quarta-feira, 31 de maio de 2017


31 de maio de 2017 | N° 18859
MARTHA MEDEIROS

  • Você é novo aqui?

    Entrei num estabelecimento comercial que não frequentava há uns três meses e reparei que havia funcionários que eu desconhecia. Entre eles, uma bela mulher, bem maquiada e produzida. Trans. Enquanto eu era atendida, conversamos rapidamente e estava tudo assim, natural como tem que ser, quando olhei para ela e perguntei: “Você é novo aqui?”.

    Tóóóóing. Ato contínuo, me corrigi: “Nova!!”. Mas o estrago já estava feito, o semblante dela fechou e eu fui etiquetada como um ser das cavernas que não sabe lidar com a diversidade. Logo eu, a pseudodoutora em condição humana.

    Voltei para casa chateada com o que aconteceu, me punindo em silêncio, e ao mesmo tempo percebi como é difícil a gente trocar o chip e adotar posturas mais avançadas. Crente de que estava com a cabeça feita em relação ao movimento transgênero, me dei conta de que esses atos falhos demonstram que toda uma cultura adquirida não se varre da nossa vida com uma simples vassourada. A faxina tem que ser mais pesada.

    Isso aconteceu na mesma semana em que muito se comentou a respeito de Laerte-se, o documentário sobre o cartunista que virou a cartunista. E faço uma confissão pública com a qual alguns se solidarizarão, mas o objetivo não é formarmos um gueto reacionário do contra, e sim questionarmos nosso comportamento a fim de evoluir: ainda tenho dificuldade de chamá-lo de “a” Laerte. Imagino que ela (tenho dificuldade de chamá-la de ela também) considere um ato de resistência manter seu nome de batismo em vez de trocar por Laís, Larissa, Laurel. Tem também o fato de Laerte ser uma identidade artística plenamente reconhecida e estabelecida no universo dos cartuns. Mas Laerte é nome próprio masculino. É como se tivéssemos que dizer a Roberto, a Milton, a Cassiano.

    Não é simples.

    No entanto, não sou feita apenas de instintos e costumes de estimação. Sou feita também de raciocínio, consciência e capacidade de me adequar a um mundo que não é mais o mesmo. É obrigatório reformatar nossas atitudes para abraçar essa sociedade plural que aí está e que hoje permite que tanta gente que antes vivia atormentada dentro do próprio corpo possa se sentir plenamente identificada com quem é – seja ele ou seja ela.

    “Você é novo aqui?” Todos nós somos novos aqui. Temos o direito de errar, mas o dever de aprender.

sábado, 27 de maio de 2017



27 de maio de 2017 | N° 18856 
LYA LUFT

Casas

Começo um novo livro, que chamo A Casa Inventada, deixando de lado por um tempo – de acordo com minha editora Record – o outro, que se chamaria Os Sentimentos Humanos, ou A Casa de Pandora. Pois estava empacado há semanas, me deixando aflita. O vento sopra quando quer, digo sempre, e não adianta lutar com ele: acaba nos derrubando e cobrindo de pó. 

Então, começando a montar a casa, que no meu livro será a vida, a casa da vida que um pouco inventamos, um pouco nos é imposta, leio na ZH de quinta o artigo do David Coimbra sobre casas. Bonito, comovente, tenso e sério como ele sabe fazer. Leiam: vale a pena.

E assim continuo aqui falando um pouco em casas: as que nos recebem quando nascemos, as que criamos para e com nossos filhos, caso os tenhamos, casas que podem ser no chão ou no alto de um edifício. Casa sendo “lar”, isto é, refúgio. Lá onde, apesar de discordâncias, brigas e chatices, nos sentimos abrigados. Esse é o meu lugar, assim como, no Exterior, pensamos no nosso país (pobre país, aliás...) como “meu lugar, minha gente”.

Talvez nem todos sintam isso, mas eu, conhecido bicho da minha toca e mulher da minha caverna, em todas as vezes em que estive em países civilizados, lindos, cultos, a trabalho ou a passeio, tratada a pão de ló, tive permanentemente essa sensação de que meu lugar seria, mesmo mesmo, aqui no Brasil. Esculhambado, colorido, hoje dolorido e preocupante, mas minha gente, minha fala, meu clima, minha alma, meu aconchego. 

Certamente não sou uma “pessoa do mundo”, antes uma espécie de caipira gaúcha, embora nutrida com idioma, livros, uns poucos costumes e comidas do país de origem de meus antepassados – que cá vieram há quase duzentos anos, portanto estamos bastante “amaciados” como brasileiros. Apesar do respeito e admiração pelo espírito de trabalho, ordem, beleza natural e maravilhas culturais, a terra de origem não é a minha casa.

Aliás, há muitas décadas luto contra uma “frau” enérgica, prática, que se põe à minha frente mesmo agora, mãos nos quadris, quando no meio da tarde estou sonhando acordada na minha poltrona da sala, vendo – sem realmente enxergar – a bela paisagem, ou as nuvens, fora: “O quêêê? A essa hora de pernas pra cima sem fazer nada?”.

