sábado, 30 de julho de 2022


30 DE JULHO DE 2022
CARTA DA EDITORA

Nosso lugar no mundo

Dia de anúncio de Carlos Nejar como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre 2022. Toca meu telefone e, do outro lado da linha, estava o filho do eleito, o escritor, poeta, colunista e pessoa com energia nas alturas Fabrício Carpinejar. Ele retornava um contato meu, e a ideia era combinar uma reportagem para o caderno DOC com a família patronável. Até que veio a frase: "Tu estás em casa, Renatinha? E esse é o teu lugar no mundo?". A minha reação, como em todas as conversas com ele, foi rir (e me imaginar numa daquelas frases de guardanapos que tanto sucesso fazem nas redes sociais).

Olhei para a minha parede e vi algumas respostas penduradas como um mosaico: presentes, lembranças de feiras e até um desenho meu datado de 1986. Mais ao lado, um jardim vertical de samambaias disfarçando o muro feio do poço de luz do prédio com mais anos de vida do que eu... Soma-se a tudo isso, o meu apego pelo tema: foram 15 anos trabalhando como jornalista de arquitetura, o que me batizou como "a Renata do Casa".

Daí, posso dizer que não foi uma surpresa a redescoberta da casa como nosso porto seguro na pandemia. O mundo nos reserva um sem-fim de experiências, pois nada substitui uma viagem, uma mesa de bar, um dia off num parque. Mas são daqueles metros quadrados particulares que vêm verdadeiros abraços e por ali estão as nossas maiores confissões. Por isso, na reportagem da Letícia Paludo que ilustra a nossa capa, nos despimos de tendências - as palavras aqui são energia e bem-estar. Sem pensar tanto nos padrões, a única regra que convocamos é focar no que importa: olhar com generosidade para a morada da nossa essência.

CARTA DA EDITORA

30 DE JULHO DE 2022
SARA BODOWSKY

CINEMA ITALIANO

Dica para quem está com saudade da tela grande: até o dia 3 de agosto está rolando a 8 ½ Festa do Cinema Italiano no Brasil. Um dos meus estilos preferidos - há muitas vezes igual intensidade entre gargalhadas e lágrimas - é uma experiência ainda mais incrível no cinema. E a maior parte dos filmes exibidos foi lançada durante a pandemia ou pouco antes, o que deixa a oportunidade ainda mais especial. Mas tem produção antiga e de referência, como o segundo filme de Pier Paolo Pasolini, Mamma Roma, de 1962, um dos primeiros a retratar a população marginalizada da sociedade italiana.

Aqui em Porto Alegre, os filmes serão exibidos no Espaço de Cinema Bourbon Country (Av. Tulio de Rose, 80, bairro Passo da Areia). Ingressos custam entre R$ 10 e R$ 20. Mais informações em festadocinemaitaliano.com.br.

VAI UM CAFÉ?

Talvez vocês já tenham notado a quantidade de cafeterias com café "para levar" que surgiram em Porto Alegre nos últimos tempos. A Mais1 Café é uma delas. Conheci por meio da Daiala Doebber, que me acompanha nas redes sociais, curte minhas dicas gastronômicas e resolveu empreender justamente com uma franquia da rede (a da Av. Goethe, 156).

Recebi em casa uma amostra da tele da loja dela (está nos aplicativos de entrega) e fui visitar de surpresa na última semana. Fiquei encantada. Tudo muito prático e gostoso. As bebidas campeãs de venda são os cafés Vanilla (amei) e o Cappuccino. Como estava dirigindo, não foi dessa vez que provei o café com Baileys, o creme irlandês que leva whisky e leite, com notas de cacau e baunilha.

Você pode pegar para levar ou consumir no local, que também oferece cafés gelados, salgadinhos e donuts. Tem ainda água para os pets.

De segunda a sexta, das 7h30min às 18h30min e, aos sábados, das 8h30min às 18h. O WhatsApp é (51) 99895-6888.

SARA BODOWSKY

30 DE JULHO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

O DEUS DOS VIGARISTAS

Certa feita, um historiador metido a astuto e bastante ateu desafiou seu amigo filósofo e de passado jesuíta com solerte pergunta: "Queres que te prove que deus não existe?". Seguro de possuir o argumento imbatível, naquele simpósio nos altos da Rua Botafogo, ele ouviu do megasábio Carlos Roberto Cirne Lima a singela resposta: "Não precisas, é muito simples: deus é apenas uma palavra". Era exatamente este o ardil pensado e desarmado. Uma palavra e seus atributos, ou um significante e seus significados. Logo, a questão: o que pode significar a palavra deus? O que é deus para mim, para ti, para o estudioso, o teólogo, o crente, o fanático e o oportunista? Deus, para a história ou para a política, que significa?

Há um oceano de respostas a essa questão, e estas incluem o reconhecimento de que uma ficção cultural pode promover virtudes - como o faz a arte, ainda melhor do que a religião. Há, ademais, sentimentos piedosos, que não são exclusivos da religião. O melhor clamor do ateísmo é o mesmo do Iluminismo, de religiosos esclarecidos e da concepção do Estado moderno: religião? Que cada um siga a sua, ou nenhuma, como lhe convier, pois isso não é assunto de autoridade pública, é opção individual ou de confrarias, como o sexo ou o corte de cabelos. 

O Estado laico não nega a religião, apenas isola e tenta eliminar ameaça que sabemos ser letal para a liberdade de todos, a teocracia. Pois se entendermos, com Richard Dawkins (1993), que a religião é um vírus, que se aproveita de fragilidades da mente e da sociedade para impor seu jugo e realizar sua próprias finalidades, crescer e dominar, veremos que a forma mais letal e monstruosa desse agressor é exatamente aquela com que se inaugurou o Estado, há mais de 5.171 anos, e, com ele, a parceria entre guerreiros (militares) e religiosos: a teocracia. A religião não é natural, mas sim instituição nascida com o Estado e que amplia seu poder quanto mais autoritário o regime for. Eis a principal característica do deus dos vigaristas: quer o Estado em seu proveito, poder, riqueza e facilidades mil, enganando e abusando.

As religiões pentecostais tornaram-se correagentes da barbárie neste país. São cultos religiosos sem qualquer qualidade teológica, professados por oportunistas geralmente muito ignorantes, que abusam da credulidade da gente humilde e a explora sem pudor. Um punhado de cadeiras de praia, um babaca de gravata abrindo a Bíblia e a comentando com voz empostada valem um ninho de poder e enriquecimento, que as grandes empresas do ramo levaram a graus escandalosos. A religião-vírus assumiu então sua pior forma, devastadora, abusando de mentes frágeis e granjeando poder e riqueza absurdos. Vigaristas com deus na boca. Ademais, pseudopatriotas cevados em cacoetes anacrônicos e desrespeitosos.

Mais do que ateus, religiosos com caráter devem sentir nojo desses vigários venais e vis e da primeira dama teocrática e seu marido, pródigos no que há de pior, especialmente a vigarice teocrática. Mas logo as urnas decretarão também, com vox populi, vox dei, o retorno ao Estado laico.

FRANCISCO MARSHALL

30 DE JULHO DE 2022 
MONJA COEN

FIM DAS FÉRIAS

Há quem goste e quem não goste. Férias. Quando começa não sabemos o que fazer com a suposta liberdade e tempo para usar como quiser. O que vou fazer nas férias? Houve sonhos, propostas, atividades.

No começo com saudades das atividades, da escola, das colegas e colegas de trabalho, dos encontros e desencontros da vida comunitária.Depois nos acostumamos e criamos ativida des divertidas, horários livres, comidas variadas - para quem pode e tem o que comer.

