sábado, 25 de novembro de 2017



25 DE NOVEMBRO DE 2017
LYA LUFT

O tempo, amigo feroz

É uma das esquisitices do nosso tempo que na época em que mais tempo vivemos haja tanta dificuldade em relação ao que se convencionou chamar velhice. Palavras significam emoções e conceitos, portanto também preconceitos. Por isso, quero falar de minha implicância com a implicância que temos com os vocábulos - e a realidade - velho, velhice.

E, como gosto de historinhas, algumas, como esta, reais, lembro um episódio com Tônia Carrero, ainda uma linda mulher aos oitenta anos, na casa de minha comadre Mafalda Verissimo. De repente, alguém lhe perguntou: "Tônia, chegando aos oitenta, como você lida com a velhice?". Nós todos gelamos, mas ela, em pé no meio da sala, possivelmente com um cálice de champanhe na mão, respondeu sem hesitar: "Ora, eu acho ótimo. Porque a alternativa seria a morte".

A presença de Tônia era sempre uma festa naqueles tempos. E nós, eu então com mal uns cinquenta, achei maravilhosa aquela presença de espírito, e aquele pensamento. Naturalmente, nem ela, nem ninguém gostaria de envelhecer com as doenças, perdas e fragilidades que tantas vezes nos acompanham quando o número de anos cresce assustadoramente. Mas que, pelo menos, não sejamos velhos chatos e sombrios, eternamente reclamando de tudo e de todos.

Quando não pudermos mais realizar negócios, viajar a países distantes ou dar caminhadas, poderemos ainda exercer afetos, agregar pessoas, ler bons livros, observar a humanidade que nos cerca, eventualmente lhe dar abrigo e colo. Para isso, não é necessário ser jovem, belo (significando carnes firmes e pele de seda...) ou ágil, mas ainda lúcido. 

Ter adquirido uma relativa sabedoria e um sensato otimismo - coisas que podem melhorar. A mim, o que me aborrece é o preconceito evidente com que cercamos velho, velhice, como se fossem uma enfermidade, um incômodo para os outros, a demência inevitável, a chateação: "Ah, tenho de ligar para a mamãe, poxa, tenho de visitar o velho".

Isso não é apenas grosseria, mas grave pobreza emocional. Viver deveria ser poder celebrar sempre mais um dia: o nosso, e dos que amamos. E, em momentos de dor indizível, redobrar sem espalhafato, com delicadeza, o amor de que somos capazes.

LYA LUFT

25 DE NOVEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Humor é coisa séria

Um dia desses, um amigo me enviou uma piadinha por WhatsApp, e eu não respondi nada, que é o máximo de educação que eu consigo manter diante de uma foto bizarra acompanhada de um trocadilho infame. Ele deveria ter se tocado que não agradou e deixado por isso mesmo, mas resolveu cobrar pelo meu silêncio: pô, humor tem que ser sempre inteligente?

Que eu saiba, só existe humor na inteligência. Na falta dela, reside a idiotice.

Eu sei, eu sei. Estou parecendo extremamente mal-humorada, mas, diante desta histeria coletiva de se mandar duzentas mil gracinhas para os grupos de WhatsApp, é preciso ficar atento. Quando fazemos parte de uma turma íntima, vá lá, a idiotice pode funcionar como uma válvula de escape para as tensões do dia a dia, além de ser uma forma de manter contato - a troca de piadas tolas substitui a cervejinha no fim de tarde que não se teve tempo de tomar. Em todo caso, é bom cuidar para que a bobajada intramuros não vire alienação irreversível.

Humor bom é humor crítico. Pense na Escolinha do Professor Raimundo e no Porta dos Fundos, por exemplo. Duas épocas e duas linguagens completamente diferentes, mas a crítica está ali, no subtexto. Uma é mais popular e alegórica, a outra é mais ácida e realista, mas ambas prestam homenagem à sua, à minha, à nossa inteligência.

O humor combate a hipocrisia. O humor é uma via de transcender a mediocridade. O humor estimula o raciocínio e a reflexão. O humor desestabiliza. O humor ridiculariza o status quo. O humor empodera movimentos ("Homem não gosta de calcinha bege. Poxa, manda ele usar uma cor-de-rosa então"). O humor nos insulta e nos obriga a rir de nós mesmos, nos reposicionando no mundo de uma forma menos solene e mais humana. É o antídoto mais eficaz contra a arrogância.

Inverter o estabelecido: transformar o notável em banal, o defeito em virtude, a derrota em vitória. O olhar renovado para velhas convicções desperta a nossa consciência e solta o nosso riso, seja através da paródia, da sátira, da imitação, da ironia, do exagero, do besteirol. Até mesmo aquilo que é engraçado sem querer (o uso de um chapéu totalmente sem noção, por exemplo, ou se desequilibrar e cair da cadeira) tem uma espontaneidade que quebra o protocolo.

Qual a quebra de protocolo que há no trocadilho? É um humor tão simplório que até constrange.

Pra quem deseja ir mais fundo no assunto, vale a pena ler o livro A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar, do português Ricardo Araújo Pereira. Ajuda a entender que o humor serve para acordar os neurônios, não para anestesiá-los, e que a ignorância só produz sorrisos amarelos.

MARTHA MEDEIROS


25 DE NOVEMBRO DE 2017
CARPINEJAR

Capitão Gancho


Quando está sozinho, os braços são um problema para o homem. Um estorvo. Ele não decidiu muito bem o que fazer com os gestos. Vacila no controle da marionete de si mesmo. Quer manter uma postura séria, compenetrada e não relaxa o tronco. Costuma escolher duas posições de defesa: braços cruzados e mãos no bolso. Neste momento, metade dos homens do universo está com a mão no bolso e a outra metade de braços cruzados.