Na verdade, já não me impressiona muito essa outra Lya, que às vezes assume a forma da mãe, avós, tias, no mínimo sempre de tricô ou livro na mão na hora de “não fazer nada”. Para mim, isso que Freud chamava “atenção flutuante” é hora de trabalho: quando as coisas se forjam e formam dentro de mim, lá nas areiazinhas meio inconscientes do fundo do aquário. De modo que estou nesses dias, semanas, meses talvez, inventando uma casa: com porta de espiar, corredor de espelhos, sala da família, porão das aflições, pátio cotidiano, jardim das crianças e um canto dos deuses...

Só eles sabem o que vai sair disso, mas eu vou em frente: neste computador, ou diante dessa janela, inventando como quem solta fumacinhas de um cigarro arcaico. Porque em tempos remotos, confesso, até eu fumei... “Você fuma de frescura”, diziam os amigos. Logo deixei sem sofrimento o cigarro, a frescura, o perigo de doença, o acúmulo de rugas, o cheiro que hoje me enjoa. Aliás, na minha casa inventada será proibido fumar. (Mas a nuvenzinha, essa era bem simpática.)

27 de maio de 2017 | N° 18856 
MARTHA MEDEIROS

Sexo e os sentimentos

Faz sentido dizer que sexo vale menos que amor? Essa hierarquia só existe para os excessivamente românticos, apegados aos contos de fada

Sexo é sinônimo de prazer. Erotismo, luxúria, pecado, sacanagem. O sexo traz em si um cenário de mil e uma noites de promessas, todas voltadas para a volúpia. Quem nunca praticou é tomado por fantasias libidinosas extraídas do cinema, das revistas masculinas e de piadas e relatos picantes que garantem não existir nada melhor na vida, para horror dos sentimentais e dos pudicos. Sexo melhor que amor? Heresia, fim do mundo.

Faltou dizer que sexo não é apenas prazer: ele é plural, dispara uma conjunção de sensações físicas de alta intensidade que comovem e podem nos levar à paixão – se não pelo outro, com certeza por nós mesmos, tamanho é o processo de autoconhecimento que ele aciona. Não estou falando, obviamente, dos encontros de uma noite só, as chamadas “one night stand”, em que mal se sabe o nome da pessoa com quem estamos e cuja finalidade é praticamente aeróbica, uma aventura para apimentar o cotidiano. Ato sexual não é a mesma coisa que relação sexual.

Quando há relação, todos os sentimentos do mundo invadem a cama – e de uma forma tão contraditória que começa aí o espanto e a graça da coisa. Podemos, em nossa rotina de trabalho, ser um funcionário obediente, cumpridor de horários, servo de nossos patrões, e à noite, na cama, sermos dominadores, entrando no jogo erótico de assumir o controle e dar ordens. 

Ou, ao contrário: depois de um dia liderando e estimulando vários profissionais, nos tornarmos submissos sobre os lençóis, a ponto de escutarmos palavras que normalmente nos ofenderiam e humilhariam, mas que, naquele momento, se prestam ao cenário e à cena: excitação resulta de alguma performance também.

Esta variação de comportamento, ao mesmo tempo inocente e indecente, só é possível porque temos a segurança de saber que naquele instante não haverá julgamento moral, e sim entrega absoluta – e rara. Sexo envolve plena confiança, ou ficaríamos travados, temendo cair no ridículo. Desperta a coragem para permitir que nossos desejos mais secretos sejam expostos e realizados. 

Exige compreensão do tempo que cada um precisa para se desnudar de seus pudores. Requer um olhar generoso e terno para a desinibição do outro e, sobretudo, inteligência – sim, inteligência – para lidar com tudo que há de estranho, ilógico e dicotômico neste embate íntimo. Costumamos valorizar o corpão (que a maioria não tem), mas uma cabeça boa é que faz toda a diferença entre o sexo vigoroso e o sexo protocolar.

Diante desta universalidade de sensações, faz sentido dizer que sexo vale menos que amor? Essa hierarquia só existe para os excessivamente românticos, apegados aos contos de fada. Não é por acaso que transar é sinônimo de “fazer amor”, pois é disso mesmo que se trata, de um êxtase emocional e não apenas físico (ainda que “fazer amor” seja uma expressão enjoada). Sexo pode ser bandido, perverso e impuro em sua essência, nunca em sua conotação. Em análise, sexo é sublime também.



27 de maio de 2017 | N° 18856 
CARPINEJAR

Regime semiaberto

Só a mulher pode decretar o início e o fim de seu regime. E o regime pode durar um mês, um trimestre ou apenas 24 horas. E você, marido, não precisa ser informado com um edital. E não procure tirar vantagem do fim da dieta, que ela pressentirá um duro boicote.

Eu venho enlouquecendo, mas agora já estou entendendo. Quase entendendo.

A minha mulher avisa que está de regime. Vejo que a geladeira será uma horta dali por diante. Não há de comer nada de doce e suntuoso na frente dela. Sumirão as latas de leite condensado e creme de leite. Eu me preparo para a hostilidade bélica, a guerra civil dos talheres. A casa terá uma cobertura extra de linhaça, aveia e flocos. Os passarinhos farão banquete e aparecerão em bando.