Há gente que vive em férias: sem emprego, sem comida, sem família, sem ter aonde ir e onde ficar. Não é bom, nem agradável. É triste e lamentável. Se todos os dias são dias de férias não há férias. As férias das férias seria o trabalho, a escola, o estudo, as várias possíveis atividades remuneradas ou não.

Há quem nunca tire férias. Sempre em diversas ocupações. O coração não tira férias, nem a mente. Nosso organismo vivo nunca para de trabalhar, de agir, de interagir. Nem lamento, nem ânsia pelas férias. Há quem queira morrer, quem reclame da vida, do mundo e aguarde com alegria o fim da existência individual.

Há quem queira matar, quem deteste a si e aos outros e crie situações graves de abusos e extermínios.

O planeta Terra não tira férias girando em torno de si e em torno do sol. O que aconteceria se a terra cessasse de girar? Se a Terra fosse descansar na rede da Via Láctea e ficasse a se balançar daqui para ali, de lá para cá... O que aconteceria conosco? Será que nós também entraríamos em férias? Permanentes, eternas?

Para quem o Sol poderia pedir um mês de férias? Quem é o patrão do sistema solar? Há um líder, um maestro, um organizador que pode decidir férias a cada bilhões de anos?

O tempo não é o mesmo para tartarugas e borboletas. Férias gerais - sem programas de TV, sem campanhas políticas, sem escolas, sem lojas, sem transporte coletivo, sem comida, sem tiros, sem abraços e afetos.

Férias de amor. Férias do ódio - essa eu gosto de pensar: o ódio tirou férias e se perdeu nas matas das dúvidas sem fim. Este final de semana é o último fim de semana das férias de julho.  Segunda-feira volta às aulas e ao encontro com pessoas queridas e não queridas. Algumas estarão lá, outras, não.

Alegria e temor mesclados, pois algo novo está para acontecer. Será novo?

Afinal havíamos acostumado a ver TV, brincar com o celular, joguinhos de habilidade, de sorte e de azar, futebol, basquete, vôlei e esportes sem bola, mas usando a bola da mente para fantasiar, brincar, sem pretensão de ganho ou de lucro, de sucesso ou de fracasso.

Segunda-feira teremos de voltar ao que foi e já não é mais. Nada jamais se repete. Se formos capazes de estar absolutamente presente aqui e agora, este sábado será o melhor de toda nossa vida. E amanhã, domingo, será domingo.

E quando a segunda chegar não seremos pessoas de segunda, mas de primeira. Vivendo pela primeira vez um momento único que jamais se repetirá.

Aprecie cada instante. Esteja presente e sinta o ar que nos permite respirar, ser e estar. Bom retorno, sem torno e sem re...

Bom dia - que seja bom, que o façamos bom, esperançando, quero-querendo, sendo-intersendo, cuidado cuidando...Aprecie o agora. Mãos em prece

MONJA COEN

30 DE JULHO DE 2022
J.J. CAMARGO

OS LIMITES DA GRATIDÃO

O encaminhamento era para falar de transplante, e esta é sempre uma consulta demorada, porque mergulha-se num mundo de dúvidas, com muitas perguntas e uma pressa compreensível de vê-las respondidas, de preferência com uma precisão matemática que não combina com ciência biológica, exposta a variáveis imprevisíveis. Quase sempre o saldo da primeira entrevista beira a euforia, porque o basal de alguém necessitado de um transplante é sempre muito pobre e sofrido. Por experiência aprendemos que a conversa de um candidato ao transplante com alguém já transplantado e da mesma doença é o encontro mais produtivo que se pode oferecer.

Quando o Reinaldo agendou uma primeira consulta, encaminhado pelo clínico do grupo que procedera toda a avaliação e concluíra que ele era um bom candidato, as dúvidas mais comuns estavam resolvidas, mas ele trazia uma pergunta digna de um futurólogo:

- Cinco anos é tudo do que eu preciso, o sr. me garante?

Com cara de quem aprendeu que promessa é compromisso, e que o esquecimento é a salvação do falso profeta, repeti os números que ele já pesquisara no Google:

- O sr. tem cerca de 70% de chance de estar vivo daqui a cinco anos.

Com uma cabeça de empresário, a resposta foi rápida: - Por cinco anos, eu assino o contrato. Agora!

Não lembro do restante da conversa, mas nunca vou esquecer de que, nove anos depois, tendo desenvolvido um linfoma, perfeitamente tratável, mas relacionado às drogas indispensáveis para prevenir a rejeição, ele foi enfático na cobrança:

- E aí, meu dr., onde o nosso grupo maravilhoso descuidou, permitindo essa complicação?

Como é sempre difícil retrucar sem ofender, e ainda digerir esse combo de impotência nossa somada à ingratidão de quem recebera quase o dobro do pleiteado lá no início, coloquei o comentário na conta de quem estava sofrendo e fui embora calado e carente.

É preciso maturidade e equilíbrio emocional para conviver, sem se deprimir, com essa quebra de expectativa dos pacientes, que, como seres humanos normais, festejam qualquer promessa de tempo extra, mas não conseguem elaborar, sem pôr a culpa em alguém, quando esse tempo acaba. E isso ocorre em todas as especialidades.

Os avanços extraordinários observados, por exemplo, da oncologia, promovendo sobrevidas longas e produtivas, em portadores de cânceres até há pouco tempo intratáveis, têm produzido essas alternâncias de exultação pela vida retomada e de frustração na presença de uma eventual recidiva. Certo é que raros se lembrarão de agradecer o tempo conquistado.

O agradecimento no sucesso tem menos valor, porque parece mais uma obrigação. Mas podem crer que existem pessoas tão superiores que são capazes de agradecer a intenção de ajudar, mesmo quando dá tudo errado. E é por elas que recomeçamos. Todos os dias. Afinal, são as generosas signatárias do mais nobre dos sentimentos que nos impulsionam: a gratidão.

J.J. CAMARGO

30 DE JULHO DE 2022
CARPINEJAR

Nada contra relações só depois do altar

Não me espanta o casal que deseja esperar para ter relações sexuais só depois do casamento. Não é para mim nenhuma aberração, nenhum anacronismo. Estranho mesmo é um casamento sem amizade, sem intimidade, sem cumplicidade, sem uma troca longa de ideias, sem intercâmbio de projetos, sem confidência de experiências, sem valores morais em comum.

Casamento sem amizade é mais perigoso do que casamento sem sexo antes. A amizade é a base do amor. A partir dela, alcançamos a admiração e a confiança. É o primeiro degrau de qualquer relacionamento. Tropeços virão se tentar pular esse nível básico e primordial.

A mera atração física e a satisfação momentânea da carne são elos muito rasos, muito superficiais para morar junto. Assumir um compromisso levando em conta minutos de prazer é desmerecer o imenso tempo restante em que estará na companhia do outro.

Relações nascem descartáveis, não se tornam descartáveis. Casamento sem amizade é chamar um estranho para dentro de sua existência. É abrir a porta para o acaso.

Na paixão, você unicamente idealiza, não conheceu a pessoa. Reage a projeções e busca agradar a qualquer custo para conquistar. Não se mostra inteiramente. Vem forçando afinidades para ser aceito, a ponto de fazer coisas de que não gosta ou omitir coisas de que realmente gosta. Confunde contrato com termo de adesão.

Não surgiu perrengue algum para testar a lealdade, conflito algum para comprovar a confiança. Se tudo em sua vida tem história, se todos os objetos preferidos são frutos do hábito, se você tem a sua caneca supersticiosa, a sua escrivaninha de estimação, o seu abajur favorito, do qual aprendeu a ajeitar a cúpula inclinada, por que trará alguém ainda sem significado para perto?