O que o macho gostaria é de pegar tudo com os pés. Seu maior desejo é nunca parar de jogar futebol e fazer embaixadinha com objetos e roupas. Se possível, inventando um gol na cesta da lavanderia ou na gaveta.

Se largo uma cueca no chão, jamais vou me abaixar para buscar, raciocino o custo-benefício da situação, vejo que será mais fácil não me mexer e ergo a roupa com o dedão. Jogo para cima e seguro depois em festa, como se fossem cupons de urna de shopping no Natal.

Não é uma atitude isolada. Tento abrir portas com os pés, mexer na geladeira com os pés, segurar elevador com os pés, recolher xampu com os pés. Os pés são sempre mais rápidos. É também uma forma de me divertir, de manter a infância da molecagem, de realizar malabarismo de circo, de ser engraçado. Até para tirar ou colocar o tênis dispenso as mãos. Vou enfiando os pés e pulando pela casa esperando me encaixar na fôrma.

A praticidade não me seduz, opero por desafios nas atividades prosaicas e domésticas. É um rapel estranho pelas paredes do apartamento. Realizo simpatias e cumpro metas - falta apenas me fantasiar de Capitão Gancho.

Quem não gosta nem um pouco das minhas brincadeiras é a minha esposa. Vive cortando o meu barato. Acha que sou preguiçoso e não entende nada do meu incurável universo infantil. As mãos são o fracasso do homem, somente usadas em último caso.

CARPINEJAR



25 DE NOVEMBRO DE 2017
PIANGERS

O futuro é feminino

Não faz muito tempo perguntei pro meu amigo Gustavo, pequeno empresário, quantos funcionários homens ele tinha. Nenhum, ele me disse. E completou com uma frase que me ficou marcada:

- O futuro é feminino.

A lógica é que teremos cada vez mais mulheres no mercado de trabalho. Cada vez mais mulheres optam por não ter filhos; cada vez mais mulheres assumem cargos de liderança; cada vez mais os trabalhos que exigem força física são substituídos por máquinas; mulheres são maioria nas universidades brasileiras; mulheres vivem mais; mulheres morrem menos de causas violentas e cometem menos crimes, por isso são presas em menor número do que os homens. 

Ao contrário do que se diz, mulheres dirigem melhor do que os homens, cometem menos acidentes e, por isso, pagam menor valor no seguro do carro. Mulheres são melhores gestoras, e pesquisas indicam que cuidam melhor do dinheiro. (Curiosidade: na crise mundial de 2008, a Islândia entrou em colapso quando todos os bancos do país quebraram, menos um: que era totalmente administrado por mulheres.)

Estive em Brasília palestrando há alguns meses e tive a chance de conversar com o embaixador sueco no Brasil, Per-Arne Hjelmborn. Quando perguntei se as mulheres usavam mesmo a licença parental de um ano e quatro meses ele disse: "Geralmente as mulheres voltam antes ao trabalho. Mais de 80% das mães suecas trabalham. Muitos pais acabam ficando em casa com as crianças depois que as mães voltam para o serviço", ele disse. Uma amiga que mora no Canadá contou que levou o filho em um parque e, ao olhar ao redor, percebeu que era a única mãe no local. Todas as crianças estavam acompanhadas de seus papais.

Pois então, o que sobrará para nós, homens? Nos tornarmos mais femininos. O leitor machão já ficará horrorizado, se imaginando de vestido e blush, mas não é isso. A verdade é que nós, homens, teremos que desenvolver nosso lado mais sensível e amistoso, controlar nosso lado competitivo e hostil. O futuro é compartilhável e abundante, criativo e sociável. Nós, trogloditas reclusos, trabalhadores mecânicos, provedores robóticos, transformadores de cerveja em mijo, musculosos abridores de potes de pepino, estamos ultrapassados. Que venha o futuro. E que chegue logo.

PIANGERS

sábado, 18 de novembro de 2017



18 DE NOVEMBRO DE 2017
CARPINEJAR

Receita para manter a sogra longe

Você não suporta a sogra insistentemente por perto?

Não tem mais paciência para vê-la aparecendo de repente e assumindo o controle de casa?

Você conversou com o marido, pediu limites e providências e nada foi feito?

Você descobriu que está casada com um filhinho da mamãe, de sangue de barata, e que ele jamais vai se opor à invasão do espaço e desembaraçar a confusão de papéis?

Você já está no último auge da escravidão, quando ela abre a geladeira como uma fiscal da vigilância sanitária para verificar o que tem e determina o que deve ser descartado e o que deve subir no congelador?

Tenho a receita de olho de sogra, a simpatia para ela nunca mais incomodar.

Pense comigo. Não funcionou a clara oposição: ou ela ou eu, pois ele ainda continua pendendo para as razões e tirania materna, sob a alegação de que ela somente pretende ajudar. Não surtiu efeito o boicote ao sexo, a birra, as intermináveis discussões de relacionamento chamando atenção para a manutenção da privacidade e dos segredos, sem que sejam partilhados com a matriarca.

A fórmula é realizar exatamente o contrário: seja a melhor amiga da sogra. Convide-a para todos os eventos a dois, até para aquele restaurante romântico que costumam frequentar uma vez por semana. Só fale dela para o marido durante dois meses seguidos, elogiando-a, defendendo-a, achando estranho que ele não vem dando a devida atenção à própria mãe, que ele precisava agradecer, com esforço redobrado, o mérito do nascimento e da vida. Compre presentes de decoração estranhíssimos, com bilhetes açucarados: "Segui o conselho de sua mãe, um exemplo de mulher!".

Transforme a admiração em obsessão. Traga a sogra para assistir a uma longa série de Netflix de noite com direito a cobertor no sofá e pipoca. Desligue o celular e faça longas incursões com ela pelos shoppings - ao chegar tarde, o esposo se sentirá excluído dos planos de passeio e perguntará "onde estavam?". Confidencie manias na cama para a sogra e depois encerre o assunto com muitas gargalhadas quando ele se aproximar.

