sábado, 24 de abril de 2021


24 DE ABRIL DE 2021
LYA LUFT

Voo livre

Não queiram que eu escreva só coisas românticas, poéticas, docezinhas. Minha alma de momento está em fúria, em conflito, bradando por paz, saúde, algum conforto nesta fase em que tantos sofrem, morrem, são atropelados pelo que chamo Doença do Diabo, enquanto outros conseguem manter suas vidas normais, praia, festa, viagens. Ou sossego. Quero algum horizonte.

Sei que é culpa de ninguém essa espécie de apocalipse que trava o mundo e mata gente. Isso é um lamento meu, talvez porque depois de um ano de isolamento quase total, vendo pouco a família, saindo quase nunca de casa a não ser para me transportar, mascarada e "alcoolizada", da casa de Porto Alegre para a casinha de Gramado, estou, como todos, me cansando. Sem ver luz no fim do túnel, ou um vaga-lume débil, ou, como diz alguém menos otimista, o que se enxerga é a luz de um trem que vem vindo.

O que será de nós depois de acalmada essa onda de doença e morte no mundo, com países civilizados seguidamente tão desamparados como nós, os do rabinho da civilização, por geografia e cultura?

Ninguém sabe. Há quem diga que todos vamos melhorar, mais solidários, mais amigos, mais generosos. Tenho minhas dúvidas. O horror ao diferente cresce, com o medo do que o outro possa me transmitir. Seremos então mais xenófobos? Muito possível. Mais fragilizados, mais pobres, mais raivosos, em geral. Penso assim. Claro que os bons, individualmente, talvez se tornem melhores pela compaixão, pelo sofrimento, e os maus se tornem piores pela raiva, sentimento de injustiça, por que eu, por que eu? - esquecendo que sofre o planeta.

Não tenho nenhuma ilusão de que tudo ficará bem, ou "normal", em algum tipo de novo normal que inventaremos atabalhoadamente, sem receita, sem comando, sem clareza de visão. Sem projeto. Ou sim? Teremos de construir um novo modo de ser e pensar, de viver e conviver suportável, menos apavorado, menos nervoso, e mais responsável - porque muitos ainda não assumem responsabilidade alguma, e vivem como se tudo fosse praia, balada, o que é ruim apenas sendo maldade dos ricos, invenção da imprensa, coisas assim.

Quando estou escrevendo esta coluna sem muita alegria nem graça, mais uma notícia me chega: morre, pela Doença do Diabo chamada covid, mais uma amiga linda, generosa, alegre, que fará muitíssima falta à família e às amizades. Sofrimento duro, semanas de hospital, aparentemente um contágio que atingiu a família inteira, ela escolhida pelo Destino para não aguentar, e partir. Quantos mais virão?

Antes de assumir esta coluna, eu tinha acabado de traduzir um trechinho do livro de Hermann Hesse que devo terminar em breve, onde ele fala da morte do pai, a quem contemplava na antiga casa paterna, vendo-o tão calmo, impassível, ausente: "A cordinha se rompeu, e o pássaro voou, livre".

Na literatura tudo é bem bonito. Na verdade, corta o coração, que sangra... às vezes para sempre.

LYA LUFT

24 DE ABRIL DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Nem sempre teremos Paris

Não há mais voos entre Brasil e França. Viramos um país letal. Cortesia do governo federal, que custou a reconhecer que a gripezinha era assassina. Numa escala infinitamente menor de sofrimento, se comparado ao luto de tantos, o singelo sonho de conhecer Paris, ou de pra lá retornar, terá que ser adiado, mas o savoir vivre continua disponível.

A ideia é passar esse domingo em Paris entre quatro paredes. Os croissants de seu petit dejeneur serão pagos em reais e acompanhados de um bom suco de laranja natural (cafés da manhã de hotéis 4 estrelas em Paris não oferecem muito mais do que isso). Pronta para começar o tour?

Diga bonjour, mon amour aos demais membros da família e vista-se como uma nativa, é só seguir as dicas do ícone @inesdelafressangeofficial. Você deve ter uma camiseta branca, uma calça cáqui, um mocassim. Perfeito. Está linda.

Inicialmente, que tal um programa cultural? Selecione no Spotify um concerto para piano de Debussy (deixe Edith "Piá" para a noite) e abra os livros de arte que enfeitam sua mesa de centro. Nenhum? Então digite no Google "Museu d´Orsay visita virtual" e perca-se entre os impressionistas. Você ficará tão entretida que nem perceberá o sol entrando pela janela. A natureza chama.

Você deve ter plantas em casa. Sente-se perto delas para ler algumas páginas de Balzac, se for romântica, ou Michel Houellebecq, se não for. Difícil se concentrar? Seus filhos berram a sua volta? Lápis preto, papel e uma prancheta: chame-os para uma aula de desenho. A modelo é você. Pose para as crianças como se estivesse na Place du Tertre e divirta-se com o resultado. A figura retratada parecerá qualquer pessoa, menos a mãe deles. Igualzinho aos artistas de boina que faturam alto com os turistas.

Omelete no almoço. Ou, havendo pão, presunto, queijo gruyère e um forno, sai um croque monsieur. Vinho rosé já não é considerado cafona, abra sem medo. Ou um tinto. Em Paris, cerveja é contravenção.

De salto baixo e com alguns (ou vários) fios de cabelo branco, ninguém dirá que você não é uma europeia. Hora de ver um filme com Isabelle Huppert, Juliette Binoche, Charlotte Gainsbourg ou, sendo saudosista, Catherine Deneuve.

O filme acabou e ainda é cedo para o jantar? Dê uma circulada de carro pelos bulevares parisienses escutando uma rádio local (site Drive & Listen) ou vasculhe quinquilharias no fundo do armário, resgate antigas fotos em sépia, observe a ruína em que está o fogão - considere isso uma visita a um antiquário. Se perder o humor, entrou no personagem. Mas recupere-se a tempo de um french kiss entre os lençóis.

Saber viver é uma arte, mesmo em casa. Comer, ler, beber, amar - falta o quê? Talvez, antes de apagar a luz, um licor de cassis. Bon voyage.

MARTHA MEDEIROS

24 DE ABRIL DE 2021
CLAUDIA TAJES

Por onde passa a procissão

Arrumando a casa, entre uma entrega de trabalho e outra, lembrei da minha mãe definindo a faxina de alguém: ela só limpa onde passa a procissão. Quer dizer, onde aparece, onde o pó acumulado chama a atenção, onde o piso se oferece aos olhos e, portanto, ao exame da dona de casa mais criteriosa.

Saudade da dona Vera, que ajudava a nossa casa a não se parecer com a área atingida por um furacão. Ela sabia o que podia ser guardado e o que devia continuar aparentemente bagunçado, os livros em processo de leitura ou de consulta, os equipamentos de fotografia, o controle remoto que, se não estivesse exatamente naquele lugar, ninguém conseguiria encontrar depois. Mas faz mais de um ano que a dona Vera não vem, protegida em casa do coronavírus e de suas consequências funestas. Agora é tudo com a gente.