Amor requer paciência e maturação das uvas e dos gestos, até para se prevenir de roubadas e poder recuar e declinar do contato enquanto é possível, não precisando amargar a cadeira fria do fórum e o constrangimento do divórcio litigioso.

Por sua vez, romance passional só trará destruição e ressaca. Ao final, não entenderá como esteve ao lado de quem exclusivamente pensa o pior de você. Convivência unicamente pelo instinto é como tomar banho sem sabonete, absolutamente desprovido de graça. Talvez limpe, mas não perfuma.

Não vale nada se dar bem na cama se não há o que conversar no sofá, na mesa de jantar, na varanda, se o silêncio é incômodo, se não há um respeito prévio das suas dores e tristezas, se não há empatia com as suas limitações, se não há compreensão carinhosa com as suas manias.

As crises de ciúme e de possessividade acontecem pela simbiose desde cedo, porque o par jamais ficou longe nem suportou a saudade. Não namorou devidamente. Não estudou e não observou a sua parceria. Não aceitou que ela tem o seu próprio mundo e as suas crenças. Não formou a independência com a distância. Não assimilou as dinâmicas diferentes das famílias.

Tenho a convicção de que posso viver meses sem sexo, mas não consigo viver um dia sem amor.

CARPINEJAR

30 DE JULHO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

O RECUO DO DESEMPREGO

Pode-se discutir a qualidade dos postos gerados, mas é inquestionável que o mercado de trabalho chegou ao final do primeiro semestre no Estado e no país em uma situação bem melhor do que se projetava no início do ano. Os dados que atestam uma realidade mais benigna do que as estimativas estão nos números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Divulgados na quinta e na sexta-feira, respectivamente.

O Caged aponta que, no Rio Grande do Sul, foram 74,5 mil vagas com carteira assinada criadas de janeiro a junho. Em todo o Brasil, o saldo ficou em 1,33 milhão, com um resultado de junho acima do consenso do mercado. No caso da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, a taxa de desemprego encerrou o segundo trimestre em 9,3%, ante taxa de 9,8% no recorte de três meses finalizado em maio. É obrigação relembrar que, ainda no final do ano passado, a esmagadora maioria das apostas não indicava percentual de desocupação no país na casa de um dígito ainda em 2022. O patamar atual é o menor para um trimestre finalizado em junho desde 2015.

Ao longo dos últimos meses, enquanto o mercado de trabalho formal e informal avançava, permanecia a preocupação com a renda em queda. Ou seja, mesmo que mais pessoas encontrassem colocação, estavam ganhando menos. As informações do Caged e da Pnad, agora, alimentam esperanças de que possa se estar iniciando um período de reversão desse quadro, mesmo que de maneira tímida. Nas vagas com carteira assinada, o salário médio de contratação ficou em junho em R$ 1.922,77, um levíssimo aumento de 0,86% sobre maio. A renda média apurada pelo IBGE alcançou R$ 2.652, variação positiva de 1% sobre o primeiro trimestre, mas ainda 5,1% abaixo de um ano atrás.

Deve ser celebrado que mais brasileiros voltem a se ocupar e ter ganhos para se sustentar e amparar suas famílias. O crescimento da massa salarial é fator que ajuda a dar impulso à economia, que, aliás, também tem surpreendido positivamente. Diversas instituições revisaram para cima estimativas para o PIB nacional, em um ano de difícil leitura pela complexidade dos fatores e de suas consequências. O principal deles é a guerra no Leste Europeu. A despeito das incertezas, o conflito levou a uma grande valorização das commodities, o que sempre é benéfico para o nível de atividade no Brasil.

Mas não se deve esquecer de que, apesar de o mercado de trabalho ter reagido, a inflação segue alta, carcomendo o poder de compra da população. O IPCA-15, divulgado na semana passada, teve elevação de apenas 0,13% na passagem de junho para julho, com a colaboração de itens importantes como gasolina e energia elétrica. Mas grupos de grande peso nos gastos das camadas de renda mais baixa seguem pressionando. É o caso da alimentação, com alta de 1,16%.

O desemprego está menor, mas permanece alto. Os ganhos dos trabalhadores pararam de cair, mas não acompanham a alta dos preços. O endividamento e a inadimplência da população estão em patamares elevados. O quadro, portanto, permanece delicado e exige atenção e sensatez. De um lado, é preciso esperar que não sejam criadas mais instabilidades que possam afetar a economia. De outro, cresce a responsabilidade do Banco Central para uma calibragem correta do juro nos próximos meses para combater a inflação sem comprometer a atividade.

OPINIÃO DA RBS


30 DE JULHO DE 2022
PERIMETRAL

RÁPIDO, PERO NO MUCHO

A expectativa era grande: peguei um celular da RBS habilitado para 5G e, com ele no bolso, fui ao evento da Claro onde a nova tecnologia já estaria disponível, nesta quinta-feira à noite. Confesso que me frustrei.

A conexão acelerou, é verdade, mas nada que me fizesse cair o queixo. Ao meu lado, no entanto, havia um rapaz com outro modelo de smartphone, também compatível com 5G: a internet dele era um foguete, um míssil. Qualquer site que ele digitasse abria instantaneamente após o "enter". Qualquer vídeo ou foto que ele enviasse por WhatsApp chegava ao destinatário na mesma hora. Por que isso não ocorria comigo?

Explicaram-me que o Galaxy S22, modelo da Samsung usado por mim, ainda precisa de uma atualização de software que fará a velocidade disparar - esse update depende da própria fabricante. Já o Galaxy S21, celular que o rapaz ao meu lado usava, já teria sido atualizado pela Samsung, o que garante uma performance bem melhor.

Resolvi tirar a prova. Com o aplicativo Speedtest, vi que minha velocidade média de download, com o sinal 5G, estava em 380 MB por segundo. Nada mal se comparado ao 4G, que alcançava um máximo de 240 MB por segundo. Mas muito ruim se comparado ao 5G do rapaz ao lado: a velocidade dele atingia 2 GB por segundo, ou seja, cinco vezes mais do que eu consegui com a mesma tecnologia.

Em resumo, não foi desta vez que o 5G me conquistou, mas sei que esse dia vai chegar logo. Até porque estou bem facinho.

PAULO GERMANO

30 DE JULHO DE 2022
MARCELO RECH

Não brigue por eles

A primeira eleição que acompanhei a trabalho foi em 1978, ainda no primeiro ano da faculdade de Jornalismo da UFRGS. Minha função na Central RBS de Eleições consistia em atender telefones e anotar numa planilha os votos urna a urna, candidato a candidato, que eram transmitidos a Porto Alegre por correspondentes nas zonas eleitorais. Nesta trabalheira insana de contagem dos votos para tentar ficar à frente da Justiça Eleitoral e dos concorrentes, os dados eram repassados a um então poderoso computador mainframe, enquanto aos microfones das rádios os colegas anunciavam solenes: "Atenção, novas urnas de Dom Pedrito"!

Desde essa pré-história eleitoral, participei como jornalista de todas as eleições. Estive nos estúdios das TVs nos primeiros debates para presidente, fiz a cobertura de comícios de Lula e Collor na renhida campanha de 1989, entrevistei um sem-número de candidatos em cidadezinhas e capitais, vi pancadarias de rua e bate-bocas Brasil afora. Mas nunca presenciei tal grau de radicalismo e insanidade como agora, quando os dois lados antagônicos se apresentam como a luta do bem contra o mal, esse último pespegado no outro, naturalmente. As condições peculiares desta eleição - polarizada desde a largada entre um candidato que desmoraliza o próprio sistema eleitoral e outro que passou 580 dias na cadeia por corrupção - e os nervos sobressaltados pelas redes sociais produzem uma eletricidade no ar que afasta amigos, desanda churrascos, afunda namoros e separa famílias.