Trate de ser mais filha que o filho. Nenhum marido aguenta disputar a mãe com uma irmã. Ele romperá os laços com a mãe por ciúme e desfrutará de longeva exclusividade. Ainda poderá colocar a culpa nele, telefonar para a sogra dizendo não entender o que está acontecendo, que ele é um filho ingrato e que ela foi sempre excelente e não merecia nem um pouco tamanha desconsideração.

CARPINEJAR

18 DE NOVEMBRO DE 2017
PIANGERS

Os tempos mudaram

Não faz muito tempo eu e minha esposa resolvemos viajar pela primeira vez sem as crianças, decisão que nos tomou tempo e discussões. As meninas teriam que ficar com as avós, e nosso medo era que de que as senhorinhas não dessem conta do recado. Que elas não soubessem alimentar direito nossas filhas. Que perdessem o horário da aula de natação. Que permitissem assistir televisão demais. Que dessem bolacha e suco artificial de jantar, algo que as duas fizeram comigo e minha esposa quando éramos crianças nos anos 80.

Essas senhoras, as avós, não entendem que as coisas mudaram. Na época que nos educaram o mundo era outro, menos violento e mais permissivo. Minha mãe tinha um Fusca e permitia que eu viajasse no vão atrás do banco de trás do carro, sem cinto e muito menos cadeirinha. Minha esposa conta que sua mãe permitia que ela saísse de casa depois do almoço e só voltasse às nove horas da noite, com a roupa suja e o joelho ralado. Imaginem isso acontecendo hoje em dia! Prendam estas senhoras!

Por isso nossa preocupação. Dizem que o trabalho dos avós é destruir todo o trabalho dos pais, e isso seria inadmissível. Levamos meses para que a minha filha de 12 anos se interessasse por matemática, através de um canal do YouTube que é engraçado e informativo ao mesmo tempo. Nossa filha de cinco anos está comendo um prato inteiro de comida no almoço, basta darmos as colheradas uma a uma na boca. Imagina estragar tudo isso deixando as meninas com as avós.

Durante a viagem imaginamos as avós permitindo tudo, comida em cima da cama e pular corda no meio da sala. Imaginei minha filha pequena indo sozinha à padaria. Meu deus! As avós não sabem como é o mundo hoje, cheio de perigos e gente má. Nos anos 80, a última década em que minha mãe cuidou de uma criança, era normal as pessoas fumarem. Só o que me falta a vovó oferecer um Marlboro pra minha filha mais velha!

O que fizemos! Precisamos voltar desta viagem!

As duas avós se revezaram para cuidar das netas. Quando chegamos em casa, preocupados, minha filha mais velha veio correndo nos receber: "Olha o que a vovó me deu", nos disse. Era um ábaco. "Agora consigo fazer qualquer conta!". A mais nova já dormia. Minha mãe me disse que ela agora come um prato inteiro de comida sozinha. "Sem aviãozinho?", perguntei. "Sem aviãozinho. E escova os dentes e dorme sozinha na cama dela", respondeu a vó.

Seguiram-se semanas em que as meninas dormiam em suas próprias camas, sempre no horário apropriado. Comiam sozinhas. Liam livros e não assistiam desenhos. Tudo muito estranho e organizado. Depois de um tempo de convivência elas deram uma piorada, é verdade. É o que dizem: trabalho de pai é destruir todo o trabalho dos avós.

PIANGERS


18 DE NOVEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Um bebê na plateia

Acho que já comentei este episódio: muitos anos atrás, em 1993, assisti a um show da banda Living Colour num pequeno ginásio em Santiago do Chile. Quem conhece o grupo sabe que eles tocam um funk rock pesado. O som estava incrivelmente alto, e as pessoas fumavam no local. Foi quando vi, ao meu lado, uma moça com um bebê de colo. 

Que agonia. Um bebê naquele ambiente era tão adequado quanto um gorila num concurso de miss. Não me segurei: perguntei a ela se o bebê não estaria melhor em casa. Ela respondeu que não tinha com quem deixá-lo. Tinha, sim, respondi. Com você. E dei uma piscadinha pra ela, pra parecer simpática. Ela me fulminou.

Sei que fui invasiva, mas na época eu tinha uma filha pequena e bateu mesmo um desespero: se meus tímpanos mal estavam aguentando (saí antes do bis), imagine o desconforto daquela criaturinha de poucos meses.

Os argumentos a favor da moça: só por que virou mãe não tem mais o direito de se divertir? O pai, pelo visto, não estava a postos, e babá é caro. É provável que não tivesse um parente ou uma amiga que a socorresse, e devia estar amamentando. Merece ser crucificada por causa disso?

Agora um episódio mais atual, envolvendo o ator Marco Caruso, que passou recentemente por uma situação desagradável. Ele estava encenando a peça O Escândalo Philippe Dussaert quando percebeu uma senhora na segunda fila amamentando seu filho de nove meses, uma criança que logo começou a fazer os ruídos naturais de todo bebê (regurgitar, resmungar etc). A plateia distraiu-se, o ator também, e por fim ele solicitou que ela se retirasse para que pudesse continuar o espetáculo.

A mulher saiu do teatro direto para as redes sociais, onde chamou o ator de preconceituoso, machista, ignorante, mal-educado, além de dizer que a peça era horrível (já assisti, é genial). Muitos defenderam o ator, outros deram razão à mulher, e não consigo entender mais nada. O que faz uma mãe levar um bebê a uma peça de teatro adulto, à noite? A administração do teatro deveria ter orientado a espectadora antes de o espetáculo começar, mas não o fez, e deu-se a confusão.

