito orgulho.

*Prefeito de Porto Alegre

quarta-feira, 6 de julho de 2011



06 de julho de 2011 | N° 16751
MARTHA MEDEIROS


Brrrrrrrrrrrrrrrr

Aos 16 anos, eu não conseguia admitir que alguém pudesse gostar de inverno. Só podia ser maluco, deprimido, estressado ou coisa pior. Escolher logo a estação mais encarangada do ano? Não fazia sentido.

Na época, era fanática pelo verão, e meus argumentos pareciam irrefutáveis: ora, no verão ficamos perto do mar, usamos menos roupa, saímos mais de casa. No verão os dias são longos, praticamos mais atividades físicas, comemos mais saladas. Quem trocaria essa vida saudável por dias cinzentos, curtos e gelados?

Quem trocaria braços abertos sobre a Guanabara por braços cruzados e mãos embaixo da axila? Quem preferiria correr o risco de se gripar dia sim, outro também? E quem haveria de considerar agradável sair debaixo das cobertas de manhã cedo para enfrentar um dia que nem virou dia ainda?

Mas isso foi aos 16. Cresci, amadureci e me reconciliei com o inverno. Passei a valorizar os casacões, as botas, o vinho, a lareira, as paisagens serranas, enfim, o lado romântico da estação. Cheguei a admitir em um poema que o inverno era minha estação preferida. Provavelmente, uma tentativa de que me levassem mais a sério. Adultos respeitáveis não combinam com bermuda, e sim com sobretudos.

Não ficam rindo à toa, mantêm a classe da sisudez. Não tomam chope, não dançam em rodas de samba, odeiam Carnaval, nunca foram fotografados em situações vulgares. Escritores, menos ainda. Imagine uma Marguerite Duras de biquíni em Capão, um Philip Roth de sunga tomando banho de mangueira no quintal. O cachecol é que dignifica os intelectuais.

Segui vivendo, amadureci mais um pouco e finalmente cheguei a uma conclusão definitiva: às favas com minha credibilidade, que a adulta em mim procure asilo na Sibéria. Hoje afirmo, assino embaixo e reconheço firma em cartório se for preciso: tenho pavor de sentir frio. A elegância que os dias gélidos me conferem não compensa a leveza e o bom humor que me são subtraídos. E vinho tinto eu tomo em qualquer estação.

Só quem ganha com o inverno é o turismo, já que o frio é nossa principal atração turística. No mais, quem em seu juízo perfeito iria curtir passar o dia com o nariz gelado, as pernas enrijecidas e sentindo-se tentado a matar o banho? Quem não se assusta com o valor da conta de luz no fim do mês? E o que se gasta em farmácia? Mulheres, me ajudem: como se vestir adequadamente para um casamento numa noite em que faz 4°C? E vocês, rapazes, têm tido coragem de tirar as meias antes de dormir?

Cresci, amadureci, mas não adiantou nada: contrariando a evolução da espécie, voltei ao tempo em que era movida a energia solar. Menos mal que sempre teremos intelectuais de cachecol para salvar a pátria.

terça-feira, 5 de julho de 2011



05 de julho de 2011 | N° 16750
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sobre um e-mail

Na calma manhã de domingo, um dia gelado, pois parece que o inverno enfim chegou de verdade, acesso meus e-mails. São dezenas de mensagens, das mais diversas procedências e espécies. Ponho de lado os recados de empresas, instituições, convites, autores e atores e me fixo nos remetidos por pessoas que só querem dialogar comigo, ou me mandar um comentário sobre uma de minhas crônicas.

A estas dedico uma atenção particular. São elogios e observações críticas sobre os meus textos, mais aqueles do que estas. Fico pensando como leitores que devem trabalhar, ter compromissos, acham disposição e tempo para me dedicar uma parte de suas horas e mandar-me dizer o que pensam sobre uma frase, um pensamento, uma reflexão que passei para as páginas do Segundo Caderno de Zero Hora, uma das melhores e mais lidas partes do jornal.

Compareço aqui desde 1985, o que significa 26 anos, ou seja, a época em que muitos dos meus leitores, que hoje me escrevem, nem haviam nascido. Componho estas crônicas por prazer. E também por uma necessidade íntima de me confessar em público. Produzir crônicas, já dizia Rubem Braga, é viver em voz alta, se não erro na citação.

Uma das leitoras que frequentam meus e-mails hoje se mostra curiosa porque, tendo um milhão de assuntos, me fixo tantas vezes em Cachoeira. É porque em Cachoeira estão minhas raízes e algumas de minhas melhores lembranças. Foi lá onde nasci e vivi boa parte da infância e da adolescência. Foi lá também que fiz amizades que até hoje me acompanham.