E o tudo é bastante, não só porque a casa é viva e não para arrumada de jeito nenhum, mas também porque não me dedico a acabar com a bagunça com a seriedade que seria necessária. Qualquer estímulo me faz abandonar a vassoura para ver o que está acontecendo no mundo. Vídeos e podcasts, por exemplo. Estou recolhendo o lixo quando entra uma postagem nova da Fala Feminina, projeto da Fátima Torri que dá voz a diferentes assuntos e anseios e devaneios, práticos e poéticos, das mulheres. Como define a Fátima, "a fala é o oposto do falo. Ela não se impõe, ela acolhe, não tem preconceitos ou pudores. Ela não aponta, ela circula. Ela fala, mas principalmente, escuta". Ou quando entra um capítulo novo da História do Disco, podcast da Bruna Paulin que, a cada semana, traz uma pessoa bacana falando de um disco marcante. Segue as duas no Instagram e outras redes, vale a pena.

E quando estou diante da pia cheia de louças - prefiro lavar do que botar na máquina - e o porteiro avisa que chegou um livro? Na semana passada, no Dia do Livro Infantil, recebi Por que eu não consigo gostar dele?/Por que eu não consigo gostar dela?, do Antônio Schimeneck e da Ana Claudia Ramos. Dois autores que falam, com muita delicadeza, sobre a descoberta da homossexualidade na adolescência. Sim, as panelas podem esperar.

O método de faxina por-onde-passa-a-procissão acaba deixando rastros difíceis de eliminar. As janelas, por exemplo, trazem um ano de pandemia acumulado nos vidros. Nada que impeça de ver o sol se pôr nos tons escandalosos com que ele tem nos presenteado nos últimos dias, mas digamos que existe uma espécie de filtro entre os nossos olhos e a rua. Foi em um desses fins de tarde de observação do céu que percebi que os marcos de madeira também precisam se livrar urgentemente do pó. E as persianas. E as estantes. Mas se espanei tudo há duas semanas!

Demorou, mas reagi. Para começar, comprei um daqueles aspiradores-robôs que ficam limpando sozinhos enquanto a humana aqui trata de outras tarefas, como fazer o almoço e estender a roupa. Em poucos dias meu robozinho, que chamei de Baby Yoda, ganhou minha mais alta estima e consideração. E, para ajudar de vez na arrumação, descobri que as Irmãs Mirabal têm uma cooperativa onde faxineiras, manicures, cabeleireiras, massagistas, pintoras, cuidadoras de idosos e muitas outras profissionais podem ser contratadas com um simples telefonema. Uma boa iniciativa neste momento em que tantas mulheres responsáveis pelo sustento da casa e dos filhos estão ainda mais vulneráveis. Gostou da ideia? É só ligar para (51) 98214-5989.

O papo está bom, mas é hora de fazer um intervalo no home office para molhar as plantas e botar os lençóis na lavadora. E sem reclamar. Hoje em dia, tendo casa para limpar e trabalho para entregar, qualquer pessoa está muito, mas muito no lucro mesmo.

CLAUDIA TAJES

24 DE ABRIL DE 2021
LEANDRO KARNAL

A MORTE DA RAINHA

Na última quarta-feira, a rainha Elizabeth II chegou aos 95 anos. Não é uma idade excepcional. Não é uma idade excepcional. Na família de cada leitora e leitor, certamente, teremos exemplos de alguma tia longeva que bate a soberana. Só para dar perspectiva, Kane Tanaka (a mulher de mais idade no mundo) completou 118 anos no dia 2 de janeiro deste ano. Sem a equipe médica disponível para a soberana do trono britânico, Tanaka nasceu em 1903 e passou pelas guerras mundiais com menos proteção do que a titular do Palácio de Buckingham. Imagine, apenas, como exercício de devaneio, que a mãe do príncipe Charles tenha a mesma quantidade de dias da japonesa. Significa que, pela frente, a inglesa teria pelo menos mais 23 anos inteiros. O príncipe de Gales, hoje com 73 incompletos, teria 96 ao assumir o título de rei.

Voltemos ao mundo real. Sam Knight escreveu para o The Guardian, em 2017, o texto London Bridge Is Down: the Secret Plane for the Days After the Queen?s Death. Aprendi que "London Bridge is down" é o código para a morte da soberana, de forma a comunicar o evento a um círculo mais estrito. Vi, igualmente, que os planos sobre a notícia da morte, o funeral e os primeiros dias após o fato estão estudados e treinados há bastante tempo.

Enterrar monarcas é fato muito enferrujado. O último ritual ocorreu em 1952. A simpática Kane Tanaka lembra bem da notícia: ela era uma senhora com quase 50 anos. A maioria verá pela primeira vez um cortejo fúnebre para uma cabeça coroada.

A morte de Churchill (1965) e da Rainha-mãe (2002) foi, de alguma forma, um ensaio. Lady Di (1997) também funcionou como comoção nacional. Tudo deve ser superado pela rainha há mais tempo no trono britânico. Os interesses por filmes (como A Rainha) e por séries como The Crown, em todo o mundo, mostram que a força magnética do trono continua em alta.

Ingleses são famosos por serem fleumáticos, previsíveis até. O artigo do The Guardian mostra desordem total nos funerais do século 18 e parte do 19. Foi o longo reinado de Vitória, trisavó de Elizabeth II, que restaurou a decência e pompa dos atos. O planejamento cresceu muito desde 1901, quando a mulher de Albert fechou os olhos em definitivo. Exemplo de cuidado? O famoso Louis Mountbatten, último vice-rei da Índia e membro íntimo da família real, previu seu próprio funeral a ponto de estabelecer dois cardápios. Um seria executado caso ele morresse no verão e outro na hipótese de o passamento ser nos meses frios. Como ele foi vítima de um atentado terrorista do IRA, em agosto de 1979, devem ter utilizado a sugestão de pratos leves para o calor.

Caso a curiosa leitora e o leitor em busca de dados não saibam, há sinos que só tocam quando morre o titular da Coroa. Há planos distintos para o caso de a morte ocorrer em qualquer um dos palácios da realeza. Mesmo com tanto furor organizativo, claro, há zonas cinzentas: o cargo de líder da comunidade britânica, a Commonwealth, não é hereditário nem fixo. Assim, quando a atual titular falecer, não existe certeza de que Charles será o próximo comandante do grupo de países.

Desde 1952, óbvio, o mundo mudou muito. O pai de Elizabeth foi o último imperador inglês. A Índia se foi e com ela o título que Vitória inaugurou. O falecimento de Elizabeth II é também o fim da geração que acompanhou o maior feito britânico do século 20: a Segunda Guerra Mundial. O próximo rei nasceu depois dela e vários primeiros-ministros nasceram já sob o reinado de Elizabeth II. Encerra-se uma era em que não apenas a rainha terá passado, mas determinada concepção da grandeza e do poderio britânico. A morte da rainha será cara: com ela muda a face da moeda em muitos países do planeta. Mudarão o hino, selos e outras marcas com o rosto sereno da mulher que melhor encarnou, na história, a dignidade e a liturgia solene do cargo de chefe de Estado. A segunda era elisabetana será encerrada como o passamento de uma rainha e de um momento impossível de retornar. A Marinha Britânica não manda mais nos mares e a Revolução Industrial não é mais a glória da Grã-Bretanha. No século 19, Vitória poderia se orgulhar de impor humilhantes derrotas ao imperador chinês nas guerras do Ópio. Hong Kong foi retirada à força do controle manchu como parte do tratado desigual ao fim do conflito. O mundo em que, um dia, sua trineta morrerá tem a China como principal pátria de produtos industriais e com um poder que seria um desafio enorme em caso de guerra. Os navios e canhões britânicos ainda puderam vencer a fraca e decadente força militar da ditadura argentina em seus estertores. As Malvinas/Falklands foram recuperadas. Mas era um réquiem para derrotados e para vitoriosos...

