sábado, 29 de julho de 2023


29 DE JULHO DE 2023
MONJA COEN

TRANSMISSÃO

A missão transmitida, passada, transformada, continuada. Receber é transmitir: são palavras usadas no Zen. E não é assim? Para tudo. Recebemos o vírus e transmitimos o vírus. Recebemos os preceitos, fazemos o compromisso de uma vida ética e responsável e transmitimos os preceitos.

Passei a semana toda nos trabalhos misteriosos e secretos da transmissão do Darma ao meu discípulo Jozen, monge de Campina Grande, na Paraíba. Foi em 9 de outubro de 2009 que Jozen recebeu os preceitos laicos e se tornou um discípulo de Buda. Seu nome significa Puro Zen. É professor de Geografia, marido, pai e fundador de um Centro Zen na casa onde reside. Atualmente, está desenvolvendo um projeto de construção de um espaço que venha a se tornar um templo Zen.

Foi ordenado monge em 2011 e tem se dedicado a estudar e propagar os ensinamentos de Buda. De 21 a 27 de julho, passou sete dias e sete noites praticando Zazen, liturgias, orações e copiando textos muito antigos que têm sido passados de geração em geração de forma correta e contínua.

Receber é transmitir. Transmitir é despertar. Nossa proposta de vida Zen é provocar o despertar da mente de sabedoria e compaixão. Perceber e facilitar para que outros percebam como estamos interligados a tudo e a todos: somos a vida da Terra.

Queremos salvar o planeta? Queremos que a Terra esteja saudável e produza alimentos que satisfaçam a necessidade de todas as formas de vida? Cuidamos da integridade das relações humanas entre nós, seres humanos, e entre todas as formas de vida que nos mantêm vivos? Será que respeitamos homens, mulheres, crianças, idosos sem distinção? 

Somos capazes de tratar cada criatura com o cuidado adequado às suas necessidades verdadeiras? Somos capazes de provocar as pessoas a ter maior consciência de sua posição no mundo, de seu papel na manutenção das causas e condições de uma vida plena ao maior número de seres? Será que compreendemos a alegria e prazer de viver em um mundo pacífico, sem medos e sem ameaças? Podemos confiar uns nos outros? Podemos confiar em nós mesmos?

"Afinal, tudo que está sob o Sol está afinado. Mas o Sol está encoberto pela Lua."

As frases acima são de uma música de um grupo inglês de rock chamado Pink Floyd. Refletem um pensamento Zen: estamos todos sempre nas mãos de Buda e interligados na grande harmonia cósmica. Tudo que possa nos acontecer, tudo que está acontecendo, tudo que já passou e tudo que será, está em harmonia. Harmonia de acordo com as causas e condições que produzimos, criamos.

Somos vítimas e vitimadores. Pacifistas e guerreiros. Amamos e odiamos. Somos neutros e frios, militantes e quentes. Somos todas as possibilidades de sentimentos e processos mentais humanos. Os graus variam. Graus de descompasso, ritmo. Graus de harmonia, algumas desarmônicas.

Por exemplo, na música, os blues têm uma nota triste, melancólica. Ficamos assim azulados, sentimentais, sofridos. Ah! Santa Sofrência!

Ainda bem que você existe e nos permite amar, sentir apreensão, ansiedade, tristeza e um incessante recomeçar. Refazer relações e rever a realidade. Compartilhar e agradecer a vida em cada instante. Criar causas e condições capazes de produzir benesses.

Receber é transmitir. Recebam e transmitam a verdade e o caminho. Recebam e transmitam o Bem. Lembrem-se sempre de seus professores e professoras, mestres e mestras, pais, ancestrais, amigos, parentes. Saber agradecer é essencial para uma vida plena.

Transmito o Darma que recebi e tem sido passado de geração a geração numa corrente direta e inquebrantável. Nosso voto, ao receber os ensinamentos, é o compromisso de não permitir que os ensinamentos desapareçam. Que assim seja!

Mãos em prece

MONJA COEN

29 DE JULHO DE 2023
DRAUZIO VARELLA

OS MALES DA SOLIDÃO

Somos animais gregários, porque a formação de grupos foi essencial à sobrevivência dos nossos ancestrais. Que chance teríamos de escapar das feras se andássemos sozinhos pelas savanas da África, quando descemos das árvores? Nossa necessidade de companhia é tanta, que ficamos infelizes ao passar um mísero sábado à noite sozinhos, em casa.

Os benefícios de uma vida em contato com os familiares, cheia de amigos e de relações sociais estão ligados à satisfação no trabalho, à prosperidade financeira, à sensação de bem estar e à realização de sonhos e desejos pessoais.

Nos últimos anos, disciplinas como epidemiologia, neurociência, psicologia e sociologia demonstraram que a existência de conexões sociais sólidas tem valor preditivo em relação à longevidade e à boas condições físicas, cognitivas e mentais. Por outro lado, na ausência dessas conexões ocorre o oposto.

Inquéritos populacionais com participantes saudáveis têm confirmado essas conclusões: quanto mais abrangentes as relações sociais, maior a longevidade. Ao contrário, solidão e isolamento aumentam o número de mortes precoces.

Um dos primeiros estudos longitudinais com grande número de participantes, publicado em 1979, mostrou que a falta de contatos sociais mais do que duplica o risco de morte. Numa revisão de 148 estudos, com pessoas saudáveis acompanhadas por um período médio de 7,5 anos, a existência de conexões sociais sólidas reduziu as taxas de mortalidade em cerca de 50%.

Os autores destacam o fato de que solidão e isolamento social causam aumentos de mortalidade comparáveis aos de fatores comportamentais, como sedentarismo, fumo e álcool. Comparável, também, aos de problemas clínicos: hipertensão arterial, índice de massa corpórea elevado e colesterol alto. Os malefícios são semelhantes aos da poluição ambiental. Segundo eles, solidão e isolamento social são tão perigosos quanto fumar 15 cigarros por dia ou tomar seis doses de bebida alcoólica diariamente.

O isolamento e a solidão estão associados a aumento da morbidade por infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral (AVC). Numa síntese de 16 estudos, o risco de sofrer infarto aumentou 29%, e o de AVC, 32%. A vida solitária aumenta também o número de infartos fatais.

Uma pesquisa realizada entre pacientes com doenças cardiovasculares demonstrou que a solidão aumenta em 57% o número de hospitalizações e em 26% o de consultas ambulatoriais, eventos que aumentam os custos da assistência médica.

O fato de a hipertensão arterial incidir com mais frequência na raça negra - justamente a mais desfavorecida economicamente - e nos adultos mais velhos, explica porque os níveis de pressão são controlados com mais dificuldade nesses grupos. Nos hipertensos solitários, o risco de complicações ultrapassa aquele dos que sofrem de diabetes.

Em mulheres com mais de 70 anos, a solidão aumenta a probabilidade de desenvolver diabetes. A maior dificuldade de controlar os níveis de glicemia de quem vive isolado explica o maior número de complicações: infarto do miocárdio, AVC, retinopatia, neuropatia periférica e insuficiência renal crônica.

Os dados publicados pela National Health Nutritional Examination Survey, conduzida em pessoas com diabetes, revelaram que aqueles com menos de seis amigos próximos apresentam mortalidade mais alta, independentemente da causa de morte.

Nos mais velhos, o isolamento e a solidão guardam relação direta com a velocidade do declínio cognitivo e com o aumento do risco de demência. Um trabalho que acompanhou mulheres e homens na velhice, durante 12 anos, mostrou que as habilidades cognitivas declinam 20% mais depressa nos solitários.

