quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012



29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
MARTHA MEDEIROS


Pai com certificado

A primeira vez que escutei sobre a importância do nome do pai no registro de nascimento foi no ano passado, durante uma entrevista do empresário Luiz Fernando Oderich, fundador da ONG Brasil Sem Grades, que luta brava e insistentemente para diminuir a criminalidade atual.

Sou admiradora desse cidadão que, a exemplo de outros homens e mulheres que perderam seus filhos de forma estúpida (o filho único de Luiz Fernando foi morto há 10 anos durante um assalto), dedicam grande parte de suas vidas a dignificar a sociedade em que vivemos. É com gratidão e respeito que o menciono.

Agora, o Fantástico inicia uma série em que bate na mesma tecla, a da importância do nome do pai na certidão, citando projetos semelhantes, como o Pai Presente e o Pai Legal. Num país onde cerca de 30 milhões de pessoas não possuem o pai identificado, conscientizar sobre esse assunto pode ajudar a reduzir o número de delinquentes nas ruas.

Claro que importa o tipo de pai que se é, mas antes de tudo: houve um pai? Quem ele é? Por mais que as mulheres estejam ocupando um duplo papel em muitos lares, e dando conta do recado, existe um componente psicológico nessa questão que não pode ser ignorado.

Há vários motivos para que o pai esteja registrado na certidão do filho (requisição de amparo material na falta da mãe, por exemplo), porém o mais importante é o sentimento de inclusão em um núcleo familiar completo, sem espaços em branco, e o orgulho e a responsabilidade que disso advém.

O lado bom da história é que, se existem pais-fantasmas, por outro lado há uma infinidade de pais protagonizando cenas impensáveis décadas atrás. No último domingo, estive no supermercado e vi um pai ensinando sua filha de uns 11 anos a avaliar se um tomate está maduro ou passado.

Os dois se divertiam fazendo compras juntos, e fiquei pensando que essa garota pode nem vir a ser uma boa cozinheira, mas sua estabilidade emocional promete.

No mesmo dia, vi da sacada do meu apartamento (que dá para um clube) um pai brincando com dois filhos na piscina, formando com os braços uma cesta de basquete para que os guris jogassem a bola.

A cena pode parecer meio boba, mas garanto que aqueles guris preferirão lembrar disso quando adultos, ao invés de um pai que se mantém na borda, prometendo que verá as cambalhotas do filho na água, mas que assim que a criança mergulha volta a conversar com os amigos, sem ter prestado um segundo de atenção.

A emancipação da mulher gerou um equívoco: a de achar que os pais tornaram-se desnecessários. Absurdo. Bem pelo contrário, nossa emancipação permitiu que o papel dos pais na criação dos filhos fosse ampliado.

Eles deixaram de ser meros provedores para tornarem-se essenciais participantes da educação moral, social e afetiva dos pirralhos. Mas é preciso partir do começo: o reconhecimento de que esse pai existe.


29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
ARTIGOS - Joaquim Clotet*


Novos horizontes

O início do ano letivo é, geralmente, motivo de esperança e de otimismo. Vislumbram-se novos horizontes. Alunos, professores e famílias ajustam suas agendas. A vida retorna à sua normalidade, incorporando as imprescindíveis mudanças.

Neste contexto, a inovação é a trilha do acerto e do sucesso, quer no plano individual, quer no profissional. Inovar é percorrer o caminho do bom êxito explorando ou projetando metas desafiadoras. Executar sem mudar pode ser expressão de burocracia e de rotina.

O elã pelo progresso é próprio das pessoas e das instituições. No que se refere aos indivíduos, por exemplo, a decisão dos jovens estudantes Bill Hewlett e David Packard de transformar sua garagem em laboratório foi a origem de uma grande e bem-sucedida organização de TI.

O recentemente falecido Steve Jobs deixou como legado para sua empresa um novo campus, centro de pesquisa e de inovação, de sete hectares, no Vale do Silício. A idade, neste tema, não faz diferença. Lorin Maazel, violinista e compositor, aos seus 80 anos, 75 dedicados à música, é maestro regente da Orquestra de Paris e, proximamente, o será da Orquestra Filarmônica de Munique. No que diz respeito às instituições, não há grande diferença.

A Universidade de Harvard, quase no seu início, introduziu cursos profissionalizantes nos seus programas, o que era incomum na época e no país, obtendo mais tarde reconhecimento universal. Mario Monti, primeiro-ministro da Itália, e até recentemente professor e reitor da Universidade Luigi Bocconi de Milão, destacada nas áreas de economia, gestão e finanças, desafia os jovens para a busca, a escolha e o exercício de mais de uma profissão.

O Brasil, por meio do seu Programa Ciência sem Fronteiras – elogiável iniciativa da Presidência da República e dos ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação e da Educação –, reconhecido e apoiado internacionalmente, abre inúmeras possibilidades de aquisição de relevantes experiências internacionais e de capacitação altamente qualificada à juventude do nosso país.

Pode-se afirmar que os jovens graduados brasileiros são reconhecidos como bons profissionais da medicina, da odontologia, da enfermagem, da engenharia e da comunicação, entre outras profissões, em países como Reino Unido, Suécia, Finlândia, Estados Unidos, Canadá e outros.

O momento histórico brasileiro, no contexto mundial, mostra-se extremamente favorável à formação de estudantes na perspectiva de amplos horizontes que oportunizem experiências criativas, diversificadas e inovadoras. Acresce-se a tais fatores a necessidade de uma educação orientada por sólidos princípios morais e religiosos, quer dizer, de uma formação integral. Assim sendo, abrem-se grandes, auspiciosas e desafiadoras oportunidades aos futuros profissionais de nosso país.

*REITOR DA PUCRS


29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
DIANA CORSO


Vizinhos, melhor tê-los

Não faz muito, caminhão de mudança me dava arrepio. Apesar de que havia feito uma boa troca: um apartamento por uma casa bonita onde minhas filhas cresceram brincando com os vizinhos à moda antiga. Mas ainda me ressentia do caos da chegada, da longa jornada de improviso. Num lugar maior, os poucos e esmirrados móveis pediram para ficar juntos por medo da solidão e não havia dinheiro para povoar aquele latifúndio.

As meninas nem ligavam, mais espaço para correr. Por sorte o resto dos habitantes do condomínio semiocupado também usava lençóis no lugar das cortinas. Quando todos nos assentamos, com estofados e móveis sob medida, perdeu um pouco a graça.

Quintana já dizia que amar é mudar a alma de casa e, parodiando-o, posso dizer que mudar é amar em outras casas. Não me refiro à família, que muda junto, mas aos vizinhos. Podem ser de porta, de condomínio, de rua, de bairro. São pessoas que encontramos nas horas de desalinho, nos momentos descontraídos, ou nos quais parecemos por vezes atropelados: quando acordamos, ou voltamos destruídos do trabalho, ou ainda nos ocorreu algo triste. É infalível, o vizinho sempre está lá, no elevador, na porta, ele pode trocar um comentário ou não, mas nos testemunha.

Escrevo sobre vizinhos porque perdi minha primeira vizinha. O nome não lembro, nós a chamávamos de Chichi (no Uruguai, se pronuncia “Tchitchi”). Guardava dela uma lembrança infantil doce: ela dando-me um banho na sua casa. Nunca entendi por que essa imagem me era tão grata. Pois agora, quando soube da sua morte, à minha mãe ocorreu contar-me um episódio que conscientemente eu não lembrava.