Toque poético que eu desconhecia: o cortejo fúnebre de Eduardo VII, o filho de Vitória e bisavô de Elizabeth, foi precedido pelo seu cachorro de estimação, Caesar, um fox terrier branco. A rainha ama cães corgi, raça que ela associou à Coroa.

A cena do caixão sendo levado para os muitos tributos que se estenderão por dias será comovente. Eu diria que, mais do que uma morte pomposa e prevista, Elizabeth é, do seu modo, uma mulher que teve uma vida extraordinária. Cercada de cuidados sufocantes, levou adiante a tarefa do pai que deveria restaurar a confiança na Coroa. Para a maioria dos súditos dela nas ilhas e no mundo, será o fim de uma era. É preciso ter esperança: God Save The Queen.

LEANDRO KARNAL


24 DE ABRIL DE 2021
CRISTINA BONORINO

PEDE PARA SAIR

Para os que reclamavam da evasão de cérebros do país, porque não há emprego nem políticas de financiamento à pesquisa, o governo resolveu acabar de vez com o problema: vamos parar de formar cientistas. Essa foi a resposta clara do resultado do edital de bolsas de doutorado e pós-doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) divulgado na semana que passou.

A bolsa é o salário dos jovens pesquisadores, que são a principal força de geração de conhecimento e inovação no Brasil - e no mundo. Há mais de 10 anos os valores não são reajustados. Foram solicitadas 3.080 bolsas e apenas 396 (13%) foram aprovadas para implementação. Esse edital previa R$ 35 milhões em recursos a serem usados em quatro anos. O CNPq reduziu para R$ 23 milhões, sem aviso, alegando que o restante será "reservado" para outra oportunidade.

Isso vem desde 2019 - mais de 80% do orçamento de todos os níveis do CNPq foram cortados. O CNPq é um órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, e a principal fonte de financiamento de pesquisa dessa pasta. Neste momento, o mundo inteiro sabe que depende de ciência e tecnologia para enfrentar esta que ficará para a história como uma das maiores crises mundiais de saúde pública. O mundo está sendo liderado por países que realizaram investimento constante e robusto em ciência e tecnologia. E a escolha do Brasil é agir exatamente na contramão disso. As políticas tecnológicas do governo brasileiro não são fruto de ignorância nem tampouco simbólicas; são ações pensadas, que resultarão no extermínio da ciência nacional.

A política de ciência e tecnologia de um governo deve servir - como servidor público que o governo deve ser - aos interesses da população e das gerações futuras. Deve garantir soberania nacional e independência tecnológica e oportunizar o máximo aproveitamento do capital humano. O treinamento científico forma pessoas com pensamento crítico, capacidade de resolver problemas e propor soluções inovadoras. A quem interessa eliminar esse tipo de formação?

A divulgação dos resultados do edital gerou um movimento forte entre os cientistas membros dos comitês de análise e seleção de projetos e bolsas submetidos ao CNPq para que renunciem coletivamente. Há dois anos trabalham voluntariamente, um trabalho altamente especializado que requer analisar problemas complexos e prever resultados, para que suas recomendações sejam desconsideradas pela diretoria do CNPq. Eu sinceramente discordo. Quem efetivamente não está fazendo o seu trabalho é que deveria pedir para sair.

CRISTINA BONORINO

24 DE ABRIL DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

ESCREVER A MENSAGEM

Esta coluna origina-se de antiga colaboração com o caderno Cultura de ZH, sob demanda de Cláudia Laitano e Carlos André Moreira, editores admiráveis. Um belo dia, Ticiano Osório convidou-me para passar a escrever como colunista do ProA, criado em maio de 2014; era convite cordial e o aceitei, ciente do desafio: mensagens relevantes a partir de meu ofício de historiador, ligado à cultura, à memória do mundo e à vida da nação e da cidade; estreei em 1º/2/2015. O ProA levou ao Doc (março/2016), ambos com DNA de caderno de cultura; isto declara o perfil de leitor, você, que quer informação com substância e margem para reflexão. Um artigo de cultura é para tropeçarmos em algo erudito para encontrar, na queda (ou ascensão), algo que nos recoloque diante de nós mesmos e do mundo. Aceito essa função como parte da evolução necessária para o intelectual público, minha condição como professor de universidade pública, a UFRGS, e como cidadão que sabe que todos temos o que oferecer quando criamos com amor e boa finalidade.

Hoje quem me edita é Daniel Feix, que conheço desde a saudosa revista Aplauso (1998-2016), com afeto e confiança; ZH sempre acolhe cordialmente meu iluminismo crítico, mesmo quando este contraria editoriais da casa. Minha aurora como autor público periódico foi no Jornal do Margs, então editado por Cida Golin (1999-2005), hoje minha colega na UFRGS. Cida ensina a norma da concisão, o imperativo de deletarmos frases em que nos imaginamos Machado de Assis, quando apenas grafamos algo ocioso ou já dito. "O extraordinário é demais!", belo ideal.

Não sou jornalista, mas historiador acadêmico, y otras cositas más. Desenvolvi estrutura e método, o que dá estabilidade aos meus artigos e facilita escrita e leitura. Escrevo com documentação histórica, oferecendo o núcleo rigoroso da informação, com datação segura, em textos que traduzo do original, que permitem pensar o que importa, de Sófocles, Shakespeare, Voltaire ou Goethe, conectados ao mundo em que vivemos. A memória cultural vira história ao edificar nossas identidades e circular na comunidade, nutrindo o pensar. Ademais, nada de subjetividade, como há neste exótico texto confessional; por uma esfera pública sem pieguice. O prazer da pesquisa e o carinho de leitores(as) são meu ganho a cada artigo.

Amigos me pautam como você pode fazer, caro(a) leitor(a). Meu dileto colega Sergio Lamb, e.g., pede denúncia ao deus mercado, totem do liberalismo satânico. Há que amadurecer, e conectar a algo maior, anterior e promissor, no caso, liberdade e democracia, musas do mundo melhor que edificamos com letras, ideias e ações. E, claro, fazer aparecer minhas amadas palavrinhas gregas, em busca da isonomia, contra a hybris dos arrogantes e pelo euoé de amantes e bacantes!

 


24 DE ABRIL DE 2021
COM A PALAVRA - 
LUIZ SCHWARCZ

ESTAMOS VIVENDO UM MOMENTO DE BIPOLARIDADE

escritor e editor, 65 anos Fundador da Companhia das Letras, acaba de lançar o livro memorialístico "O Ar que Me Falta - História de uma Curta Infância e de uma Longa Depressão"

Fundador de um dos maiores grupos editorais do país, Luiz Schwarcz acaba de lançar um livro de memórias, em que aborda seu histórico de depressão e reconstrói a história de seu pai, André Schwarcz. Nascido na Hungria, André escapou de ser carregado com seu pai, Láios, para um campo de extermínio nazista - Láios o salvou empurrando André do trem que os transportava.

A experiência de ter sobrevivido, mas deixado o pai seguir rumo à morte, deixou marcas profundas em André. Luiz cresceu vendo suas noites de insônia e sua tristeza constante. Além do histórico familiar, no memorialístico O Ar que Me Falta o editor aborda tópicos polêmicos de sua vida, como o soco que deu em um participante da Festa Literária de Paraty (Flip), em 2019. Nesta entrevista, ele lembra esse e outros casos, conta sobre o processo criativo da obra, compartilha como venceu a depressão e opina sobre o atual momento do mercado livreiro e a era dos cancelamentos na internet.