Diversas publicações calcularam que isolamento e solidão duplicam o risco de desenvolver depressão e ansiedade. Nas crianças, esse risco chega a permanecer elevado por até nove anos. A convivência com um círculo maior de amizades reduz em 15% o risco de depressão e ansiedade em quem passou por experiências traumáticas.

Isolamento social é o fator preditivo mais forte para ideações suicidas e tentativas fatais ou não.

Sempre soubemos que famílias unidas, muitos amigos e relações sociais gratificantes contribuem para uma vida plena. Não sabíamos é que o isolamento e a solidão fazem tanto mal à saúde.

DRAUZIO VARELLA

29 DE JULHO DE 2023
J.J. CAMARGO

O QUE A GENEROSIDADE FAZ COM AS PESSOAS

"A verdadeira generosidade é você dar tudo de si e ainda sentir-se como se isso não lhe tivesse custado nada." (Simone de Beauvoir). Há muito se sabe que fazer o bem faz melhor àquele que o fez do que àquele que o recebeu.

O sentir-se bem sendo generoso está na essência do gesto e não no tamanho da doação. Não importa que o doador seja milionário, para quem a doação não tenha uma súper dimensão material. O que importa é o quanto a decisão de doar, o que quer que seja, tenha servido para modificar a vida de alguém.

Os que descobriram o encanto de doar passam a ser movidos pela gratidão do outro e se transformam, geralmente sem perceber, em arautos da doação, porque faz parte da personalidade da generoso, muito mais do que o bem material doado, servir de modelo a quem ainda não descobriu o fascínio de se envolver em uma tarefa solidária que, pela pureza de intenções, desencadeia um efeito cascata que ultrapassa os limites de própria individualidade.

Da minha experiência na Clínica Mayo, chamou-me a atenção que a maioria dos edifícios da instituição tivesse o nome de alguma família doadora. Indo atrás do motivo da doação, encontrei relatos geralmente envolvendo uma experiência médica bem-sucedida em que um familiar tinha sido salvo e o mérito atribuído a excelência do atendimento médico.

Mas na maioria dos casos uma placa ao pé do busto de um casal doador anunciava o gesto como retribuição ao trabalho oferecido e um estímulo para que a obra social se mantivesse.

A nossa Santa Casa, como hospital filantrópico, muitas vezes tem sido destinatária de doações de pessoas ou famílias que se sensibilizaram com o reforço institucional para tratar com dignidade os indigentes na era pré-SUS e depois (1988) para assegurar que os todos os pacientes tivessem acesso à tecnologia moderna que o SUS, com suas restrições econômicas, não conseguiria oferecer.

Famílias e grandes empresas com senso de responsabilidade social têm contribuído, de maneira mais expressiva ao longo dos últimos 40 anos, não apenas para restaurar a estrutura física, como construir unidades novas que qualificaram a instituição como um moderno complexo hospitalar que nunca negligenciou sua missão de misericórdia, expressa pela oferta de idêntica sofisticação tecnológica entre pacientes do SUS ou de convênios, usando o lucro do atendimento privativo para subsidiar o déficit do SUS.

Neste sentido, a inauguração do oitavo hospital do complexo terá importância fundamental na sustentabilidade futura da Santa Casa. A generosa contribuição do casal Alexandre Grendene e Nora Teixeira foi, e continuará sendo, decisiva para a concretização desse projeto, que, mais do que empolgação, exigirá continuidade.

Foi comovente e emocionante observar a reação da Nora quando soube que teria seu nome na linda fachada do hospital. Mas a comemoração durou pouco. Ela só quer saber dos novos projetos, envolvida que está neste círculo virtuoso que toma conta das pessoas bem resolvidas, que descobriram o incomparável prazer de cuidar de alguém e alcançaram a transcendência que envolve a percepção de que nada encanta mais do que dar a um desconhecido uma alegria que sozinho ele nunca conseguiria.

J.J. CAMARGO

29 DE JULHO DE 2023
CARPINEJAR

A almofada do torcedor

Eu tenho saudade dos jogos de futebol de antigamente. Você ia ao estádio como quem se dirigia para uma rodoviária, com sua malinha, com seu kit básico de torcedor. Além da camiseta do seu time no corpo, carregava um radinho de pilha e uma almofada. Os mais velhos não abdicavam da almofada para se sentar na pedra fria.

As arquibancadas, desprovidas de cobertura, tinham degraus de concreto. Com a sucessão de chuvas, ficavam úmidas por um bom tempo. Encharcavam a calça, com infiltração na sua roupa de baixo. Cadeiras eram destinadas à direção, em áreas restritas a conselheiros e ex-presidentes. O equivalente ao camarote de hoje.

Sócio-raiz se deslocava pela cidade com o travesseirinho quadrado e magro de seu clube, estampado com o símbolo e as cores de sua paixão. Ninguém se envergonhava do assento portátil. O material se mostrava surrado de vários campeonatos, com a espuma já fina. Podia-se constatar a fidelidade do sócio pelo estado da almofada. O suvenir costumava ser arrematado no comércio das imediações do estádio por raro impulso de um título.

Sem celulares, o rádio reinava solitário. Entenda que não se usava fone de ouvido. A solidão da escuta surgiu nas últimas décadas. Você brigava com a algazarra da torcida, com o som ambiente, para ouvir o narrador. Alguns levavam aparelhos grandes nos ombros, concentrando-se para entender o que estava sendo dito pela emissora. Nos arcaicos Beira-Rio e Olímpico, ocupavam os melhores lugares aqueles que chegassem primeiro.

Quem permanecesse de pé em lances sem emoção, de troca apática de passes, corria o risco de receber um banho de mijo. Até hoje não foi provada a lenda urbana. Mas, para tirar as pessoas da frente, jogavam-se copos de cerveja quente. Não acredito que alguém mijaria dentro de um copo fora dos laboratórios médicos. Mas que o líquido parecia mijo, parecia.

Em épocas loucas do nosso fanatismo, vaias acabavam representadas com arremesso de pilhas no campo. Gols históricos acabavam comemorados com uma renúncia ainda maior de objetos de estimação: incríveis radinhos lançados para cima, que se despedaçavam no chão, pisoteados pelos pulos da massa.

Não havia pipoca. Não havia bombonière. Não havia pizza ou cachorro-quente gourmet. Você nem abandonava a sua localização no intervalo do primeiro para o segundo tempo. Com a multidão ávida por um ângulo privilegiado da partida, jamais recuperaria o seu local.

Você se valia dos ambulantes para comprar amendoim com casca. Matava a sua ansiedade procurando os grãos, as joias nos aquedutos da semente. Fazia um prodigioso ninho debaixo dos seus pés, um tapete da sua fé.

As pedras do amendoim agiam como um terço improvisado, na reza incansável por uma vitória. Não se passava por dificuldades constrangedoras para quebrar as nozes no Natal, de tanto esmagar amendoim entre os dedos ao longo do ano.

CARPINEJAR

29 DE JULHO DE 2023
PREVIDÊNCIA SOCIAL

Processos sobre revisão da vida toda são suspensos

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu a um pedido do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e determinou a suspensão de todos os processos sobre o tema da revisão da vida toda que tramitam na Justiça. A suspensão valerá até o julgamento do recurso apresentado pela autarquia.

Segundo a assessoria do STF, "a suspensão temporária é para garantir uniformidade e segurança jurídica". A Corte vai decidir no período de 11 a 21 de agosto, no plenário virtual, se confirma ou rejeita a decisão de Moraes.

O tema foi analisado em dezembro do ano passado pelo Supremo. Pelo novo entendimento, aposentados poderão solicitar que toda a vida contributiva seja considerada no cálculo do benefício. Até então, só eram consideradas as contribuições a partir de julho de 1994 - quando o Plano Real foi implementado e ajudou a conter a hiperinflação e a estabilizar a moeda.