Mães têm o direito de amamentar no ônibus, numa sala de espera, no meio da rua. Elas precisam se deslocar até o trabalho, ir a consultas médicas e, ao mesmo tempo, manter seus bebês alimentados. Amamentação não é um ato erótico e pode acontecer em qualquer lugar, mas levar um lactente a um show de rock pesado ou a um monólogo teatral é, convenhamos, facultativo: a opção de ficar em casa tem que ser considerada. Pelo bem da própria criança e também por uma questão de bom senso.

Mas alguém quer saber de bom senso? Cada um faz o que bem entende e defende seus direitos aos berros, peitando quem ousar questioná-los. Ok, estando dentro da lei, podemos tudo, mas não custa se perguntar de vez em quando: poder, eu posso, mas devo?

MARTHA MEDEIROS

sábado, 11 de novembro de 2017



11 DE NOVEMBRO DE 2017
CARPINEJAR

Um crucifixo no jardim

Um pouco de sofrimento dá saudade e pode apressar reconciliações. Uma colher de sopa de dor, não mais que isso.

Qualquer um aguenta um mês longe, inclusive dois meses, um constrangimento, um desentendimento sério, uma ausência muda de telefonemas e aparições.

Angústia breve é salutar, permite ajustes necessários na convivência, trazendo à tona exigências e reivindicações até então secretas. Uma briguinha não é ruim, revela o que não foi acertado no início, aumenta com a lupa as cláusulas minúsculas do contrato afetivo.

Já não deixe o seu amor sofrer demais, o risco da superdose é fatal. É necessário não passar do ponto, evitando converter teorias dissonantes em grosserias e aviltamento da personalidade.

A generosidade do enamoramento tem o seu limite. Logo a distância perde o charme e expõe que, de repente, não vigora nenhuma aceitação e compatibilidade de gênios.

O sofrimento excessivo termina relacionamentos. O sofredor é capaz de realmente cansar de amar e não querer mais nada em seguida. Ficará vacinado para qualquer nova aproximação.

Não brinque com as esperanças e expectativas, não recue nas palavras, não apresente a todos amigos e familiares para remendar que não queria algo sério. A vergonha costuma não oferecer caminho de volta.

Quando as lembranças ruins superam as boas, quando o mal-estar abafa a paixão do começo, o namoro tem os seus laços quebrados. Quem pensa demais sempre vai se separar, já que a emoção tornou-se secundária. Pois daí é possível se defender racionalmente daquilo que não se gostou.

Depois de aguardar um pedido de desculpa por longo tempo inutilmente, não existe conserto. Arrependimento não deve ser demorado. Mesmo que o perdão venha, será atrasado e servirá para somente limpar a consciência, não lavar o amor. O outro não acreditará mais. O outro não suportará a ideia de passar pela mesma tormenta no futuro. Terá força para dizer não, de tantas negativas acumuladas dentro de si.

Separação é como esteio de uma planta jovem. A madeira de alicerce, se tremendamente pesada, encurvará o caule e se transformará em crucifixo de lápide no jardim.

CARPINEJAR

11 DE NOVEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Somos todas DIVAS


Até mesmo as mulheres mais estonteantes do planeta passam por momentos tensos em frente ao espelho. Nunca estamos 100%, ao menos não na nossa própria avaliação. Digo nossa a fim de englobar o gênero feminino, e não a classe específica das estonteantes, coisa que nunca fui. Bem que eu queria ser lindona, mas não me coube essa sorte e tudo certo. 

A beleza pode ser substituída por charme, por sensualidade, por exotismo, por maturidade, por mil outros atributos. Jamais sonhei em ser clone da Barbie, uma perfeitinha sem expressão. Ando ocupada com questões mais relevantes, porém, claro, adoraria ser bonita, e não interessante, o eufemismo clássico para quem não chegou lá.

Calma. Está tudo bem. Ninguém cortando os pulsos por aqui.

A maioria das mulheres é bela. As brasileiras são exuberantes e atraentes em toda a sua diversidade. Negras, brancas, crespas, lisas, gordas, magras. Eu percebia isso já na sala de aula, criança ainda. Cada menina tinha sua graça. Eu me sentia o patinho feio entre todas elas e, como namorava menos, tinha solidão de sobra para me dedicar aos livros, que foram meus verdadeiros affairs da adolescência.

Ao menos era alta e tinha um corpo bacana, mas isso não era suficiente pra ser a primeira opção nas reuniões dançantes. Então os anos passaram e meu cabelo melhorou, minha cabeça melhorou, a vida melhorou, e por fim descobri que a atração entre um casal pode ser dar por outros caminhos, tanto que tive namorados, casei, descasei, segui namorando e me tornei o grande amor de mim mesma, a relação essencial que alavanca todas as outras. Mas, entre mim e meus botões, às vezes ainda lamentava: quem dera ser gata.

Até que surgiram as redes sociais e o autobullying chegou ao fim. Hoje, nem mesmo a irmã gêmea do Quasímodo tem do que reclamar. Somos todas divas.

A criatura acorda às sete da manhã com o rosto inchado pelas 26 long necks que entornou na noite anterior. Posta uma selfie de ressaca, coberta de olheiras, e adivinha os comentários: Lindíssima! Poderosa! Lacrou!

Se você tem um pouco de noção, deleta a foto da ressaca e posta a foto em que está com o cabelo estrategicamente cobrindo metade do rosto: Musa! Deusa! Arraso!

Você tem 96 anos, com aparência de 104, está deformada por uma dúzia de plásticas e posta um autorretrato mesmo assim, pois anda meio gagá e já não enxerga quase nada: Gatíssima! Avião! Perfeita!

Não é o paraíso? Se a gente não está num dia bom, é só escolher a melhor foto entre as duzentas que tirou no fim de semana, caprichar no enquadramento e postar com a legenda: "sem filtro". E então começar a contar os "uau" pipocando um embaixo do outro. Não existe mais mulher feia nem com baixa autoestima - a não ser que ela não tenha seguidores.