Pois, do alto dos meus 44 anos de testemunha das eleições e da política em Brasília, nos Estados e no Exterior, ouso recomendar: nenhuma eleição e nenhuma candidatura valem uma família estilhaçada. Antes de brigar, pense no seguinte. Lembra aquele adversário ferrenho do Lula que há alguns anos era o alvo de ataques ferozes da esquerda? Saiba que ele é o vice de Lula hoje. E se recorda do Collor, do Valdemar Costa Neto (aquele preso e condenado no mensalão), além de toda aquela história de "se gritar pega centrão, não fica um, meu irmão" que embalou a campanha do atual presidente? Bolsonaro está abraçado a eles agora.

Em todos os cantos do Brasil, corações sinceros se engalfinham por seus candidatos, enquanto eles sobem ao palco para mais um teatro eleitoral em que o inimigo atual se converte no aliado de amanhã. Isso é política, e não é ruim que seja assim, porque demonstra que o bem e o mal não são conceitos absolutos ou definitivos em nada, muito menos em Brasília.

Então, antes de detonar aquele primo e bloquear o grupo da família, respire fundo e pense que só você sofrerá com a divisão. Eles, os candidatos, sempre darão um jeito de se acertar ali na frente com os adversários furiosos de hoje.

MARCELO RECH

30 DE JULHO DE 2022
J.R. GUZZO

Moraes tenta atrapalhar

O Congresso Nacional acaba de aprovar, quase por unanimidade e cumprindo processo absolutamente legal, uma lei que reduziu os impostos estaduais sobre os combustíveis e fez cair imediatamente o preço dos combustíveis para o consumidor. É um raríssimo momento em que o cidadão brasileiro recebe um benefício concreto, claro e compreensível das autoridades. 

Não há na lei, além disso, nenhuma redução real de receitas para os Estados, pois vão receber compensação pelo que deixaram de arrecadar. Acima de tudo, é lei e simplesmente tem de ser cumprida por todos. Ou é isso, ou não há democracia; é um mandamento elementar em qualquer Estado democrático que as leis aprovadas de modo legítimo pelos representantes do povo estão acima das vontades individuais e são iguais para a sociedade inteira.

Mas isso aqui é o Brasil democrático do STF, e no Brasil democrático do STF lei não é o que o parlamento aprova - e sim o que o Supremo Tribunal Federal quer. A lei que fez baixar o preço dos combustíveis foi proposta pelo governo federal e bem recebida pela população. Pronto: não é preciso mais nada. Se a lei vem do governo, e saiu de lá por vontade do presidente da República, é lei que não presta, e o STF não admite que ela seja aplicada como deveria. 

Quem não aceita as suas consequências, então, recebe apoio legal imediato dos ministros. É o que aconteceu com o Estado do Maranhão. O governador local declara a si próprio como um grande general do ex-presidente Lula e também se exibe como um inimigo radical do governo; ao mesmo tempo, não aceita a lei que o Congresso aprovou. Corre, então, para pedir proteção ao STF. É atendido na hora.

A licença para o Maranhão não obedecer à lei, safando-se dos seus efeitos práticos, foi dada pelo ministro Alexandre de Moraes, que já há muito tempo acumula suas funções no STF com a atuação de inimigo político número 1 do governo federal. Moraes, simplesmente, autorizou o Maranhão a não pagar nenhuma de suas dívidas com a União, do Banco do Brasil à Caixa Econômica, do BNDES ao BID - nada, nem um tostão. Pior: esse calote se aplica já nas parcelas que deveriam ser pagas no mês de julho, pois o Estado vive como um pedinte de rua, tendo de ganhar de manhã o dinheiro para o prato de comida do almoço.

E a compensação das receitas prevista na lei? O governador diz que não dá para "esperar", porque há trâmites legais a cumprir - claro que há; ele queria que não houvesse? -, isso toma tempo e não existe um real de reserva no caixa do Estado para aguentar até a chegada do reembolso. Perfeitamente, decidiu o ministro. É isso mesmo: não é preciso pagar nada e o Estado pode ignorar suas obrigações com a União. Essa "União" é você mesmo, que paga sem dar um pio os seus impostos; é do seu bolso que vai sair o dinheiro que o governador não quer pagar.

Nada disso faz qualquer sentido. Mas é o que se tem, em um país em que a suprema corte se transformou em brigada de militância política, abandonou os seus deveres constitucionais e exerce a justiça através da vingança.

J.R. GUZZO

30 DE JULHO DE 2022
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

neurocientista, 51 anos Um dos mais respeitados especialistas da área no Brasil, é autor de livros como "O Oráculo da Noite" (2019) e o recém-lançado "Sonho Manifesto". É uma das primeiras atrações do Fronteiras do Pensamento 2022, em conferência online no próximo dia 8

Pode um otimista ser apocalíptico? Pois é assim que se define o neurocientista Sidarta Ribeiro. No seu livro mais recente, Sonho Manifesto (2022), o fundador e atual vice-diretor do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, traz "10 exercícios urgentes de otimismo apocalíptico". Ao mesmo tempo em que reconhece as mazelas do mundo desigual e hipercompetitivo em que vivemos, Sidarta considera que o acúmulo de saberes já permite à humanidade construir um futuro que valha a pena ser vivido. Dia 8, ele fará uma das conferências online de abertura do Fronteiras do Pensamento 2022. Na ocasião, deverá abordar temas sobre os quais tem contribuído para o debate público, como os sonhos, as terapias psicodélicas e a maconha medicinal. A entrevista a seguir é fruto de dois encontros. O primeiro, presencial, em Caxias do Sul, numa noite de maio que precedeu uma palestra na cidade serrana. O segundo, em junho, foi realizado por videochamada.

COMO O NOSSO CÉREBRO LIDA COM AS TRANSFORMAÇÕES CADA VEZ MAIS ACELERADAS PELAS QUAIS A SOCIEDADE TEM PASSADO?

Lida mal. As pessoas estão com uma privação crônica de sono, que se dá principalmente pela dependência de telas. Não se trata de demonizar as telas de modo algum, mas a gente tem de entender que, assim como qualquer hábito ou substância, a dose é relevante. A hiperdosagem de telas e a necessidade de novidades o tempo todo que elas proporcionam deixam as pessoas muito ansiosas. Hoje o tédio corre risco de extinção. E o tédio é criativo. Isso leva a outra questão que me preocupa, que é o achatamento do mundo imaginal, ou do imaginário. Você tem todas as imagens prontas, com uma linguagem audiovisual extremamente rica e incessante, que estimula o cérebro sem parar. Mas a que hora você para e desenvolve sua capacidade de imaginar, com pouco ou nenhum estímulo? Cada vez menos. Não faz isso na vigília, que está ocupada com estímulos, e não faz isso dormindo, porque o sono está sendo sistematicamente diminuído.

EM SONHO MANIFESTO, VOCÊ DEFENDE A IMPORTÂNCIA DA SONECA NA ESCOLA PARA MELHORAR O APRENDIZADO

Totalmente. Uma parte do trabalho que meu laboratório fez aqui em Natal (RN) nos últimos 15 anos foi estudar o sono na escola. A gente viu que, quando há uma soneca na escola, mesmo depois de aulas importantes, a duração das memórias daquele aprendizado aumenta. O que é superimportante, porque, no nosso sistema educacional, o aprendizado dura pouco tempo. A pessoa faz a prova e depois esquece o que aprendeu. Se fizer um Enem com o pessoal de 40 ou 50 anos de idade, não vai passar ninguém. Isso porque o jeito como a gente aprendeu privilegia memórias de curto prazo de validade. A soneca pós-aprendizado fortalece muito as memórias, permitindo que elas durem. 