Já em Porto Alegre, numa época em que nem se sonhava com a internet e muito menos com e-mails, buscava cada manhã a caixa de correspondência para achar alguma carta de namoradas de minha terra, não raro seladas com gotas de perfume Toque de Amor.

Meu primeiro livro e vários dos seguintes foram lançados em Cachoeira. Em Cachoeira vivi belos momentos de minha vida, dos bailes e reuniões do Comercial e do Rio Branco aos amores da primeira juventude.

Nada disso habitará jamais o passado. Tudo permanecerá comigo como um presente. Especialmente quando receber um e-mail de Cachoeira.

domingo, 3 de julho de 2011


DANUZA LEÃO

O último ato

Não acredito que o suicídio seja um ato de agressão contra alguém, contra muitos ou contra todos

IMAGINO QUE ninguém se jogue de um prédio ou se atire debaixo de um trem por impulso de momento. Um suicida deve pensar durante muito tempo nesse desfecho voluntário por diferentes razões, até mesmo por não entender essa estranha coisa que é o mistério da vida; e deve programar sua morte com dias -anos, talvez- de antecedência. O suicida costuma já nascer suicida.

Assisti uma vez a um documentário sobre a morte assistida. Depois de toda uma parte burocrática, o/a suicida, que sofria de uma doença degenerativa, embarcou com seus dois filhos de Londres para Genebra, e de lá foram para uma pequena clínica que parecia um hotel, onde houve mais um pouco de burocracia -até nessa hora; muitos papéis foram assinados, e se bem me lembro, até um vídeo foi feito, para que não houvesse dúvida de que aquele era mesmo o desejo da pessoa.

A cena era muito triste; ele se despediu da família, tudo foi acontecendo conforme programado, e o médico trouxe um copo com a droga letal que o matou em minutos.

Acabar com a própria vida é um ato radical, talvez o mais radical que possa ser praticado. Por isso, não dá para compreender que uma pessoa aceite, em seu momento final -escolhido por ela-, ter a seu lado um estranho. É sempre possível se matar sem precisar de ajuda, seja por estar em processo terminal, seja por razões de qualquer ordem.

Se estiver num hospital, vai ser mais difícil comprar o veneno ou o revólver, mas sempre haverá alguém que o ame o bastante para ajudar.

Acho que já contei a história de um casal que se amava muito; ele ficou dias internado, sem chances de recuperação. Quando percebeu que estava chegando a hora -ou talvez ele tenha escolhido a hora-, fez um sinal para ela, que tirou da sacola um iPod com as músicas de que mais gostavam, uma garrafa de uísque, serviu em dois copos que também havia trazido, tirou o oxigênio que o ajudava a respirar e pôs em sua mão um cigarro já aceso.

Ele sorriu como não fazia há muito tempo, e eles passaram algumas horas ouvindo música, fumando, bebendo e driblando as enfermeiras. Na mesma noite ele se foi, e ela ficou quase feliz, por terem passado uma tarde tão boa. Foram considerados loucos.

Não acredito que o suicídio seja necessariamente um ato de agressão contra alguém, contra muitos ou contra todos, segundo dizem os que acham que entendem tudo sobre a natureza humana.

Eles apenas acham, já que nunca ninguém soube nem jamais saberá o que se passa na cabeça de alguém que decide se matar; e mesmo os que tomam essa decisão, deixando uma ou muitas cartas, talvez não saibam exatamente em que momento ela foi tomada, e por que a vida ficou tão impossível de continuar sendo vivida; só sabem que ficou.

Não sei se o suicídio é um ato de coragem ou de covardia, mas não entendo a morte assistida; se já são raros os que se matam na presença de alguém, é incompreensível que o façam na presença de um médico desconhecido, nesse que é o momento mais solitário do ser humano.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 2 de julho de 2011



03 de julho de 2011 | N° 16748
MARTHA MEDEIROS


Os seguidores

O Twitter fundou uma nova tribo e agora qualquer um pode ter seu rebanho, ser um pastor

Estava no aeroporto, outro dia, conversando com um ator e um blogueiro. Um deles se virou para o outro e perguntou: Quantos seguidores você tem?. A resposta: Novecentos, e você?. Resposta: Um pouco menos, uns 650 mil.

Músicos têm ouvintes, atores têm plateia, escritores têm leitores, mas pelo visto isso já não diz muita coisa, não há tanto mérito, é uma relação quase passiva. Bem-sucedido, mesmo, é quem tem seguidores, ao menos é o que dizia o slogan de um produto anunciado em comercial de tevê recentemente, e nem era anúncio de equipamento eletrônico.

Não lembro o produto, mas lembro da promessa: “Você com cada vez mais seguidores”. Que blusa eu uso, em que loja compro, que shopping devo frequentar para ter tantos seguidores assim? A ambição, agora, é ser messiânico.