Quando me adapto à ideia e passo a respeitá-la com esforço e obstinação, vejo a esposa na cozinha mexendo um brigadeiro com a colher de pau. Tento não demonstrar susto. Se eu perguntar se ela não estava de dieta, ficará brava. Lembrarei que quebrou o voto de abstinência. Faço cara de feliz, e ela me oferece. Comemos raspando a panela.

Aproveitando o embalo, de noite, dou a dica de uma pipoca para assistirmos a nossa série na Netflix. Ela me encara, furiosa:

– Estou de dieta, esqueceu?

Não ouso argumentar, mesmo com a nitidez do brigadeiro nas papilas gustativas de minha língua. Ok, deve ter voltado ao esquema dos grãos. Sigo a rotina espartana. De repente, na semana seguinte ela prepara um pudim. Mastigo, paranoico, com medo de sua reação. Meus olhos são pontos de interrogação e remela. Continuo com as minhas palestras, viajo e recordo de trazer a cocada de sua preferência. Penso em agradá-la. Ela, então, me fuzila:

– Esqueceu de novo que estou de dieta? Você nunca me ajuda...

Ela desencadeia e encerra e renova a reeducação alimentar num passe de mágica. O prazer surge num clarão, a culpa logo corrige a consciência e põe uma pedra no assunto. A sensação é de incoerência e perplexidade, que perdi alguns capítulos importantes da novela.

Para não errar, toda a mulher está de regime. E nunca está de regime. Compreendeu? É sempre regime semiaberto: livre, mas nem tanto. Jamais acertarei o dia do indulto.



27 de maio de 2017 | N° 18856
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

AMOR E RESPEITO: O QUE VEM ANTES?

As escolas de todos os níveis têm recebido críticas crescentes pela maneira com que têm participado da educação dos nossos filhos. Com essa perspectiva fantasiosa, a decepção é completamente previsível: está sendo atribuída à professora de 40 alunos, sentindo-se ameaçada, trabalhando em ambiente desfavorável e com carga horária abusiva, a função de educar os rebentos que não conseguiram ser domesticados por dois pais amorosos e dedicados, apesar de lhes oferecerem um convívio adocicado, amoroso e pretensamente estimulante.

O ser humano não é um animal acomodado ao meio em que foi aleatoriamente inserido. Pelo contrário, é um contestador nato que aparentemente descobre, ainda no útero, que dando uns pontapés consegue uma posição mais cômoda e já nasce gritando e esperneando, e aprende logo no primeiro dia de vida a importância do choro como arma poderosa para tratar a fome e o desconforto de uma fralda suja. 

Como é completamente dependente de ajuda, porque de outra forma não sobreviveria, a paparicação inicial é inevitável. Como faz parte da natureza humana, ele tende a se acomodar às circunstâncias favoráveis, mas acomodação não educa ninguém, precisamos preparar nossas crias para a vida real, que começa a mostrar a cara ainda na primeira infância. É quando se descobre que nem sempre haverá alguém para servir, que chorar não ajuda e espernear só parecerá ridículo. Nesta fase é que se qualifica o pimpolho para o convívio social e o mundo. 

Pois é exatamente nesse estágio da vida que as mudanças na estrutura familiar da modernidade têm se revelado ineficientes. Com ambos ocupados com a atividade profissional, os pais esperam que creche não só ocupe e proteja os rebentos, mas, na medida do possível, oferte os ensinamentos básicos de sobrevivência para a selva social que os aguarda. Num momento crítico da educação da criança, quando ela deveria aprender a identificar os limites do direito de cada um, imposto pela civilidade, o que mais se vê são pais iludidos com a ideia de que precisam se fazer amar e que o resto será mera consequência. Claro que assim a criança será deseducada com a percepção tola de que sempre terá tudo o que quiser. E que ter mais ou menos dependerá apenas da veemência dos pedidos.

Dona Joana viuvou muito cedo e criou quatro filhos homens, que tinham entre cinco e 11 anos quando o marido morreu. Impressionado com a disputa de desvelo com que o quarteto cuidava da mãe quando adoeceu, não resisti em perguntar-lhe qual era o segredo dessa conquista de afeto tão evidente. Ela demorou para responder, e interrompeu a minha primeira tentativa com uma frase pouco convincente: “Esses filhos foram um presente de Deus para compensar minha perda!”. 

Dias depois, às vésperas de uma cirurgia de risco, ela espontaneamente retomou a conversa: “Não foi nada fácil, doutor. Meu filho mais velho era uma peste e a má influência sobre os menores só atrapalhava. Imagina que um dia, aos 14 anos, inventou que eu tinha que lhe dar uma moto. Disse-lhe que não daria de jeito nenhum e que não falasse mais no assunto antes dos 18 anos. Ele, então, me provocou, retrucando: ‘Então não espere que lhe ame até os 18 anos’. Aquilo me doeu, doutor, mas tive forças para dizer: ‘Meu filho, meu dever de mãe não é me fazer amar, mas me fazer respeitar. Porque amor é uma escolha que farás adiante na vida, mas respeito é pra hoje e é uma obrigação!’.”

Dois dias depois, ele esperou os irmãos dormirem, entrou no meu quarto, se pendurou no meu pescoço, sem dizer uma palavra, e choramos abraçados até que ele adormeceu. Daí em diante, ele foi o pai de quem os pequenos já nem lembravam muito bem”.