COM SURGIU A IDEIA DE TRATAR DE SUA DEPRESSÃO E DA VIDA DE SEU PAI EM LIVRO?

Passei muitos anos tentando escrever sobre o meu pai. Alguns dos meus contos, das minhas pequenas ficções, já giravam em torno dele. São textos que entraram em Discurso Sobre o Capim (2005)ou em Linguagem de Sinais (2010). Depois, trabalhei muito tempo em um romance, baseado mais na parte de aventura da vida dele na guerra e na imigração para o Brasil. Um dia, em uma conversa com um amigo editor, ele sugeriu que eu fizesse um livro de não ficção sobre meu pai. Fiquei com aquilo na cabeça e comecei a pensar em um livro que se chamaria O Silêncio do Meu Pai, que seria o tal livro de não ficção.

E ENTÃO VEM O EPISÓDIO QUE O SENHOR NARRA NO INÍCIO DO LIVRO, EM UMA ESTAÇÃO DE ESQUI.

Tive uma crise de ansiedade em um lugar paradisíaco, em um momento em que eu não esperava, que está narrado em O Ar que Me Falta. Naquele dia, tive um clique. Foi algo tão forte que falei: "Tenho de escrever sobre minha depressão". Aí juntei o livro que estava nascendo ali com o livro que eu sempre quis fazer na busca de preencher o silêncio que meu pai deixava.

O ISOLAMENTO SOCIAL MOTIVOU O SENHOR A FINALIZAR O LIVRO?

Esse episódio do esqui foi em janeiro de 2020. Em fevereiro comecei a escrever. Quando a pandemia começou, estava em Nova York. Passo parte do ano lá, pois minha mulher (a historiadora Lilia Schwarcz) dá aula na Universidade de Princeton. Tive uma feira cancelada e me concentrei ainda mais na escrita. Passei a escrever 18 horas por dia. Então a pandemia me estimulou, mas não foi por causa dela que comecei a escrever. De certa forma, esse livro já estava sendo escrito dentro de mim há 60 anos, eu só não encontrava a forma dele. Encontrei-a em 2020.

COMO FOI OPTAR PELA NÃO FICÇÃO? O SENHOR PODERIA TRATÁ-LO COMO UMA AUTOFICÇÃO, COMO A SÉRIE MINHA LUTA, DE KARL OVE KNAUSGARD, POR EXEMPLO.

Tem muita gente que leu o meu livro e falou que é como se fosse uma narrativa de ficção. Teve até alguém que me perguntou por que não entrou como ficção na lista da Veja, por exemplo. Mas não é ficção. Não quero me comparar com o Knausgard, que é um escritor maravilhoso, mas são livros que entram em uma linha tênue. Acredito que, por Knausgard ser mais completo como escritor, pode ser chamado de autoficção. Eu devo ser modesto e tratar meu livro como um livro de memórias.

OU SEJA, NÃO HOUVE PRETENSÃO DE ESCREVÊ-LO COMO FICÇÃO?

Tenho o desejo de escrever de uma maneira limpa, bonita, mas a palavra "pretensão" é que não soa muito boa em relação ao trabalho. É um livro que saiu sem pretensões, com um naturalidade e uma necessidade muito grande de expressão. No entanto, embora eu não tenha escrito o livro com a pretensão de fazer uma ficção, ele pode ser lido como se fosse.

COMO EDITOR E ESCRITOR, O QUE SIGNIFICA LANÇAR UM LIVRO HOJE?

Nunca escrevi nada cuja intenção fosse ficar guardado para mim mesmo. Escrevi muitos livros e não os publiquei por julgar que eles não estavam bons. De alguma forma, esse livro foi escrito para mim, para transformar o sofrimento que tive em parte da minha vida em uma obra literária. Ou seja, de alguma forma, foi fazer da minha vida o que eu faço para viver. Foi para mim, mas não seria para ficar guardado. Não teria tempo nem sentiria alívio escrevendo sem compartilhar.

A DEPRESSÃO É UM TEMA CENTRAL DE O AR QUE ME FALTA. O SENHOR SE CONSIDERA CURADO?

Eu me considero praticamente curado da depressão, embora acredito que a cura total não exista. Para o tipo de depressão que tenho, é uma cura majoritária, não total.

A DEPRESSÃO É UMA DOENÇA PARA A QUAL MUITA GENTE RESISTE EM BUSCAR AJUDA. QUAL É O PRIMEIRO PASSO?

Busquei vários tipos de ajuda que recomendo que todos busquem. Em primeiro lugar, busquei a ajuda familiar. O deprimido que tem uma família que reconhece a depressão como uma doença real, que não tem preconceito, poderá ter esse amor, e ele é fundamental. Depois, tem a terapia e a psicanálise, que eu também usei. São muito importantes. Além disso, pode haver apoio de médicos especialistas para que, em casos como o meu, que necessitam de acompanhamento medicamentoso, haja a orientação adequada. E também recomendo esporte, ioga...

SÃO ATIVIDADES COMPLEMENTARES QUE PODEM SER ESCOLHIDAS CONFORME O PERFIL DE CADA UM?

Cada um encontra sua forma de cura. Quem não puder contar com apoio familiar terá de carregar mais nos outros pontos, no acompanhamento profissional. Cabe a cada um encontrar esse equilíbrio entre os diferentes pontos.

A DEPRESSÃO E A HISTÓRIA DE SEU PAI, TEMAS QUE FORAM REUNIDOS LADO A LADO NESSE LIVRO, PROVAVELMENTE TAMBÉM JÁ HAVIAM SIDO OBSERVADOS EM CONJUNTO EM SUAS SESSÕES DE PSICANÁLISE. OU O SENHOR RELACIONOU OS TEMAS À MEDIDA QUE ESCREVIA?

Fiz psicanálise por 13 anos, como eu conto no livro. Depois, fiz mais alguns anos, na sequência. É natural que tudo isso tenha sido trabalhado em análise. Não foi trabalhado no livro pela primeira vez, não.

EM FEVEREIRO, CELEBRAMOS OS 10 ANOS DA MORTE DE MOACYR SCLIAR. O ESCRITOR TAMBÉM ERA UMA VOZ DE UNIÃO E DIÁLOGO NA COLETIVIDADE JUDAICA. SUA FALTA É MUITO SENTIDA NO MOMENTO, EM QUE A COMUNIDADE SE DIVIDIU NO APOIO AO ATUAL PRESIDENTE. NO SEU LIVRO, A TRADIÇÃO JUDAICA É MUITO IMPORTANTE. COMO VÊ A COLETIVIDADE NESTE MOMENTO?

A coletividade judaica não está à parte do país. Com o país dividido, a coletividade judaica vai também se dividir. Ela não tem uma coesão tamanha a ponto de imunizá-la dessa rachadura política brutal que está existindo no país. Isso é comum a qualquer coletividade que se insere em um contexto.

COMO É HOJE SUA RELAÇÃO COM A RELIGIOSIDADE JUDAICA?

Vou à sinagoga nas chamadas grandes festas, no Yom Kipur. Tenho o jantar de Shabat, às sextas-feiras, na casa da minha mãe, no qual eu faço a bênção do vinho e do pão. Mas, para mim, tudo isso só tem um sentido: lembrar do meu pai. Não tenho crença em Deus; tenho a crença no judaísmo enquanto cultura e conjunto de tradições.

É UMA MANEIRA DE REENCONTRAR O PASSADO?