Foi essa vizinha que me deu o primeiro banho, ajudando minha jovem mãe atônita. Também lá estava ela em vários outros momentos importantes da minha primeira infância. Ambas nos mudamos, ela de casa e eu de país, mas sua proximidade me marcou. Simplesmente porque estava ali ao lado e soube entender que era necessária. O coração fica um pouco em cada casa, adeus Chichi!

A construção da personalidade não se faz somente da família e escola: crianças sempre observam atentamente como vivem e se comportam as pessoas em volta. Nesse ponto, como elas, absorvemos o contexto, não importa quão impessoais as cidades tenham se tornado.

Hoje, outra vez num apartamento, tenho bons vizinhos e uma ótima vizinha de porta. Nos encontramos nas horas amassadas para falar das filhas crescidas e dos cachorros velhos. Sei que às vezes dá azar, mas da loteria da vizinhança realmente não posso me queixar. Perdi o medo de me mudar, graças aos vizinhos.


29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
PAULO SANT’ANA


Corpo a corpo com o pitbull

Quase não dá para acreditar no relato que vocês vão ler agora. É inacreditável que um homem tenha enfrentado um pitbull.

Mas deixemos que o poeta e editor Rossyr Berny (atendimentoalcance@gmail.com) conte ele próprio o que foi sua experiência, que está nas linhas abaixo.

Caro jornalista Paulo Sant’Ana, igual ao senhor, também odeio pitbull. Neste sábado, descobri que um homem calmo, despertada sua fúria, pode ser fera, também.

Estava em casa quando vi, na rua, um pitbull estraçalhando um gato. Era a besta puxando o bichinho para baixo de um carro – para poder estraçalhar melhor –, e uma mulher tentando livrar o gato da bocarra assassina. Cada qual puxando para um lado; e o bichinho no meio, esticado ao limite do esquartejamento.

Enlouqueci, pois lembrei que, há poucos dias eu dava assistência, no Pronto Socorro, a um funcionário de minha firma que se acidentara feiamente de moto.

Naquele momento, os médicos realizavam uma cirugia em um garoto atacado por pitbull.

Meus ouvidos e meu coração nunca esquecerão o grito de desespero daquela mãe, ao receber a notícia da morte do filho: “Meu menino, não!”.

Aquele grito horrorizado foi uma bomba de dor no interior do Pronto Socorro. Não suportei, saí chorando porta afora. (Dores de perdas trágicas conheço bem; pai e irmã, atropelados e mortos no trânsito.)

O desespero do coração da mãe me veio à mente, vendo a cena dantesca. Então, descobri que um homem tranquilo pode ser fera, também.

Ajoelhei-me junto ao carro onde a besta puxava o gatinho para baixo e agarrei com a força que Deus me emprestou a garganta do pitbull. Soltou-se na minha primeira tentativa, na segunda... Voltei ao ataque e consegui uma posição dos cinco dedos segurando, se fechando e destruindo a traqueia do sanguinário.

Nos debatíamos, num jogo de forças entre ele e mim; nem ele largava o gatinho nem eu soltava sua garganta. Ficamos a eternidade de minutos naquela luta bárbara. Até que, sem fôlego, trancando-lhe o ar – é assim que eles matam as crianças –, soltou o desesperado gatinho, o qual perfurava meu braço, tentado livrar-se da morte.

Voltou-me à mente o grito da mãe vendo o filho falecido: “Meu menino, não!”. Agarrei o pitbull pelas patas traseiras e comecei a girar rapidamente sobre meu eixo. A cada duas voltas, quando pegava velocidade, rebentava o corpo dele contra a parede da casa ao lado do carro; mais voltas, mais força... e o grito daquela mãe no meu ouvido, ferida de morte; mais voltas e rebentei o corpo dele no asfalto, pois ele ainda tentava girar sobre si para me morder. Repeti, sempre girando, o choque dele contra o muro, contra a cerca, contra o chão. Meu Deus, o desespero daquela mãe...

Repeti o cerimonial macabro e, por fim, imaginando o diabo morto, o joguei para a estratosfera, de onde caiu, estatelado.

Incrivelmente, o pitbull ergueu-se. Ficamos nos olhando, agora cara a cara, ambos em posição de ataque. Ele com os olhos assassinos, aquela bocarra de pegar crianças...

Meu coração saindo pela boca, dizia-lhe, desafiador: “Vem me pegar como pegam as crianças, vem!”. Mas veio foi o dono dele, que o deixara escapar de casa – onde também tem criança. (Esses donos buscam, de maneira velada, alguma compensação da virilidade masculina ausente?)

Levaram o gatinho para ficar muitos dias numa clínica veterinária, caso milagrosamente se salve.

Voltei para casa, impactado. Pensei nos que me conhecem há quase 60 anos e jamais, jamais, me viram numa atitude violenta.

Senti um rasgo de alívio, acima de tudo pelas mães que tiveram seus filhos estraçalhados por pitbulls. E por outras que ainda terão.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012



28 de fevereiro de 2012 | N° 16993
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Vagas para paulistas

Desculpa chatear com assunto aborrecido mas, por indicação do meu amigo Flávio Azevedo, professor também, fui ler um texto de O Estado de São Paulo, de 9 de janeiro passado. O título: “O SISU e a mobilidade estudantil”. SISU é Sistema de Seleção Unificada, correlato do ENEM, Exame Nacional do Ensino Médio, que se transformou, de modo abrupto e autoritário, no megavestibular do país.

Acontece assim: o sujeito presta as provas do ENEM e obtém uma certa nota; com ela, ele se inscreve no SISU para o curso que deseja, na universidade que pretende. Um mercado nacional que se movimenta então: se muitos pretendem a vaga, sobram uns quantos candidatos, que se inscreverão para outra vaga. E assim vai, por algumas rodadas.

O artigo do Estadão trazia uns números que o senhor precisa conhecer: 4 em cada 10 estudantes paulistas entram em universidade pública fora de São Paulo. Ano passado, 4.327 estudantes paulistas ingressaram em cursos superiores fora de seu Estado. E estes números tendem a crescer. Crescer, digo eu, avançando nas vagas que até agora eram preenchidas com gente de fora de São Paulo.

O senhor, como eu, não tem nada contra paulistas, certo? Nada. São gente tão sublime e tão ridícula quanto qualquer um de nós, de qualquer parte do planeta. Querendo chegar, chegue. Mas não é esse o ponto: o que está em causa é que São Paulo, que já concentra enormemente renda e população, agora também concentra essas vagas públicas.

O argumento simplista é que eles se saíram melhor que os outros brasileiros. Mas há muito mais aí: um país precisa pensar em suas diferenças, equilibrando a coisa, sem a ilusão de unificá-las apenas com a lógica do vencedor da hora.

Termino citando trecho final do texto do grande jornal paulistano: “Ao propiciar maior mobilidade dos estudantes universitários pelo País (...), a criação do vestibular unificado torna as universidades federais mais cosmopolitas.