O último trabalho que a gente publicou sobre isso mostrou que, se você faz três semanas de intervenção numa escola, de meia hora por dia, de um treinamento específico para crianças de cinco ou seis anos que estão aprendendo a ler e a escrever, pedindo para elas discernirem letras em espelho, como o "p" e o "q", ou o "b" e o "d" - que são erros muito frequentes no processo de alfabetização -, se elas não tiverem um tempo para a soneca depois desse aprendizado, não sobra nada. Elas voltam para o ponto onde estavam. Os estudos mostraram que a memória de longa duração é muito facilitada por uma soneca pós-aprendizado, e por isso a gente deve trazer o sono para dentro da escola em todos os níveis, até mesmo na pós-graduação.

QUE CAMINHO VOCÊ VISLUMBRA PARA QUE A HUMANIDADE ALCANCE, CITANDO UMA FRASE SUA DE SONHO MANIFESTO, UM FUTURO QUE VALHA A PENA SER VIVIDO?

A gente precisa se voltar para práticas mais saudáveis e muito antigas. Concordo com a frase lapidar do (líder indígena) Ailton Krenak, que diz que o futuro é ancestral. Para viver melhor a gente precisa fazer coisas que nossos ancestrais faziam muito bem: dormir bem, sonhar bem, compartilhar os sonhos, se alimentar bem. Antes da agricultura as pessoas tinham uma saúde ótima, porque a comida, quando falta, é muito ruim, mas também é ruim quando ela vem em excesso. Havia uma alimentação mais saudável, o exercício físico era mais presente, e hoje a gente faz tudo isso mal. E, muitas vezes, mantendo relações tóxicas. Depois de fazer tudo errado, a pessoa quer se medicar. 

Não é uma escolha inteligente. O remédio puxa numa direção e provoca um efeito colateral, que leva à necessidade de outro remédio, e no final a pessoa não encontra equilíbrio. Muito do que a gente precisa fazer é se voltar a práticas ancestrais que foram desenvolvidas por povos originários e que vêm sendo validadas pela ciência. Como a alimentação fermentada, por exemplo, que é altamente saudável e desinflama o corpo. Se você come iogurte, kefir, chucrute, kimchi, kombucha? Há estudos mostrando que esses alimentos têm um efeito incrível para reduzir a inflamação do corpo, ajudando a viver uma vida saudável e longeva. Um dos argumentos de Sonho Manifesto, e que trago para o Fronteiras do Pensamento, é que a gente já sabe o que é preciso para viver bem no planeta. Falta pôr em prática.

O INCENTIVO AO CONSUMO LOCAL ENTRA NESSA IDEIA?

Se a gente se globalizar completamente, vai perder coisas importantes. Por outro lado, se tivermos só uma cultura local, a gente também perde. Todo mundo gosta de ver filmes estrangeiros, de comer comida de outros países, e é bom que seja assim. Mas é fundamental que haja um equilíbrio. Quando existe um produto feito no teu bairro e o mesmo produto feito na China, isso tem um custo. Se esse custo é razoável para você, é porque alguém lá na China está ganhando um salário muito ruim. A gente precisa olhar para isso. A mesma atenção é preciso ter com a energia. 

Veja o que foi feito com Belo Monte (usina hidrelétrica no Rio Xingu, no Pará), que detonou a Amazônia para produzir uma energia que, para ser levada aos grandes centros, é dissipada, e boa parte dela se perde nas linhas de transmissão. A produção local de energias renováveis, sejam eólicas ou solares, é uma solução. Se cada casa produzir sua própria energia, e ainda vender isso para o sistema como uma fonte de recursos, não precisa se construir uma megaobra que irá afetar todo um bioma. Ajudaremos o planeta se tomarmos mais soluções como essa, assim como a dos alimentos fermentados que são feitos em casa, como o iogurte natural e a kombucha.

TANTO A COMPETIÇÃO QUANTO A COLABORAÇÃO SÃO COMPORTAMENTOS ANCESTRAIS, MAS PARECE QUE A COMPETIÇÃO DEIXA DE FAZER SENTIDO QUANDO HÁ RECURSOS PARA TODOS.

O conflito é muito negativo, mas se torna inevitável quando não há recursos para todo mundo. Se você e eu estivermos isolados e só tivermos um pouco de comida, a gente pode optar por ser solidário e rachar, mas também pode entrar em conflito e um de nós querer comer toda a comida. E a história da humanidade é cheia de disputa. No momento em que há comida para todos, por que a gente vai brigar? Aí se torna não adaptativo haver o conflito.

VOCÊ AFIRMOU EM UMA ENTREVISTA RECENTE QUE A MACONHA MEDICINAL É A ÚNICA PAUTA PROGRESSISTA QUE AVANÇOU NO BRASIL DESDE O IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF. QUE OUTRAS PAUTAS VOCÊ CONSIDERA MAIS URGENTE?

Especificamente no que diz respeito à neurociência, é o advento da cannabis medicinal e dos psicodélicos entrando pela porta da frente da medicina. Isso já ocorreu nos EUA, no Canadá, na Alemanha e está começando a ocorrer no Brasil. Outra pauta que não é só brasileira, mas, sim, global, é que as pessoas materialmente mais ricas têm de pagar mais impostos. Quem paga imposto no mundo inteiro é a classe média e os pobres. O pobre paga no consumo, a classe média paga no imposto de renda. As pessoas mais ricas materialmente contribuem muito pouco para a melhoria da sociedade, porque em quase todos os países elas pagam poucos impostos. A gente pode olhar o caso dos países da Escandinávia, onde as pessoas se acostumaram a pagar mais impostos, mas contam com um serviço público de altíssima qualidade. 

Quando essa pessoa materialmente mais rica pode sair de casa de metrô, sem precisar de carro blindado, ela se sente uma cidadã comum, parte da comunidade. Na desigualdade em que a gente vive, essas pessoas se sentem isoladas e não se sentem parecidas com as outras. Durante a pandemia os 10 homens mais ricos do mundo dobraram suas riquezas. Por que eles precisam de mais US$ 10 bilhões? Isso é sintoma de uma doença. Se eles tivessem tirado 1% do que têm no bolso e doado para a produção de vacinas, talvez a gente já estivesse fora da pandemia. Existe uma irracionalidade nessa adoração do dinheiro e nessa necessidade de acúmulo de capital, e a gente precisa falar disso com clareza. Porque essas pessoas não são gênios do mal que querem ferrar todo mundo. Elas também estão em sofrimento. Só estão acumulando dinheiro porque aprenderam que isso é o certo.

EM SONHO MANIFESTO, VOCÊ ALERTA PARA O RISCO DE ESPECIAÇÃO QUE CORREMOS ENQUANTO HUMANIDADE. PODE EXPLICAR MELHOR ESSE TERMO E ESSE RISCO?

Essa é uma questão que eu discuto diretamente no livro, que é o fato de que os materialmente mais ricos e os materialmente mais pobres não têm praticamente nenhuma troca genética. E também têm pouca troca cultural, ou memética. Assim, estão dadas as condições, seja do ponto de vista da cultura ou da genética, para um distanciamento que, do ponto de vista biológico, significa especiação. Se os materialmente mais ricos não vão interagir com os materialmente mais pobres para além da troca patrão-serviçais, isso vai gerar o aumento dessa distância. É algo que já foi previsto pela ficção científica. No livro A Máquina do Tempo, H.G. Wells descreve duas espécies, os Morlocks e os Elois, sendo os últimos escravos que servem de alimento para os primeiros. 