O INSS, contudo, alegou em fevereiro não ter condições de revisar os benefícios. No pedido feito ao STF, a autarquia disse que o cumprimento da decisão "extrapola as suas possibilidades técnicas e operacionais" e apontou a necessidade de realizar alterações de sistemas, rotinas e processos com "impacto orçamentário de milhões de reais".

Modulação

"O volume de pessoas que podem eventualmente pleitear a revisão sem a correta delimitação do sentido e do alcance da tese firmada com a necessária integração do julgamento dos embargos de declaração é enorme, pois no período que vai de 26/11/1999 a 12/11/2019 - vinte anos - o INSS concedeu 88.307.929 benefícios, nem todos alcançados pela tese firmada na presente repercussão geral, o que ficará mais claro a partir do julgamento dos embargos de declaração ora interpostos", sustentou a autarquia por meio da Advocacia-Geral da União (AGU). Em resposta, na época, Moraes solicitou o envio de um cronograma de pagamento para averiguar o planejamento da autarquia antes de conceder a suspensão.

O INSS também incluiu no recurso pedido para que a modulação dos efeitos da decisão exclua a possibilidade de revisar benefícios extintos e anular decisões que negaram direito à revisão no passado.


29 DE JULHO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

VIOLÊNCIA E VIOLENTOS

A violência domina nosso dia a dia. Já temos temor de sair à rua, mais ainda falando ao celular, até nas urgências. Às noites, tudo piora e o medo se multiplica.

Em Porto Alegre, chegou a haver até um morto a facadas e, logo, esquartejado, cortado em pedaços, como carne em açougue. O roubo de automóveis tem diminuído depois que colocaram câmeras nas principais sinaleiras, mas permanece como ameaça. E ainda "agradecemos" aos ladrões pela "bondade" de nos deixar com vida? Os jornais e a TV noticiam, quase diariamente, mortes e roubos, em especial no bairro Rubem Berta, que tem este nome em homenagem àquele que tornou nossa Varig um modelo mundial de companhia aérea. A própria Varig sofreu a violência da má administração e desapareceu?

A violência da fraude invadiu os negócios e cresceu assustadoramente com os golpes virtuais. Temos de nos cuidar até do telefone celular, pois nos chamam de um suposto banco oferecendo um empréstimo inexistente. Os celulares furtados no país em 2022 equivalem a quase um caso por minuto.

O estelionato transformou-se em parte da vida diária e nos ameaça tal qual o assalto de rua para arrancar a bolsa das mulheres. Os assassinatos estão "em queda", segundo as estatísticas, mas ainda são altos e chegam a 130 por dia no país. Os estupros chegam a oito por hora (acentuo, oito por hora) no país e em 2022 totalizaram 74.951 casos. Em grande parte, as vítimas foram meninas menores de 14 anos.

A violência vem, também, dos próprios magistrados, cuja função é vigiar o cumprimento das leis que nos protegem como cidadãos. Na última quinta-feira, este jornal publicou a lista de desembargadores do Tribunal de Justiça e juízes que percebem mais de R$ 500 mil ao mês. Indago: vindo de juízes, não é isso uma violência e um ultraje à cidadania?

A violência das violências, porém, continua a ser nosso descaso com a preservação do meio ambiente. Os efeitos brutais da crise climática, cuja mostra aparece agora no verão do Hemisfério Norte, são a cicatriz visível do horror que nos ameaça. Mas continuamos insensíveis, poluindo a vida com combustíveis fósseis e carros a gasolina ou diesel, sem maiores iniciativas de veículos elétricos?

Em suma, chego à triste conclusão de que, em verdade, somos todos violentos ao admitir a violência!

FLÁVIO TAVARES

29 DE JULHO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

O PESO DA CREDIBILIDADE

É historicamente alta a confiança depositada na produção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A credibilidade do órgão não foi algo obtido da noite para o dia, mas o resultado da constatação no decorrer de décadas de que os números apurados e divulgados à sociedade têm total aderência à realidade. Foi assim no transcorrer de governos democráticos e autoritários e de diferentes matizes políticos.

Ao longo da semana que passou, instalou-se a controvérsia sobre a indicação do economista Márcio Pochmann para o comando do IBGE, por desejo do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi rememorada a sua passagem à frente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2007 e 2012, quando se envolveu em polêmicas que indicavam uma atuação ideologicamente enviesada, com direcionamento em concursos e relações conflituosas com quadros que não rezavam pela cartilha do governo petista de então.

De pronto lembrou-se o corrido na Argentina mais ou menos na época, quando o país vizinho, sob o casal Kirchner, promoveu uma intervenção no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), levando a um apagão na produção de dados confiáveis. À época, técnicos denunciaram uma tentativa em especial de maquiar a alta da inflação. O resultado foi que a credibilidade da própria Argentina foi abalada.

Cabe apenas ao governo federal e ao próprio Pochmann acabarem com qualquer desconfiança. Basta que venham a público assegurar que não haverá nenhuma ingerência. Explicar os mecanismos de governança e de controles internos de coleta e tratamento dos dados que impediriam qualquer tentativa nesse sentido. Pochmann, petista histórico e economista desenvolvimentista, contribuiria assegurando que zelará pelo trabalho técnico do IBGE, mantendo-se, a exemplo dos demais presidentes do órgão, como um ilustre desconhecido do grande público.

O IBGE é o principal fornecedor de dados oficiais do país. Entre eles estão PIB, inflação, taxa de desemprego, renda, nível de atividade setorial e censo demográfico, entre vários outros estudos de alta relevância. É pelos dados produzidos pelo instituto que governos, empresas, organizações, imprensa, economistas, institutos de pesquisa e população se apropriam de informações essenciais para se conhecer a situação do país, planejar políticas públicas e tomar decisões. São indicadores que, pela importância que têm, não devem ser alvo de qualquer desconfiança de contaminação política. Seu corpo técnico qualificado, portanto, deve continuar a trabalhar com independência e guiado de acordo com os melhores manuais de boas práticas da área.

Se surgiram temores devido a episódios passados, seria conveniente o governo se apressar em assegurar tratarem-se de receios infundados. Depois, demonstrar na prática, com o passar do tempo. Até porque qualquer ousadia em sentido contrário, especialmente acerca de números econômicos, seria desastrosa e facilmente detectada por outros órgãos e institutos.


29 DE JULHO DE 2023
+ ECONOMIA

Um sonho de escola de R$ 6 milhões

Associação sem fins lucrativos que oferece educação e assistência para bebês, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade na zona sul de Porto Alegre, a Aldeia da Fraternidade concretizou um projeto ambicioso ao completar 60 anos. Com doações de cerca de R$ 6 milhões de empresários gaúchos, vai tirar do papel a Escola dos Sonhos. Os empreendedores propuseram que crianças, professores e demais envolvidos definissem onde sonhavam estudar e trabalhar, o que originou a nova escola comunitária de educação infantil.

Com a Escola dos Sonhos, a projeção é triplicar o número de atendidos na instituição, fazendo com que o atendimento chegue a mais de 350 bebês e crianças em três anos. A equipe atual receberá qualificação e novos profissionais das áreas pedagógicas e de nutrição serão contratados, além de uma equipe de especialistas na área de saúde e assistência para acompanhar o desenvolvimento de cada criança.

Uma edificação já existente foi aproveitada. A ampliação foi baseada em conceitos da neuroarquitetura, que considera o impacto do ambiente físico no comportamento humano, com materiais como concreto aparente, vidro e madeira.