Para privilegiar os estudantes locais e tentar evitar a invasão de vestibulandos de outros Estados, as universidades federais enfatizavam o regionalismo em seus processos seletivos. Elas exigiam, por exemplo, dados da história social, política e econômica do Estado em que estavam situadas e de escritores regionais.

A reforma do Enem acabou com esse expediente, democratizando o acesso à rede de universidades federais e pondo fim a um provincianismo pedagógico que prevaleceu durante décadas.”

Alhos e bugalhos entreverados, numa cantilena concentracionista de dar dó (em nós mesmos). Que tal?

sábado, 25 de fevereiro de 2012



26 de fevereiro de 2012 | N° 16991
MARTHA MEDEIROS


A geladeira e o livro

No fim das contas, tudo o que queremos é ser amados

Fazia dois dias que minha geladeira havia entrado em pane. Não deixou de resfriar, mas as luzes do painel piscavam o dia inteiro, como se fosse uma bomba a ponto de explodir, e o alarme disparava de tempo em tempo, mesmo a porta estando bem fechada.

Sou otimista, achei que tudo se resolveria num passe de mágica, mas o coelho não saiu da cartola e acabei tendo que chamar um técnico, que agendou a visita para a manhã seguinte, às 9h30. Quando eram 9h25, as luzes do painel, antes esquizofrênicas, apagaram. O alarme já não disparava desde a noite anterior. Eu não queria mágica?

A primeira coisa que disse ao técnico: “Acredite, há dois dias que esta geladeira está tendo chilique, só parou quando o senhor começou a subir pelo elevador”. Ele me deu um olhar compreensivo, fez um check up no aparelho e descobriu um pequeno defeito. Alívio. Morri com R$ 300, mas a geladeira ganhou uma sobrevida. E minha neura, também.

Ninguém gosta de passar por exagerado. Ao sairmos do cinema, somos capazes de listar um sem-número de elogios ao filme que assistimos, mas basta alguém se empolgar com a nossa descrição e resolver assisti-lo por nossa causa que a responsabilidade começa a pesar: “Olha, eu gostei, mas talvez não seja seu tipo de história. Vá sem expectativas. É meio longo. Tem uma partezinha devagar, mas, sei lá, acho que vale a pena”.

Um amigo me recomendou um livro sensacional. Segundo ele, a melhor coisa que leu no último ano. Bom, então quero ler também. No dia seguinte, ele largou o livro na portaria do meu prédio, e quando liguei pra agradecer, ouvi: “Talvez tu não goste tanto assim. Comprei pra ti uma edição diferente da minha, o tradutor não sei se é tão bom. Tu não é obrigada a gostar, tá?”

Os episódios da geladeira e do livro, cada um a seu modo, demonstram o quanto ficamos inseguros ao virarmos referência. No caso da geladeira, a única prova que eu tinha de que ela estava amarelando eram as luzes piscantes. Quando elas pararam de piscar, passou a valer apenas a minha palavra. Que solidão.

Quando meu amigo incentivou a leitura do livro, estava expondo sua erudição, já que o autor era um filósofo. Mas no momento em que demonstrei interesse em ler também, ele passou a duvidar do próprio entusiasmo. E se o livro não fosse tão bom no meu parecer? De repente, não era mais o livro que estaria em julgamento, e sim ele. Solidão, também.

Outra: uma amiga resolveu ir a Machu Picchu depois que comentei coisas incríveis sobre a viagem que fiz para lá recentemente. Ai, ai, ai. E se ela passar mal com a altitude? E se achar a comida muito apimentada? E se voltar pensando que me empolgo por qualquer ruína de cartão-postal? Já era: terá perdido a chance de ir para outro lugar mais encantador a seus olhos. Por que fui emprestar os meus?

No fim das contas, tudo o que queremos é ser amados. Por aqueles a quem recomendamos um livro, por quem resolveu viajar incentivado por nós, e, sim, pelo técnico que confirmou que nossa geladeira estava mesmo estragada, contra qualquer evidência.

Falando na geladeira, passa bem. As luzes nunca mais piscaram nem o alarme disparou. A não ser o meu: “não se leve tão a sério, não se leve tão a sério, não se leve tão a sério”.


25 de fevereiro de 2012 | N° 16990
CLÁUDIA LAITANO


Lições de casa

Como a maioria das mães, tento passar para a minha filha, da maneira menos aborrecida e solene possível, uma espécie de versão pocket de tudo que aprendi ao longo da vida – da receita do arroz perfeito ao sentido mais profundo de ser e estar no mundo.

Não de uma vez só, para não enlouquecer a menina, mas sempre e continuadamente (o que, pensando bem, pode ser um pouco enlouquecedor também...), como se fosse um folhetim em muitos capítulos sobre assuntos tão inabarcáveis quanto o amor e a amizade ou tão prosaicos quanto um palpite qualquer sobre um conflito na escola.

A fantasia nem tão secreta dos pais é a de que nossa experiência pessoal acumulada, passada adiante em versão editada e copidescada, possa funcionar como uma espécie de manual do novo proprietário: “Vida, Modo de Usar (não ligue sem ler as instruções!)”.

Como eu também já fui filha, sei bem o quanto esse tipo de conversa de fundo “edificante” pode na hora soar inadequado, extemporâneo ou simplesmente equivocado, mas o que vale, quando a gente é pai ou mãe, é a aposta no efeito repescagem: à luz de novas e mais complexas experiências, até o comentário aparentemente tolo pode ganhar um novo significado e vir a fazer alguma diferença na vida dos filhos.

Nem tudo o que a gente diz ou pensa vai ser de alguma serventia para eles, mas talvez seja preferível errar pelo excesso do que pela falta.

Educar uma criança inclui transmitir todo um repertório de lições obrigatórias. Há as regras normativas, do tipo certo e errado, que servem como sinais no trânsito da civilização: pare, não ultrapasse. Há as regras de convivência, para que viver em grupo, ou aos pares, seja não apenas viável, mas suave sempre que possível. Há as regras práticas, que protegem contra dedos na tomada, resfriados e arroz empapado.

De resto, o que existe são as variações pessoais, o toque autoral de cada família – uma imensa área livre para o improviso, onde um pedaço qualquer de nós, nosso gosto por viagens ou passeios de bicicleta, pode permanecer para além da nossa própria existência. Ou assim a gente gostaria.

É nesse cantinho das paixões transmitidas de uma geração para a outra que eventualmente se encaixa o interesse pela arte. Filhos de pais que gostam de ler, de ir ao cinema, de ouvir música podem imaginar que a insistência dos pais em torná-los leitores e espectadores qualificados tem a ver com algum tipo de objetivo prático, como arranjar um bom emprego ou ser bem-visto pelos outros, mas na verdade não é nada disso – ou não é apenas isso.

Descobrir a literatura ou o cinema pode não servir para nada mais além de cultivar o espírito e deslumbrar. Mas é exatamente essa capacidade de deslumbramento – sem nenhuma utilidade prática, mas essencial – que muitos pais gostariam de oferecer aos filhos como herança, como um tesouro secreto a ser descoberto no devido tempo.

Por tudo isso, A Invenção de Hugo Cabret, do diretor Martin Scorsese, é o meu favorito neste Oscar. Um filme feito por um senhor de 70 anos, pai de uma menina de 12, a quem ele parece mandar um recado simples, mas precioso: repare bem nas maravilhas que a imaginação pode fazer por você. Uma lição para os olhos e para o coração – para pais e filhos de todas as idades.