Jesus tinha seguidores, assim como Renato Russo. Mas agora qualquer um pode ter seu rebanho, ser um pastor. O Twitter fundou uma nova tribo. Soube que Caio Fernando Abreu, falecido há mais de 10 anos, tem hoje 60 mil seguidores. E seus leitores? Já não estão com esse cartaz todo.

É apenas uma questão de semântica, claro. Renovam-se as palavras para perpetuar a sensação de modernidade, de atualização, mas, no fundo, é tudo a mesma coisa. Só que não se pode negligenciar o sentido do termo: a palavra seguidor sugere um refém intelectual, enquanto que o leitor pensa, reflete, concorda, discorda. O seguidor não se dá esse trabalho. Apenas xereta.

Eu sei que é apenas uma expressão, eu sei, eu sei, mas acho estranho, fazer o quê. Já me perguntaram: quantos seguidores tu tens? Ora, nem às minhas filhas desejo tal destino. Se eu tivesse um caminhão, escreveria no para-choque: “Não sigam ninguém, que estão todos perdidos também”.

É só um termo atual para definir a prática inofensiva de twittar, mas não sei se é mesmo tão banal, tão sem significado. Os equipamentos eletrônicos hoje já dispensam o plugue na tomada, mas seus usuários, em efeito contrário, estão criando uma corrente de interligação que despreza a privacidade e a introspecção. O pensamento alheio virou uma espécie de asilo. Livro serve pra isso também, mas é uma relação a dois: você que lê e o escritor que lhe inspira.

Há uma certa sacralidade nesse encontro. Algo de muito pessoal é preservado. Aquilo que lhe emocionou, que iluminou seu pensamento e que despertou seu raciocínio é exclusivo, secreto: uma relação obviamente mais romântica.

Por mais popular que seja um escritor, ele é consumido no particular. Mas se ele tem 564.238 seguidores conectados ao mesmo tempo, puf, evapora-se o mistério.

Todos viraram gurus uns dos outros. Me siga que eu te sigo. Mas para onde?


02 de julho de 2011 | N° 16747
NILSON SOUZA


Fuga para o ontem

Estive em Paris apenas uma vez, em 1998, e foi uma viagem inesquecível. Escalado para representar o jornal no centenário de uma grande fábrica de automóveis, fui recebido, juntamente com outros jornalistas que faziam a cobertura, como um príncipe árabe. Já na chegada, fomos convidados a dar um passeio numa caravana de carros antigos, uma dezena deles, todos com quase um século de fabricação e conservadíssimos.

Desfilamos pelas ruas da Cidade Luz, fomos aplaudidos pela população (quem disse que os franceses são antipáticos?) e paramos à margem do Sena, para continuarmos de barco, com direito a curtir cada uma das pontes, o museu do Louvre, a catedral de Notre Dame e todas aquelas maravilhas da capital cultural da Europa.

Não encontrei Scott Fitzgerald nem Ernest Hemingway, como o personagem do novo filme de Woody Allen, mas encontrei o próprio diretor na figura do seu sósia gaúcho, o jornalista Juremir Machado da Silva. Na ocasião, meu amigo e companheiro de ofício morava no bairro de Montparnasse e estudava na Sorbonne.

Ele e Cláudia foram meus anfitriões por dois dias, nos passeios de metrô, na visita a lugares turísticos e em longas caminhadas pelas ruas da cidade encantada. Para concluir aquela viagem extraordinária, ainda vi um jogo da Seleção Brasileira no Stade de France, na cidade vizinha de Saint-Denis, vitória de 2 a 1 sobre a Escócia. Ainda bem que não fiquei para o restante do Mundial, pois as cabeçadas de Zidane talvez me fizessem amar menos aquela cidade.

Voltei a Paris esta semana, num dos cinemas da Capital. Vi (e li, pois os diálogos são extensos) o filme em que Woody Allen faz uma declaração de amor a Paris, para dar um recado singelo: sonhe menos com o passado e viva mais o momento presente. Mas o filme contraria a mensagem. Faz sonhar do início ao fim. Paris, na verdade, é o principal personagem, mesmo com o surpreendente desfile de figuras ilustres de outras épocas.

Ainda assim, fica o questionamento: por que de vez em quando fugimos para o pretérito perfeito da nossa existência, como se lá tudo fosse sempre melhor? Talvez Freud – que também estudou em Paris – tenha uma explicação lógica para isso, baseada nas suas pesquisas da mente humana. Eu, modestamente, tenho a minha própria tese: a gente foge para o passado porque lá, em algum momento, conheceu o encantamento.

Jamais vou esquecer aquele tour na boleia de um calhambeque polido, a hospitalidade dos meus amigos gaúchos e aquela torre histórica iluminada por mil luzes, ostentando nas suas quatro faces a emblemática contagem regressiva para o novo milênio.