MARTHA MEDEIROS


11 DE NOVEMBRO DE 2017
CLÁUDIA LAITANO

PODER E RESPONSABILIDADE


Se Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, fosse o Homem-Aranha, este seria o momento em que seu Tio Ben deveria puxar o guri prum canto para proferir uma das mais célebres (e sábias) lições de moral do universo dos quadrinhos: "Com os grandes poderes vêm também as grandes responsabilidades".

Em junho, o Facebook atingiu 2 bilhões de usuários - quase 25% da população mundial, que chegou a 7,6 bilhões de almas no mesmo mês -, mas a responsabilidade de Zuckerberg diante do seus superpoderes na internet anda mais para Formiga Atômica do que para Homem-Aranha.

As cobranças tornaram-se especialmente intensas nas últimas semanas, depois que a própria empresa admitiu que mais de 10 milhões de usuários da rede social foram expostos a anúncios cuja finalidade era estimular a divisão política nas eleições americanas de 2016. A chapa esquentou ainda mais no último domingo, dia 5, quando as investigações da série de reportagens Paradise Papers revelaram que um empresário ligado ao Kremlin andou investindo na empresa.

Originalmente, o Facebook via a si mesmo (e era visto) como uma força do bem, uma plataforma criada para facilitar a comunicação entre as pessoas e "mudar o mundo" - para usar o jargão preferido de Silicon Valley. Amistosa o suficiente para ser frequentada por avós e seus netinhos, a rede social era também potencialmente revolucionária, com a capacidade de mobilizar forças em torno de causas justas sem a necessidade de intermediários. A imaginação no poder, como sonhavam os jovens rebeldes de 1968.

Nos últimos tempos, porém, o Facebook anda mais parecido com aqueles vilões megalomaníacos que dão gargalhadas macabras enquanto fazem planos para dominar o mundo. Não que Mark Zuckerberg seja uma espécie de Lex Luthor disfarçado de nerd, mas o fato é que ele não tem agido à altura dos seus superpoderes. Talvez lhe faltem as luzes (ou a disposição) para perceber que sua empresa deixou de ser um negócio como outro qualquer, tornando-se uma entidade sem paralelo, em dimensão e influência, na história das relações humanas.

Esse ambiente em que fotos de gatinhos, publicidade e notícias falsas disputam a atenção das pessoas sem que elas percebam que estão sendo manipuladas por algoritmos que nem sequer entendem como funcionam, tem produzido, como subproduto, a erosão do espaço público e da capacidade de convívio com o contraditório. Nada mais justo que sejam cobradas da rede social transparência e algum tipo de regulamentação - e até mesmo que o modelo de negócios seja menos ávido por dinheiro de origem nebulosa.

O Facebook tem se mostrado muito ágil para reconhecer e censurar peitos (mesmo os de mármore...) e para desenvolver algoritmos capazes de antecipar os movimentos de seus usuários. O que se espera agora é que a empresa reaja com a mesma eficiência para combater a desinformação, as notícias falsas, as fraudes e o dinheiro suspeito.

CLÁUDIA LAITANO


11 DE NOVEMBRO DE 2017
J.J. CAMARGO

A FALTA QUE FAZEM AS COISAS MAIS SIMPLES


O consultório pode ser um lugar monótono e desanimador, mas também pode ser divertido e estimulante. Claro que uma parte de como será vai depender do que você leva consigo, mas o mais instigante é não ter a menor ideia do que vai encontrar.

Muitas vezes penso nisso quando empurro a porta e abro o melhor sorriso para anunciar um simpático "boa tarde". Tudo aprendizado de anos de atendimento que me ensinaram o quanto é difícil restaurar uma relação que começou torta. Por isso, insisto com os residentes da importância de ter em mente que aquele paciente saiu de casa com a maior expectativa, fantasiosa ou não, de que encontraria alguém capaz de ao menos ouvi-lo com dignidade, e isso não deve ser considerado um bônus do atendimento médico, mas a rotina entre duas pessoas estranhas, aproximadas por uma circunstância inesperada que vitimou emocionalmente a uma delas.

E como o médico, por mais experiente e generoso que seja, não consegue carregar mais do que um ser humano com suas limitações, problemas e angústias, sempre haverá um dia daqueles em que o modelo de gentileza e doçura não funciona.

Às vezes, se consegue restaurar a cordialidade atropelada, outras não. Muitos meses depois da cirurgia, o Albino fez um comentário revelador: "Hoje, meu doutor, estamos comemorando o nosso aniversário de namoro. E depois de um ano posso lhe contar que só aguentei a primeira consulta porque me disseram que o senhor era muito bom pra consertar a traqueia das pessoas, mas que antipatia naquela segunda-feira!".

O comentário do Albino, um homem tosco, mas afetivo, tinha a sinceridade que marca as pessoas mais puras, e por isso mais confiáveis. Eu não lembrava o que tinha ocorrido na tal segunda-feira, mas fiquei com a certeza de que o extravasamento daquele mau humor, por mais justificado que fosse, tinha sido imperdoável. Menos mal que a tolerância do Albino permitira uma segunda chance que, quando negada, deixa a sequela definitiva com que são penalizados os subestimadores do sofrimento alheio.

Outras vezes, a relação fortuita traz uma revelação inesperada e inesquecível. Quando abri a porta que dá acesso ao ambulatório dos pacientes mais humildes e chamei a dona Rosaura, não houve resposta imediata. Até que uma velhinha, depois do segundo chamado, começou a se deslocar com aquela lerdeza de quem está iniciando a única tarefa do dia. Quando lhe dei a mão, a ideia, como sempre, era de cumprimentá-la, e então, metade porque ela tinha a pele com aquela inconfundível maciez da velhice e outra metade porque queria ajudá-la a percorrer mais rapidamente o caminho até a minha sala, continuamos de mãos dadas.

