sábado, 27 de abril de 2013



28 de abril de 2013 | N° 17416
MARTHA MEDEIROS

O sabor da vida

Dois anos atrás tive o prazer de ser entrevistada pelo chef Claude Troisgros, e lembro de que o encontro foi divertido e ao mesmo tempo inusitado pra mim, já que minha relação com as caçarolas sempre foi de intimidade zero.

Pois agora recebi o convite da incrível Neka Menna Barreto para uma entrevista para a tevê que também ocorreria durante o preparativo de alguns quitutes. Minha intimidade com as caçarolas segue a mesma, porém sou amiga da família da Neka há muitos anos, todos gaúchos. Só que meu contato com ela, por ser moradora de São Paulo, era mais restrito. Finalmente, equalizamos essa distância da melhor forma possível: com um bom papo na cozinha.

Quanto mais me aproximo desse universo que desconheço, mais me dou conta do quanto perco por não saber cozinhar. Conversando com a Neka, percebi a filosofia envolvida no processo – ao menos no processo dela, que usa sua colher de pau como uma espécie de varinha de condão, transformando em mágica cada receita aparentemente prosaica.

Neka é uma chef que escolheu a vida como principal ingrediente – não a industrializada, mas a vida em sua origem, em sua raiz. Seu talento está não apenas na criteriosa escolha dos ingredientes, mas na maneira de pensar sobre o que está fazendo e de explorar todas as sensações envolvidas.

Ela perfuma a cozinha com infusões de hortelã, “acorda” as sementes, encontra conexões entre rusticidade e sabor – de tudo Neka extrai um conceito. Cada alimento traz em si um benefício para a memória, para o humor, para a concentração. Ralar uma noz moscada nos ensina a reconhecer limites.

Triturar um bastão de canela fortalece o bíceps. Dissecar uma vagem seca de baunilha (eu nem sabia que a baunilha vinha de uma orquídea) desperta a sensualidade – se você tem acesso à Neka, peça para ela contar os efeitos de esconder um galhinho de baunilha dentro do sutiã. Segundo ela, a mulher para instantaneamente de falar sobre si mesma e, silenciosa, passa a ser quem é. Viajandona? Pode ser, mas descobri com ela que o tempero que faz viajar é outro.

Para quem só se interessa pelo concreto da vida, nada disso faz o menor sentido, porém é justamente sobre sentidos que está se falando aqui. Do amor que há em manusear tâmaras e nozes picadas, da energia que as ervas emanam, da estupidez de se consumir velozmente um prato ultracalórico e depois passar uma tarde inteira digerindo-o. “Gastamos muito tempo com digestão, quando poderíamos estar caminhando mais, dançando, flanando, vivendo até os cem anos com leveza”.

Neka é uma alquimista de personalidade única. Tudo nela é inspirador, desde seus turbantes coloridos até seus pontos de vista. “Estamos nos acostumando com soluções instantâneas, enviando e-mails que chegam a Tóquio em um segundo, comprando comida pronta. Ninguém mais prepara, ninguém mais espera. Se vejo alguém muito agitado, correndo atrás do relógio, recomendo: cozinhe e recupere a noção do tempo real”.

Não bastasse a delícia de suas criações gastronômicas, a querida Nekinha também é craque em dar receitas para nossas almas desnutridas.

quarta-feira, 24 de abril de 2013



24 de abril de 2013 | N° 17412
MARTHA MEDEIROS

Dia do Vizinho

As redes sociais são mesmo sociais? Temos testemunhado uma eletrizante troca de informações entre smartphones, mas socializar, pra valer, exige mais dedicação do que uma simples teclada. É por isso que um movimento está sendo articulado na Inglaterra por um grupo de simpatizantes do olho no olho. Eles estão tentando implementar por lá o Neighborday, ou o Dia do Vizinho. A data proposta é agora, dia 27 de abril.

No prédio em que eu morava anteriormente, tive três vizinhas de quem fiquei amiga: a Dedé, com quem ainda cruzo pelas ruas, a Heloisa, que hoje vive na Suécia, e a Bebel, que durante anos ilustrou minha página no ZH Donna.

No prédio em que moro atualmente, há aqueles com quem tenho alguma afinidade, uma história já compartilhada, mas não sei o nome de todos e já passei alguns vexames por causa disso. Minha interação, se é que se pode chamar assim, acontece basicamente no elevador e na garagem: nunca fiz visitas, nem os convidei a virem ao meu apartamento.

Não sei se entre eles há o costume de confraternizarem, de darem uma esticadinha juntos após a reunião de condomínio. Se sim, é louvável, mas não estou reivindicando inclusão. Me sentiria parte de um sindicato, de uma agremiação, de uma confraria, e vim ao mundo sem esse perfil comunitário. Não chega a ser um defeito de caráter, espero.

Deve ser consequência desses tempos individualistas e apressados dos adultos. Quando criança, era diferente. Morava num pequeno edifício, numa rua tranquila, e conhecia toda a garotada, de esquina a esquina. Vivíamos soltos, brincávamos com argila, andávamos de bicicleta, frequentávamos a casa uns dos outros.

Flavia, Miguel, Vera Lucia, Suzana, Artur, Roberta, Ovelha. Lembro de todos, a Flavia e o Miguel ainda vejo. Aquilo não era política de boa vizinhança, e sim um encontro espontâneo. Não se exigiam afinidades, boas maneiras, interesses comuns. Bastava uma Monareta e já ter feito a lição de casa para entrar para a gangue.

Crescemos, e as cidades também. Ao menos nos grandes centros, os vizinhos já não deixam a porta destrancada, não há mais o ritual de colocar as cadeiras na calçada para tomar um chimarrão, e se pedirmos uma xícara de açúcar, um ovo, um fio de azeite, é capaz de soar como invasão de privacidade. Uma pena.

Espero que ao menos esse hábito ainda esteja preservado, pois acho a parte mais bonita de se compartilhar o mesmo endereço: a troca, o pedir e o emprestar, o S.O.S. afetivo – quem já não ficou desprevenido e pediu para o vizinho um toco de vela ou licença para dar um telefonema? Nossa, deixe eu tirar o pó dos meus ombros. Sou do tempo em que se dava um telefonema na casa dos outros quando a nossa linha era cortada.

Próximo sábado, então, será o primeiro dia do vizinho. Não sei se a proposta dos ingleses, que almejam estimular o mundo todo, vai pegar, mas encaro como uma simpática reivindicação por mais cordialidade real – não real no sentido monárquico do termo, mas real como a vida tem que ser, como a vida é, ou como já foi um dia.

sábado, 20 de abril de 2013



21 de abril de 2013 | N° 17409QUASE PERFEITO |
Fabrício Carpinejar

Não abandonamos o quarto no domingo

Acordamos e não nos levantamos. Desde que nos apaixonamos, a cama é o nosso acampamento.