25 de fevereiro de 2012 | N° 16990
NILSON SOUZA


Os consertos de Hugo Cabret

Ele conserta relógios, brinquedos, engrenagens e vidas. O filme com maior número de indicações para o Oscar, A Invenção de Hugo Cabret, é uma bela metáfora sobre consertos, mais bela ainda porque tem como cenário uma Paris de contos de fadas, que converge para a misteriosa estação de trem onde vive o menino órfão.

É uma história quase infantil, com potencial para acordar todas as crianças que fomos e somos, sem mascarar demasiadamente a realidade de amarguras e desilusões do mundo adulto. Tudo é simbólico nesta aventura em três dimensões, a começar pelos relógios da estação – um lugar de embarques e desembarques, como lembra de modo autoritário e pragmático o agente de segurança que caça crianças abandonadas com a ajuda de um dobermann ameaçador.

Relógios, tempo, embarques e desembarques. Como canta Maria Rita, tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais, tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai e quer ficar. E tem gente que veio só olhar.

Fui só para olhar e me encantei com as histórias dentro da história filmada magistralmente por Martin Scorsese. A fábula cinematográfica fala também de encontros e desencontros, de solidão e amizade, de encanto e desencanto, mas concentra o foco da câmera num tema de nossos dias: a mudança de paradigmas.

No caso específico, a transição do cinema mudo para o cinema falado, com todos os efeitos colaterais que causou para artistas, diretores e para a sociedade da época.

Não é, também, um drama que nos aflige nestes tempos em que a invenção de ontem já é obsoleta e as profissões mais respeitadas se tornam desimportantes da noite para o dia? E os relógios continuam sua marcha inexorável, agora já não mais como mecanismos complexos, mas, sim, como pequenas magias digitais, localizados em todos os cantos e superfícies, do micro-ondas à tela do computador. São eles que nos dizem a todo instante que o tempo castiga quem não se reinventa.

E as crianças, sempre elas, é que detêm o poder de consertar amarguras e de renovar ruínas com as tintas da imaginação e da espontaneidade. Que o digam os avós de todas as idades. Num dos momentos de maior ilusionismo do filme, que não vou contar para não estragar surpresas, um garotinho da plateia suspirou aliviado e gritou bem alto:

– Era outro sonho!

Cada filme, desde o tempo do cinema mudo, é um outro sonho.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012



22 de fevereiro de 2012 | N° 16987
MARTHA MEDEIROS


A ignorância ignorada

Quando soube que Lindemberg Alves Fernandes havia sido condenado a 98 anos de prisão, senti um mal-estar que não soube de onde vinha. Óbvio que se ele tivesse sido absolvido, o mal-estar seria maior, porém 98 anos, num país onde ninguém fica preso por mais de 30, soou como provocação infantil. “Querem o fim de impunidade? Taí! Fartem-se!” A advogada de defesa do assassino disse que apelará da sentença, pois seu cliente merece e deve pagar pelos crimes que cometeu, mas sem servir de bode expiatório.

Meu mal-estar acabou sendo esclarecido através das palavras da ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, em debate ocorrido em Brasília. Rosário alertou para a sexualização precoce e suas consequências, o que de certa forma tem relevância com o fato: Eloá, a vítima, começou a namorar Lindemberg aos 12 anos, numa relação consentida pelos pais.

Adolescentes vivendo experiências adultas é prática comum hoje. Parecem todos preparados para o prazer, mas na hora de enfrentar crises de possessão, rejeições e demais efeitos colaterais do amor, voltam a ser crianças indefesas, sem as ferramentas para refletir e agir de forma sensata.

Nesse sentido, Lindemberg poderia abater esses 98 anos com os pais dele, e também com os pais de Eloá, comigo, com você, com todos que fazem parte de uma sociedade que parece não se incomodar com o fato de a ignorância estar ganhando tanto espaço.

Crimes passionais são recorrentes, acontecem com pobres e ricos, moços e velhos. O machismo ainda é praga e precisa ser combatido. Mas o ato insano de Lindemberg não foi provocado apenas por machismo, o que tornam exageradas as manifestações da secretária de Política para a Mulher, Eleonora Menicucci, que ao saber da condenação, declarou: “Que grande emoção, que grande vitória. Essa é uma grande notícia para o Brasil e para as mulheres”.

Prefiro me solidarizar com a reação preocupada e lúcida de Maria do Rosário, que enxerga a questão com mais amplitude: o crime desse rapaz, assim como tiroteios dentro de escolas, turismo sexual envolvendo menores de idade, tráfico de drogas ocorrendo abertamente nas ruas, adolescentes pilotando veículos sem habilitação, tudo isso é uma tragédia anunciada: os jovens estão sem um olhar vigilante.

Rosário declarou: “Precisamos não só de governos mais atentos, mas de pais e mães mais atentos, cuidadores mais atentos, sociedade mais atenta”.

O que dói na sentença de 98 anos de Lindemberg é que essa “vitória” é na verdade a revelação do fracasso de todo um sistema familiar que não prioriza o bem-estar mental e físico de cidadãos em formação. Não é culpa dos pais quando os filhos erram, ninguém tem controle e responsabilidade sobre as atitudes dos outros, mas os desatinos proliferam quando há falta de orientação, de apoio, de exemplo, de limite, de estrutura.

O resultado desse abandono é que estamos matando e morrendo por estupidez generalizada.

Bom retorno pra todo mundo - Uma ótima quarta-feira de cinzas pra você.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012



21 de fevereiro de 2012 | N° 16986
CLÁUDIO MORENO


Sinais

E você acredita, leitor, que é possível saber o que o futuro nos reserva? Pois todos os povos da Antiguidade, de um jeito ou de outro, acreditavam – e levavam isso muito a sério. Para eles, a janela para espiar o futuro estava na interpretação adequada dos sinais que algum deus enviava cá para baixo, como recompensa para seus seguidores mais devotos.

Como era de esperar – considerando quem eram os ilustres remetentes -, o primeiro lugar onde procuraram estes sinais foi o céu, o que tornou o homem antigo um grande observador dos fenômenos do firmamento. Raios, relâmpagos e trovões, cometas, eclipses e arcos-íris, tudo podia encerrar um significado oculto, importante para tomar uma decisão ou prever aquilo que estava por vir.

Depois voltaram-se para as aves, mensageiras naturais entre os dois mundos - e o voo das águias de Zeus e dos falcões de Apolo, a direção imprevisível dos bandos de abutres no céu, o pio da coruja e o canto da cotovia tornaram-se objeto de estudo de uma verdadeira ciência de adivinhação.

Vieram em seguida os especialistas em ler a trajetória da fumaça que subia do altar dos sacrifícios, a conformação do fígado dos animais abatidos e outras insignificâncias do gênero. Você ficaria espantado, leitor, se soubesse quantas batalhas Roma adiou simplesmente porque as galinhas sagradas se recusaram a comer os grãos oferecidos pelos sacerdotes!

Até hoje há muita gente que toma o acidental e o imprevisto como um sinal, uma manifestação sensível de um mundo além do nosso. Não os condeno, nem aprovo – cada um enxerga o que quer num céu cheio de estrelas.