Ao perguntar-lhe quais eram suas queixas, ela foi muito sincera: "Ah, doutor, eu não queria que o senhor ficasse bravo comigo e me desculpasse de eu não ter nada doendo, mas eu só queria conversar com alguém, e já vou lhe contando que lá fora tem duas mulheres, até mais moças do que eu, que também não têm doença nenhuma. Mas o que aconteceu comigo aqui eu não esperava, e aquelas ciumentas nem vão acreditar. Desde que o Antenor morreu, há 13 anos, eu nunca mais tinha andado de mãos dadas com ninguém".

E encheu os olhos para confessar: "E eu sinto uma falta dele!".

J.J. CAMARGO


11 DE NOVEMBRO DE 2017
LYA LUFT

O menino e sua mãe



No dia 2 de novembro, Finados, a morte - que tudo comanda - levou um de meus filhos. André, um gigante de corpo e alma, belíssimo por dentro e por fora, morreu na plenitude da vida, fazendo o que mais amava: surfando nas águas verdes de Florianópolis, onde, embora trabalhando na África, ele e sua mulher residiam. Ainda incapaz de escrever coisas coordenadas, reproduzo aqui, para meus leitores, o trecho da página 67 de meu novo livro, A Casa Inventada, que já está nas livrarias. O menino, então com uns sete anos, era o André.

Um menino e sua mãe voltavam das compras no ônibus quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um microscópio "de verdade", dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. De vez em quando, ele passava a mão no pacote:

- Parece mentira, né, mãe? - olhar sonhador daqueles olhos grandes de um azul indescritível.

- Mãe, que igreja é essa?

- Nossa Senhora Auxiliadora.

- Por que tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma?

- É uma, sim, filho, mas ela tem muitos nomes.

- E o Nosso Senhor é São Pedro, né? Marido dela.

- Não, é Jesus. Quem se casou com ela foi São José. São Pedro era amigo de Jesus - a mãe suspirou: não praticar muita religião dava nisso.

- Ah... E por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora? - os olhos azuis começavam a deixar a mãe inquieta.

- Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho.

- Mas o José não era pai dele?


- Não era de verdade, o pai dele era Deus, José era pai adotivo.

- Então Jesus não nasceu da sementinha do José?

O silêncio no ônibus já meio vazio parecia imenso. O menino falava em voz alta e clara, pra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa.

- Não, filho, Deus fez brotar a sementinha direto em Nossa Senhora, foi um milagre.

- Ué, então não foi como nas pessoas? - agora o silêncio podia ser cortado com faca. A mãe se fez de distraída, mas o menino pensava, concentrado.

- Mãe, como é que antigamente as primeiras pessoas sabiam como se fazia pra ter bebê, se ninguém tinha ensinado a elas?

- Ora, filho, essas coisas a natureza ensina.

- Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente.

- Quer dizer, quando a gente cresce, aprende por si.

- Mãe, olha, nessa placa estava escrito Rua Mozart! Eu acho que ele mora aqui!

- Ele quem?

- O Mozart, mãe. Quem ia ser?

- Não, filho, ele viveu na Europa.

- Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos, onde moram pessoas importantes.

Finalmente desembarcaram. Parado na calçada, sol nos cabelos claros, o menino retomou seu ar sonhador ainda segurando o pacote.

- Mãe, como eu tenho um pai bom, né?

E acrescentou depressa:

- Mãe também, claro...

LYA LUFT

sábado, 4 de novembro de 2017



04 DE NOVEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

DEMÔNIO

Há 16 anos, publiquei uma crônica em que citava coisas que tinham demônio, em detrimento de outras. Tipo: cinema tem mais demônio que televisão, poesia tem mais demônio que autoajuda, Janis Joplin e Billie Holliday têm mais demônio que Celine Dion e Whitney Houston, a ironia tem mais demônio que o pastelão, Manhattan tem mais demônio que Berna, a paixão e o sexo têm mais demônio que o amor. Não foi preciso explicar a subjetividade do conceito que eu estava aplicando: confiei na inteligência dos meus leitores e todo mundo entendeu, curtiu e até me enviou outros bons exemplos.

Voltei a pensar nisso, pois na época incluí o Brasil como um país que, graças a Deus, tinha demônio. Apesar dos problemas de sempre, éramos um país apimentado, com uma atmosfera irreverente, uma estética psicodélica, uma cultura pluralista e era isso que nos diferenciava das outras nações. 

Nosso despudor era um capital, deixava a todos atentos, ninguém pegava no sono ao escutar a palavra Brasil. Não faço aqui a exaltação da vulgaridade, e sim de um espírito naturalmente anárquico que nada tem a ver com falta de educação e atitudes ilícitas. Anarquia como delírio criativo, ousadia, inspiração. Éramos o país do carnaval, do tropicalismo, do folclore regional, do samba, da libido - um país quente, feliz e com tesão.

Éramos.

Estamos perdendo nosso demônio para os caretas e covardes (Senhor, piedade), para os pastores que catequizam seus rebanhos a fim de transformá-los em tementes da livre expressão e da arte que ousa ir mais longe - independentemente de ter qualidade ou não. Só se avança rompendo limites. Mas, em vez de expandirmos, estamos perdendo a saliência e buscando o caminho da banalidade e do puritanismo infértil. Caminhamos rumo a um autoritarismo travestido de ordem, mas que visa apenas engessar aqueles que pensam e vivem fora da caixa. Em vez de um país alegremente atrevido, estamos nos transformando num país castrado. Um país de pau mole.

Moralizar o Brasil é uma emergência: devemos seguir combatendo a corrupção e denunciar a troca de favores entre parlamentares que só desejam perpetuar seu pseudopoder e continuar forrando os próprios bolsos. Essa é a nossa verdadeira vergonha, a maior das indecências. Porém, não é transformando o país numa igreja que iremos nos salvar. 