Despertamos cedo e ficamos conversando, recapitulando a rotina, rindo à toa. É um domingo inteiro assim, entre travesseiros, almofadas e edredom. O quarto permanece trancado, as cortinas fechadas, o jornal empilhado na porta.

De vez em quando, um dos dois é sorteado como emissário da geladeira, para buscar frutas ou água. É uma visita rápida pelos demais aposentos, na ponta dos pés para não assustar as pálpebras.

Não é aconselhável demorar pela sala, para a claridade não quebrar o encanto e nos obrigar a sair à rua. Somos sonâmbulos um do outro. Viciados um no outro. Intoxicados um do outro.

Passamos os dias no colchão travando histórias e revelando segredos. A cama é o nosso hotel, nossa casa na serra, nossa residência de praia, nosso bunker, nosso pub, nossa água-furtada. A cama é o que precisamos do mundo, o resto pode levar.

Reduzimos o universo àquele estrado de madeira, e nos divertimos com os problemas antigos, com as dores antigas, com aquilo que nos antecedeu e ainda não era a gente.

Na verdade, sinto que estudo para o vestibular de sua memória. Olho o teto coberto de fórmulas, fotos, cenas, equações e cálculos de sua vida. Decoro suas sobrancelhas, seus suspiros, sou um mímico atento de seu rosto.

Faço perguntas despropositadas - nunca prevejo o que vai cair na prova do amor. Interesso-me por qual lugar que sentava no colégio Champagnat. Me diz que era no fundo, com as costas coladas na janela.

E você me interroga a cor da minha térmica no jardim de infância do Santa Inês. Falo rápido que era azul.

Quem teria coragem de fazer essas questões senão quem ama? Mais: quem responderia com naturalidade essas questões senão quem ama?

Não nos assustamos com nenhuma gratuidade. Não estranhamos a curiosidade ou nos envergonhamos da loucura. Intimidade é não temer o que será feito com nossas palavras.

Deitamos de lado, atravessados, você em meu peito, eu encaixado na moldura de seu pescoço. Giramos para esquerda, tonteamos para direita, argumentamos, confortamos, descrevemos nossos amigos, confessamos nossos pecados, sussurramos bobagens.

Os ouvidos se tornam rápidos como a boca. Falo e ouço na mesma hora. Nossas mãos se beijam, nossos pés se beijam. Tudo é intenso entre nós a ponto da lembrança criar a experiência. É como se nossos olhos fossem aquela máquina polaroid cuspindo fotos.

Os vizinhos devem suspeitar que já morremos, mas nunca estivemos tão vivos.


21 de abril de 2013 | N° 17409
MARTHA MEDEIROS

Dialogando com a dor

Não simpatizo nada com a ideia de sentir dor. Para minha sorte, elas foram raras. Vivi dois partos normais que pareceram um piquenique no campo, nada doeu, sobrou relaxamento e prazer. Quando penso em dor física, o que me vem à lembrança são as idas ao dentista quando era criança.

Começava a sofrer já na noite anterior, sentia enjoos fortíssimos, não conseguia dormir, passava a madrugada chorando só de imaginar que no dia seguinte teria que enfrentar a broca e seu barulho aterrorizante. Estou falando de uma época em que crianças tinham cárie hoje muitas nem sabem o que é isso, bendito flúor.

O que fazer em relação a esse tipo de dor? Se nos pega de surpresa (um tombo, uma cabeçada, um corte), suportar. Se for uma dor interna, tomar um analgésico e esperar que passe. Não se pode dialogar com a dor física. Músculos, nervos, órgãos, pele, essa turma não escuta ninguém. Ainda bem que (com exceção das dores crônicas) não são dores constantes, e sim pontuais. De repente, somem.

Já a dor psíquica não é tão breve. Pode durar semanas. Meses. Sem querer ser alarmista, pode durar uma vida. Porém, ela é mais elegante que a dor física: nos dá a chance de chamá-la para um duelo, ao contrário da outra, que é um ataque covarde. A dor psíquica possibilita um diálogo, e isso torna a luta menos desigual. São dois pesos-pesados, sendo que você é o favorito. Escolha suas armas para vencê-la.

Armas? Por exemplo: redija cartas para si mesmo. Escreva sobre o que você sente e depois planeje seus próximos passos. Escrever exorciza, invoca energia. Cartas e cartas para si mesmo, estabelecendo uma relação íntima entre você e sua dor – amanse-a.

Terapia. A cura pela fala. Você buscando explicar em palavras como foi que permitiu que ela ganhasse espaço para se instalar, de onde você imagina que ela veio, quem a ajudou a se apoderar de você.

Uma investigação minuciosa sobre como ela se desenvolveu e sobre a acolhida que recebeu: sim, nós e nossas dores muitas vezes nos tornamos um só. É difícil a gente se apartar do que nos dói, pois às vezes é a única coisa que dá sentido à nossa vida.

Livros. O mais deslumbrante canal de comunicação com a dor, pois através de histórias alheias reescrevemos a nossa própria e suavizamos os efeitos colaterais de estar vivo. Ler é o diálogo silencioso com nossos fantasmas. A leitura subverte nossas certezas, redimensiona nossos dramas, nos emociona, faz rir, pensar, lembrar. Catarses intimidam a dor.

Meditação. Religião. Contato com a natureza. Viagens. Amigos. Solidão. Você decide por qual caminho irá dialogar com a sua dor, num enfrentamento que, mesmo que você não saia vitorioso, ao menos fortalecerá seu caráter.

Quem não dialoga com sua dor psíquica, não a reconhece como a inimiga admirável que é, capaz de torná-lo um ser humano melhor. A reduz a uma simples dor de dente e, como uma criança, desespera-se sozinho no escuro.

quarta-feira, 17 de abril de 2013



17 de abril de 2013 | N° 17405
MARTHA MEDEIROS

Uma questão de tempo

Houve uma época em que negros, dentro de um ônibus, eram obrigados a ficar em pé, mesmo que houvesse assentos livres. Um dia, uma mulher negra, Rosa Parks, sentou-se e se recusou a levantar para dar lugar a um branco, e começou ali uma mudança de costumes gradual que custou muitas vidas, mas que, por fim, resultou nos dias de hoje, em que negros possuem os mesmos direitos que os brancos, ainda que o racismo não esteja combatido totalmente.

Houve um tempo em que mulher não votava, era discriminada caso se separasse do marido, e pegava muito mal se saía para jantar com as amigas sem que um homem as acompanhasse.