A previsão é começar a obra em dezembro e concluí-la em 2025. Além de investimentos já garantidos com o apoio de empresários gaúchos, a Escola dos Sonhos terá apoio no projeto e construção de parceiros como a construtora Tedesco e o Instituto Jama. O atendimento especializado em saúde e nutrição será montado com apoio do Instituto Moinhos de Vento.

Até associação de bancos já vê corte de 0,5 p.p. no juro

Depois da melhora na perspectiva da nota de crédito do Brasil pela S&P, da deflação no IPCA cheio de junho e no IPCA-15 de julho, e do aumento do rating pela Fitch, não há mais dúvida: na próxima quarta-feira, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) vai abrir o ciclo de baixa no juro básico. A dúvida é sobre o tamanho do primeiro corte.

Muitos economistas seguem apostando em uma poda simbólica de 0,25 ponto percentual, que estaria alinhada à palavra "parcimônia" usada na ata da reunião anterior. Mas até uma associação de bancos - justa ou injustamente, associados a um suposta preferência por taxas mais altas - já aposta em corte de 0,5 ponto percentual. Na sexta-feira, a assessoria econômica da Associação Brasileira de Bancos (ABBC) publicou nota em que oficializa sua convicção de que "há plenas condições para o início da flexibilização monetária, com uma queda na Selic de 0,5 p.p.". Ao justificar a aposta, pondera que "a decisão estaria alinhada ao balanço de riscos favorável, ao consistente processo de desinflação e à queda das expectativas, e ajudaria a reduzir o grau de aperto monetário".

Everton Gonçalves, superintendente da área, lembra que a taxa real de juros ex-ante, calculada com base na taxa prefixada do swap de 360 dias e nas expectativas de inflação dos próximos 12 meses, tem oscilado em torno de 7% ao ano, muito acima dos 4,5%, considerada a taxa neutra - que não provoca contração nem estimula crescimento - pelo Banco Central.

Além de menor pressão inflacionária e redução das incertezas no âmbito fiscal, Gonçalves aponta a contribuição da "tramitação favorável" do marco fiscal no Congresso e a aprovação da reforma tributária na Câmara. E afirma que a decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN) de manter a meta de inflação para os próximos anos em 3% ajudou na chamada "reancoragem das expectativas" desejada pelo Copom.

- A percepção de um cenário fiscal mais benigno foi compartilhada pela recente elevação da classificação do risco soberano pela agência Fitch - destaca Gonçalves.

MARTA SFREDO


29 DE JULHO DE 2023
CHAMOU ATENÇÃO

Fazendas de Jango em leilão

Duas fazendas que pertenceram ao ex-presidente da República João Goulart (1919-1976) foram colocadas em leilão na sexta-feira. A primeira etapa da concorrência, entretanto, encerrou sem interessados.

De acordo com a empresa encarregada pelo processo, Akimoto Leilões, o segundo pregão ocorrerá em 11 de agosto, às 15h. As propriedades estão localizadas em Itacurubi, na região central do RS, e em Itaqui, na Fronteira Oeste. Juntas, estão avaliadas em mais de R$ 250 milhões, segundo a Akimoto Leilões. As informações são do portal g1.

João Goulart, que era natural de São Borja, também na Fronteira Oeste, foi o 24º presidente do Brasil, cumprindo mandato de 1961 a 1964, até ser deposto por um golpe militar. Conforme informado no site da leiloeira, a decisão de colocar as fazendas à venda partiu da família, e o preço definido está abaixo do valor de mercado.

Uma das propriedades em questão é a Fazenda Cinamomo, localizada em Itaqui, com área de 2,7 mil hectares. Segundo a apresentação de Zuleika Matsumura Akimoto, leiloeira responsável pelos lances, mais de 90% dessa terra é apropriada para atividades agrícolas. O valor inicial do leilão foi estipulado em R$ 173.900.787.

A segunda propriedade, em Itacurubi, é chamada Fazenda Presidente João Goulart, com lance inicial de R$ 80.716.195. De acordo com a casa leiloeira, essa propriedade possui 2.124 hectares, dos quais 55% são destinados à agricultura e os outros 45% são voltados à pecuária.

Presidente

João Belchior Marques Goulart, conhecido como Jango, nasceu em São Borja, no ano de 1919. Ele ocupou a posição de vice-presidente durante os governos de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, entre os anos de 1956 e 1961. Após a renúncia de Jânio, o gaúcho assumiu a Presidência por meio da Campanha da Legalidade, que foi liderada pelo seu cunhado e então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.

Em 2 de abril de 1964, João Goulart foi deposto do cargo de presidente do Brasil. Morreu em 1976, em uma de suas fazendas na Argentina, e a causa da morte foi anunciada como ataque cardíaco.

Em 2013, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, os restos mortais de Jango passaram por perícia, que não conseguiu determinar conclusivamente a causa da morte.

CHAMOU ATENÇÃO

29 DE JULHO DE 2023
MARCELO RECH

Não é C3E

Quando a estatal de telecomunicações gaúcha, a nada saudosa CRT, foi privatizada, teve fim uma era em que se usava pistolão para conseguir telefone, que, de tão valioso, era declarado no Imposto de Renda. Apesar da privatização, as mazelas da CRT não sumiram da noite para o dia. Deficiências históricas se acumulavam e inundavam de queixas a seção O Rio Grande Reclama, de Zero Hora. Eram tão frequentes as respostas assinadas na seção pela gerente de Comunicação da CRT privatizada, Rita Campos Daudt, que eu, então chefe de redação de ZH, brincava que a qualquer hora ela poderia pedir vínculo empregatício com o jornal.

Passaram-se os anos, a empresa mudou de controle algumas vezes e, apesar de muitos problemas com os usuários, seus sucedâneos puseram fim aos pesadelos da CRT. A privatização das telecomunicações no Brasil, onde hoje há mais de um celular por habitante, evidentemente é um sucesso.

Os detratores das privatizações, porém, ganharam agora um fôlego com a ineficiência da compradora da CEEE-D, a Equatorial, em solucionar a queda de energia que atormenta usuários mais de duas semanas depois de um ciclone.

A Equatorial ofereceu uma batelada de justificativas para contestar a demora e para a dificuldade de lidar com a demanda por comunicação com os usuários. É uma situação rara a de se conhecer alguém satisfeito com a performance da empresa nesta área, sobretudo quando ela seria mais urgente e necessária. Em comunicação, o que importa é a percepção, e, no episódio, a empresa passa a imagem de lenta e negligente, exatamente o que de pior se associa a estatais.

De qualquer forma, é cedo para julgamentos definitivos. A empresa pode se recuperar da crise de imagem das últimas semanas se entender como funciona o Rio Grande do Sul e corresponder ao grau de qualidade e atenção exigido por seus usuários. Mas não tenho dúvida de que se deve louvar a privatização da CEEE, uma estatal quebrada, que não cumpria sequer a obrigação mínima de recolher o ICMS aos cofres públicos. Bastaria a volta do pagamento de impostos para justificar a privatização, embora seja preciso ir bem além.

Fora do Estado, a CEEE é chamada de C3E, mas agora a Equatorial já sabe também que o Rio Grande do Sul tem granizo, geada, seca, enchentes, vendaval, chuvarada e ciclones como parte de sua natureza imutável. Então que se prepare à altura para os próximos temporais. E, mesmo que a conta venha a ser mais salgada por anos à frente, é preciso um dia enterrar a fiação nas cidades. Em boa parte do mundo onde a fiação é subterrânea, se desconhece falta de energia durante tempestades. Está na hora, portanto, de começar a apresentar essa experiência civilizatória aos gaúchos, como um dia o foi a troca de lampiões pela luz elétrica.