Hoje me emociono muito com isso, coisa que eu não fazia na juventude. Relato no livro que sempre ficava ansioso para sair da sinagoga, pois era o lugar onde a tristeza do meu pai se expunha. Judaísmo, agora, é me reconciliar com aquele momento que eu não queria ter estado ao lado dele, como se pudesse pedir desculpa, para novamente encontrá-lo. Não há outro sentido a não ser encontrá-lo, imitá-lo, fazer o que ele gostaria que eu fizesse.

O AR QUE ME FALTA NÃO DEIXA DE LADO EPISÓDIOS COM POTENCIAL POLÊMICO, COM O SOCO QUE DEU EM UM PARTICIPANTE DA FESTA LITERÁRIA DE PARATY (FLIP), EM 2019. COMO FOI A DECISÃO DE ABORDAR ESSE TEMA?

Coloquei-o no livro porque é um exemplo de um momento em que perdi o controle. São dois momentos que estão citados no livro, um na sede da Companhia das Letras e outro na Flip. Não tive outros descontroles públicos. Mas, se decidi fazer um livro sobre minha bipolaridade, tinha de escrever com sinceridade total. Mostro como não me orgulho e me envergonho disso. Também mostro como minha psiquiatra falou que aquilo não tinha nada a ver com bipolaridade, que outras pessoas também poderiam perder a cabeça perante um insulto. Mas, para mim, quando algo assim acontece, imediatamente acho que é a doença que está em ação, que me descontrolei, e peço desculpas, como foram nesses casos. (Schwarcz foi xingado por uma pessoa da plateia, que alegava que ele havia se negado a receber um livro para entregar a Mia Couto e, como resposta a essa negativa, abordou sua depressão entre os xingamentos.)

COMO É A SUA BIPOLARIDADE?

Sou um bipolar muito leve, tenho poucos momentos de real descontrole.

NÃO HOUVE RESISTÊNCIA EM PUBLICAR UM EPISÓDIO DE VIOLÊNCIA EM UM LIVRO QUE NARRA SUA HISTÓRIA FAMILIAR?

Teve gente que preferia que eu tivesse omitido esse capítulo da violência. Consideravam uma exposição muito grande. Respondi que ou faço um relato completo e mostro como me sinto nesses momentos em que acho que minha bipolaridade está em ação, ou não faço um livro sobre isso.

A RESISTÊNCIA EM ABORDAR O TEMA PODE ESTAR LIGADA AO MOMENTO EM QUE VIVEMOS, EM QUE O RISCO DE CANCELAMENTO NAS REDES SOCIAIS É IMINENTE?

Podemos dizer que estamos vivendo um momento de bipolaridade, coisa que eu não tinha pensado antes desta nossa conversa. Não só porque o bipolar se divide em duas situações absolutamente opostas, da melancolia e da mania, mas também porque, quando você está em um momento de baixo controle ou em uma crise de mania, a urgência é um aspecto fundamental da nossa existência. Tudo precisa ser resolvido imediatamente. É uma característica da era das redes sociais. Não há tempo para a reflexão.

VIVEMOS UM TEMPO DE CONSTANTE URGÊNCIA?

A ideia de que a sociedade hoje é bipolar é bem coerente. Não apenas pela situação de divisão, como também pelo fim das temporalidades. Não há mais tempo. O tempo é o tempo da hora. Então, se a pessoa fez algo, tem que ser cancelada. É como se o passado dela não existisse, e o futuro também, porque você cancelou. As pessoas não se permitem refletir, precisam agir já, o presente pede urgência. E, com urgência, não há reflexão. Engraçado, mas agora penso que deveria apresentar meu livro como um livro sobre o Brasil (risos).

LIVROS DEMANDAM REFLEXÃO. COMO EDITOR, ESSE TEMPO DE URGÊNCIA NÃO LHE ASSUSTA?

A questão é que o Brasil não é só esse Brasil da falta de diálogo. Está ocorrendo uma reação muito forte à intolerância. Às vezes, a reação é de gente que é contra a briga em si, mas também não está disposta a dialogar. No entanto, acho que o livro no Brasil está vivendo um momento quase glorioso. Está crescendo. Não está caindo. Está sendo apreciado por gerações mais jovens. Isso é um sinal de esperança. Nem todos querem se entregar à beligerância.

O PROTAGONISMO DA AMAZON NO MERCADO DO LIVRO CAUSA PREOCUPAÇÃO? O CENÁRIO ESTÁ CADA VEZ MAIS CENTRALIZADO, MENOS PLURAL?

A pandemia aumentou o espaço do comércio online. Não foi só a Amazon que cresceu, mas o Magazine Luiza entrou em livros, a B2W, o Submarino. Isso deve ser analisado sob vários aspectos. O primeiro é que, em período de lockdown, em que as lojas presenciais não puderam atender, o comércio online mostrou que pode distribuir livros, inclusive para lugares onde não há livrarias. Esse é o aspecto positivo. O aspecto negativo é que as livrarias de rua foram muito atingidas.

ESSA TENDÊNCIA JÁ VINHA SE ESTABELECENDO DESDE ANTES DA PANDEMIA.

Sim, é algo que já vem desde antes. As pessoas estão comprando muito online. E não apenas livros. Muitas livrarias entenderam isso e se transformaram em pontos culturais, não sendo só um lugar de compra. São pontos de encontro, com cafés e coisas assim. Mas a pandemia atrapalhou isso. Apresento minha solidariedade às livrarias de rua, que estão sofrendo, mas reconheço que o comércio online vence a pandemia e permite a venda dos livros neste período. Como tudo que tenho respondido nessa entrevista, quero dizer que as coisas são complexas, não têm apenas um lado.

EM O AR QUE ME FALTA, O SENHOR CITA A SATISFAÇÃO E O CARINHO DE ESTAR PRÓXIMO DE SUAS NETAS. DE CERTA FORMA, ESCREVER SOBRE SUA VIDA TAMBÉM FOI UMA FORMA DE DEIXAR UM TESTEMUNHO PARA AS NOVAS GERAÇÕES?

Não quero ser pretensioso de achar que uma nova geração vai ter interesse na minha vida. Não sei se serei conhecido até essa geração começar a ler livros mais adultos. Quero que as minhas netas, em particular, leiam esse livro um dia. Todo mundo escreve para ser lido. Mas, como tenho dito, escrevi esse livro para transformar sofrimento em narrativa. Tomara que o livro dure até as novas gerações, mas seria muito pretensioso da minha parte pensar nisso. 

ALEXANDRE LUCCHESE

24 DE ABRIL DE 2021
DRAUZIO VARELLA

O NARIZ ENTUPIDO E OS DESCONGESTIONANTES NASAIS

Chegam o outono e o inverno e, com eles, longos períodos de tempo seco e ar poluído. Principalmente nos grandes centros urbanos, a associação desses três elementos - frio, baixa umidade relativa do ar e poluição - transforma-se em campo fértil para a entrada de poluentes, fungos, vírus e bactérias no organismo. O primeiro órgão que reage a essas condições adversas é nosso nariz, estrutura anatômica dotada de múltiplas funções e complexo sistema de defesa.

Cabe ao nariz, por exemplo, filtrar o ar que respiramos para evitar que partículas de poeira e micro-organismos nocivos alcancem os alvéolos pulmonares. Isso só se torna possível porque as cavidades nasais são revestidas por pequenos pelos e cílios microscópicos cobertos de muco, líquido pegajoso que ajuda a umedecer todo o sistema respiratório e a transportar elementos estranhos para fora do corpo. E não para por aí. O nariz possui extensa cadeia de vasos sanguíneos que ajuda a aquecer o ar para que chegue na temperatura adequada aos pulmões.