No futuro, se continuar do jeito que está indo, as pessoas que hoje estão morando na rua, desnutridas, privadas de sono, de segurança, de saúde, vão se distanciar cada vez mais daquelas que têm acesso à melhor medicina e vamos chegar à modificação corporal. A nossa ciborguização está aumentando. Se não tomarmos outro rumo, daqui a algum tempo, talvez 50 ou cem anos, pessoas vão viver muito mais de cem anos, vão poder substituir seus órgãos, ter partes do corpo robotizadas, em um projeto de imortalidade, e cada vez menos identificadas com aquelas que foram a base do seu acúmulo de capital, mas que serão descartadas. Os robôs já terão chegado para tomar todos os empregos, mas eles podem chegar, inclusive, a tomar conta do consumo. Se os robôs produzirem e consumirem, vai sobrar o que para os seres humanos?

INTERESSANTE VOCÊ CITAR A FICÇÃO CIENTÍFICA, POIS HÁ POUCO FALOU SOBRE A PREOCUPAÇÃO COM A NOSSA CAPACIDADE DE IMAGINAR

A ficção científica mapeou muito bem o que pode nos acontecer de bom e de ruim. Tenho recomendado pra todo mundo a leitura do livro novo do Daniel Galera, O Deus das Avencas (2021). São três contos de ficção científica, um num futuro mais próximo, outro num distante e outro mais distante ainda. Se a gente conseguir se voltar para a ficção, para a literatura, para o cinema, e entender quais são as trajetórias possíveis, de certo modo a arte desempenhará um papel que os sonhos tiveram para os nossos ancestrais: mapear futuros possíveis.

QUAL O PAPEL DOS SONHOS NA CIÊNCIA DO SÉCULO 21?

Acho que é um papel muito importante. Eu diria que, mais do que na ciência, no destino do planeta. Os sonhos, durante o século 20, foram relegados a alguns guetos de investigação: na psicologia de profundidade; na psicanálise de Freud; na psicologia analítica de Jung; numa parte da psicologia experimental voltada ao estudo do sono REM. E nas ciências humanas, sem dúvida. Mas, nas ciências biomédicas, havia pouca respeitabilidade a essa área de pesquisa. Estudava-se o estado do sono em que o sonho ocorria, mas o sonho em si era tido como caótico, sem sentido e significado. Isso caiu. 

Nos últimos 20 anos, a neurociência e a psicologia cognitiva mostraram que os sonhos têm significado e que, inclusive, podem melhorar o desempenho das pessoas durante a vigília. Em outras palavras, se você sonhar com a realização de uma tarefa, você se torna mais capaz de realizar aquela tarefa? E isso conecta a neurociência do século 21 a conhecimentos ancestrais não científicos, aos xamãs, aos pajés, a pessoas que lá na Grécia Antiga, na Roma Antiga, no Egito, na Índia, há 5 mil anos, estavam sonhando para buscar adaptação, para tentar se encaixar melhor no mundo ou transformar o mundo para que ele fosse mais adequado às necessidades humanas. Hoje, em meio a essa grande crise ambiental e social, é preciso resgatar o sono e os sonhos. A falta de sono traz um monte de problemas. 

Provoca mau humor, problemas cognitivos que irão virar fator de risco para depressão e ansiedade, problemas cardiovasculares, diabetes e, lá na ponta, Alzheimer. É uma bola de neve. A falta de sono, depois, vai implicar na falta de sonho, que significa não entender os próprios desejos, medos, desafios. Vai implicar na falta de introspecção, falta de insight sobre a sua própria vida interior. Imagine, numa sociedade em que todo mundo está perdendo o sono, quais são as consequências? Desagregação social, sensação de solidão? Há mais gente morrendo de suicídio do que de homicídio no planeta. Isso é surreal. Estamos superando a brutalidade ou estamos caindo numa solidão infinita?

SONHO MANIFESTO É UM LIVRO OTIMISTA, PELO TEU ARGUMENTO DE QUE, APESAR DE TODA A DESIGUALDADE, OS RECURSOS E AS CONDIÇÕES PARA UM FUTURO MELHOR JÁ ESTÃO DADOS. FALTA OS BILIONÁRIOS SE CONSCIENTIZAREM E CEDER, SEGUNDO SUA ARGUMENTAÇÃO. ISSO ME FAZ PENSAR EM LEMINSKI: O PODER É O SEXO DOS VELHOS...

Isso é interessante, pois sempre achei que o contrário de amor era ódio. Até aprender, com meu psicoterapeuta, que o contrário de amor é poder. Quando uma pessoa exerce muito poder sobre a outra, o amor se torna impossível de parte a parte. A gente vive numa sociedade em que as pessoas estão viciadas em poder e em dinheiro, e isso está sendo mediado no cérebro pelo mesmo neurotransmissor, que é a dopamina. Se a pessoa está dependente de álcool, de cocaína, de videogame ou de dinheiro, no cérebro isso é mais ou menos a mesma coisa.

 E qual é o problema? É que, ativando esse sistema interno de recompensas, a gente nunca chega à saciedade. A pessoa que tem muito dinheiro sempre quer mais. Assim como a que tem muito poder. Se você conversa com essas pessoas que têm muito dinheiro, elas estão em sofrimento. Porque queriam ter ainda mais dinheiro do que outra pessoa, porque perdem muito dinheiro rapidamente quando especulam, porque não acreditam nas amizades que têm, por causa das heranças que têm a receber? É uma neurose enorme. Mas existe outro sistema no cérebro, ligado ao neurotransmissor serotonina, que tem tudo a ver com a plenitude. 

É o que a gente produz quando está em relações saudáveis, quando está com pessoas que a gente ama, ouvindo música, dançando, fazendo amor. Tudo isso produz serotonina e outros neurotransmissores que levam à sensação de plenitude, de conforto e segurança, que são o contrário do que a dopamina pode provocar. Meu argumento é que, enquanto houve escassez no planeta, desde a pré-história até meados do século passado, não havia como ficar livre da ética da competição baseada em dopamina, mecanismos em nosso corpo nos levavam para esse lado mais egoísta. Porém, quando passou a haver abundância, a pressão de seleção sobre toda a espécie mudou. Se continuarmos a ter pessoas hipercompetitivas acumulando cada vez mais, a crise ambiental e social será completa. As pessoas que têm US$ 5 bilhões e querem ainda mais dinheiro estão doentes, e a gente precisa falar sobre isso abertamente. 

Elas precisam muito mais de amor, de ayahuasca, de ioga, de ayurveda, de alimentação orgânica sem ultraprocessados do que de mais dinheiro. Isso se conecta a ensinamentos que estão em Jesus Cristo, em Buda, em Krishna. Não digo que, se os bilionários mudarem de ideia, fica tudo bem. É mais complicado do que isso, porque há a questão da emergência popular, das pessoas dizerem "não aceitamos não ter o que comer e não ter onde dormir". Mas não adianta emergir de baixo para cima se os de cima vão entrar em guerra com os de baixo. Tem de haver um acordo entre classes sociais para subir o piso e descer o teto. As pessoas que têm US$ 5 bilhões não precisam de mais dinheiro, mas, sim, de cuidar do único planeta que todos temos para morar.