Hoje, os direitos civis são mais amplos, mas sempre haverá questões a evoluir, e elas nunca serão fáceis e rápidas, pois nada demora mais do que mudar uma mentalidade enraizada. É muito difícil deixar uma zona de conforto, um pensamento já fundamentado. Sentimo-nos desprotegidos diante de ideias novas e não raro julgamos que o mundo irá entrar em colapso caso as regras do jogo se alternem. Porém, já está provado que as regras mudam e o universo não colapsa – se adapta.

É no que penso quando vejo essa gritaria em torno do pastor e deputado Marco Feliciano. Ele próprio já sabe que é carta fora do baralho, porém está se agarrando como pode ao seu cargo e ao seu discurso, que será ultrapassado logo ali, na próxima curva. É uma questão de tempo, e esse tempo é necessário para a maturação de um novo mundo – a humanidade é feita de sucessivos “novos mundos”, que são inaugurados um após o outro, a despeito das forças contrárias.

Correndo em paralelo, a discussão em torno do casamento gay se dá no mesmo ritmo. Legalizado na Argentina, depois no Uruguai, é questão de tempo sua legalização aqui no Brasil, e chegará um dia em que nossos bisnetos olharão para trás e considerarão inacreditável que houvesse pessoas que não aceitassem que dois homens ou duas mulheres tivessem uma união estável reconhecida.

Ninguém precisa aderir, nem gostar, mas não se pode ignorar ou impedir: pessoas se sentem atraídas umas pelas outras, amam umas as outras, independentemente do gênero, e isso é mais forte do que qualquer preconceito. Assim como existiu quem achasse natural que um negro cedesse seu lugar a um branco no ônibus e que uma mulher não tivesse direito a votar nos políticos que a representariam, ainda há quem considere natural que um gay seja considerado menos cidadão do que um hétero.

Seja por razões étnicas, religiosas ou sociais, temos a tendência em querer manter as coisas como estão, pois ficamos aterrorizados diante do que não conhecemos. Porém, é só observar o curso da História para comprovar que a resistência, ainda que legítima, é ineficaz: nada se mantém o mesmo por muito tempo, nem a sociedade, nem cada um de nós, em nossas vidas particulares. Por mais tensas e aflitivas que sejam as adaptações, quando justas elas são feitas, e no final das contas, nem o mundo termina, nem o diabo dá as caras.

sábado, 13 de abril de 2013



14 de abril de 2013 | N° 17402
MARTHA MEDEIROS

Simples, fácil e comum

Tenho mergulhado numa questão que parece prosaica, mas é de importância vital para melhor conduzirmos os dias: por que as pessoas rejeitam aquilo que é simples, fácil e comum?

O mundo evolui através de conexões reais: relacionamentos amorosos, relacionamentos profissionais e relacionamentos familiares – basicamente. É através deles que nos enriquecemos, que nossos sonhos são atingidos e que o viver bem é alcançado. No entanto, como nos atrapalhamos com essas relações. Tornamos tudo mais difícil do que o necessário. Estabelecemos um modo de viver que privilegia o complicado em detrimento do que é simples. Talvez porque o simples nos pareça frívolo. Quem disse?

Não temos controle sobre o que pode dar errado, e muita coisa dá: a reação negativa diante dos nossos esforços, o cancelamento de projetos, o desamor, as inundações, as doenças, a falta de dinheiro, as limitações da velhice, o que mais? Sempre há mais.

Então, justamente por essa longa lista de adversidades que podem ocorrer, torna-se obrigatório facilitar o que depende de nós. É uma ilusão achar que pareceremos sábios e sedutores se nossa vida for um nó cego. Fala-se muito em inteligência emocional, mas poucos discutem o seu oposto: a burrice emocional, que faz com que tantos façam escolhas estapafúrdias a fim de que pelo menos sua estranheza seja reconhecida.

O simples, o fácil e o comum. Você sabe do que se trata, mas não custa lembrar.

Ser objetivo e dizer a verdade, em vez de fazer misteriozinhos que só travam a comunicação. Investir no básico (a casa, a alimentação, o trabalho, o estudo) em vez de torrar as economias em extravagâncias que não sedimentam nada. Tratar bem as pessoas, dando-lhes crédito, em vez de brigar à toa. Saber pedir desculpas, esclarecer mal-entendidos e limpar o caminho para o convívio, ao invés de morrer abraçado ao próprio orgulho. Não gastar seu tempo com causas perdidas.

Unir-se a pessoas do bem. Informar-se previamente sobre o que o aguarda, seja um novo projeto, uma viagem, um concurso público, uma entrevista - preparar-se não tira o gostinho da aventura, só potencializa sua realização.

Se você sabe que não vai mudar de ideia, diga logo sim ou não, para que enrolar? Cuide do seu amor. Não dê corda para quem você não deseja por perto. Procure ajuda quando precisar. Não chegue atrasado. Não se envergonhe de gostar do que todos gostam: optar por caminhos espinhentos às vezes serve apenas para forçar uma vitimização. O mundo já é cruel o suficiente para ainda procurarmos encrenca e chatice por conta própria. Há outras maneiras de aparecer.

Temos escolha. De todos os tipos. As boas escolhas são divulgadas. As más escolhas são mais secretas e, por isso, confundidas com autenticidade, fica a impressão de que dificultar a própria vida fará com que o cidadão mereça uma medalha de honra ao mérito ao final da jornada. Quem acredita que o desgaste honra a existência, depois não pode reclamar por ter virado o super-herói de um gibi que ninguém lê.


João Chagas Leite - Conto de Fadas

Wilson Paim – Sinceridade

Wilson Paim - Te Amo

Wilson Paim - Te amo

Natura: Toda relação é um presente.


WALCYR CARRASCO
12/04/2013 22h07

Crueldade com cães

Fiquei comovido com a história do cachorro abandonado pelo dono na estrada BR-101, no Espírito Santo, que apareceu na internet. Deixado no acostamento, mas ainda fiel, o cão correu quilômetros atrás da caminhonete. A dentista Rafaela, que passava pelo local, registrou as imagens. Chegou a falar com o responsável. Ele se recusou a resgatar o animal. Rafaela salvou o cachorro. Deu-lhe o nome de Leleco e levou-o a um veterinário. Em seguida, hospedou-o num hotel canino, onde Leleco deverá permanecer até encontrar novo dono.

O que me assusta nesse episódio é a frieza do proprietário. Já adulto, o animal certamente viveu anos com esse homem e também, provavelmente, com a mulher que o acompanhava na caminhonete. O dono era sua referência de amor e proteção. Foi deixado à beira da rodovia, como se não houvesse nenhum laço entre proprietário e cão. Qual o objetivo de deixar um cachorro na estrada? É para ser atropelado ou morrer de fome?