Confundir moralidade com censura e rigidez será a nossa perdição. Moralidade na política nada tem a ver com manter a população enquadrada e em estado de anemia. Não é asfixiando nossas inquietações produtivas que iremos entrar no primeiro mundo, ao contrário, será o atestado da nossa burrice. Um país que perde a capacidade de subjetivar é um país condenado à mediocridade eterna, amém.

Lutemos pelo nosso demônio sagrado.

MARTHA MEDEIROS


04 DE NOVEMBRO DE 2017
CARPINEJAR

O nó entre pai e filho


Há certos rituais que ainda são dos homens, hábitos exclusivos entre pai e filho, que não podem se perder com o tempo e a tecnologia.

Ensinar a se barbear com a devida espuma é um deles. Nada mais bonito do que pai e filho próximos no espelho, rostos sobrepostos, o pai pedindo licença para descer a lâmina na pele do filho, avisando que não vai machucá-lo, que não é para ter medo, demonstrando a firmeza da diagonal do gesto. O filho prestando atenção, e admitindo a exceção de uma mão que não a sua tocando em sua face, como um beijo diferente, como parte da sua vida. E depois colocar a toalha quente e borrifar loção, estapeando levemente os poros abertos e partilhando a ardência saborosa e perfumada da virilidade. Que tudo termine numa risada com "entendi, pai, entendi".

Fazer o nó da gravata é outra lição essencial. Acabei de explicar ao meu filho Vicente. Tinha que ser eu. Para que pudesse lembrar de mim em sua formatura, em seus dias de emprego, em suas saídas oficiais para festas e casamentos.

É hastear a bandeira do nosso amor no colarinho. A gravata traz uma delicadeza séria, uma doçura digna. Não importa a cor, será o nosso jardim nos ombros.

Quando ele firmou o nó pela primeira vez em seu pescoço, eu senti que nenhum mal e desavença posterior nos soltaria. Estávamos presos aos cadarços das camisas.

Foi um misto de orgulho e de nostalgia. Era pôr um laço definitivo de filiação. Eu o deixava ir para ficar na memória. Aceitava, com dificuldade, que ele estava grande, de que cresceu, de que deveria abrir o seu caminho sem precisar de mais ninguém para pedir favor. Daria conta de si sozinho dali por diante.

Não haverá abraço no futuro que nos torne tão rentes como naquele momento.

Assim que deve ser: é o filho que fará a gravata no enterro do pai. Valor a ser passado de geração em geração, pelos ciclos da existência.

Só ele repetirá a minha assinatura, ponto por ponto, dobra por dobra, não aceitando a ponta da gravata maior do que a cintura, não aceitando a despedida de qualquer jeito, mantendo o respeito e o capricho da minha essência na aparência.

CARPINEJAR

04 DE NOVEMBRO DE 2017
PIANGERS

Palavras cruzadas


A Aurora está aprendendo a ler e a escrever. Os fonemas ainda são literais, te amo ainda é ti amu, mas luto pra que este estilo de escrita, tão comum entre os jovens de hoje em dia, evolua quando ela não tiver mais cinco anos. Gramática, matéria escolar ignorada por jovens com nove letras.

Cada pequena evolução infantil nos emociona, como naquelas propagandas em que o pai segura a filha na bicicleta sem rodinhas até que ela consiga pedalar sozinha. O pai comemora em câmera lenta enquanto a filha se afasta feliz. Estou empolgado com esta fase, incentivando a leitura e a escrita. Brincamos juntos de fazer palavras cruzadas e assim ela vai treinando a construção das sílabas. Um desenho de um quadrado amarelo com um telhado. "CAAAA? SA?", ela pronuncia enquanto escreve. O desenho de um pisante de couro preto. "TE?NISSSS", ela escreve deixando sobrar um quadradinho. Era sapato.

Incrível, soberbo, magistral. Com onze letras. Ela tem alguma dificuldade e lê apenas o que está escrito em caixa alta, mas se esforça e todas as manhãs quando vamos até a escola ela vai lendo as placas ao redor. "PAAAAA?RE", diz olhando para uma placa. "ES?GO?TO", lê no bueiro da rua. Nossa caminhada diária até a escola demora longos minutos, mas cada sílaba é celebrada. 

Não consigo não sorrir. "Parabéns!", grito ao fim de cada palavra, batendo palminhas. Não estou querendo dizer que ela é genial ou algo assim. Ela não é brilhante, tenho certeza. Demorou para conseguir pronunciar o erre, recorta com a boca aberta, tem dificuldades matemáticas. Mas está aprendendo a ler e se isso não é maravilhoso não sei o que é.

Saudação de despedida com cinco letras. Nossos filhos estão sempre nos dizendo adeus. Quando aprendem a caminhar, estão nos dizendo o primeiro adeus. Depois, quando aprendem a falar. Depois, quando aprendem a caminhar. Agora a ler. Depois quando estudam sozinhos. Depois quando escolhem uma profissão. 

Depois quando arrumam emprego. Passam os anos nos dizendo pequenos "tchaus", ganhando autonomia. Estaremos batendo palminhas em cada um desses momentos, felizes por eles. Viva! Você conseguiu! Até que dirão o adeus mais dolorido. Formarão suas famílias. Sentiremos falta de suas limitações. Das vezes que nos pediam ajuda. Torceremos por uma ligação no domingo. Sentaremos no sofá, fazendo palavras cruzadas. Sentimento de falta de alguém, com sete letras.

PIANGERS



04 DE NOVEMBRO DE 2017
CLÁUDIA LAITANO

ELA DISSE, EU DISSE


Os personagens na berlinda mudam, mas a discussão e o desfecho - a conclusão de que provavelmente nunca vamos concordar - em geral são os mesmos. Aconteceu de novo nos últimos dias, quando vieram à tona as acusações de assédio sexual envolvendo os atores Kevin Spacey e Dustin Hoffman e outras figuras de destaque de Hollywood, na esteira das denúncias em série contra o produtor Harvey Weinstein.