Não sei por onde andará a Joana e sua prole, mas que frase aquela: amor é escolha, respeito é obrigação.



27 de maio de 2017 | N° 18856 
MÁRIO CORSO - Psicanalista

PARA ONDE VAMOS?

Um dos meus prazeres é ler revista velha, bem velha, de pelo menos uns 20 anos. Para quem, como eu, gosta do mergulho no passado recente, existem dois santuários ecológicos para esse espécime que se salvou do lixo: consultórios de dentistas e casas de praia. Paira um mistério sobre por que territórios tão díspares tendem a aglutinar essas preciosidades, mas assim é.

Encontramos nessas revistas celebridades esquecidas, subcelebridades extintas. Como fomos dar bola para essa gente? O visual, então, esse diz tudo, as roupas, antes elegantes, nem brechó aceitaria. No vestuário, a moda e sua efemeridade são mais visíveis e risíveis.

Sensacionais mesmo são os anúncios de carros fantásticos que hoje são sucata. TVs de tubo incríveis, com uma definição nunca sonhada, do tamanho de uma lavadora e peso de um piano. Ofertas de computadores ultramegaplus em tudo, menos potentes que o celular que está no teu bolso. No setor saúde, nunca falta a notícia da cura iminente do câncer, o regime definitivo para emagrecer, ou remédio para a calvície. E, ainda, o vaticínio de tendências que nunca aconteceram, o proselitismo de certezas que se desfizeram em poeira, ideias revolucionárias de gurus que se mostraram puro modismo.

Nessas páginas, encontramos profecias sobre qualquer coisa, menos os fatos que realmente deram uma nova cara ao mundo: a internet, as redes sociais, os games, o smartphone, o Google, o multiculturalismo, o início do derretimento da fixidez das identidades de gênero. Somos o futuro que ninguém previu.

Desse encontro, tiro duas teses. Primeira: ninguém realmente sabe para onde vamos. Segunda: nos levamos demasiado a sério. Daqui a 30 anos, alguém vai pegar uma revista de hoje e enxergar-nos exatamente como vemos o passado: apegado a quinquilharias como se fossem o máximo, elogiando ideias tolas, acreditando estar no cruzamento cósmico de algo muito especial. O exercício dessa leitura não é saudosismo, mas para entender o exagero de como percebemos o presente. Aproveito como uma imprescindível lição de transitoriedade.

A inflação do presente nubla o essencial. A revista velha nos devolve um momento congelado, onde o ontem ainda mostra-se como presente e por isso captamos como ele se via superestimado. Porém, não é apenas o passado, mas porque já vivíamos, como seguimos fazendo, percebendo a realidade um tom acima. Somos assim, tentamos fazer uma narrativa épica onde às vezes só há repetição, inventamos uma densidade histórica para as banalidades. Uma tentativa de viver numa época especial; afinal, é a que nos tocou. Recentemente, vejo muita gente opinando que vivemos a maior crise econômica e política da história do Brasil. Bom, se você não estudou História, é mesmo.



27 de maio de 2017 | N° 18856 
DAVID COIMBRA

Cem centímetros de glúteos

“Cem centímetros de glúteos!”, foi a manchete que dei no Timeline de sexta, antecipando o tema que abordaria no bloco seguinte do programa. Achei que largar assim aquela frase, “Cem centímetros de glúteos!”, seria impactante. Deixaria os ouvintes ansiosos para saber a respeito e meus colegas, o Potter e a Andressa Xavier, decerto não ficariam menos curiosos, sobretudo o Potter, que aprecia glúteos de bom tamanho.

Minha ideia era ler o release que havia recebido sobre uma modelo brasileira chamada Luana Caettano, eleita Musa do Barcelona. O texto informava: “A morena é dona do maior bumbum da Espanha, o que acabou lhe rendendo o apelido de ‘Bumbum Catalão’, o qual carrega com muito orgulho.”

Embora não tenha ficado claro, concluí que o que ela “carrega com muito orgulho” é o apelido. Ou seja, se você for a Barcelona e passar pela Luana Caettano, pode dizer “E aí, Bumbum Catalão!”, que ela vai gostar.

Pensei realmente que todos se entusiasmariam em saber que uma brasileira é dona dos maiores glúteos da Espanha, título que me parece bastante expressivo. Cem centímetros, afinal de contas, é um metro, a altura de uma criança de cinco anos de idade. Dispor de glúteos com essa dimensão me parecia algo digno de nota.

Mas, quando comecei a dar a informação, o Potter me cortou:

– Ah, mas eu tenho cem centímetros de glúteos!

Aquilo já arruinou-me o entusiasmo. O Potter não tinha de ter me dado aquela informação. Porque, no momento em que ele falou, os glúteos do Bumbum Catalão fugiram da minha mente e foram substituídos pelos do Potter. Não, não, vade retro, eu não queria pensar nos glúteos do Potter! Tentei me concentrar no Bumbum Catalão e seguir com o texto, mas a Andressa observou, até com certo enfaro:

– Ora... Qualquer uma tem cem centímetros de glúteos...

Qualquer uma... Senti certa admiração pela colega. Mas é claro que ela estava se referindo às brasileiras. Andressa poderia dizer: qualquer brasileira tem cem centímetros de glúteos e o Potter também. Eu acreditaria nela, devido ao nosso sabido apreço pelos glúteos.