O abandono de animais é frequente. Mesmo dos que têm pedigree. O casal compra o filhote e passa meses, até anos, encantado com o bichinho. Se tem filhos, vira mascote das crianças. Aí resolve fazer uma viagem longa. Ou mudar-se de uma casa para um apartamento. Leva o animal para um lugar distante, e adeus! O problema não é só brasileiro. Em países como França, Portugal e Espanha, é comum que cães comprados para fazer companhia no inverno sejam abandonados quando os donos saem para as férias de verão.

Na Itália, já houve até uma campanha contra isso. Na Inglaterra, uma organização chamada Dogs Trust pediu publicamente que animais de estimação não sejam oferecidos como presentes de Natal. Na festa, são recebidos com alegria. Mas a foto de dois cachorrinhos abandonados na neve após as comemorações ilustrou o que realmente acontece. Já tive uma faxineira que adorava seu vira-lata. Sempre me contava as gracinhas do animal. Um dia, chegou em casa com expressão tristíssima:

– Fui para bem longe de casa e abandonei o bichinho. – Por que fez isso? Você gostava dele! – perguntei. – Ah, mas ele latia muito.

Alguns dias depois, arrependeu-se. Foi procurar, não o encontrou mais. Tenho quatro cachorros. Luna, uma fêmea de husky branca, ganhei de presente. Kauê, um shih-tzu, foi dado por um amigo que não podia mais cuidar dele. A vira-lata Morgana apareceu na porta da casa de uma amiga, dentro de uma caixa, com dois irmãozinhos. Outra vira-lata, Ísis, foi resgatada na praia, magérrima, por um amigo. Na ocasião, a veterinária disse:

– Mais uma que está salva!

Deixar filhotinhos é comum. Os donos param os carros de noite. Descem sorrateiros. Botam a caixa num terreno baldio ou na frente de uma casa qualquer. Fogem, como se estivessem praticando um crime. De acordo com um projeto de lei brasileiro, estão mesmo. No futuro, casos assim poderão ser punidos com cadeia.
Qual o objetivo de abandonar um cachorro na estrada? É para ser atropelado ou morrer de fome?

Numa modalidade de abandono mais sofisticada, a pessoa interna o bicho numa clínica veterinária. Fornece nome e telefone falsos. O animal espera por seu dono com ansiedade. Os dias passam, e ele não aparece mais. Veterinários, por definição, amam animais. Costumam arcar com o prejuízo, até encontrar um novo lar para o coitado. Nem sempre conseguem. Quando o animal está velho ou doente, ninguém quer. Não é à toa que algumas clínicas exigem identidade, CPF e até comprovante de endereço quando surge um novo cliente.

A internet tem ajudado muito. É enorme o número de pessoas que põem fotos de animaizinhos à procura de um lar. Minha amiga Lavínia, paulista, é uma delas. Já parou o carro na estrada muitas vezes para pegar um cachorro. Leva ao veterinário, que faz preço especial nesses casos.

Depois, põe o cão de banho tomado e pelo escovado no Facebook. Faz pouco tempo, meu coração até bateu mais forte por causa de uma peludinha. Fiquei indeciso, por já ter quatro cães. Nesse intervalo, uma mulher apaixonou-se por ela. Lavínia mostrou a beldade com a nova dona na internet. Clima de felicidade total. Outra amiga, Vera, mulher do ator Fúlvio Stefanini, faz o mesmo. Passa a vida resgatando cães e encontrando novos donos.

Apesar de tanta gente apaixonada por animais, o problema permanece. O bicho deixado para trás passa fome e privações de todo tipo. Torna-se vítima de maus-tratos. Abandonar um animal é um ato de crueldade. Evidencia a falta de sentimentos de uma pessoa. Quem abandona é que não merece o amor de um cachorro.


CRISTIANE SEGATTO -
12/04/2013 16h59 -

O abraço e a flor

A campanha das enfermeiras e a necessidade diária de surpresa

Saí hoje cedo para caminhar com o objetivo de sempre: mexer o corpo, chacoalhar as ideias e ver a vida como ela é. A colheita não poderia ter sido melhor. Assim que dobrei a esquina, consegui minha dose diária de surpresa boa – tão necessária para mim quanto o sol de abril.

Meninas de 20 e poucos anos exibiam um cartaz que anunciava abraços grátis. Achei que fosse mais uma ação promocional das construtoras de apartamento que, nos últimos meses, passaram a perturbar os moradores na porta de todas as padarias da região.

Estava pronta para repetir o meu clássico “Não estou comprando nada. Só pão”, quando uma das garotas se aproximou. Meus braços foram mais rápidos que o raciocínio. Aceitei o abraço, retribuí, me emocionei. Talvez elas não tenham percebido (eu estava de óculos escuros), mas acho que meu corpo falou por mim.

Essa sou eu. As meninas são estudantes de enfermagem do Centro Universitário São Camilo. Nosso encontro melhorou meu dia.

A ideia de oferecer abraços em locais públicos se espalhou pelas cidades brasileiras nos últimos anos. São iniciativas inspiradas na campanha Free Hugs, criada em 2008 por um australiano. Os propósitos são variáveis.

Algumas ações são nobres e humanitárias. Outras não passam de estratégias comerciais para promover sites, empresas ou palestras de autoajuda.

No caso da enfermagem e da psicologia, a justificativa é a melhoria da qualidade de vida. Estudos demonstram que abraçar reduz os níveis de cortisol e norepinefrina, hormônios relacionados ao estresse crônico e à ocorrência de doenças cardíacas.

SURPRESA BOA - A flor das estudantes de enfermagem no jardim do meu prédio e no meu escritório. Como elas, acredito que o bem-estar pode ser contagiante 
(Fotos: Cristiane Segatto)

O abraço também aumenta a produção de dopamina e serotonina (hormônios do prazer) e de oxitocina (o hormônio do afeto). Quanto mais oxitocina o cérebro libera, mais a pessoa quer ser tocada e menos estressada ela fica. É um círculo virtuoso: quanto mais abraçada ela é, mais ela deseja ser abraçada. 

Um estudo realizado no ano passado pela Universidade Médica de Viena demonstrou que o abraço pode mesmo reduzir o stress, o medo e a ansiedade. A oxitocina liberada contribui para a redução da pressão arterial, aumenta o bem-estar e favorece o desempenho da memória.