Não é exagero dizer, então, que é papel do nariz melhorar a qualidade do ar que respiramos. No entanto, certas condições inflamatórias, infecciosas, alérgicas ou mesmo anatômicas, como o desvio do septo e a presença de pólipos, podem interferir na passagem do fluxo de ar pelas narinas e provocar congestão nasal, ou seja, o popular nariz entupido. Na verdade, o entupimento do nariz é um mecanismo de defesa do organismo para impedir a entrada e o transporte de elementos nocivos para outros órgãos das vias aéreas.

O mecanismo é fisiológico. Quando algum agente agressor atua como irritante, os vasos sanguíneos que irrigam o nariz dilatam, o volume de sangue aumenta e os cornetos (tecido esponjoso localizado nas paredes laterais da cavidade nasal) incham, obstruindo a passagem do ar, sinal de que o sistema imunológico está tentando livrar-se do agressor.

Congestão nasal não é doença. É sintoma. Resfriados comuns, gripes, rinites, sinusite, crises alérgicas, exposição prolongada ao ar condicionado, pólipos nasais, desvio de septo são condições que podem dificultar a passagem do ar pela cavidade nasal. Identificar a causa é fundamental para orientar o tratamento, quando necessário.

O fato é que a dificuldade para respirar traz bastante desconforto. Por isso, ao primeiro sinal de nariz entupido é comum a pessoa recorrer ao uso dos descongestionantes nasais. Utilizados com critério, sob orientação médica e por prazo determinado (cinco dias, no máximo), eles proporcionam alívio quase que imediato, porque contêm substâncias vasoconstritoras (nafazolina, fenoxazolina, oximetatazolina, fenilefrina, pseudoefredina) em sua fórmula. Resultado: os vasos contraem, o fluxo de sangue diminui, o edema da mucosa regride, a produção de muco baixa e as pessoas voltam a respirar normalmente.

Dito assim, parece que esses remédios estão livres de efeitos adversos e por isso são vendidos livremente nas farmácias. Não é verdade. O uso contínuo dos descongestionantes nasais pode ter consequências graves no organismo.

Uma delas é o efeito rebote. Embora a ação do medicamento seja rápida, a sensação de alívio é passageira. Depois de algum tempo, o nariz volta a entupir, o que obriga a pessoa a ir diminuindo, progressivamente, o intervalo entre as aplicações a ponto de precisar ter sempre à mão um frasco do medicamento para poder respirar melhor. Esse grau de dependência resulta num distúrbio chamado rinite medicamentosa ou vasomotora, cujo principal sintoma é o nariz entupido provocado por alterações na mucosa nasal que leva à perda da capacidade de contrair e dilatar os vasos sem "as gotinhas milagrosas".

Outro problema é que a ação dos descongestionantes nasais não se restringe ao alívio do nariz entupido. Seu uso contínuo faz com que parte da substância vasoconstritora que entra na composição do medicamento seja absorvida pela mucosa, caia na corrente sanguínea e alcance o sistema cardiovascular, o que pode representar uma sobrecarga para o coração. Arritmia cardíaca, taquicardia, hipertensão arterial, trombose, tonturas e dor de cabeça são alguns dos sinais do efeito colateral dessas drogas em órgãos distantes. Vale também lembrar que muitos comprimidos indicados para alívio dos sintomas das gripes e resfriados possuem substâncias vasoconstritoras em sua fórmula que podem potencializar os efeitos indesejáveis da droga, incluindo a perda do olfato e perfuração do septo.

É importante destacar, ainda, que, nas crianças pequenas, o uso dos descongestionantes nasais pode ter consequências desastrosas, uma vez que pode provocar depressão do sistema cardiorrespiratório e levar à morte. E não há exagero nessa afirmação. Segundo dados fornecidos pelo Ceatox (Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas de São Paulo), depois dos anti-inflamatórios e dos analgésicos, os descongestionantes nasais são os medicamentos de venda livre que mais complicações graves podem apresentar.

É preciso ficar atento. Dias frios e secos, que dificultam a dispersão de gases poluentes, favorecem o aparecimento de problemas respiratórios e congestão nasal, pois aumentam o risco de edema (inchaço) da mucosa nasal, o que dificulta a respiração.

Por desconhecimento ou desinformação, nessas horas, muita gente recorre aos descongestionantes nasais, sem necessidade, para livrar-se do incômodo provocado pelo nariz entupido. Em grande parte dos casos, o tratamento da congestão nasal independe do uso desses medicamentos. O importante é manter a hidratação nasal. Nesse sentido, ajuda muito aplicar soro fisiológico nas narinas, várias vezes por dia, para manter a mucosa bem hidratada e livre de micro-organismos nocivos, usar umidificadores de ambientes e/ou tomar banho quente para que o vapor da água umedeça as vias respiratórias. Evitar a exposição ao ar-condicionado, que resseca o ar, e ingerir bastante líquido para ajudar a diluir o muco são outros cuidados que devem ser mantidos. Acima de tudo, é fundamental ficar longe da automedicação e procurar assistência médica se a congestão nasal for persistente, sugerir processos alérgicos, ou vier acompanhada de secreção densa e amarelada ou sangramento.

DRAUZIO VARELLA

24 DE ABRIL DE 2021
MONJA COEN

INSPIRAR

De onde vem a inspiração? Do movimento da caixa torácica que se expande e permite o ar entrar? Esse é o movimento respiratório natural. Nossa primeira inspiração foi ao sair do útero materno. Som nas cordas vocais como um choro.

Há dor ao inspirar e expirar? Há dor ao nascer?

Parto natural, forçar a passagem por um canal estreito. Todo o cérebro se comprime e saímos do meio aquoso, do calor, do ser alimentada pelo umbigo - cordão umbilical, que precisa ser cortado. Rompimento de um quentinho agradável e transitório.

Você gostaria de ainda estar no útero materno? Será que não estamos todos sendo gerados e transformados a cada instante? Inspirando e expirando.

Ao inspirar, recebo tudo que há: o bem e o mal, a alegria e a tristeza, a dor e o prazer - todos os pares de opostos. Circula em meu sangue uma molécula de oxigênio que estava disponível quando a caixa torácica se expandiu e inspirei.

Essa molécula deve ter vindo de uma árvore qualquer, durante o dia, no seu processo vida fotossintética. A árvore inspirou o gás carbônico e exalou oxigênio. O oposto de nosso sistema respiratório. O pulmão que se parece com uma árvore... Invertida.

Ao expirar, oferecemos de volta às árvores o gás que percorreu todas as nossas células e fez a troca, oxigenando e alimentando nosso corpo. Recebemos e oferecemos de instante a instante.

Respirar. Saber respirar. Respirar conscientemente. Saborear cada inspiração e cada expiração. Basta estar atenta. Não há esforço especial. Endireite a coluna vertebral. Firmes os pés na Terra. Alongada a cabeça ao céu. Você é a ponte, o veículo, o caminho, a vida.

Sorria. Receba e transforme o desconhecimento, o medo, a ansiedade. Respire. Tudo passa. Somos a transformação que queremos no mundo.