Só estranho que não vejam que o normal, o de sempre, o familiar também pode ser sinal de algo, talvez bem mais importante. Pessoas que são capazes de ler a configuração das folhas de chá ou a ordem caprichosa com que as cartas saem do baralho, que podem ver o destino da Babilônia traçado nas entranhas de um cabrito, como diria Borges, não conseguem encontrar sentido algum no que está bem na sua frente...

Lacarrière conta que, ao viajar a pé pela Grécia, teve uma verdadeira iluminação: de repente, do nada, sentiu-se parte de um todo – as árvores, o som claro e distinto de um galho que se quebrava, as vozes dos camponeses, cujas palavras mal conseguia distinguir à distância.

Então, “como a luz que se extingue entre as árvores ao anoitecer”, esse “algo” foi sumindo e a tarde se tornou apenas uma bela tarde como as outras. O sinal, porém, era muito claro, a lembrar que o homem e o mundo, mesmo que por instantes, podem formar um conjunto perfeito, indissolúvel, sem outro significado além do eterno fluxo da vida.


21 de fevereiro de 2012 | N° 16986
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Cena de domingo

Cruzo o viaduto que fica junto à Santa Casa e sempre me pareceu uma vulgar homenagem ao concreto. É quando me volto por acaso para a não menos desgraciosa Praça do Portão. Alheia à rara transparência da tarde despovoada de domingo, uma senhora borda. Usa um daqueles bastidores redondos de madeira, que eu julgava não existirem mais, é destra no manejo da agulha e das linhas.

Aquela senhora poderia estar bem ali no começo do século 19, antes que o ponto se transformasse numa trincheira guerra, com o assédio dos Farrapos. Poderia estar ali na época também já distante quando transportaram para ali a estátua do Conde de Porto Alegre.

É um senhor tristonho, esse homem. Lê-se em sua feições de mármore uma silente desaprovação dos canteiros malcuidados, dos meninos de rua que imergem num sono inquieto sobre gramas devastadas, dos arremedos de uma pífia modernidade, feito o calçadão desleixado, pretensamente tomado por bancos, invadidos por pedintes, que os convertem em camas e depósitos de lixo.

Não é improvável que o conde recorde com saudade o tempo em que o espaço esquecido era o caminho de bondes que partiam da Casa Touro, no rumo dos arrabaldes, povoados por senhores de paletó e gravata, por damas adornadas de chapéus, colares de pérola à fantasia.

Suponho mesmo que o conde, deslembrado de sua sina de monumento, não se desagradasse de lançar uma mirada à senhora que borda nesta tarde de domingo e que ela notasse seu discreto gesto com a infinita dissimulação própria das mulheres.

E que, a começar de então, já não se detivesse o conde em idas, antigas batalhas e campanhas, e compusesse os trajes, ajeitasse as armas, ostentasse um aspecto romântico e marcial. E não deserdasse a senhora do bordado de cúmplices olhares.

E transpusessem os dois, neste domingo deserto de gentes e circunstâncias, os portais sucessivos das idades, tornando a habitar, em paz e amor, entrega e posse, o solar da Rua Riachuelo, no seu máximo esplendor.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012



16 de fevereiro de 2012 | N° 16981
LETICIA WIERZCHOWSKI


Um soco no estômago

Minha amiga Greice e eu estávamos num papo de trabalho quando, de repente, dobramos à direita e começamos a falar de literatura. Sugeri a ela a leitura do belíssimo Crônica na Pedra, do albanês Ismail Kadaré. Por sua vez, Greice indicou-me um livro que estava em cima da mesa, perto de nós. Talvez tivessem acabado de comprá-lo. Greice me disse:

– Ainda não li, um amigo italiano comentou que o autor é muito bom.

Era uma indicação no escuro e, num gesto simpático, emprestou-me o livro. Na verdade, ela tinha lido o livro, sim, mas deixou-me enveredar pelas suas páginas, propositadamente, sem um único comentário seu. (Já eu, leitor, não consegui me segurar, e venho aqui recomendar-lhe efusivamente essa leitura.)

O livro chamava-se Não Tenho Medo. Levei o livro e, em casa, dei uma espiada na orelha: encontrei um texto limpo, uma história sobre um verão no interior da Itália. Guardei-o para as férias, pois a minha leitura de trabalho era muita. As férias chegaram e, numa tarde de chuva, abri Não Tenho Medo.

Parecia-me a leitura perfeita para um domingo cinzento na praia. A história começava assim, de maneira quase displicente, calculadamente fácil, e a narrativa ludibriou-me a princípio. Fui lendo, para ver aonde a coisa ia dar.

E então o milagre da literatura se fez: de uma página para outra, eu me vi imersa numa trama incrível, angustiosa, verdadeiramente assustadora – como uma tarde de sol de repente encoberta por nuvens de tormenta, o livro deu uma guinada fascinante –, e avancei com a respiração entrecortada, grudada na poltrona; eu, sim, cheia de medo, alheia à chuva, ao verão, ao domingo, aos meus filhos.

Só levantei do sofá quando terminei o livro, três horas depois. A história é narrada pelo pequeno Michele, um menino de nove anos, morador do vilarejo de Acqua Traverse – um lugarzinho ao sul da Itália, com umas poucas casas, um único armazém, um povoado pobre perdido entre os trigais.

Michele, sua irmãzinha Maria e os amigos Caveira, Salvatore, Remo e Bárbara passam os dias sem nada para fazer, o verão de 1978 é escaldante, e as férias são intermináveis.

Ele andam de bicicleta, jogam bola e fazem apostas idiotas. Mas, num inocente passeio em grupo pelos campos, a vida de Michele muda para sempre. Não há mais a dizer, caro leitor. Um soco no estômago é pouco. Niccolò Ammaniti nos joga de um precipício. E nunca mais acabamos de cair, até a última página.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012



14 de fevereiro de 2012 | N° 16979
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Os nomes e as coisas

Não tem gaúcho que passe a fronteira com Santa Catarina pelo Litoral e não perceba os nomes peculiares de algumas localidades ali – perceba e faça troça, aliás. O senhor sabe quais são, pois não? São Turvo, Ermo e Sombrio. Em geral a piada consiste apenas em repetir os três nomes, dando à voz um tom de brincadeira de mistério, de filme de suspense. Pronto: já nós todos rimos um pouco, sorrimos, no mínimo.

Eu também, claro. Mas calhou que a patroa descende diretamente de gentes sombrienses, de forma que faz já uns quantos anos frequento o Sombrio com regularidade. Cidade amena, agradável como uma cidade do interior (ao menos para quem não mora lá, digo, porque sei que muita gente foge de cidade pequena porque lá não encontra alguns dos valores ao mesmo tempo mais fortes e menos óbvios da cidade grande, como o anonimato).

Um dia indaguei sobre a origem do nome (eu sério, mas com a piada na cabeça: Eeeermo, Tuuuurvo, Sombriiiio). Então soube que a cidade se chamaria Rio da Laje, ou algo aparentado, porque há esse rio ali; mas parece que por força da determinação de um padre, tempos atrás, acabou definido o nome Sombrio, em referência à vasta sombra que um morro ali perto espalha sobre a lagoa onde deságua o Da Laje.