No entanto, o neurofisiologista Jürgen Sandkühler, autor do trabalho, questiona o valor dos abraços recebidos de pessoas estranhas. A oxitocina é o hormônio produzido pela glândula pituitária, conhecido por favorecer o estabelecimento de laços afetivos entre pais e filhos e entre os casais.

“O efeito do abraço sobre a produção de oxitocina só ocorre quando existe confiança mútua”, diz. “Se o abraço não é desejado pelas duas pessoas, o efeito positivo se perde”, diz.
Em resumo: as pessoas precisam estar na mesma sintonia. Acredito que isso seja perfeitamente possível entre estranhos. Não sei se o nível dos meus hormônios aumentou, mas a iniciativa das estudantes de enfermagem alegrou meu dia. Espero que elas não percam a ternura quando a realidade da profissão se apresentar.

Como essas meninas, acredito que o bem-estar pode ser contagiante. Ao final de nosso breve encontro, uma delas me ofereceu uma flor feita com capricho e papel crepom.

Resolvi testar o poder da flor. Durante uma hora caminharia com ela na mão e observaria a reação de quem cruzasse meu caminho. Será que alguém notaria alguma coisa fora do script? Será que um sorrisinho escaparia dos lábios?

Na fila para pagar o cafezinho, notei a primeira demonstração de boa vontade. A flor escapou enquanto eu abria a carteira. Com a expressão tensa, o gerente correu para avisar: “Moça, alguma coisa caiu”. Abaixei para pegá-la e respondi: “Foi a flor”. Ele abriu um sorriso raro, sem nenhuma ruga na testa.

Segui meu caminho, em busca da dose diária de sol recomendada pelo médico e da vida que não está em nenhuma ferramenta de busca. Uma moça aflita olhou a flor e teve coragem de se aproximar.

“Por favor, estou numa emergência. Você pode me ajudar?” Quando perguntei qual era o problema, ela virou de costas e levantou a blusa. O fecho da roupa, na parte das costas, havia arrebentado. Restavam duas metades de tecido. A garota tinha uma entrevista de emprego num restaurante a poucos passos dali. Estava apavorada.

Para surpresa dos pedestres, parei na calçada para amarrar as duas partes da blusa de uma desconhecida. Tentei dar o melhor nó possível. Com uma jaquetinha jeans, ela cobriu o estrago. Depois agradeceu por eu ter aparecido na hora certa, no lugar certo. A flor não saíra da minha mão direita.

Três quadras depois, ela escapou, levada por uma ventania. Na tentativa de recuperá-la, cruzei a frente de cinco policiais. Com passos sincronizados e olhos bem abertos, eles registraram o único sinal aparente de desordem civil. A mulher que corria atrás da flor de papel crepom. Renderia uma foto de primeira página, mas acho que ninguém viu.

Voltei para casa com uma supersafra de gentilezas. Nunca ouvi, numa única manhã, tanta gente me desejando bom dia, tanto motorista me dando passagem, tanta conversa, tanto olho no olho, tanto sorriso. O tênis, a roupa, o percurso eram os mesmos. O que mudou foi o abraço e a flor.

Só um pedestre não viu nada. Bateu o portão de um prédio com fones enterrados no ouvido, óculos bem escuros, mochila estufada, ombros curvados para frente – aquele visual e aquele comportamento que são a marca do nosso tempo. Não do meu tempo, mas o de muita gente. Quase me atropelou, mas não notou minha presença. Muito menos a da flor.

quarta-feira, 10 de abril de 2013



10 de abril de 2013 | N° 17398
MARTHA MEDEIROS

Reconciliando-se com o próprio corpo

Pratico exercícios desde sempre. Já dancei jazz, nadei, joguei vôlei, fiz aeróbica, musculação, mas nada disso me tornou uma amante da vida esportiva. O que me levava a essa movimentação intensa era a consciência de que manter uma atividade física enrijece o corpo e oxigena a mente, então eu ia em frente sem pensar em prazer. Era uma necessidade, e pronto.

Aos poucos, fui largando tudo e mantive apenas as caminhadas, essas, sim, não apenas saudáveis, como prazerosas. Poderia passar o dia caminhando, não tivesse que reservar um tempo para exercícios cerebrais, como trabalhar e fazer palavras cruzadas.

Parecia tudo bem, até que uma médica me disse: caminhar é bom, mas não basta. Está na hora de você suar o top. E me recomendou pilates.

Modismo, chatice, tédio. Todas essas ideias me passaram pela cabeça, mas sou obediente, acato ordens, e me matriculei num pequeno estúdio a poucos passos da minha casa, conduzido por um casal de instrutores. Fui cair na mão dos melhores, posso apostar. Em três sessões, já percebia mudanças no meu corpo, na minha postura.

Quanto ao tédio, bom, não há tédio na dor. Às vezes, me sinto como se estivesse treinando para me apresentar no Cirque du Soleil. Recebo ordens inimagináveis: grude o umbigo nas costas, encolha as costelas, encoste o queixo no peito. Já houve caso de instruírem um rapaz a contrair o útero! Dá vontade de rir, mas não convém, temos que nos concentrar na respiração. Juro, com tudo isso, ainda pedem que a gente respire.

Então, de volta aos exercícios sem prazer?

Pois aí está a novidade: o prazer é de outra ordem. O pilates faz a gente mudar a maneira de pensar o corpo, o que deve ser a razão do seu sucesso mundo afora. Ao decidir praticar um exercício, muitas vezes ficamos condicionados aos benefícios externos de se estar em forma: a saúde é uma boa desculpa, mas a vaidade é que nos faz pagar a mensalidade da academia. Pois o pilates supera essa visão miúda, adicionando à prática uma reflexão que vai muito além do desejo de ser admirado.

Quando somos adolescentes, sentimos nosso corpo como parte indissolúvel do nosso ser. Porém, com o passar do tempo, acaba acontecendo uma dissociação – à revelia, nosso corpo começa a nos abandonar, a nos deixar na mão. A pele vai se soltando, os órgãos internos armam rebeliões, as articulações gritam, rangem – não me peça para explicar, mas nosso corpo ganha vida própria, se emancipa e não nos escuta mais.

O pilates é, antes de tudo, uma reconciliação com esse corpo que se tornou rebelde e fugidio. Ele sempre esteve a nosso serviço, mas pouco estivemos a serviço dele. Pois o pilates, feito um cupido, faz com que nós e nosso corpo passemos a nos conhecer mais profundamente e a descobrir o que nem sabíamos um do outro, mesmo com tantos anos de convívio.