Sempre pensei que isso tem algum significado. Não deve ser por acaso que a palavra “bunda”, tão redonda, tão globosa, tão perfeita para definir essa região do corpo humano, nasceu no Brasil. É uma história conhecida: muitas das escravas que foram trazidas da África vinham de Angola e Luanda, onde se falava o idioma mbundu. Eram mulheres belas, de longas pernas e nádegas generosas, porém sólidas. Os portugueses salivavam quando as viam e comentavam entre si:

– Que bunda!

Isto é: as bundas eram admiradas pelas bundas que tinham e, assim, as bundas das bundas, que antes não eram chamadas de bundas, mas de nádegas, tornaram-se bundas, conceito que passou a abranger não apenas as bundas das bundas, mas as bundas de todas as mulheres e também dos homens.

Esse cadinho de raças, que é o Brasil, aperfeiçoou a arte do drible, do passe de trivela, da lavagem de dinheiro e as bundas das mulheres. Hoje, encontramos loiras com bundas de negras, e quando isso acontece é a glória.

Agora, una a genética privilegiada pela miscigenação à tecnologia dos exercícios para os glúteos nas academias e o que resulta? Sucesso internacional, como a moça que ganhou o título de Bumbum Catalão, com seus cem centímetros desprezados pelo Potter e pela Andressa.

Continuo não desprezando aqueles cem centímetros, embora tenha sido desprezado no programa. Meus colegas fizeram pouco caso da minha informação. Descartaram-na em um minuto e já se puseram a falar de algum obscuro deputado. Tudo bem, seguirei em frente com minhas convicções. Continuo pensando que nosso amor pelos glúteos produziu algo na nossa psiquê. Continuo desconfiando de que somos um subproduto da bunda. Desenvolverei melhor essa tese. Mas não contarei minhas conclusões para o Potter e a Andressa. Fiquem eles com seus deputados.

quarta-feira, 24 de maio de 2017


24 de maio de 2017 | N° 18853 
MARTHA MEDEIROS

  • Ilustre é o livro

    Estava aqui pensando no que me faz gostar tanto dos filmes argentinos. Acho que tem a ver com a sobriedade estética e a ausência de artifícios sedutores: esta “secura” casa bem com o humor nonsense. Tudo parece tão real que o atrevimento de levar algumas bizarrices adiante não parece alegórico, e sim perfeitamente aceitável e divertido. Inevitável lembrar o hilário Relatos Selvagens, mas hoje falo de O Cidadão Ilustre, com o excelente ator Oscar Martínez entrando numa roubada atrás da outra e saindo por cima: foi premiadíssimo pelo papel.

    O Cidadão Ilustre conta a história de um escritor argentino que ganhou o Nobel de Literatura e que vive há 40 anos na Europa fugindo dos holofotes da fama, dos convites acadêmicos e dos assédios da mídia, mas que, contrariando sua tendência reclusa, aceita passar quatro dias na sua pequena e provinciana cidade natal, que fica no fim do mundo ou quase isso.

    Era de se esperar uma turnê emotiva, mas basta aterrissar no aeroporto de Buenos Aires para que o nobre intelectual seja obrigado a enfrentar tudo aquilo do qual vinha fugindo, a começar pela paparicação exagerada, e viver alguns reencontros perturbadores com amigos da juventude, ex-namorada, desafetos e fãs sem noção – um elenco de tipos e situações que, se virassem texto, resultaria num best-seller e tanto.

    Se é que não resultou.

    Como saber se tudo aquilo aconteceu mesmo, sendo o personagem um escritor e, como tal, um cara meio delirante? Serão culpados ou inocentes esses seres que misturam realidade e ficção a fim de gerarem as obras que seus leitores devoram? Escritores são manipuladores? O filme é rico e bem mais abrangente do que isso, mas a questão está ali: o vampirismo literário (sobre o qual escrevi recentemente) e suas consequências.

    Não existe escritor que já não tenha sido questionado sobre o que há de biográfico e o que há de invenção naquilo que escreve. Alguns tentam explicar (“a vida é a matéria-prima da qual dispomos, então claro que o autor se abastece da própria experiência, ainda que a reinvente etc., etc.”), mas a resposta perfeita para a questão é: importa? A história foi entregue: vibrante, inquietante, convidando a embarcar na alma dos personagens, em suas loucuras, em seus medos, numa trama inventiva e atraente por si só. Agora olhe para aquele sujeito blasé que aparece na foto que está na orelha do livro, geralmente em pose clássica, com a mão apoiando o rosto. Importa se a ruiva bipolar que aparece na página 78 foi uma amante que ele não tira da cabeça?

    Vale o que está escrito. Ilustre é o livro. O resto é fuxico.

terça-feira, 23 de maio de 2017



23 de maio de 2017 | N° 18852 
CARPINEJAR

Igualdade, liberdade e fraternidade

Meus padrinhos eram os meus avós paternos. Mas, como já eram avós, esqueceram de que eram os meus padrinhos.

Tinha inveja da madrinha do meu irmão Rodrigo: Nayr Tesser. Sempre atenta, sempre com visitas inesperadas, cantando Edith Piaf. Sempre alegre. Sempre com papagaios nos ombros, seus originais animais de estimação.