Em suma: sombrio é sombra grande, sem nada que ver com algo de aspecto assustador. Poderia dizer, dificultando e talvez embelezando um pouco, que sombrio é a qualidade abstrata que toda sombra produz concretamente.

Turvo é um rio de águas turvas, originalmente, e Ermo é um lugar deserto. Quero dizer: também nessas duas designações atuou um simpático espírito prático, pragmático, que batiza os lugares conforme algum aspecto do uso, entranhado na vida comum.

Simples assim. Nomes sem frescura, nomes despretensiosos, como, por exemplo, rua da Praia, rua da Olaria, volta da Cobra, Três Cachoeiras, Anta Gorda. Nomes como Cidreira, Capão da Canoa, Torres, todos designando aspectos práticos, de uso, ou nomes de aspecto ancestral como os que os índios tiveram tempo de dar, Tramandaí, Guaíba, Itapoã.

Mas depois veio o planejamento e a publicidade, e entraram em moda nomes utópicos, como Atlântida e Xangri-lá, a designar certas fantasias, ou pior ainda como ocorre hoje em dia nos antipáticos condomínios fechados, vítimas de outras fantasias, que se chamam Condado das Pinoias, Islas del Cocuruto, Villa de Tuta-e-meia, quando não Palmas de Mixaria.


14 de fevereiro de 2012 | N° 16979
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Longe do Paraíso

Uma amiga diz que tenho cara de confessor. Segundo sua interpretação, que nem Freud explica, minhas feições comuns, um certo jeito quietão, um aspecto geral inofensivo despertam nas pessoas um invencível desejo de entregar confidências.

Não lhe falta alguma razão. Já ouvi segredos de gentes absolutamente desconhecidas, o que me causou ora surpresa, ora um mal-estar íntimo, que busco esconder como posso.

Viajava uma vez da Alemanha para a Suíça, quando os passageiros foram avisados, numa escala do trem em Bregenz, que uma avalanche bloqueava a linha quilômetros além e que perderíamos no mínimo três horas. Os passageiros estavam convidados a almoçar a bordo.

Escolhi uma mesa solitária do vagão-restaurante, ordenei um Dimple e examinava o cardápio quando uma jovem senhora pediu licença para ocupar a cadeira em frente.

Conversamos sobre temas educadamente triviais, quando ela disparou de repente:

– Me sinto perdida e só. Falo do que me espera ao chegarmos à estação terminal.

E então imergiu numa história desoladora, que a fazia amarga e órfã de esperança. Não vou repeti-la aqui. Basta dizer que a aguardava em Zurique uma situação-limite, uma espécie de muro entre o que fora até ali e o que seria depois. Existem momentos que subvertem uma vida inteira, e o mais cruel: são inevitáveis.

Desde o início adivinhava por que ela tinha me confiado suas angústias. Jamais tornaria a me ver. Se me permitem a gasta metáfora, queria um ombro para chorar. Dirigi-lhe umas palavras de conforto, em que nem eu acreditava, em coquetel com dramas idos e próprios, mais umas citações de leitura que pesquei no fundo da memória.

Ela me escutou calada enquanto bebericava o café. E aí ergueu-se sem aviso e se foi.

Não atino até hoje como foi o remate de seus males.

Só tenho certeza de que sou um péssimo confessor. A ninguém absolvo, para ninguém recomendo orações ou penitência, a ninguém prometo felicidade eterna.

Mesmo porque minha única certeza é a de que o Paraíso fica muito longe, talvez além da estrela Aldebarã.

sábado, 11 de fevereiro de 2012



11 de fevereiro de 2012 | N° 16976
NILSON SOUZA


As lágrimas do general

Um militar com nome de poeta protagonizou esta semana um episódio emblemático da vida brasileira. O general Gonçalves Dias, da 6ª Região Militar, comandava a operação de cerco à Assembleia Legislativa de Salvador, invadida por policiais grevistas.

Num dos momentos de tensão, ele discursou para os manifestantes e garantiu que não haveria combate, não haveria invasão e que tudo seria resolvido de forma pacífica. Como era dia de seu aniversário, ganhou um bolo dos grevistas e emocionou-se diante das câmeras da tevê.

No outro dia, foi afastado da missão pelo comando do Exército e substituído por um desses oficiais de fala empostada e camisa arremangada. General não chora, onde já se viu isto. O soldado é superior ao tempo. Missão dada é missão cumprida. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Decididamente, as lágrimas do general e seu discurso pacifista não combinavam com os chavões dogmáticos do militarismo.

Aprende-se muito na caserna. Estive lá por um curto período e considero a experiência valiosa na formação de um jovem. A disciplina, o espírito de tropa, o cultivo de hábitos saudáveis, os exercícios físicos, o fortalecimento moral e até mesmo a instrução militar são valores que ficam para toda a vida.

Mas também tem coisas ruins, como a humilhação de subordinados por superiores sociopatas, o culto da obediência cega e outros comportamentos autoritários que estigmatizam os quartéis.

Pelo sim, pelo não, cumpri o tempo obrigatório de serviço militar e pedi permissão para me retirar, batendo a devida continência. Aprendi a manejar armas e espero nunca mais colocar as mãos numa. Se a vida militar me ajudou a tomar decisões, esta é irrevogável.

Ouvi, muitas vezes, sob sol inclemente ou chuva torrencial e em posição de sentido, que o soldado é superior ao tempo. Não parecia. De vez em quando um mais frágil entre nós dava passos trôpegos e desabava no chão. O corpo humano, embora os jovens custem a acreditar nisso, tem limites. A mente e o coração também.

O general certamente não ganhou as suas estrelas chorando na frente dos superiores. Mas, como ensina o Eclesiastes, há tempo para todo o propósito debaixo do céu. E o tempo, só pode ter sido ele, amoleceu o coração do veterano militar. Os comandantes não gostaram.

Mas, se serve de consolo, brasileiros como esse escriba aplaudem o general emotivo. E, parafraseando o poeta que lhe emprestou o nome, ouso dizer: chorar pela paz, aos fortes e aos bravos, só pode exaltar.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012



09 de fevereiro de 2012 | N° 16974
ARTIGOS


O Rio Grande precisa reagir!

Falo como dirigente esportista e como deputado, interessado e responsável pela defesa de temas que importam a todo o Rio Grande.

Muito mais do que uma iniciativa ligada a um clube, o conjunto da Arena do Grêmio significa o maior empreendimento dos últimos anos no Estado, depois dos investimentos que estão sendo feitos no Porto de Rio Grande. Sejam quais forem as motivações para ser contrário a esse projeto, nunca podemos perder de vista sua grande importância.

Com a Arena, o Bairro Humaitá, historicamente esquecido, será revitalizado. Haverá geração de empregos e renda, pois esse empreendimento contará com shopping, restaurantes, bares, centro de convenções e serviços de hotelaria que funcionarão todos os dias da semana, atraindo pessoas e movimentando a vida em todas as suas instâncias.

Quem pode ser contra isso? Nós, homens públicos, a despeito de nossas convicções, precisamos saber onde estão as oportunidades de melhoras coletivas, estejam elas nos movimentos comunitários, estejam nos grandes empreendimentos.

Neste momento, o Rio Grande precisa de todos nós, pois está a perigo. Os investimentos do poder público para a Copa do Mundo estão atrasados.