Basicamente, pilates é o resgate do amor entre você e o que você traz dentro. Mesmo que seja um útero que você nem tem.

sábado, 6 de abril de 2013



07 de abril de 2013 | N° 17395
MARTHA MEDEIROS

Admitir o fracasso

Eu estava dentro do carro em frente à escola da minha filha, aguardando a aula dela terminar. A rua é bastante congestionada no final da manhã. Foi então que uma mulher chegou e começou a manobrar para estacionar o seu carro numa vaga ainda livre. Reparei que seu carro era grande para o tamanho da vaga, mas, vá saber, talvez ela fosse craque em baliza.

Tentou entrar de ré, não conseguiu. Tentou de novo, e de novo não conseguiu. E de novo. E de novo. Por pouco não raspou a lataria do carro da frente, e deu umas batidinhas no de trás que eu vi. Não fazia calor, mas ela suava, passava a mão na testa, ou seja, estava entregando a alma para tentar acomodar sua caminhonete numa vaga que, visivelmente, não servia. Ou, se servisse, haveria de deixá-la entalada e com muita dificuldade de sair dali depois. Pensei: como é difícil admitir um fracasso e partir para outra.

Para quem está de fora, é mais fácil perceber quando uma insistência vai dar em nada – e já não estou falando apenas em estacionar carros em vagas minúsculas, mas em situações variadas em que o “de novo, de novo, de novo” só consegue fazer com que a pessoa perca tempo. Tudo conspira contra, mas a criatura teima na perseguição do seu intento, pois não é do seu feitio fracassar.

Ora, seria do feitio de quem?

Todas as nossas iniciativas pressupõem um resultado favorável. Ninguém entra de antemão numa fria: acreditamos que nossas atitudes serão compreendidas, que nosso trabalho trará bom resultado, que nossos esforços serão valorizados. Só que às vezes não são. E nem é por maldade alheia, simplesmente a gente dimensionou mal o tamanho do desafio. Achamos que daríamos conta, e não demos. Tentamos, e não rolou. “De novo!”, ordenamos a nós mesmos – e, ok, até vale insistir um pouquinho.

Só que nada. Outra vez, e nada. Até quando perseverar? No fundo, intuímos rapidinho que algo não vai dar certo, mas é incômodo reconhecer um fracasso, ainda mais hoje em dia, em que o sucesso anda sendo superfaturado por todo mundo. Só eu vou me dar mal? Nada disso. De novo!

De-sis-ta. É a melhor coisa que se pode fazer quando não se consegue encaixar um sonho em um lugar determinado. Se nada de positivo vem desse empenho todo, reconheça: você fez uma escolha errada. Aprender alemão talvez não seja para sua cachola. Entrar naquela saia vai ser impossível. Seu namorado não vai deixar de ser mulherengo, está no genoma dele. Você irá partir para a oitava tentativa de fertilização?

Adote. E em vez de alemão, tente aprender espanhol. Troque a saia apertada por um vestido soltinho. Invista em alguém que enxergue a vida do seu mesmo modo, que tenha afinidades com seu jeito de ser. Admitir um fracasso não é o fim do mundo. É apenas a oportunidade que você se dá de estacionar seu carro numa vaga mais fácil e que está logo ali em frente, disponível.



06 de abril de 2013 | N° 17394
 NILSON SOUZA

Retrospectivas

Que ano! – comentei com meu tocaio Nílson Vargas, enquanto ele se esmerava para fazer mais uma manchete para a capa de Zero Hora. Não passa semana sem um evento extraordinário, capaz de causar perplexidade até mesmo em jornalistas rodados como nós.

Lembramos juntos, sem esforço e desconsiderando fatos de média importância, a tragédia de Santa Maria, a renúncia do Papa, a escolha de um argentino humilde para o comando do Vaticano, o meteorito que atingiu a Rússia, a arrastada desencarnação de Hugo Chávez e, agora, o assassinato em série de taxistas no Estado. Isso em pouco mais de três meses.

– Já temos material suficiente para o caderno de retrospectiva – retrucou meu xará, sem tirar os olhos da tela do computador.

Verdade, pensei, e emendei um outro pensamento preocupante: o que será que nos falta acontecer nos nove meses restantes de 2013?

Fim do mundo não vale, isso tem todos os anos e nunca dá em nada. Vida extraterrestre? Talvez. Aí tem uma possibilidade concreta, segundo os cientistas, pois os avanços tecnológicos nos permitem cada vez mais espionar novos mundos.

Além disso, já mandamos tanto lixo para o espaço, que daqui a pouco é bem capaz de aparecer por aqui algum homenzinho verde para reclamar. Mudanças significativas na ordem mundial?

Como o maior arsenal da Coreia do Norte parece ser de bravatas, talvez num futuro mais distante. Não faltam previsões de que nas próximas décadas poderemos ter um governo global, moeda única e no máximo três idiomas predominantes – o óbvio inglês, o emergente mandarim e muito provavelmente o espanhol. Vem aí mais flauta argentina.

Mas não vamos tão longe nesta retrospectiva que virou prospecção. Gostaria de saber o que os profetas preveem para o restante deste ano atípico que não para de nos surpreender. Li outro dia que desde 1987 não tínhamos um ano sem números repetidos.

O que isso significa? Provavelmente nada, como diria o Tadeu Schmidt. Mas um ano terminado em 13 deve ter lá os seus sortilégios. Já li também que o número preferido do Zagallo representa o início e o fim de tudo, e está associado ao mito de Sísifo, aquele personagem mitológico condenado a empurrar uma pedra morro acima pelo resto de sua eternidade, pois ela sempre rola de volta e ele tem que reiniciar o trabalho.

Mais ou menos como fazemos nas nossas retrospectivas jornalísticas. A gente tem a impressão de que viveu um ano em três meses, mas a verdade é que a pedra da imprevisibilidade sequer percorreu a metade do caminho. Força, gente!

Ruth de Aquino

O ônibus e a van

São dois crimes bem diferentes na essência: o ônibus que despencou de um viaduto, matando sete e ferindo nove, e o estupro coletivo de uma americana numa van. Duas coisas aproximam os crimes. A primeira é o cenário: a cidade do Rio de Janeiro, um dos destinos mais na moda hoje no mundo, sonho de consumo de jovens estrangeiros. A segunda é o caos do transporte formal e informal, a máfia de empresas legais e ilegais. O Rio costuma ser adorado pelos turistas, mas uma das críticas mais comuns é: “Os motoristas de ônibus e de van são loucos”.

Por “loucura”, entenda-se: andam em altíssima velocidade em carcaças velhas, saem costurando todo mundo, ultrapassam sinais vermelhos, aceleram nos amarelos, inclinam-se em curvas como se fossem pilotos de corrida, sobem na calçada, atropelam ciclistas e pedestres, não respeitam faixa, fecham os carros e os cruzamentos, não param nos pontos, dirigem falando ao celular, não têm paciência com passageiros idosos, trabalham irritados e cansados por horas extras e engarrafamentos. É claro que esse não é o retrato de todos os motoristas dos 8.777 ônibus do Rio.