ANDREI ANDRADE

sábado, 23 de julho de 2022


23 DE JULHO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Sobre coisas que acontecem

Quando abri os olhos pela manhã, não podia imaginar que seria o dia que mudaria a minha vida. Que seria o dia que conheceria o homem que me faria cometer um crime. O dia que eu me enxergaria no espelho pela última vez. O dia que descobriria que estava grávida. O dia que encontraria um envelope lacrado, com uma carta remetida a mim 20 anos antes.

(Que dia foi esse? Quem está falando?)

É apenas um exercício de criação. Iniciei a crônica com uma frase fictícia e demonstrei os desdobramentos que ela poderia ter. Uma vez escolhido o caminho a seguir, uma história começa a ser contada, que pode ser longa ou curta, verdadeira ou fantasiosa. Bem-vindo ao mundo encantado da escrita.

Convém que a primeira frase seja cintilante. A partir dela, o leitor será fisgado ou não. Exemplo clássico: "Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira", início do romance Anna Karenina, de Tolstói. Arrebatador. Uma vez aberta a janela do pensamento, a mágica acontece: o leitor é puxado para um local em que nunca esteve, é deslocado para um universo que poderá até ser hostil, mas certamente fascinante, pois novo. Talvez não se identifique com nada, mas será desafiado a enfrentar sua repulsa ou entusiasmo. Não estará mais em estado neutro. A neutralidade é um desperdício de vida, uma sonolência contínua.

A crônica tem o mesmo dever: o de jogar uma isca para o leitor e atraí-lo para o texto. Gênero híbrido (literário/jornalístico), encontrou no Brasil a sua pátria. Somos a terra de Rubem Braga e Antonio Maria, para citar apenas dois gênios entre tantos que fizeram da leitura de jornal um hábito não só informativo, mas prazeroso e provocador. Se eu fosse citar todos os colegas que admiro, teria que me estender por meia dúzia de páginas, mas só tenho essa.

A crônica é um gênero livre por excelência. Pode ser nostálgica, confessional, lunática, poética. Pode dar dicas, polemizar, elogiar, criticar. Pode ser partidária ou sentimental, divertida ou perturbadora, à toa ou filosofal - é caleidoscópica, tal qual nosso cotidiano. Ao abrirmos os olhos pela manhã, nem imaginamos que uma miudeza qualquer poderá nos salvar da mesmice, nos oferecer um outro olhar, mas assim é. Todos nós vivemos, por escrito ou não, uma crônica diária. Hoje, antes de adormecer, você já estará um pouco transformado.

Apêndice comercial: nesta segunda-feira, começa a pré-venda do Master Class que gravei sobre a arte de escrever crônicas. São 30 módulos online onde conto minha longa experiência nesta atividade: os macetes, as alternativas, os obstáculos. Fica o convite para a live de lançamento, dia 25, às 20h, no perfil @_xpertise do Instagram.

MARTHA MEDEIROS

23 DE JULHO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Inteligência nada artificial

Já tem o aspirador que trabalha sozinho, a geladeira com internet para você pegar água enquanto pesquisa no Google, o controle universal com wi-fi que aciona a casa inteira. Nessas horas, sempre lembro da música da novela O Espigão, exibida quando eu era criança - portanto, há milhões de anos - e que tratava da especulação imobiliária em uma antecipação das mais sagazes do que estava por vir na vida real. Não por acaso, o autor era Dias Gomes.

Interrompemos nossa programação normal para falar de um caso dessa natureza, a demolição da casa do escritor Caio Fernando Abreu. O famoso sobrado colonial espanhol que pode ser encontrado em tantos textos do Caio. Segundo os órgãos públicos, a casa não tinha valor suficiente para entrar no inventário do bairro Menino Deus, o que asseguraria seu tombamento. Arquitetonicamente falando, talvez não tivesse mesmo. Mas é incrível como o poder público desconsidera que uma cidade também é feita de história e memória e saudade e delicadeza. A casa do escritor gaúcho cultuado no país inteiro, ponto de atração para os fãs que deixavam flores e velas em suas grades, caiu para, muito provavelmente, dar espaço a mais um prédio de pequenos estúdios sem espaço para nada. E preços que extrapolam, em muito, seus poucos metros quadrados.

A Associação Amigos de Caio Fernando Abreu, fundada justamente para tentar salvar a casa, fez o que pode em seus mais de 10 anos de luta. Mas manter um centro cultural não seria tão enriquecedor para a cidade - para alguns? - quanto mais um prédio igual a todos. Era sobre isso que a novela de Dias Gomes, que foi ao ar no longínquo ano de 1974, tratava.

Voltamos à nossa programação normal.

Não assisti à O Espigão, na época o tema não me interessava nadinha e a novela ia ao ar tarde demais para quem tinha aula no turno da manhã. A música dos créditos ouvia já na cama, segundos antes de apagar, na voz de Zé Rodrix. E nunca esqueci.

"Hoje eu não preciso mais coçar as costas / Inventaram o coça-costas eletrônico / Eu só fazia força / Quando ia abrir a porta da minha Mercedes / O único exercício que eu fazia / Era abrir a porta da minha Mercedes."

O protagonista de O Espigão era um empresário rico que nem a porta da Mercedes abria mais, já que o motorista abria para ele. Mas o que me impressionou naquela música, em priscas eras, foi a possibilidade de, um dia, inventarem eletrônicos capazes de fazer tudo pela gente, e de um jeito à prova de erros.

Pois esse dia chegou. Já existe o fogão eletrônico, que pode ser controlado a distância e manda notificação por celular quando a receita fica pronta. Alguns possuem câmeras no interior do forno, e você recebe as imagens no celular via bluetooth, acompanhando o preparo enquanto vê a novela.

Tem a máquina de lavar roupa "smart", que também pode ser controlada a distância e escolhe sozinha os ciclos de lavagem conforme a cor e a sujidade das peças.

E a panela eletrônica com wi-fi? A conexão com a internet permite controlar as funções a distância por meio do smartphone. Feijão queimado e arroz empapado, nunca mais.

A maior parte dos eletrônicos ultrassofisticados ainda não está à venda aqui e custa uma fortuna. Mas em pelo menos um produto eletrônico o Brasil é o mestre da tecnologia. É uma caixinha pequena, com poucos botões, sem conexão com a internet, auditável e com todos os testes e procedimentos possíveis para garantir a segurança e a inviolabilidade antes, durante e após o uso.

O nome é urna eletrônica.

Pode acionar sem medo e com toda a confiança que a coisa tem sido testada e aprovada desde 1989, sem reclamações. Só que, diferentemente da panela que cozinha por conta própria, a urna eletrônica precisa que você faça a sua parte direito para o caldo não entornar de vez.

Por mais que a tecnologia evolua, tem coisas nessa vida que só a gente pode fazer pela gente.

CLAUDIA TAJES

23 DE JULHO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Existe um caminho formal para o estudo da filosofia: uma graduação na área. Serão alguns anos pela frente, em aulas, trabalhos, fichamentos, seminários e avaliações. Muito esforço e você sairá, em média, daqui a quatro anos, bacharel ou licenciado. Se o curso for de uma boa instituição, isso implicará a necessidade de línguas também: inglês e francês com certeza, grego e alemão como complemento desejável.

O curso é fascinante, e sua maneira de pensar, o graduando, será, com certeza, transformada. Novos termos como epistemologia ou silogismo entrarão no seu vocabulário. Processos mentais serão questionados. Você fará perguntas melhores do que fazia antes do curso. É uma aventura fascinante.

A filosofia é uma teoria e uma prática e um questionamento sobre o que seria teórico ou prático. Sabemos que há demandas grandes e nem sempre acessíveis. Mesmo assim, o interesse pela área vai além dos profissionais. Assim como a vontade de cozinhar ou comer excede os bons cursos de gastronomia, a vontade de filosofar transborda por muitos lugares.