Eu recebia meias e chocolate Bis, Rodrigo ganhava Ferrorama e Autorama. A concorrência desleal não permitia dúvidas. A tristeza não decorria da comparação, mas da intensidade de seu amor. Tampouco me ressentia da diferença econômica dos mimos, e sim da algazarra das visitas.

Nayr representava uma mulher moderna já nos anos 70: independente, falando de sexualidade abertamente, não devendo a ninguém, carismática e fortalecendo a identidade a partir da generosidade, não do egoísmo e do alheamento. Dava até pena interrompê-la. Calava os mais céticos. Professora de linguística, politizada, comprava brigas pelas minorias e defendia a pureza firme da ética em contraste com a imperfeição das leis.

Ou eu babava, ou suspirava por ela.

Além de ser melhor amiga da mãe, cuidava da gente indiscriminadamente. Veraneávamos em seu chalé em Imbé. Ela nos salvou várias vezes do calorão sem trégua de Porto Alegre. Fornecia gibis que não havia como comprar. Ampliou o nosso repertório alimentar com iogurte caseiro e açúcar mascavo.

Figura avançada, libertária, libertadora, inquieta, que me enchia de orgulho por não compreender inteiramente. Despertava mistérios por qualquer lugar que passava. Enfrentava oposição e resistência porque nunca foi submissa neste mundinho machista.

Com lenço no pescoço e olhar claro de ametista, abria caminhos na fogueira das vaidades. Chamávamos de Joana D’Arc da família.

Não esqueço de um dos seus gestos mais emblemáticos. Quando defendeu a tese do doutorado na UFRGS, pediu licença para a banca e retirou de sua malinha um porta-retratos.

Ali, respeitosamente, como se fosse seu criado-mudo, colocou a foto de pé na mesa. Vinha a ser a imagem de seu marido falecido, Henry. Para que ele pudesse assistir a sua argumentação de onde estivesse.

– Quero prestar homenagem ao único homem que teve coragem de se casar comigo.

Que sirva de exemplo infinitamente. Depois de duas décadas daquela banca, os homens não aprenderam e ainda têm medo de mulheres bem resolvidas.



23 de maio de 2017 | N° 18852 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

EXTRATIVISMO


Já há algum tempo meu cérebro, à revelia da minha vontade, andava rondando um tema que agora se esclareceu, por obra de Reinaldo José Lopes, na Folha de S. Paulo de domingo passado. Mas antes de esclarecer, relato o desconforto obscuro.

Não se tratava da corrupção em si mesma – esse festival assustador e acachapante de denúncias e revelações (nem sempre são a mesma coisa), que nos deixam simplesmente sem ação, salvo o ir para a rua e reclamar, enquanto esperamos que nas altas esferas as coisas andem pelo melhor caminho, ai, a nossa ingenuidade.

O que esperar deste Congresso? O que esperar do juiz Moro, que passou três anos investigando pedalinho e apartamento em praia de classe média, mas impediu que as embaraçosas (e certeiras) perguntas de Eduardo Cunha fossem levadas a Temer? O que esperar dos controles institucionais da República, que te pegam quando tu esqueces de declarar uma renda eventual que nem fez cócegas na economia da família, mas deixam passar bilhões à toa?

Só isso já é suficiente para a gente perder o sono e a ilusão, para nem falar da crença no futuro. Mas por baixo e por cima dessa mixórdia há outra camada, que eu não conseguia nomear. Mas agora sim, pelo texto do Lopes: no atual espetáculo exposto à nossa patetice, as empresas corruptoras são variações do velho extrativismo.

Carne de boi é praticamente isso: embora tenha mediações agrícolas e industriais, ela dependeu, no caso da JBS, da destruição da floresta e de outros ecossistemas para criar os animais. A Petrobras, nem se fala: é extrativismo de raiz, a girar a roda da destruição do planeta na queima de combustíveis fósseis. A terceira ponta está nas megaempreiteiras, com fraudes proporcionais ao faraonismo das obras, tantas vezes ecocidas.

A modernidade, em que o Brasil faz parte importante no jogo mundial, nos reservou esse medonho papel. Tem como sair dele?


23 de maio de 2017 | N° 18852 
DAVID COIMBRA

O que Temer, Lula e Zago têm em comum

Ainda neste ano, durante partida do Gauchão, jogadores do Inter e do Caxias disputavam ferozmente a bola ao lado da bandeirinha de escanteio, observados de perto pelo técnico colorado, Antônio Carlos Zago, que estava à margem do campo. No desfecho do lance, um jogador do Caxias atirou o braço para trás e sua mão roçou no ombro de Zago. 

Por um instante, o treinador ficou indeciso sobre o que fazer, mas, em seguida, emitiu um urro, levou as mãos ao rosto e jogou-se dramaticamente no chão, pretextando ter recebido um soco no olho. A câmera mostrou a cena: o técnico, homem já sem cabelos, de quase 50 anos de idade, com os joelhos e a testa fincados no solo e as nádegas voltadas para o firmamento, espero que não na direção de Meca, gemendo de dor presuntiva.

Foi ridículo.