MARCELO RECH

terça-feira, 25 de julho de 2023


25 DE JULHO DE 2023
CARPINEJAR

"Já vou!"

Não sei qual o motivo de os cônjuges desejarem dormir no mesmo horário, como xifópagos do bocejo, clones do ronco, cúmplices da preguiça.

Nunca dá certo a simbiose por uma questão lógica. Vieram de famílias com hábitos distintos e, muitas vezes, antagônicos. Cada um tem suas manias e ritos para desacelerar. Haverá sempre o que é adepto do silêncio e aquele que relaxa falando sem parar sobre os fatos importantes da sua rotina. Haverá sempre o notívago e o madrugador. Haverá sempre um com sono já vencido e outro que resolve botar a vida em ordem, faxinar, assistir a séries, guardar roupas. Haverá sempre trabalhos com turnos e horários opostos.

Agora que estão casados, esquecem o relógio biológico para seguir o ponteiro do amor. Decidem padronizar o comportamento, mentir que são iguais, deitar juntos no mesmo instante. Eu entendo perfeitamente que é gostoso adormecer com o calor e o colo da sua companhia, enroscar as pernas na posição de conchinha, ainda mais quando nosso lugar na cama é previamente aquecido. Mas não precisa ser sempre.

Seu marido ou sua esposa não pode ter a função reduzida de um lençol térmico. As maiores brigas são no momento de dormir. É um cabo de guerra entre o estressado e o disposto.

O que costuma acontecer é alguém tentar enganar o seu parceiro dizendo que já está indo para a cama, esperando que ele adormeça antes e pare de sentir falta e exigir a presença. A expressão "já vou" é o equivalente noturno a "só um minutinho" dito ao longo do dia.

O "já vou" dura três horas. Quem fica no quarto realiza uma contagem interminável do esconde-esconde pela casa.

Pretende-se ganhar a disputa pelo cansaço. O retardatário não deixa o que quer para trás, apenas finge que finaliza a última pendência. Simula uma saideira do sono, embriagado com a sua energia. Só que a falta de sinceridade gera o caos. As vontades desacordadas tiram a paz da noite.

Aquele que permanece desperto jamais é discreto. Movimenta-se freneticamente pela sala, abre e fecha a geladeira, faz sapateado pelo corredor, promove arruaça no sofá, prepara pipoca, não respeita a quietude do seu vizinho dentro da residência.

Quem se encontra no casulo das cobertas não dorme. Escuta uma trilha sonora inesperada e se pergunta: o que a pessoa está inventando agora?

É banho à uma da manhã. É objeto derrubado no escuro. É esbarrão em móveis. É lanterna do celular buscando acertar o carregador na tomada. É abajur ligado para ler. É som alto de vídeos nos stories. No final, ninguém conseguirá descansar. E os dois acordarão de ressaca.

CARPINEJAR

25 DE JULHO DE 2023
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Ponha-se no meu lugar

O 25 de julho foi definido como Dia do Colono 99 anos atrás, quando foi comemorado o primeiro centenário da chegada dos primeiros imigrantes germânicos no Estado, a 25 de julho de 1824, quer dizer, 199 anos atrás. Ano que vem serão 200, conta redonda que costuma ser motivo de celebração.

Tenho orgulho de ser descendente dessa gente que veio para cá? Tenho, porque penso nos meus avôs e avós, no pai e na mãe, gente honesta e trabalhadora. E, importante, aprendi com meus pais que qualquer gente nunca é superior a qualquer outra gente. Não quer dizer que não haja essa perversa fantasia entre descendentes de imigrantes europeus; há e merece ser combatida criticamente, com a palavra e a lei.

O presente cenário brasileiro tem trazido à tona o racismo contra descendentes de africanos e de indígenas. Racismo que não é uma fantasia: é uma força até mesmo com expressão política, que atravessa a vida brasileira de alto a baixo, por isso mesmo chamado de "estrutural", porque ele estrutura as relações sociais.

Olhando em panorama, é fácil ver que o Brasil tomou medidas exatamente opostas para os colonos europeus e para os escravizados libertos e seus descendentes: passado o episódio da chamada Lei Áurea, centenas de milhares de afrodescendentes foram simplesmente abandonados pelo Estado brasileiro; não muitos anos depois, muitos milhares de imigrantes germânicos (e depois italianos, polacos, etc.) receberam importantes benefícios do mesmo Estado brasileiro para se instalar na terra e produzir. Há um inequívoco sentido de prestigiar os brancos.

Comparar um caso e outro deveria nos levar a entender os perversos desdobramentos sociais e ideológicos da vida brasileira, mas não é. Apenas em 2012 se instituiu a Lei de Cotas para ingresso na universidade, oferecendo uma primeira e ainda frágil reparação.

Isso não quer dizer que os afrodescendentes não tenham, contra vento e maré, produzido maravilhas no campo artístico, para mencionar o mundo em que me movimento profissionalmente. Nem falemos na canção, cenário de um excepcional processo de transformar dificuldade e obstáculo em virtude e modo de agir. Falemos na literatura.

Aqui chego ao ponto inicial deste texto, que ia ser uma resenha do novo livro do Luiz Maurício Azevedo, Baldeação (contos, editora Cultura). Eu ia dizer com mais vagar que o autor mescla ironia e deboche com precisão descritiva e um vetor de contida raiva, resultando uma tensão narrativa de alta densidade. Ia dizer, mas o percurso acabou me levando apenas a esse elogio, enviesado mas merecido.

LUÍS AUGUSTO FISCHER

25 DE JULHO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

FALHAS DA CONCESSIONÁRIA

Não é aceitável que quase duas semanas após a passagem do ciclone extratropical pelo Estado, entre os dias 11 e 13 deste mês, ainda existam clientes sem energia elétrica. Mas é o que estava ocorrendo até ontem em municípios da zona sul do Estado atendidos pela CEEE Equatorial. O Rio Grande do Sul foi atingido por dois eventos climáticos extremos em menos de um mês. No mais recente, houve uma nítida evolução em medidas preventivas por parte do poder público: governo do Estado, prefeituras e defesas civis. A concessionária de energia, porém, não se preparou de forma adequada, apesar de todos os alertas meteorológicos.

Além da demora para restabelecer o serviço, a companhia falhou em seus canais de comunicação. Mesmo após os dias do temporal, clientes queixavam-se de que não conseguiam contato pelos meios disponibilizados pela empresa. Ou seja, novamente não dimensionou bem equipes e estrutura para dar uma atenção adequada aos cidadãos, aflitos e sem qualquer perspectiva de retorno da energia. É uma situação que causa não apenas desconforto, mas perdas financeiras. Alimentos acabam estragando e atividades econômicas sofrem prejuízo. Não é a primeira vez que a CEEE Equatorial deixa a desejar. Em março do ano passado, aconteceu o mesmo, mas na Região Metropolitana.

Mesmo com alguma demora, acerta o governo gaúcho ao fazer uma cobrança mais contundente à companhia, como na reunião no domingo, em Pelotas, com a participação de prefeitos da região. É preciso esperar também uma ação firme da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), responsável por fiscalizar concessões. 

A privatização da CEEE era inevitável pela situação financeira deteriorada da estatal, que sequer ICMS vinha recolhendo e tinha dívida bilionária impagável. Caminhava para o colapso. Mas isso não significa que o poder concedente e o órgão responsável por acompanhar a empresa e a sua relação com os clientes tenham de ser condescendentes. Pelo contrário, devem cobrar e, no caso da Agergs, impor as sanções previstas pela legislação, como as multas. A população dos municípios atendidos pela concessionária aguarda uma atuação mais incisiva da agência reguladora.