O primeiro caminho é um curso oficial e bom de Filosofia. E para os mortais que não desejam passar pelas estradas lentas de um curso superior e, mesmo assim, amam o mundo das ideias? A segunda via é ser autodidata. Você pega um texto básico como a Apologia de Sócrates, busca informações prévias sobre o autor, sobre o contexto e começa a leitura. Lê uma, duas, 10 vezes. Domina o texto. Cria, talvez, um grupo de debates nas redes. Depois, encara obras mais vastas ou complexas. É uma longa e maravilhosa estrada. Tudo depende do empenho do viajante solitário.

O terceiro caminho é diferente. Você talvez não tenha tempo ou disposição para um curso oficial. Também não deseja o domínio das grandes obras. Talvez você queira algo mais prático e direto. Voltando à metáfora do chefe de cozinha, talvez você não almeje abrir o melhor restaurante do mundo ou dominar complexas artes de doçaria. Você só quer... cozinhar e comer melhor do que faz hoje. Para esse caso, há obras de divulgação.

Começo falando de uma grata descoberta: 50 Ideias de Filosofia que Você Precisa Conhecer (Ben Dupré, Planeta). O texto é bem pensado e indica um estudo quase sistemático de ideias amplas sobre o que é consciência, conhecimento, validação do real e outras bem contemporâneas como os direitos dos animais e Deus existe? Há muitos tratados sobre o tema e capítulos bem específicos no livro do professor inglês. A série ainda tem muitos livros de 50 ideias de psicologia, matemática etc. O canadense Lou Marinoff fez sucesso, há vários anos, com o texto Mais Platão, Menos Prozac (Record). No caminho de dicas práticas, já indiquei aqui o Diário Estoico, com suas 366 dicas sobre a arte de viver (Ryan Holiday e Stephen Hanselman, Intrínseca). Você pode ler uma reflexão por dia e será de grande proveito.

Marc Sautet também fez sucesso com seu Um Café para Sócrates (José Olympio). Eu acompanhei o que ele começou no Café des Phares, em Paris, conversando com estudantes, donas de casa, trabalhadores em geral sobre temas filosóficos. Fiquei impressionado com os resultados iniciais. Na mesma onda, surgiu Sócrates Café (Sanskrito), do norte-americano Christopher Phillips. Esses são dois livros de títulos parecidos e linguagens muito distintas.

Mirando em um público mais jovem, o norueguês Jostein Gaarder fez barulho com O Mundo de Sofia (Cia. das Letras). Foi um livro muito popular há uns 20 anos e ainda conserva um bom interesse. Alain de Botton está perto dos nomes anteriores. Quer pensar sobre o Desejo de Status (Rocco) ou As Consolações da Filosofia (Rocco, L&PM)? O suíço ajudará com ideias caras e interessantes.

Existem boas histórias da filosofia em forma mais didática. Você pode começar por Danilo Marcondes: Iniciação à História da Filosofia (Zahar). Se tiver fôlego, expanda para a coleção da Editora Paulus, organizada pelo grande Giovanni Reale: História da Filosofia (sete volumes). Minha geração lia muito autores de História Geral e de Filosofia, com grande sabor narrativo: Bertrand Russell e Will Durant. Será que alguém ainda os lê? Eu amava.

Eu falei que este era um terceiro caminho. Ler para pensar mais, sem pressa ou demandas de um diploma. Se os livros introdutórios pareceram fáceis, perfeito! Chegou o momento de fazer o itinerário dos grandes clássicos de Platão, Aristóteles, Agostinho, Descartes, Kant, Sartre, Simone de Beauvoir ou Hannah Arendt. Num dia, você pode estar lendo Hegel em alemão e... gostando. Em outro momento, pode escutar um discurso de um político e identificar falácias claras, conforme a lógica formal.

De outra sorte, simplesmente, pode usar o termo "navalha de Ockahn" com propriedade. Se seu Sócrates chegar de havaianas ou de black-tie, o importante é que ele possa ter alguma conversa com você. "Ah, Leandro, eu não entendo tudo o que leio." Não se preocupe, ninguém entende tudo o que lê. Professores doutores em Filosofia não compreendem tudo, mas sabem disfarçar melhor do que o entregador de pizza que vi em Paris, perguntando algo a Sautet. O bonito é tentar e desafiar-se. A esperança é perfectível; a perfeição é divina e não filosófica.

LEANDRO KARNAL

23 DE JULHO DE 2022
ELIANE MARQUES

ERINLÉ E O DINHEIRO NOSSO DE CADA DIA

O mais belo dos caçadores, Erinlé, e o instituidor do oráculo, Orunmilá, tornaram-se amigos. Erinlé necessitava de dinheiro e pediu a Orunmilá, que prontamente o atendeu. Contudo, o tomador do empréstimo não tinha como pagar seu benfeitor. Nessa situação, procurou ajuda de um sacerdote que o aconselhou a fazer oferendas, pois, assim, conseguiria muito mais que o dinheiro para saldar a dívida. O problema é que Erinlé não teve dinheiro para as oferendas. Envergonhado, dirigiu-se até o lugar desabitado onde caçava, depositou seu ofá no chão e desapareceu terra adentro. Embora o itán continue, para os fins desta coluna, importa apenas a parte transcrita.

Como muitos de nós, Erinlé preferiu ser engolido pela terra a trocar seu discurso de impossibilidades, equivalente à quebra dos laços com Orunmilá, com o sacerdote... Pode-se considerar sua insistência no "eu não tenho", no "eu não tenho dinheiro", sob diversos aspectos (econômico, político, sociológico). Contudo, a psicanálise faz desse itán uma leitura singular, especialmente porque, nela, o dinheiro assume o valor de um significante. Significante é o que representa ao sujeito para outro significante. Portanto, quando se quer agarrá-lo, ele foge. Acontece que, para a instância inconsciente, o dinheiro pode perder esse valor de circulante e assumir caráter metafórico, substituindo ou encobrindo qualquer palavra (excremento, presente, órgãos sexuais).

O itán omite o destino que Erinlé emprestaria ao dinheiro que recolheu de Orunmilá, justamente porque isso não interessa. Não se trata de dinheiro para o fim de suprir uma necessidade material e específica do futuro orixá. Assim como o significante está exilado do conjunto das palavras, o dinheiro está exilado do conjunto das demais mercadorias. Ele se inscreve na política do desejo.

Recordemos que um dia Erinlé foi tudo para Iemanjá até que ela o devolveu ao mundo, depois de tê-lo raptado. Porém, o caçador conhecera os enigmas do mar e, para que não os revelasse, Iemanjá cortou sua língua. Podemos pensar que, no fundo do mar, Erinlé se sentia perfeito, o melhor dos presentes de Iemanjá. Não precisava dar ou estabelecer laços sociais, ele já era o presente. Perdida essa condição, ele preferiu sofrer pelo que supostamente não tinha a reconhecer que, agora, teria que dar algo além de seu próprio corpo. 

Aqui, dar algo significa manter um laço social que não seja o de puro gozo. A ausência de dinheiro teve para ele a eficácia de um pré-texto, algo que precede o texto da sua vida estancada num estado infantil de necessidade e castigo por seus sentimentos hostis - não ter para não dar e para não ser incomodado, pois ninguém pede a quem não tem. Ter ou não ter parece ser a questão, mas não o é. Talvez a única pobreza de Erinlé fosse a de seguir pensando sua vida como se ele ainda o dinheiro de Iemanjá, assim como nossa única pobreza talvez seja a de conceber nossa vida com o excesso ou a falta de dinheiro dos nossos genitores.

ELIANE MARQUES