Minha filha de 19 anos não tem dúvidas de que Kevin Spacey merece todas as desgraças que desabaram sobre sua cabeça desde que o ator Anthony Rapp revelou ter sofrido uma tentativa de abuso sexual em 1986 - quando ele tinha apenas 14 anos, e o astro de House of Cards, 27. Sem entrar no mérito da denúncia neste caso em particular, faço parte da geração que, por princípio, se assusta com a velocidade com que acusações, veredictos e sentenças são expedidos no tribunal da internet.

O argumento dela: errou, tem que responder pelo erro. O meu argumento: nem todos os erros têm a mesma gravidade, e o linchamento virtual tende a tratar o estupro e a cantada inconveniente ou inapropriada da mesma forma. O argumento dela: a internet não condena ou pune, apenas dá repercussão ao que as pessoas estão dizendo. O meu argumento: em muitos casos, a pena é a própria repercussão, e um tweet pode ser tão mortal quanto uma cadeira elétrica para uma reputação. O argumento dela: quem não deve não teme. A minha dúvida: e se uma pessoa for acusada injustamente? A certeza dela: se for inocente, vai conseguir provar, e se não for, vão aparecer outras denúncias. (Aqui, ponto para ela: depois da primeira acusação contra Kevin Spacey vieram outras, sempre de atores muito jovens na época do assédio.)

Para ela, criador e criação se confundem. Para mim, não há problema algum em continuar gostando de uma obra produzida por um canalha. (Todas as obras são maiores e melhores do que os seus autores.) Ou seja: se dependesse de mim, a série House of Cards não seria cancelada.

O fato de já sabermos, antecipadamente, que não vamos concordar não nos tira o interesse de falar sobre esse e outros assuntos. Pelo contrário. Considero um privilégio ter uma interlocutora qualificada de 19 anos, mesmo que nem sempre, ou quase nunca, concorde com ela sobre assuntos que envolvem a maneira como as pessoas se expressam e se relacionam nas redes sociais. O exercício de tentar compreender como o seu raciocínio e seu sistema de valores operam em situações práticas me ajuda a entender não apenas como ela e boa parte da sua geração pensam, mas também por que eu e boa parte das pessoas da minha idade pensamos e sentimos de um jeito tão diferente.

A origem desse desacordo é a forma como a geração dela e a minha se relacionam com a vida virtual. Quem já era adulto quando a internet surgiu nunca se sentirá completamente confortável nesse ambiente caótico em que público e privado se embaralham ou sequer fazem sentido em separado. Para os nativos digitais, o ruído e a estridência são a trilha sonora a que seus ouvidos foram habituados desde o berço. Eles acreditam que esse caos se autorregula através de uma lógica própria nem sempre evidente para olhares destreinados.

Seus pais desejam, de coração, que eles estejam certos.

CLÁUDIA LAITANO

quarta-feira, 1 de novembro de 2017


01 DE NOVEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

MARTHA MEDEIROS

Havíamos sido apresentados durante um evento. Ele sabia que eu era escritora, eu não sabia nada dele e fim da história. Até que, dois dias depois, ele me encontrou sozinha e se aproximou. Disse, num tom muito sério, voz preocupada: "Quero aproveitar este momento pra te pedir um conselho".

Meu Deus. Ok. Peça.

"O que você diria para o pai de uma menina que desde os cinco anos de idade, até hoje, aos 24..."

Suspirei. A menina seria viciada em crack? Não se identificava com o sexo com que havia nascido? Era abusada por algum familiar? Teria algum distúrbio, alguma doença, algo que precisasse de um acompanhamento psicanalítico? Qual seria o seu segredo, a sua dor, o que ele estaria prestes a me confidenciar?

"...que até hoje, aos 24, não faz outra coisa na vida a não ser ler?"

Olhei bem para o rosto dele e aguardei a gargalhada que denunciaria a piada. Não veio. Ele estava falando sério. Então iniciei meu questionário.

"Ela dorme à noite e se alimenta bem durante as refeições?"

"Sim."

"Ela estuda ou trabalha?"

"Sim." "Ela namora, tem amigos, vida social?"

"Sim." "Então, desculpe, não entendi."

Quantos pais, hoje, subiriam 300 degraus de joelhos pela graça de ter um filho que adorasse ler? Eles existem, os leitores jovens. Mas não são muitos, não tantos quanto precisaríamos para manter defensores da ditadura longe das intenções de voto, para que não se fizesse confusão entre pedofilia e performance, para que não existisse tanta gente sem saber escrever um bilhete decente, para que não houvesse tanta tacanhice e dificuldade de transcendência. 

Leitura está diretamente associada a evolução, a desenvolvimento, a sabedoria e amplitude de ideias. Sem leitura, resta o confinamento, a estreiteza, o escuro. Viver neste buraco gera medo e o medo nos faz segurar qualquer corda que nos alcancem. Viramos presas fáceis de oportunistas.

"Que pai sortudo você é", disse a ele. "Vício em leitura é virtude."

"Sinceramente, acho um exagero", ele respondeu, e se afastou. Não tocou mais no assunto e nunca mais o vi, mas espero que seja surpreendido pelos textos impecáveis, pelas conversas inteligentes, pelos projetos audaciosos, pelo patrimônio intelectual que sua filha começa a conquistar.

Pais sortudos, não pirem. Não existe "ler demais". Preocupem-se com o "ler de menos", essa epidemia às avessas que nos afunda e impede que sejamos um povo mais aberto e interessante. Em tempo: a Feira do Livro de Porto Alegre está começando. Neste ano, não irei autografar, mas a gente poderá se cruzar na praça, em busca de novos títulos nas barracas. Pois o que eu já li e o que você já leu ainda não é suficiente, e nunca será.