Em relação à Arena, se as verbas necessárias para as obras viárias no seu entorno não chegarem até março, elas não ficarão prontas no momento da inauguração do estádio.

Além disso, corremos o risco de não recebermos a Copa. Por quê? Porque nos falta mobilização política. E, o que é pior, sobra má vontade e oposição inconsequente. Sobra, sempre, essa luta fratricida que nos consome as energias. O governador Jaques Wagner arregimentou o esforço político e popular e conseguiu incluir a Bahia na Copa das Confederações.

E nós, os gaúchos? O que estamos fazendo?

A perda da Copa das Confederações, em 2013, trará imenso prejuízo econômico para todo o Estado. Precisamos tentar reverter essa decisão. E se o Inter não conseguir resolver seus problemas em relação ao estádio? Temos plano B ou atiramos a toalha? Quem paga, depois, o preço dessa omissão? Afinal, queremos protagonismo ou atraso para o Rio Grande?

Por que não nos mobilizamos nesse momento e fazemos a diferença? Agora! Uma grande mobilização que exija respeito e atitude do governo federal.

Não vamos deixar que a história do caranguejo, daquele que sempre puxa para baixo, se torne a narrativa símbolo do espírito gaúcho. É hora de dizer: caranguejos? Não!

Sejamos decisivos nessa luta! E que sirvam nossas façanhas de reconciliação para nós mesmos.

*Presidente do Grêmio e deputado estadual (PPS) - PAULO ODONE*

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012



07 de fevereiro de 2012 | N° 16972
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A garota do piano

Há uma época na vida de pessoas como você em que nada é improvável. Você pode vir a ser a versão moderna de Sócrates, de Da Vinci, de Camões, de Shakespeare, de Cervantes, de Rembrandt, de Van Gogh, de Bach, de Beethoven, de Freud ou de Einstein.

Basta você escolher o caminho, posto que é, idealmente, feito das mesmas células, de idêntico cérebro, de similares sangue e sonho.

Comigo aconteceu ali pelos 16 anos. Me dava uma vertigem pensar que todos os caminhos estavam libertos e desimpedidos, que, se quisesse, seria o maior filósofo, o maior gênio, escritor, pintor, músico, escafandrista da alma ou do universo.

Sucede, no entanto, que vivemos todos numa sociedade desde o início dos tempos contaminada pela vocação da rotina.

Vem um instante em que você arquiva seus devaneios, recrutado pelo duro ofício da sobrevivência. É aí que decide tornar-se bancário, farmacêutico, odontólogo, carpinteiro, médico, quiromante, arquiteto, bombeiro hidráulico. É também o momento em que lhe surge um encantador palminho de rosto, no qual supõe reconhecer a eleita de seu coração, a imagem de seus desejos, a alma gêmea de que falavam os poetas de antigamente.

É mais ou menos nesse ponto que você transita dos 25 aos 50 anos. Seus dois filhos passaram no vestibular de uma universidade paga. O governo engole algo além de um terço de tudo o que você ganha. Jamais se esgotam as prestações do carro ou do apartamento. Cada visita ao supermercado é um rude calço em seu orçamento, embora os ministros jurem que temos uma inflação de Primeiro Mundo. De súbito, você arquivou seus projetos de vida.

Num dos edifícios próximos, tem uma garota que se exercita pontualmente nas teclas de um piano. Às vezes desafina, mas não desiste por horas a fio.

No dia em que a encontrar pessoalmente, vou dizer: jamais desista de ser uma compositora ou uma concertista. Vou dizer que não perca o sentido de sua existência. Pois tudo mais é rotina, tudo mais é nada. Nada vale mais do que um sonho realizado.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012



06 de fevereiro de 2012 | N° 16971
Davi Coimbra


TUDO QUE O INTER QUERIA

O máximo e o mínimo

O empate em 2 a 2 no Gre-Nal de ontem, no Olímpico, era tudo que o Inter queria. Ou quase tudo: melhor, só mesmo a vitória. Porque o Inter entrou em campo com camisa alternativa e os 10 jogadores de linha reservas, estreou (bem) mais um argentino e descansou seus titulares para a Libertadores. Já o Grêmio não evoluiu no Campeonato Gaúcho, não aproveitou a oportunidade para bater o rival e ainda perdeu seus dois laterais por lesão.

Mas no início o Grêmio fez valer de sobejo a vantagem de jogar com seus titulares. O time de Caio Jr se impôs com naturalidade desde o primeiro minuto. E não é força de expressão – a um minuto e meio, Marquinhos levantou a bola para Moreno, que, no meio da área, cabeceou para trás, nas mãos de Muriel. Esse lance de precoce foi um símbolo da proposta de jogo do Grêmio. Moreno fixou residência na área do Inter, como se fosse um farol para os jogadores de meio-campo e para os laterais, que não pararam jamais de procurá-lo.

Aos três minutos, Julio Cesar cruzou uma bola para ele, e Fabrício salvou no último instante para escanteio. Um minuto depois, a jogada se repetiu. Desta vez Moreno conseguiu tocar na bola de cabeça, mas ela saiu fraca. Aos sete, Moreno cabeceou de novo, Leandro tocou para o gol e o árbitro assinalou (corretamente) impedimento. Aos 14, mais uma vez a bola chegou a Moreno na marca do pênalti, ele bateu de voleio e a bola explodiu na cabeça de Bolívar. Aos 19, Moreno chutou de perna esquerda, para fora.

Moreno, Moreno, Moreno. Ele era o dono do jogo. Mas, para a surpresa de Moreno, do Grêmio, dos gremistas e talvez até dos colorados, foi o Inter que abriu o placar. Aos 21 minutos, Dátolo recebeu a bola na intermediária, mandou um espingardaço de perna esquerda, o tiro ricocheteou em dois jogadores do Grêmio e entrou. Não foi culpa de Victor, foi mérito da canhota poderosa de Dátolo. Esse meia-esquerda argentino, que fez sua estreia no Inter, foi a melhor notícia do clássico para a torcida colorada. Mostrou habilidade, interesse e agressividade.

De resto, o meio-campo do Grêmio dominou o setor sem sobressaltos, apesar da sonolência de Marco Antônio. A primazia gremista ocorria graças a Fernando e Marquinhos, a dupla de volantes que fazia o jogo começar com qualidade. Às vezes até se aventuravam no ataque, como um lance aos 36 minutos do segundo tempo em que Fernando passou em velocidade por metade do time do Inter e quase marcou. Mas quem marcou mesmo foi o outro volante.

Foi Marquinhos quem, aos 27 minutos, cobrou a falta que devia ser um levantamento, mas que acabou entrando no gol do Inter, empatando o Gre-Nal, Quatro minutos depois, em nova cobrança de falta, Moreno foi empurrado por Josimar dentro da área: pênalti. Moreno, que no meio da semana disse ter sonhado que marcaria um gol no clássico, pediu para cobrar. Cobrou e o sonho se tornou realidade.

O primeiro tempo terminou com o Grêmio sofrendo duas perdas graves: os laterais Mário Fernandes e Julio César saíram por lesão, Julio César no joelho, Mário Fernandes no ombro, podendo ter que passar por cirurgia. O Inter voltou do intervalo mais animado, mais agudo, tentando jogar e não apenas se defender.