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) divulgou, no final de março, o ranking das distribuidoras do país em 2022. Entre as de grande porte, a CEEE Equatorial teve o pior resultado quanto ao Desempenho Global de Continuidade. O indicador leva em conta a frequência e a duração das interrupções do fornecimento de energia. O grupo Equatorial, com experiência no setor, assumiu a CEEE em julho de 2021. Mesmo que a empresa tivesse sérias deficiências, dois anos é um prazo razoável para apresentar uma melhor performance.

A concessionária deve ainda ser exigida para que apresente um planejamento mais sólido para enfrentar novos episódios de intempéries. Eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes, e a volta do fenômeno El Niño deve aumentar a repetição de temporais, chuvaradas e ventos fortes. Os avisos nesse sentido são recorrentes. Não há como a empresa alegar ter sido surpreendida.


25 DE JULHO DE 2023
CHAMOU ATENÇÃO

Barbie em 1,5 mil versões

Quem entra no apartamento da administradora de empresas Denise Isdra, 55 anos, no bairro Rio Branco, em Porto Alegre, depara com paredes cobertas por portas de vidro que abrigam Barbies raras, produzidas especialmente para colecionadores. Sem saber exatamente quantos itens fazem parte de sua coleção, a fã estima que tenha cerca de 1,5 mil bonecas espalhadas pelas prateleiras da sala de estar e que seguem pelo quarto e por uma espécie de closet.

A paixão pelo universo da Barbie não tem uma explicação definida. Vestida de rosa para a entrevista, Denise conta que admira o slogan que acompanha a marca, que diz "você pode ser o que quiser".

- Ela pode ter a profissão que quiser e fazer o que tiver vontade, desde que seja o que ela deseja. Eu faço questão de ter todos os tipos. Tenho a Barbie cadeirante, que é uma mulher poderosa e linda. E todas as rainhas e princesas da África, que também têm um lugar de destaque e, inclusive, tem uma das 10 mais raras do mundo - ressalta a colecionadora.

Denise começou a comprar as bonecas há 30 anos, mas a coleção atual se iniciou só depois do anos 2000. Isso porque ela havia doado as Barbies que tinha antes, pensando que não faria sentido manter o hobby tendo dois filhos homens.

Irreal

Sobre a crítica de que Barbie carrega um padrão de corpo inacessível, a administradora faz uma ressalva. Para ela, é preciso entender que a boneca da Mattel jamais poderia ter essas medidas na "vida real".

- A Barbie não é modelo para ninguém. Ela não pararia em pé e se fosse uma pessoa, teria 1,80m, 50 quilos e uma cintura de 41 centímetros. Isso não existe, a Barbie é só uma boneca - defende.

Além de participar do clube oficial de colecionadores, que reúne pessoas do mundo todo, Denise também gosta de pesquisar curiosidades sobre a boneca. Ela conta, orgulhosa, que possui em seu acervo a primeira Barbie, lançada em 1959 e vestida com o clássico maiô listrado.

Há também as versões que imitam celebridades, como Marilyn Monroe, Audrey Hepburn e a que motivou o início de toda a coleção de Denise: a Barbie da cantora Cher.

- Eu sou apaixonada, comecei a comprar por causa dessa - confessa.

KATHLYN MOREIRA

25 DE JULHO DE 2023
NÍLSON SOUZA

O brasileiro voador

Dez anos atrás, uma emissora de TV promoveu votação popular para escolha do maior brasileiro de todos os tempos: deu o médium Chico Xavier, seguido do inventor Santos Dumont. Na ocasião, achei curioso que mesmo entre os brasileiros - que defendem apaixonadamente seu pioneirismo sobre os irmãos Wright na invenção do avião -, o mineiro tenha ficado em segundo lugar numa pesquisa de idolatria. Mas a celebração dos 150 anos do seu nascimento na semana passada, com homenagens oficiais, lançamento de livro, selo, medalha, exposições e filmes, comprova que parcela expressiva da população ainda o reconhece como principal herói nacional.

Nosso herói dos ares, como o ex-presidente Getúlio Vargas que também foi forte concorrente na eleição televisiva, renunciou à vida para entrar na história - e sua trágica morte é o ponto de partida do romance de Arthur Japin, O Homem com Asas. Leitura imperdível, o livro relata o suicídio do Pai da Aviação e o desaparecimento de seu coração, retirado pelo médico legista num gesto de protesto contra o governo da época, que fazia uso político da morte do compatriota ilustre.

O escritor holandês confirma que Alberto Santos Dumont morreu amargurado por constatar que sua invenção estava sendo usada como arma na Revolução Constitucionalista de 1932. Também por isso, por saber que o avião fora utilizado na Primeira Guerra Mundial para bombardear e matar pessoas, ele teria se desinteressado de competir com os norte-americanos pela paternidade do invento. Japin disse em entrevista à ZH, quando esteve em Canoas para lançar seu livro, que o brasileiro era um pacifista e imaginava ingenuamente que um dia cada pessoa teria o seu próprio avião em casa, como um automóvel, para viajar quando e para onde quisesse.

Não foi exatamente assim, mas o avião encolheu o mundo, aproximou povos de todos os continentes e trouxe incontáveis benefícios para a humanidade. Porém, como qualquer invenção, pode ser usado para o bem e para o mal - independentemente da intenção e da vontade de seu criador.

Essa culpa o nosso inventor não precisava ter carregado no coração - que, aliás, acabou devolvido pelo médico e até hoje está exposto como relíquia no Museu Aeroespacial do Rio de Janeiro, no interior de uma esfera dourada sustentada pelo mitológico Ícaro, supostamente o primeiro homem com asas.

O céu de Ícaro até pode ter mais poesia do que o céu de Galileu, como cantavam os Paralamas do Sucesso, mas a ciência também tem os seus mistérios e encantos.

NÍLSON SOUZA

25 DE JULHO DE 2023
PREFEITURA DE PORTO ALEGRE

Teto dos servidores segue sob impasse

A prefeitura de Porto Alegre ainda não bateu o martelo sobre qual critério será adotado para definir o teto do funcionalismo até 2025. A decisão mexe com o alto escalão do serviço público municipal, formado por um grupo restrito de servidores que ganham os maiores salários do governo da Capital.

De acordo com o secretário de Administração e Patrimônio, André Barbosa, o prefeito Sebastião Melo convocou uma agenda para os próximos dias com representantes de diferentes secretarias para tomar uma decisão sobre o caso. A assessoria de Melo informou que, até o momento, não há reunião marcada.

- No que depender da secretaria de Administração, vamos operacionalizar o teto conforme o subsídio atual do prefeito. Essa discussão já foi encerrada no STF (Supremo Tribunal Federal), então temos de resolver o quanto antes. O prefeito chamou a discussão ao centro do governo para decidirmos - relatou Barbosa.

De acordo com a Constituição Federal, o limite salarial para os servidores deveria ser o subsídio do prefeito, que atualmente é de R$ 21,4 mil. No entanto, desde 2017, o teto está elevado artificialmente por uma lei aprovada na Câmara de Vereadores.

A norma já foi derrubada na Justiça, mas a Procuradoria-Geral do Município (PGM) entrou com diversos recursos junto ao STF com o objetivo de retardar o cumprimento da decisão. Em função disso, há servidores ganhando até R$ 35,4 mil, valor equivalente ao antigo teto de desembargador estadual.

Como não há mais possibilidade de reversão da decisão, a prefeitura já foi cobrada pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) para que cumpra o teto constitucional.