Mas os maus motoristas são suficientes para construir uma imagem de irresponsabilidade e insegurança. No caso do ônibus emborcado abaixo do viaduto da Avenida Brasil, via de acesso ao Rio, a principal causa pode ter sido uma briga entre um passageiro universitário e o motorista. O veículo já tinha 46 multas.

As vans, muitas caindo aos pedaços e irregulares, andam de portas abertas, gritam o destino, mexem com as moças que passam, cantam os pneus gastos, param subitamente sem sinalizar em qualquer ponto da avenida, alheias ao risco de acidentes. As 6 mil vans do Rio são um penduricalho aceito para suprir as deficiências do transporte público formal. Uma terra de ninguém sobre rodas. Isso quando não são dirigidas por bandidos, como os que violentaram a americana e algemaram seu namorado, agredindo-o com uma barra de ferro.

Os dois jovens pegaram a van em Copacabana, a princesinha do mar, para ouvir música na Lapa, um dos programas mais recomendados pelos guias oficiais. O show foi de estupro, agressão e assalto. Não esquecerão o pesadelo.
Dois crimes chocantes na semana. Na cidade que vai receber o papa e a Olimpíada, está acesa uma luz vermelha

Acabo de chegar de Nova York. Fiquei no bairro do Brooklyn e usei metrô o tempo todo, feliz da vida. Com um bilhete de viagens ilimitadas por uma semana, a um custo de US$ 29, percorri distâncias infinitas em horários mais e menos movimentados. Misturei-me a pessoas de todas as idades, de bebês a octogenários, de todas as ascendências, cores, nacionalidades e classes sociais, que dependem do transporte público para trabalho ou lazer. O metrô de Nova York tem pouco mais de 100 anos, pouco menos de 500 estações, espalha-se por 370 quilômetros. A média de viagens, na semana, é de 5 milhões por dia. Funciona 24 horas por dia, 365 dias por ano.

Sentada ou em pé nos vagões nova-iorquinos, antes dessas tragédias no Rio, eu já pensava na equação perversa do subdesenvolvimento: por que os países onde há mais pobres são os que menos investem no bem-estar público? Por que despejar tantos carros particulares a mais nas ruas se não há espaço para eles? Por que quase tudo que é público é tão ruim no Brasil, a sétima economia do mundo? Por que maltratar quem mais precisa de transporte, educação e saúde?

Como sou carioca, falo com tristeza especificamente deste momento do Rio: a cidade está infernal, barulhenta, intransitável, poluída, malcheirosa e mal-educada. Um dos maiores motivos do estresse é a falta de um transporte público amplo, fiscalizado e decente. É inconcebível que a rodoviária (indigna da cidade) e os aeroportos não estejam conectados com os vários bairros. Para sediar eventos internacionais com menos atropelos, o Rio precisa mesmo decretar feriado. Cria-se uma vida artificial temporária para fazer de conta que tudo funciona.

Não é só o Rio que pede socorro. Os paulistanos sabem muito bem disso, um ônibus despencou num barranco na Zona Sul na sexta-feira (“por causa da chuva”...) e motociclistas e ciclistas morrem como moscas no trânsito da capital.

Os brasilienses também sabem disso, bastou um carro inocente ser parecido com um carro roubado para um universitário acabar morto com um tiro na cabeça, disparado por PMs ignorantes ou truculentos. José Pereira, de 27 anos, saíra da faculdade em Taguatinga e ia para casa de carona com amigos.

Nenhum país e nenhuma grande cidade estão livres de tragédias, mas o noticiário no Brasil está de lascar. Ficou muito difícil assistir a um telejornal sem se deprimir. Na cidade que vai receber o papa e a Olimpíada, está acesa uma luz vermelha.

quarta-feira, 3 de abril de 2013



03 de abril de 2013 | N° 17391
MARTHA MEDEIROS

Recebendo as visitas

Sempre me fascinou a maneira como tanta gente recebe amigos em casa de forma absolutamente desestressada. As visitas chegam sem avisar, abrem a geladeira, se esparramam no sofá e está tudo certo, desde que sejam íntimas. Se não forem íntimas, tornam-se.

Nesse aspecto, minha educação foi mais cerimoniosa. Gosto de ser avisada que virão à minha casa, até para ter tempo de me preparar: comprar algumas flores, abastecer a geladeira, deixar a música no ponto. Adoro receber, desde que me deem a chance de esperar meus convidados como acho que devo. Na contramão da maioria das pessoas, prefiro a previsibilidade ao ataque surpresa.

Não sei de onde vem essa formalidade, deve ser cultura familiar. Lembro de ouvir recomendações quando criança: trate bem as visitas. Mesmo eu não conhecendo alguns amigos dos meus pais, era obrigatório ir até a sala, de pijama e dentes escovados, cumprimentar os adultos e dar boa-noite. Podia ser aborrecido, mas não havia negociação.

Então, ficou incrustada em mim essa reverência prestada a todos os que nos visitam – mandam os bons modos oferecer ao menos um copo d’água, convidar para sentar, ser atencioso e procurar causar uma boa impressão.

Talvez seja por isso que a cada vez que ouço a notícia de que um turista estrangeiro sofreu alguma selvageria em nosso país, sou tomada pela vergonha. Óbvio que qualquer crime, contra qualquer pessoa, é chocante e inadmissível, mas o turista atacado me parece ainda mais indefeso do que nós: ele não conhece as manhas das nossas cidades, não fala nosso idioma, está aqui apenas para se divertir, e de repente sofre um assalto brutal e tem sua dignidade profundamente atingida, como foi o caso do casal de namorados que há poucos dias entrou numa van em Copacabana e acabou sofrendo abusos por seis horas nas mãos de delinquentes.

Cadê o copo d’água, a atenção?

É só assistir aos telejornais para perceber que o Brasil não mudou tanto quanto apregoa. Manicure mata criança, motorista atropela e foge, torcedores se agridem. E proliferam os roubos de carros, arrastões em restaurantes, depredação de caixas eletrônicos. Difícil nossas atrações turísticas competirem com o produto brasileiro mais divulgado lá fora: a violência.

Claro que existe o vice-versa: nem sempre brasileiros são recebidos no Exterior com tapete vermelho, como demonstram os casos de deportações sumárias e assassinatos inexplicáveis, a exemplo do garoto que recebeu vários eletrochoques disparados por policiais canadenses ou o famoso episódio envolvendo Jean Charles, que foi abatido a tiros num metrô de Londres.