Você pode respirar sem aparelhos. Ainda há oxigênio disponível no ar. Vamos manter essa disponibilidade para futuras gerações? Podemos tanto. Esperançar. Fazer acontecer. Ainda dá tempo de reverter o que foi feito errado, a decisão indecisa que prejudica a vida. Restaurar, redimir, reconciliar, rever, reler, religiosamente.

Expirar, terminar, por fim, finalizar. Tudo que começa termina.

Até crianças morrem de covid. Dói morrer ou o que dói é o que antecede a expiração final? No momento de expirar, a caixa torácica se contrai e o ar sai. Depois de tantas expirações, as de prazos e as de paixões, chega um momento que não é o final, mas é o da última expiração natural. Um corpo que não inspira mais deteriora, apodrece.

Antes disso, me diga, vale? Com dor e ou sem dor, as experiências de vidamortevidamorte são preciosas. Incessante movimento transformador.

Na tristeza, entristecemos, anoitecemos - e passa.

Na alegria, alegramos , amanhecemos - e passa.

Ao perceber cada inspiração e cada expiração, podemos saborear uma e outra, sem pressa, sem aflição - e mesmo quando houver pressa e aflição perceber a oscilação respiratória. Presente no aqui e agora. Despertemos. Que seja um despertar inspirado.

Mãos em prece

P.s.: Acaba de ser lançado pela editora Citadel o livro Despertar Inspirado, escrito pelo professor Clóvis de Barros Filho e por mim. São reflexões sobre 40 temas que podem transformar a realidade e o cotidiano dos leitores.

MONJA COEN


24 DE ABRIL DE 2021
J.J. CAMARGO

A FERA OMISSA

"Nascer é uma possibilidade. Viver é um risco. Envelhecer é um privilégio!"

(Mario Quintana)

Não há, no reino animal, um ser tão dependente de ajuda ao nascer quanto o homem. Tendo como único instrumento de defesa a inespecificidade do choro, ele tem que administrar com esperteza o limitado potencial deste recurso, variando em decibéis desde o choramingo até o choro estridente e irritante. E, às vezes, muito irritante, dependendo do grau do parentesco do ouvinte ocasional.

E esta necessidade se prolonga, de tal maneira que enquanto algumas espécies já morreram de "velhas", e a maioria está em plena maturidade e autonomia, os humanos estão ainda remanchando com necessidades básicas e sendo festejados, sem constrangimento, pelos pais amorosos quando conseguem vencer dependências que, comparadas com as de outras espécies, parecem ridículas - como abandonar bico e dispensar as fraldas.

Por estranho que possa parecer às outras espécies (e quem saberá o que elas pensariam, se pensassem?), é exatamente nesse período inicial de convívio e fragilidades que construímos os laços afetivos mais fortes com nossos filhos. É quando daríamos qualquer coisa para assumir uma dor que os atormente. Essa realidade só é ridicularizada por quem, não tendo tido filhos, ainda foi beneficiado pelo esquecimento dos incômodos e sustos que provocou na dupla que não dormia e não comia e que velou sua maravilhosa descendência como se todas as viroses da infância fossem fatais.

A rotina é que a necessidade de agradecer por esses "serviços prestados" só surja de forma pungente quando eles próprios têm filhos. Fazendo a roda girar, finalmente descobrem o verdadeiro sentido de ser pai e mãe.

Com olhar crítico, sem nenhum viés afetivo, ainda é muito difícil determinar com precisão quando o ser humano se habilita à autodefesa, mas certamente é depois da adolescência, isso segundo os especialistas em desenvolvimento humano. Porque na opinião da maioria das mães essa dependência nunca é atualizada. E por isso a mãe de verdade não tem nenhum constrangimento de se comportar, enquanto viver, como a felina mais primitiva, sempre disposta a morrer para proteger a sua cria, que nunca terá idade para dispensar este cuidado.

Pelo somatório de razões e experiências, quem trabalha com crianças doentes, principalmente se tem filhos e netos, desenvolve uma espécie de sensor para detecção do mais denso afeto familiar, que se revela no rosto sem maquiagem, na profundeza das olheiras, na vermelhidão dos olhos, na prontidão das lágrimas e na inquietude das mãos.

O desenvolvimento instantâneo de empatia explica porque os médicos mais afetuosos, muitas vezes, debruçados durante horas sobre a complexidade de um caso, não esquecem de mandar recados tranquilizadores para as mães, consumidas de angústia na sala de espera.

Confiando que essas atitudes sejam normais, simplesmente por serem as mais frequentes (e não é este o conceito de normal?), choca tanto que um menino lindo, sem as mínimas condições de autodefesa, cuja expressão de desespero era tamanha que não conseguia controlar o vômito quando via o padrasto, tenha sido imolado pelo psicopata sem ter antes despertado na mãe a fúria primitiva da felina, que para defender a cria ameaçada nunca precisa ouvir a opinião de ninguém.

J.J. CAMARGO

A hora do banho de banheira

Às vezes, tudo de que preciso é um bom banho de banheira. Bem quente e com espuma, de preferência. Mas, lamentavelmente, não tenho banheira em casa. Na verdade, nunca tive uma casa com banheira. Falo das grandes, em que você se senta e fica com as pernas esticadas. Uma banheira na qual é possível dormir, como nos filmes americanos em que a mocinha dorme enquanto o assassino se aproxima. As pequenas, em que você fica todo encolhido, essas já tive. Não conta.

A primeira vez que tomei um banho de banheira autêntico foi na Itália. Eu nunca fora à Europa, e já tinha mais de 30 anos de idade. Viajei para cobrir uma missão econômica de empresários de Criciúma no norte italiano. No começo, nós não nos conhecíamos, então ficamos desconfiados. Eles empresários, eu jornalista, sabe como é. Mas, quando chegamos a São Paulo, já éramos os melhores amigos.

Viajamos pela Itália em um ônibus. Imagine: 30 brasileiros atravessando o belíssimo norte italiano, parando de cidade em cidade, conhecendo não apenas as empresas, mas as atrações dos lugares. Foi uma das mais divertidas viagens que fiz.

Em Milão, nos hospedamos em um hotel muito bom. Os quartos eram espaçosos e confortáveis. E o banheiro tinha... banheira! Fiquei olhando para ela: era imensa, porém acolhedora. Decidi: no dia em que tiver tempo, vou tomar banho de banheira.

O dia seguinte a essa tomada de decisão foi duro. Acordamos cedo, visitamos empresas não apenas em Milão, mas nas cidades próximas. Só voltamos para o hotel à noite. Eu estava sujo e cansado. Era a hora de tomar banho de banheira!

Foi o que fiz. Temperei a água e enchi a banheira. Em seguida, entrei nela como uma diva de Hollywood. Fiquei ali, relaxando, talvez por meia hora. Quando saí, concluí que relaxei demais. Baixou-me a pressão e tive de me deitar na cama para não desmaiar. Banhos de banheira podem ser perigosos, deduzi. Mas não desisti deles. Até hoje, tanto tempo depois, se encontro uma banheira apropriada, vou para o banho. Só cuido na hora de me levantar. Saio da banheira relaxado e renovado, sem necessitar de mais nada, nem sexo.

Talvez você ache futilidade da minha parte isso de banheira. É porque você não sabe de algo que já escrevi a respeito, que o revolucionário Marat passava os dias na banheira e dentro dela foi assassinado. E que Churchill despachava da banheira, bebendo uísque e fumando charuto. Talvez algumas das mais importantes deliberações que salvaram o Ocidente dos nazistas tenham sido tomadas em uma banheira.