Aumento

No último dia 12, a Câmara de Vereadores aprovou e o prefeito Sebastião Melo sancionou a lei que aumenta o salário do futuro prefeito em 62%, elevando-o para R$ 34,9 mil. Os servidores do alto escalão atuaram pela aprovação, para não terem a remuneração reduzida drasticamente. No entanto, o novo salário do prefeito vale apenas a partir de 2025 e, em tese, até lá, o teto permanece em R$ 21,4 mil.

Atualmente, 400 funcionários da prefeitura e da Câmara Municipal recebem salários maiores do que o do prefeito, sendo 258 inativos e 142 ativos. Desse contingente, 175 têm aplicação do "abate teto", mecanismo que restringe o salário a R$ 35,4 mil, antigo teto de desembargador.

Caso o limite de R$ 21,4 mil fosse aplicado, outros 225 seriam atingidos pela medida. Com isso, a prefeitura teria uma economia mensal de R$ 3,52 milhões.

Nessa conta, não estão incluídos os procuradores municipais, que têm direito de receber até o teto de desembargador por decisão do STF.

PAULO EGÍDIO

sábado, 22 de julho de 2023


22 DE JULHO DE 2023
CULTURA

MULHERES COM MUITO A DIZER

Com novos episódios, podcast ?Bendita Sois Voz? conta histórias de gaúchas

Quatro mulheres-deusas de diferentes regiões do Rio Grande do Sul têm suas histórias contadas nos novos episódios do Bendita Sois Voz - Histórias que Sopram do Sul, podcast em formato de radioteatro que chega às plataformas neste sábado. O projeto é idealizado pelas atrizes, diretoras e professoras de teatro Júlia Ludwig e Luciane Panisson, através da união dos coletivos Cia. Circular e Das Flor, e conta com a participação das artistas Bruna Espinosa, Dejeane Arruée, Maria Falkembach e Luciana Paz, que interpretam as histórias das protagonistas.

Cada um dos quatro novos episódios foca uma das personagens desta temporada. Ao longo de cerca de 15 minutos, a trajetória pessoal da protagonista do episódio é apresentada ao público por meio de trechos de entrevista feita com ela, interpretações da atriz que a representa e contextualizações do ambiente onde ela vive, repassadas por uma narradora. Há, ainda, o cruzamento da história da personagem com a de uma deusa.

- O que a gente faz é trazer essa adoração de figuras aparentemente longínquas para figuras do cotidiano, reconhecendo as deusas que estão entre nós - explica a idealizadora Júlia Ludwig.

- Fazer a construção dessa mitologia cotidiana é algo que tem muito sentido para nós. Entendemos que é um ato político dar visibilidade a essas mulheres que fizeram e fazem coisas tão importantes, mas não têm reconhecimento, deferindo a elas a condição de deusas - completa Luciane Panisson.

Entrevistas

A deusa da vida real que protagoniza o episódio de estreia, disponibilizado neste sábado, é a Cacica Acuab, a primeira mulher Cacica Geral do Povo Charrua do Rio Grande do Sul, que tem sua história cruzada com o mito da senhora dos ervais, a deusa da erva-mate na mitologia Guarani. O segundo episódio, em 27 de julho, apresenta a fundadora do coletivo Ksa Rosa, Maristoni Lima de Moura, figura reconhecida na luta por melhores condições para catadores de material reciclável em Porto Alegre. A história dela é intercalada com a da deusa grega Héstia.

Já em agosto, no dia 5, o terceiro episódio apresenta Ana Maria Primavesi, austríaca radicada no RS que foi precursora da agroecologia no Brasil. Ela faleceu em 2020, aos 99 anos, e é comparada à deusa da primavera, Ostara. No último episódio, no 12 de agosto, a personagem apresentada é Dona Conceição dos Mil Sambas, a compositora e guia espiritual da periferia de Pelotas reconhecida por ter composto mais de mil sambas ao longo da vida. A história da sambista pelotense é comparada às das orixás femininas Oxum, Iemanjá e Iansã.

Além dos episódios em áudio, as entrevistas com as três protagonistas que estão vivas serão disponibilizadas em vídeo, no canal do projeto no YouTube (gzh.rs/bendita_yt). Segundo as idealizadoras, o intuito é dar voz a essas deusas entre nós - que têm muito a dizer, mas são pouco ouvidas.

- O nosso desejo sempre foi dar visibilidade, por isso que o projeto se chama Bendita Sois Voz, nesse trocadilho. Mas quando a gente conhece essas mulheres, conversa com elas, esse desejo é multiplicado. Queremos que as pessoas conheçam essas personagens, as suas lutas, e ajudem a fortalecê- las - explica Luciane.

Para que as histórias atinjam mais pessoas, os episódios do podcast também serão distribuídos a rádios populares, comunitárias e universitárias que tenham interesse na veiculação. Júlia Ludwig entende a ação como uma espécie de teatro de rua, mas com palco formado pelas ondas radiofônicas:

- Um espetáculo de teatro de rua atrai pessoas que estão passando pelos lugares, que saíram de casa por um outro motivo, mas acabam sendo atravessadas por ele. A ideia de disponibilizar para rádios vem um pouco desse desejo de atravessar o cotidiano das pessoas de uma forma diversificada e democrática, de atingir quem está ali ouvindo a sua rádio e, de repente, vai deparar com a história dessas mulheres. É uma experiência diferente da de quem conhece o projeto e vai nas plataformas procurar o podcast para ouvir.

CAMILA BENGO

22 DE JULHO DE 2023
LEANDRO KARNAL

A citação que mais escuto da Bíblia é o começo do Salmo 23. Está em adesivos nos carros que passam. Se alguém ignorar todo o resto do texto sagrado, é provável que identifique ao menos o versículo: O Senhor é o meu pastor, nada me faltará.

Em hebraico, língua original do texto, lemos algo como Adonai roi lo echsar. Usamos Adonai para não dizer o tetragrama sagrado e impronunciável do Criador, evitando "tomar Seu santo nome em vão".

Seguimos com o conceito possessivo "meu" e completamos com "pastor". Além disso, a palavra hebraica (roi) do salmo serve também para "amigo íntimo", "companheiro de guerra", "aquele que olha por mim". O centro da compreensão textual está no futuro de nada faltar. O sentido original não se refere a um alimento imediato, à cura de uma doença ou a algo de que se precise agora O Senhor (Adonai) estará comigo e nunca me deixará. Ele não faltará. Perceberam a diferença? Deus nunca se fará ausente!

A tradução ("impossível e necessária" para J. Derrida) contém muito do que desejo ao lado do significado original da língua de partida (o hebraico). Assim, o Todo-Poderoso estará sempre comigo, mesmo que eu passe fome, sofra doenças ou seja abandonado. Deus não me faltará. Eu sofrerei, porém com Deus ao meu lado.

O Salmo 23 não garante que eu estarei isento de dores, apenas que contarei com Ele, mesmo no perigo maior. Como somos almas pedintes e carentes, acabamos "customizando" o sentido do trecho bíblico, como uma proteção contra os perigos. Assim, "nada me faltará" parece ser um amuleto, uma proteção especial. Esse sentido não existe na ideia original.

Vamos a um plano maior e teológico: sim, sou humano e, mesmo assim, andarei no vale do sofrimento. Terei inimigos; mesmo machucado e sofredor, terei Deus como Amigo Íntimo/Companheiro de Guerra/Pastor. O combate existirá de qualquer forma, haverá danos, mas eu terei o amparo do Altíssimo a todo instante e para sempre.

A tradução corresponde, em parte, ao domínio das línguas e, igualmente, à visão de mundo de quem traduz. Sempre existe uma subjetivação ou uma perda do sentido original (algo que tradutores tomam da Física, com o conceito de entropia).