Mas não atenua. Sigo muito envergonhada. Se vieram pacificamente até a nossa casa e abrimos a porta, que façamos a gentileza de deixar o cachorro preso.

terça-feira, 2 de abril de 2013



02 de abril de 2013 | N° 17390
FABRÍCIO CARPINEJAR

Dane-se a fila

O que sou não deve ser regra de convivência. O que sou morre comigo.

Descobri que amar não é fazer com que o outro siga meu ritmo insano.

Isso é ditadura.

Amar não é puxar a namorada para o nosso fôlego, não é arrancá-la de seu temperamento e forçar semelhanças. Isso é indiferença. Amar não é punir atrasos e castigar descompassos.

Isso é tortura.

Amar não é ameaçar com frases egoístas como “A fila anda”. É o contrário: é perder o lugar na fila, é ceder seu lugar na fila, é regressar ao início da fila.

Amar é estranhamente recuar. É encurtar as pernas para melhor passear, alongar os braços para melhor entrelaçar os dedos.

O apaixonado não impõe seu temperamento, acostuma-se a caminhar diferente, olhando ao lado. O lado passa a ser a nossa frente. Quem nos ladeia é o nosso horizonte.

Surgirá um contratempo de sua companhia, uma dificuldade inesperada e se verá contrariando seus planos para ajudar – só tem pressa quem não tem urgência. Amar é proteger mais do que avançar, é cuidar mais do que atingir objetivos, é apoiar mais do que se vangloriar da distância.

Foi a minha avó Mafalda que me explicou. Ficava muito irritado pelo seu trotear na Rua Corte Real. Era velhinha, manca e, além de tudo, distraída. Ela me obrigava a participar de sua andança fisioterápica depois do almoço. Um quarteirão correspondia a queimar calorias de quatro quilômetros.

– Meu neto, é bom acompanhar um familiar doente, pois amar é ir aos poucos, é lentidão por fora e interesse por dentro – ela dizia.

Não fazia lógica para mim. Amar parecia voar, correr, atropelar. Amar significava velocidade, superação, afoiteza. Amar traduzia liberdade, transgressão, não se intimidar com os limites.

Eu me enganei, vó. Seu andar miúdo, pequeno, de bengala, pesando cada pé no chão, me ofereceu uma aula emocional. Nenhum casal corre de mãos dadas.

Amar é aguardar se necessário, voltar atrás se preciso, criar um novo passo para atender os dois. Se fui apressado para conquistar minha mulher, agora devo ser lento, estar com ela é meu destino. Amar é proteger mais do que avançar, é cuidar, é apoiar.



02 de abril de 2013 | N° 17390
DEBATE TRANSPORTE PÚBLICO - Roberto Rachewsky*

Nada pode ser mais injusto

A prefeitura de Porto Alegre foi alvo de grupos político-partidários que recrutam baderneiros travestidos de estudantes para pressionar o governo se utilizando de todas as formas ilegítimas de manifestação.

O poder público e os fora da lei reúnem-se em programas de rádio e televisão para fazerem acusações mútuas.

Podemos ver que os baderneiros, que deveriam ser responsabilizados criminal e pecuniariamente pelos danos que causaram, não têm razão nas suas demandas, seja no campo jurídico, seja no campo econômico, ao reclamarem do preço das passagens de ônibus, desconsiderando as causas dos aumentos e evadindo-se do fato de que um terço dessas passagens são fornecidas gratuitamente, onerando, assim, o custo total do serviço pago pelos dois terços de pobres coitados.

Do outro lado, o poder público se defende com justificativas legais e econômicas para explicar que a prefeitura é pródiga em tirar arbitrariamente do bolso de uns para, demagogicamente, dar a outros sob variadas motivações como a elevada idade do passageiro, a sua ocupação ou condição física. Para um político, sempre haverá alguém a ser satisfeito em troca de votos.

O que ninguém faz é discutir sobre as reais causas de termos um serviço de transporte coletivo público tão ineficiente, caro e, como vemos, polêmico ao ponto de parar uma cidade pelo evento de uma batalha campal entre forças bárbaras e as do status quo.

No debate, apegam-se a paliativos que pouco amenizam os sintomas do problema e muito contribuem para agravá-lo.

Ao restringir o acesso ao mercado de potenciais ofertantes, privilegia alguns com injustificada reserva de mercado, gerando incompetência, elevação dos preços, queda da qualidade dos serviços e muda o foco do empresário, que deveria ser o consumidor, para o burocrata que lhe outorga os benefícios. Sempre que no lugar do consumidor estiver um burocrata a conceder privilégios àqueles que participam num determinado mercado, estes estarão mais sujeitos à corrupção do que à insatisfação de seus usuários.

Não é à toa que permissões para a exploração dos serviços de transporte público valem tanto.

Ao estabelecer regramentos baseados nos conceitos burocráticos do poder público e não na vontade dos consumidores, que somente num livre-mercado poderia ser percebida e satisfeita com justeza, o governo desagrada a quase todos, pois não é onisciente nem onipotente ao ponto de saber sobre todos os desejos e vontades da população, nem as capacidades e vontades dos fornecedores daquele serviço controlado.

Assim, linhas a serem percorridas, cores dos veículos, tamanho dos carros, valor das tarifas, tipo de combustível etc., hoje definidos em gabinete, desprezam os interesses particulares dos indivíduos que se utilizam desses serviços ou os proveem.

A intervenção do Estado, que perverte a lei, colocando-a a serviço de demagogos e populistas, cria uma sociedade de usurpadores dos direitos individuais, onde tirar à força de uns para dar a outros, onde tirar a liberdade de iniciativa de uns para privilegiar outros, onde uns definem impositivamente o que outros, que inclusive pagam por isso, deverão usufruir, é o Estado totalitário aplicado à vida dos indivíduos no exercício de suas vontades e necessidades no dia a dia.

Quando o governo resolve agradar a todos de forma centralizada, ganha mais quem grita mais alto. É o que baderneiros sabem fazer mais do que o cidadão comum sem tempo de gritar, pois lhe é exigido trabalhar para seu sustento, para sustentar os que legislam e os que são beneficiados, como parasitas, pelas leis que são estabelecidas.

Tarifas caras e serviços ruins só têm um antídoto viável, a livre concorrência.

A justiça somente será encontrada quando deixarmos de botar a mão no bolso alheio e o alheio deixar de botar a mão no nosso. Será o fim da hipocrisia e o início do fim da barbárie.

*CONSELHEIRO DO INSTITUTO DE ESTUDOS EMPRESARIAIS E DO INSTITUTO LIBERDADE