Então, estou absolvido. E agora, neste momento em que estamos todos lidando há um ano e meio com um vírus que pode ser mortal, que estamos confinados em nossas casas, que estamos à mercê de um governo errático, que chegou a recusar vacinas contra a doença, agora que o juiz e os promotores da Lava-Jato estão sendo condenados e aqueles que eles condenaram estão sendo festejados, agora tudo de que preciso é um bom banho em uma grande banheira, com espuma e tudo.

Mas grande banheira não há. Continuarei aqui, na expectativa de que o tempo cure os males que ele próprio causou.

DAVID COIMBRA 


24 DE ABRIL DE 2021
ARTIGOS

OS MILLENNIALS DO AGRONEGÓCIO

Todo produtor que tem filhos sabe o dilema que é quando chega a hora de preparar a sucessão rural. Quem não passou por isso em casa ao menos viu acontecer com os amigos e vizinhos. Manter a família no campo garantindo a produção de alimento é o sonho de gerações de agropecuaristas, mas, também, de muita dor de cabeça. Mas ficar na terra não é mais sinônimo de falta de opção ou de coragem para enfrentar a cidade grande. A juventude que chega agora na administração das propriedades sabe bem o que quer do seu futuro e traz um novo ar à gestão rural.

O jovem empreendedor do agronegócio não lembra nem de longe a geração de seu pai, que sonhou em ser médico ou advogado, mas acabou retornando à propriedade da família por força do destino ou pelo bem coletivo. Os millennials do agronegócio sabem bem o que querem, estudaram muito e se prepararam para atuar no agro. Mas querem ficar em um novo campo. Querem ter tecnologia na palma da mão, comunicação por satélite e veem a lavoura como um business altamente promissor e cheio de oportunidades de fazer a diferença.

Conscientes das potencialidades do Brasil como fonte de alimento do planeta, os millennials e integrantes da Geração Z sabem a força inovadora que trazem ao manterem suas mentes abertas para novas conexões. Pensando nisso, o setor cooperativista gaúcho saiu na frente levando a esses jovens o conceito de inovação aliado a algo que não ficará velho nunca: a confiança. Lançada neste mês de abril pela Federação das Cooperativas Agropecuárias do RS (Fecoagro) e 30 de suas cooperativas, a plataforma Smartcoop é uma ferramenta que fala a linguagem desse produtor que chega ao setor cooperativista. Por meio da Smartcoop, 173 mil produtores gaúchos poderão vender sua safra em bloco, gerenciar a propriedade com um clique e sonhar com um e-commerce efetivo e realmente globalizado para a produção nacional. Uma proposta arrojada que proporciona logística planejada em conjunto, muita racionalização de tempo e do deslocamento físico das pessoas. E o melhor de tudo: essa tecnologia está na mão do produtor.

Mas os millennials do agronegócio não são apenas conectados ao wi-fi ou a plataformas digitais. São uma geração independente e consciente da responsabilidade que recebeu ao administrar um planeta que precisa de cuidados. O novo produtor rural aprendeu com seus pais e avós a amar o campo pela sua essência, a valorizar a vida e o alimento. Porque, mais do que produzir, os millennials querem viver bem e com sabedoria ao lado de quem amam, fazendo o que amam.

 Presidente da CCGL - CAIO VIANNA


24 DE ABRIL DE 2021
J.R.GUZZO*

O julgamento que nunca acontecerá

Cumpriu-se, há pouco, o ritual para consumar a pior farsa jamais registrada na história da Justiça brasileira: a anulação das quatro ações penais contra Lula, inclusive aquela em que ele foi condenado, já em terceira instância e por nove magistrados diferentes, por corrupção e lavagem de dinheiro.

Por causa dessa farsa, comandada pelo ministro Edson Fachin e apoiada por todo o Supremo Tribunal Federal (STF), fizeram desaparecer na atmosfera tudo o que havia contra Lula na área criminal - provas, depoimentos, confissões espontâneas de crimes por parte de testemunhas, delações premiadas.

Fachin e os colegas decidiram que Lula não deveria ter sido julgado em Curitiba - e pronto, o problema ficou resolvido para ele. Com isso, tudo o que a Justiça brasileira fez no seu processo - um trabalho que foi considerado perfeitamente correto durante cinco anos - acabou sendo jogado no lixo.

Se não podia ser em Curitiba, tinha de ser onde, então? Nem os ministros sabem - a única coisa que são capazes de dizer é que em Curitiba não valeu. Uns acham que os processos, agora, devem recomeçar do zero em Brasília; outros acham que deve ser em São Paulo. Há, enfim, os que conseguiram o prodígio de não achar nem uma coisa nem outra; no final da sessão plenária ("virtual", é claro) que julgou o caso, decidiram simplesmente que não têm a menor ideia sobre onde têm de ser julgados os crimes de que Lula é acusado. Em Marte, talvez?

Acabou ficando em Brasília, mas é só uma piada - tanto faz o lugar do novo julgamento, pois esse julgamento não vai acontecer nunca.

A fraude praticada pelo STF contra as noções mais elementares de justiça não absolve Lula de nada; sua "inocência" não foi "reconhecida", como ele tem dito, e nem "a Justiça" está dizendo que houve um "erro judiciário" - ou que ocorreu o que se chama de "injustiça".

A única coisa que aconteceu de fato, no mundo das realidades, é que os ministros do STF livraram o ex-presidente dos processos que estavam travando a sua carreira política - e, dessa forma, o transformaram no seu candidato pessoal à Presidência da República.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO*


24 DE ABRIL DE 2021
INFORME ESPECIAL

As soluções terceirizadas e grandiosas

Uma coisa é parar de roubar, ou roubar menos. A outra é devolver o que foi levado indevidamente. A Justiça só é completa quando ambas as dimensões se combinam. O desfile de líderes online promovido por Joe Biden durante a semana convergiu para o primeiro ponto: reduzir desmatamento e emissão de gases venenosos. Mas quase nada se ouviu sobre reflorestamento e despoluição.

Um artigo publicado na Revista Science em 2019 estimou que o planeta precisaria de 1,2 trilhão de novas mudas de árvores para se reequilibrar e impedir o aumento de temperatura e seus efeitos nefastos, como o aumento da frequência e da violência de fenômenos meteorológicos.

Nossos líderes, craques em falar bem deles mesmos, se sucederam em discursos cheios de trejeitos e palavras de impacto cirurgicamente inseridas pelas suas equipes no teleprompter, acessório acoplado à câmera que permite a leitura de um texto sem que a plateia note. Fiquei com a impressão de que muitos presidentes e primeiros-ministros sequer compreendiam exatamente o que estavam dizendo. Disseram, pelo menos.

O fato é que ninguém precisa de um presidente para plantar uma muda de árvore e separar o lixo em casa. Quando eu era bem piá, meus pais contaram uma história que jamais esqueci. A floresta pegou fogo. Entre as chamas, a hiena, longe das labaredas, na beira de um lago, dava gargalhadas ao ver um passarinho indo e vindo freneticamente. Ele recolhia algumas gotas de água, voava até as chamas, soltava as gotas, e voltava para uma nova carga. A hiena se contorcia: "Passarinho otário, não adianta nada, esse pouquinho de água não vai apagar o incêndio", berrava. O passarinho, apressado, respondeu: "Talvez não, mas estou fazendo a minha parte". E lá se foi novamente jogar meia dúzia de pingos sobre as árvores. Foi aí que um outro passarinho que passava por ali viu a cena...".

TULIO MILMAN