Simulações desse tipo, mais bem encenadas, evidentemente, são useiras e vezeiras no mundo do futebol. Nós brasileiros estamos acostumados com jogadores que não são sequer tocados pelo adversário e voam pelo ar até aterrissar com estrondo na grama, onde ficam estrebuchando e se contorcendo como se estivessem às vascas da morte. Basta o juiz mostrar o cartão amarelo para o adversário e eles se levantam e voltam serelepes para o jogo.

Os torcedores brasileiros adoram trapaças desse gênero, se beneficiam seu time. “É malandragem”, elogiam. Mas, se prejudicam o time, vem a crítica: “Falta de ética!”

Todos os torcedores sabem que é assim e aceitam que seja assim. Não há escrúpulos no uso do cinismo para se alcançar a vitória.

Digo sempre que o futebol é tão popular porque, em um único jogo, consegue resumir a vida. Pois também esse cinismo de que falo não se restringe ao futebol.

É preciso ser muito cínico para aceitar como natural a conversa havida entre Temer e Joesley Batista, exposta na gravação entregue ao Ministério Público. A história toda é burlesca, do início ao fim.

O início: Joesley chegou pouco antes da meia-noite à residência do presidente da República e entrou sem nem se identificar. Como é que alguém entra na residência oficial do presidente da República sem se identificar? Diga: alguém chega ao seu edifício e entra sem se identificar? Estão cuidando mal do presidente da República... Ou será que encontros desse gênero são normais?

Depois vem a natureza da conversa propriamente dita. Dois juízes e um procurador subornados? Ajuda financeira de um empresário a um deputado preso? O que é isso?

Ainda no âmbito do Primeiro Homem da República, dias atrás Lula contou uma história ocorrida quando ele era presidente.

Lula estava preocupado: havia suspeitas de que um importante diretor da Petrobras, Renato Duque, depositava dinheiro de propina numa conta no Exterior. Muito cioso da lisura de seus colaboradores, o presidente decidiu tomar uma atitude. Chamou Duque para uma conversa no hangar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

O diretor chegou e o presidente da República perguntou: – É verdade que você está depositando dinheiro de propina numa conta no Exterior?

Duque respondeu: – Não.

E o presidente da República respirou aliviado:

– Ah... Então tá. E foi-se embora, tratar dos seus assuntos.

Estava encerrada a investigação. Durou tanto quanto o segundo de vacilação de Zago.

Agora, ciente de que o diretor mantinha, de fato, uma conta com dinheiro de propina no Exterior, Lula se consola:

– Ele não mentiu para mim; mentiu para ele mesmo.

Sério? Querem que acreditemos nisso? Chega a um ponto em que nem o brasileiro aguenta mais tanto cinismo.



22 de maio de 2017 | N° 18851 
DAVID COIMBRA

Cortei relações por causa do PT

Rompi relações com um amigo de infância por causa do PT. Quer dizer: não foi exatamente por causa do PT. Explico: esse meu amigo é petista daqueles fanáticos, compartilha matérias de sites financiados pelo partido e já escreveu que Dilma é heroína dos pobres (juro). Até aí, tudo bem, há muitos que são assim, é preciso ter tolerância, mas, dias atrás, numa conversa eletrônica, ele disse que critico os governos petistas para agradar à RBS. Ou seja: minha opinião é interesseira. Ou seja: sou desonesto.

Já ouvi e li essa bobagem antes, vinda de outras pessoas, e não me ofendi. Dias atrás, enviaram-me uma entrevista que o ex-senador Bisol deu para um site, e ele falou algo parecido. Não me importei, embora admire Bisol como homem de vasta cultura e bons sentimentos. Sei que o dogma torna obtusas as pessoas mais inteligentes. O sujeito é genial em quase todos os aspectos da vida, mas, quando o tema roça em sua crença ou em sua ideologia, ele cai de quatro e zurra.

O objeto específico da minha conversa com o ex-amigo era o caso da JBS. Vejamos: a JBS recebeu R$ 12 bilhões de empréstimos amigos do BNDES nos governos Lula e Dilma. O banco chegou a comprar parte da empresa para livrá-la da falência. Quando Lula assumiu, o grupo faturava R$ 4 bilhões e, 10 anos depois, faturava R$ 170 bilhões. 

O TCU já anunciou que as operações dos Batista com o BNDES trouxeram prejuízos enormes ao banco; num único ano, o de 2008, o prejuízo foi de R$ 614 milhões. Com recursos do contribuinte, a JBS comprou 65 frigoríficos nos Estados Unidos e seus proprietários se homiziaram em Nova York. Vão dar empregos e pagar impostos aos americanos graças ao dinheiro dos brasileiros. Ainda assim, meu ex-amigo acredita que só Temer, Aécio e outros políticos, que não do PT, se corromperam.

A lógica é: “Aécio é corrupto; logo, Lula é inocente”.

É o único caso da história da humanidade, em todos os tempos, em que um corruptor confesso obteve vantagens de um governo corrompendo a oposição.

Foi o que disse para meu ex-amigo, e ele, sem argumentos para rebater, veio com essa de que minha opinião é movida por interesse.

Cortei relações.

Se não posso ter lealdade de um amigo, não tenho amigo.