Deu certo. Aos poucos, os reservas do Inter foram se acomodando na partida, foram se tornando mais ousados. Aos 29, numa cobrança de escanteio da esquerda, Bolívar cabeceou no meio da área e empatou a partida.

O Grêmio seguiu levemente melhor, mas aí o único titular do Inter entrou em ação. Muriel praticou três defesas cinematográficas em três cabeçadas: Moreno, aos 30 minutos, e Kleber, aos 45 e aos 49. O jogo terminou com a torcida gremista vaiando o próprio time, inconformada pelo empate com os reservas do rival.

O que é um retrato do jogo: o Grêmio fez o máximo que pôde, e não foi suficiente; o Inter fez o mínimo necessário, e de mais não precisou.

David Coimbra

sábado, 4 de fevereiro de 2012



05 de fevereiro de 2012 | N° 16970
MARTHA MEDEIROS


Empregadas Domésticas

Ouvi em algum lugar que o número de empregadas domésticas tem diminuído de ano a ano no Brasil. É uma boa notícia. A oferta de empregos aumentou e essas profissionais estão buscando colocação em outros setores, onde possam ganhar mais e alinhavar um plano de carreira.

Pode ser bom inclusive para seus empregadores, que terão que se adaptar a um novo estilo de vida: eles próprios farão os afazeres domésticos, convocando a família inteira para colaborar. Ninguém morre se tiver que cozinhar e lavar uma louça, e me parece digno que os filhos entrem nesse mutirão, se preparando melhor para a vida. Hoje não mexem um dedo porque tem uma Maria que faz tudo por eles.

Pois a Maria, segundo estatísticas, não quer mais ser empregada doméstica, e sim ter um status mais elevado. Quem sabe, ser uma secretária. De fato uma secretária. Muitas pessoas chamam suas empregadas de secretárias, na boa intenção de prestigiá- las. Acho estranho. Então devemos chamar as verdadeiras secretárias de quê? Empresárias?

Pessoas que promovem verbalmente suas funcionárias acreditam estar valorizando-as, mas parece o contrário: demonstram que ser empregada doméstica não é honroso, a ponto de fingirem que elas são outra coisa.

Se eu me referisse à minha empregada como "secretária", creio que estaria revelando desdém a sua real função. Seria o mesmo que chamar o peão-de-obra de engenheiro ou a garçonete de chef de cozinha. Um upgrade de mentirinha.

Algumas empregadas domésticas ainda não são totalmente alfabetizadas. Não dominam o uso do computador. Não controlam a agenda profissional de seus patrões. São exímias cozinheiras, arrumadeiras, braços direitos das famílias, mas não fazem o que uma secretária faz.

Assim como secretárias podem não saber fritar um ovo e nem passar direito uma camisa. Uma não substitui a outra. Umanão é melhor que a outra. Ambas são imprescindíveis, cada uma em seu ambiente de trabalho.

Se a palavra “empregada” parece pejorativa, pode-se chamá-la de funcionária, que é o que ela é também. Já chamá- la de secretária apenas expurga a culpa do patrão, que não quer parecer um senhor do engenho, do tipo que tem escravos. Ou seja, ele se utiliza de um eufemismo para provar que respeita todos os direitos trabalhistas da sua funcionária.

Nem se dá conta de que esse pudor com a palavra empregada talvez desmereça as profissionais que tiveram a chance de estudar mais e que fizeram cursos preparatórios para trabalhar numa empresa, e não numa casa de família.

Secretárias não fazem trabalho doméstico, e sim de escritório. Apesar de eu nunca ter lido nenhuma pesquisa a respeito, tenho a impressão de que elas devem se sentir desconfortáveis ao verem as duas funções confundidas.

Eu, às vezes, me confundo. Outro dia me disseram: vou te levar lá em casa para provar o suflê de queijo que a minha secretária preparou. Logo pensei: coitada, fazendo hora extra.


04 de fevereiro de 2012 | N° 16969
CLÁUDIA LAITANO


O Grito da Ipiranga

Moro no ainda simpático Mont’Serrat, um bairro, como tantos outros de Porto Alegre, que vem sendo diligentemente reflorestado por edifícios. Aos moradores mais antigos, resta conformar-se com os horizontes perdidos ou chamar o caminhão da mudança. Como a segunda opção está fora de questão por enquanto, sou dessas moradoras que encaram cada casa demolida com a resignação de quem percebe uma ruga ou um novo fio de cabelo branco.

Cada jardim de família substituído por um projeto padrão de paisagismo, cada fatia de chão que deixa de ser tocada pelo sol é uma cidade nova que se impõe à antiga. Pouco a pouco, a cidade em que a gente nasceu e cresceu vai sendo substituída por outra, não necessariamente melhor ou pior, mas de certa forma estrangeira ao tempo da nossa memória. Trata-se de um espantoso movimento migratório de quem nunca saiu do mesmo lugar: um dia você percebe que, sem querer, mudou de cidade (ou a cidade mudou de você).

Nos últimos meses, um curioso modelo de construção tem pipocado nas ruas do Mont’Serrat e das vizinhanças – um caixote em geral cinzento, com um ou dois andares de altura e grandes janelões de vidro, construído especificamente para abrigar lojas e outros empreendimentos comerciais.

O negócio chama a atenção não tanto porque é feio, mas pela reprodução fordiana da fachada: tanto faz a rua onde está instalado, o prédio vizinho ou o negócio que vai funcionar ali (loja de móveis, pet shop, funerária...), o projeto é sempre o mesmo. Seria uma assinatura artística – um estilo, digamos – se não fosse evidentemente apenas o resultado da combinação de funcionalidade com administração racional de custos. Pragmatismo arquitetônico levado às últimas consequências: a produção em série de edifícios.

E a quem deveríamos culpar pela cruel invasão dos caixotes envidraçados a não ser a nós mesmos? Os caixotes estão aí porque parecem sensatos, modernos, eficientes. Não importa que a cidade vá ficando com aquela aparência anódina das metrópoles erguidas sem planejamento: Porto Alegre desenvolveu uma evidente vocação para a indiferença estética.

Logo que começaram os debates sobre o guard-rail da ciclovia, imediatamente apareceu gente reclamando que era perda de tempo discutir a beleza do projeto em uma cidade com tantos outros problemas para resolver. Se funciona, e cabe no orçamento, está de bom tamanho.

Não poderia haver melhor metáfora da nossa persona como grupo social: por aqui, com assustadora frequência, beleza (assim como arte e cultura) é confundida com frescura. Por sorte, neste caso, a prefeitura teve o bom senso de ouvir o clamor das redes sociais e decidiu consultar arquitetos antes de sair plantando toras de eucalipto às margens do Dilúvio.

Não podemos desperdiçar essa surpreendente eclosão de bom senso. Porto Alegre deveria aproveitar esse momento histórico de rebeldia estética para instalar uma espécie de Brigada da Beleza – um batalhão de arquitetos, artistas e outros profissionais ungidos com a nobre missão de proteger nossa cidade da bárbara invasão das toras de eucalipto, dos caixotes envidraçados, da feiura eficiente. Que o guard-rail da ciclovia seja celebrado como o nosso Grito da Ipiranga.