São Jerônimo pegou os originais e traduziu para o latim. Ele usou a ideia de que Deus me apascentaria/alimentaria (Dominus pascit me, et nihil mihi deerit). O tradutor consagrado dos evangélicos, João Ferreira de Almeida, prefere "O Senhor é o meu pastor; nada me faltará". A Bíblia de Jerusalém (católica), evitando o futuro, usa: "Iahweh é meu pastor, nada me falta". A famosa tradução da época do rei James (KJV) afirma: The Lord is my sheperd; I shall not want. Com variantes, as bíblias cristãs remetem a uma defesa divina contra a falta/desejo. A hebraica se aproxima do sentido que Deus é fiel em si, ainda que... a tragédia me visite.

A tradução cristã esbarra em problema histórico e teológico. Histórico? Mesmo o mais dedicado servo do Altíssimo terá faltas na vida. Teológico? No mínimo, faltará saúde à mais santa carmelita enclausurada e, assim, a palavra de Deus poderia ser contestada.

O original hebraico remete a um sentido que também está no livro de Jó: ainda que você tenha notícia da morte de um filho, de perdas materiais ou de doença grave no seu próprio corpo, Eu (Deus) estarei do seu lado - amparando, consolando e mostrando que, após as desgraças, sua confiança triunfará. O prêmio de Jó, sofredor, não seria ver a restituição de tudo o que perdeu. O galardão real do justo é continuar ao lado do Todo-Poderoso. Se nenhum outro filho tivesse nascido, se ele tivesse morrido com aparência doentia e na falência, Deus ainda estaria com ele, pois Deus não é a proteção da sua pele ou dos seus depósitos bancários. Deus é o sentido primeiro e último da existência de ricos e de pobres, com pele boa ou sem, com 10 filhos ou nenhum O que existe de imortal em você continuará pela entrega ao Criador, mas não como um seguro contra falência. Deus é o sentido do eterno, chamando atenção do passageiro de toda dor. Deus apenas é.

A leitura do Salmo 23, como um amuleto contra tragédias, mostra que a concepção de Deus tem uma história, pois acompanha um desejo dos fiéis. Deus seria imutável e sempiterno; os homens anseiam por coisas distintas em vários momentos e atribuem a Ele seus desejos. Assim, espero ter colaborado para indicar como é complexo ler a Bíblia, porque todo o texto anterior foi sobre um versículo apenas, entre milhares.

Aplicando a exegese a este cronista: considero superior a entrega pessoal de um ser humano ao seu Criador, em detrimento de uma invocação de um Deus mágico que sirva como um air bag diante dos acidentes da vida. Viram? Todos somos subjetivos e históricos. Não existe erro em si, apenas subjetividade e história. Tenho esperança de que possamos entender que se considerar o único possuidor da verdade seja a grande heresia.

Agradecimentos: Luciano C. Garcia Pinto, Valderez Carneiro da Silva e o Rabino Michel Schlesinger leram este texto e resolveram algumas dúvidas minhas. Obrigado!

LEANDRO KARNAL

22 DE JULHO DE 2023
DRAUZIO VARELLA

PLACEBOS ALTERNATIVOS

Os efeitos placebo e nocebo são conhecidos da medicina e podem explicar por que muitas pessoas relatam benefícios à saúde quando tomam vitaminas desnecessariamente. Meu amigo disse que toma 12 vitaminas por dia. Diante do meu espanto, justificou: "Há cinco anos, não tenho gripe".

O primeiro impulso foi dizer que minha última gripe foi há mais de 20 anos, sem tomar vitamina nenhuma, mas fiquei quieto. A experiência clínica me ensinou a não afrontar crendices populares. Quando a mera expectativa de bons resultados é capaz de trazer benefícios à saúde e ao bem-estar, estamos diante do efeito placebo. No caso contrário, temos o efeito nocebo.

A crença nos superpoderes das vitaminas não é das piores, afinal, existe uma ou outra condição em que elas estão indicadas: ácido fólico na gestação, B12 na anemia perniciosa, por exemplo. Agora, chás de plantas exóticas, gotinhas a cada duas horas, injeções de "antioxidantes" ortomoleculares e até um "shot" de vitamina D, anunciado na internet para não pegar coronavírus no carnaval, são esquisitices que fazem pensar: o que leva as pessoas a acreditar em tanta besteira?

A resposta está na neurobiologia. O cérebro humano é mestre na arte de antecipar. Reagir com rapidez ao perigo iminente foi tão essencial à sobrevivência da espécie, que a simples expectativa de um estímulo doloroso provoca a liberação de mediadores químicos associados ao sofrimento. Por outros caminhos, buscamos a repetição das ações que nos trouxeram prazer (mecanismo que se transforma em armadilha no caso das drogas psicoativas).

Em ensaios clínicos conduzidos com rigor científico, é frequente usarmos placebos - que não passam de comprimidos de talco com aparência externa idêntica à do medicamento que pretendemos testar. Essa técnica é conhecida como "duplo-cego", porque nem os participantes nem os pesquisadores conseguem identificar quem toma o comprimido inerte ou o princípio ativo.

Em ensaios desse tipo para testar a eficácia de medicamentos para dor e para transtornos psiquiátricos, não é incomum obtermos respostas no grupo-placebo comparáveis às dos que receberam o princípio ativo (efeito placebo).

Em muitas publicações, até 26% dos adultos sorteados para o grupo-placebo, queixam-se de reações indesejáveis (efeito nocebo). Nos estudos, é esperado que um em cada quatro participantes interromperá os comprimidos de placebo alegando efeitos colaterais.

O efeito placebo não é resultado de fenômenos puramente psicológicos em pessoas frágeis, mas consequência da liberação de opioides endógenos, endocanabinoides, dopamina e outros mediadores com ações específicas no controle da dor, da parte motora e até da resposta imunológica.

Quando sentimos dor, a sugestão verbal de que ela se tornará excruciante basta para provocar aumento da intensidade (efeito nocebo). Nesse momento, ocorre ativação do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal com estimulação dos mecanismos que interferem com a ansiedade.

No caso dos remédios populares, as expectativas são afetadas pela forma e pela credibilidade de quem os indicou. Morfina apresentada como um analgésico muito potente para quem acabou de ser operado reduz a intensidade da dor com mais eficiência do que a mesma dose administrada na rotina hospitalar, sem o paciente saber.

A simples advertência da possibilidade de efeitos indesejáveis é capaz de provocá-los. Num estudo com o betabloqueador atenolol, usado em casos de hipertensão e doenças cardiovasculares, a incidência de disfunção erétil nos pacientes alertados para esse efeito colateral foi de 31%, contra 16% naqueles que desconheciam essa eventualidade. Resultados semelhantes ocorreram com a finasterida empregada no tratamento da hiperplasia prostática benigna.

Recém-nascidos submetidos a punções venosas de repetição, muitas vezes começam a chorar assim que a enfermeira passa o algodão com álcool na pele. Cerca de 30% das pacientes com câncer de mama submetidas à quimioterapia apresentam náuseas antecipatórias no caminho ou ao entrar no hospital.

Essas e outras evidências fazem a fama dos charlatães. O simples ato de tomar remédios receitados por pessoas em quem confiamos pode ajudar na resposta terapêutica.

Tomar partido do efeito placebo para receitar remédios sem eficácia comprovada é antiético. No entanto, nada há de errado em prescrever placebos com a anuência do paciente. Por que não dizer: no seu caso, há estudos que obtiveram 20% a 30% de resposta usando um comprimido de talco. Quer tentar?

Texto publicado originalmente em 13/3/2021

DRAUZIO VARELLA