Não faço o mesmo. Nunca pessoalizo debates, sempre terço argumentos. Não acho que meu ex-amigo e Bisol sejam desonestos por pensarem o que pensam. Acho que são equivocados. No caso, devido à paixão. A paixão nos torna cegos e tolos.

Eu também muitas vezes erro, mas posso errar honestamente. Sei por que algumas pessoas acreditam que quem discorda delas é sempre mal-intencionado. Jesus já ensinou, 2 mil anos atrás: cada um julga os outros com sua própria medida.

Esse foi o pior legado deixado pelo finado PT. Não foi a corrupção. As relações entre o poder e o capital, no Brasil, sempre foram espúrias. O PT pode ter sido mais sistemático, mais orgânico, mas esse é um pormenor. O problema é que, nesse tempo todo de governos petistas, o Estado foi usado como agente fomentador de instituições que lutavam contra o próprio Estado. 

É algo sofisticado, merece mais reflexão, mas, por ora, lembro que o mesmo ocorreu com o peronismo na Argentina e o bolivarianismo na Venezuela. Para se perpetuar no poder, um governo usa os recursos do Estado distribuindo esmolas embaixo e fortunas em cima. A ideia é cooptar apoiadores, nunca a formação de uma nação independente.

Assim, a noção distorcida que o brasileiro historicamente tem do Estado ficou ainda mais distorcida. A cidadania transformou-se em birra. Exige-se muito, faz-se pouco. O Brasil virou o país do não. Tudo o que se tenta enfrenta oposição e desconfiança. O outro sempre tem segundas intenções, o outro sempre é suspeito.

Tristes trópicos. Voltando a citar Jesus: não é o que entra na boca do homem que faz o mal. O mal é o que sai da boca do homem.


22 de maio de 2017 | N° 18851
ARTIGOS

CONDIÇÕES PARA UM RECOMEÇO


Os dias que se sucedem seriam outrora inimagináveis. É quase uma redundância falar que se vivem tempos de crise, nos quais parece que o amanhã não surge e, tal qual o personagem central do filme Feitiço do Tempo, vive-se o eterno hoje, em que, todos os dias, novos escândalos repetem-se indefinidamente; acordamos a cada manhã despertados pela fúria que consome a racionalidade e faz do nosso cotidiano um interminável “dia da marmota” (igual ao sensacional filme).

Nestes tempos tão angustiantes, parece ser uma tarefa quase ingênua o debate de ideias e a reflexão sobre os rumos que pretendemos perseguir nos dias que irão compor o que se denomina futuro. Se não conseguimos suplantar as amarras que nos impedem de romper com o presente, como é possível falar da construção de novos tempos?

Isso se torna especialmente dramático diante do caos que ora se instala. Por decorrência, precisamos recuperar a racionalidade coletiva. Com todos os riscos que significa, vale propor o seguinte: 

a) não esquecer nosso compromisso democrático- civilizatório, e isso significa manter respeito por aquilo que nos torna uma nação: Constituição; 

b) suspensão das reformas, pois agora, mais do que nunca, não há legitimidade para prosseguir com elas, mesmo que se entendam necessárias, até porque, diante do escancarado quadro de compra de votos no Congresso, elas poderão resultar justamente o contrário do que se diz pretender: déficit público; 

c) renúncia ou impeachment impõem-se inexoravelmente; 

d) cumpra-se a Constituição, com eleições indiretas no Congresso nos termos e prazos previstos, pois descumpri-la implicará consequências tão indesejáveis quanto aquelas que resultaram neste momento; 

e) aprovação de emenda para convocar eleições de membros de uma constituinte exclusiva (cerca de 200 cidadãos) com vistas a aprovar ampla reforma política, sendo que os candidatos não poderão estar ocupando cargo público eletivo e tornam-se inelegíveis, por um prazo de oito anos; 

f) deixar de lado o “ânimo de torcida” de futebol que tem nos conduzido até aqui.

Enfim, vivem-se graves momentos, os quais determinarão os dias que estão por vir e, não obstante essa transição seja mais lenta do que desejaríamos neste momento, haveremos de criar condições para um recomeço, a partir de 2018. Caso contrário, corremos o risco de um retrocesso autoritário, como se embarcássemos em uma máquina do tempo e viajássemos para 50 anos no passado.

*Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos

22 de maio de 2017 | N° 18851 
L.F. VERISSIMO

O ponto


Um dia, o Internacional anunciou a contratação de um grande goleiro. Um goleiro tão bom, que muita gente estranhou. Como um jogador extraordinário assim acabara no Inter e – pelo que se soube – por muito pouco dinheiro? Mais estranho ainda: o grande goleiro não pedira um grande salário. 

Aí alguém se lembrou de boatos que corriam sobre o jogador, que ele era um entregador de partidas, um incorrigível subornável. E concluíram que ele não se interessava pelo que ganharia no Inter, se interessava pelo que ganharia de adversários no gol do Inter, deixando passar bolas defensáveis. Se interessava pelo ponto.

São tantos os escândalos envolvendo políticos no Brasil, tanto dinheiro rolando e tantos favores sendo vendidos, que se pode pensar em mandatos e cargos públicos não como oportunidades de servir à população, mas como pontos. Quanto mais influente e destacado na hierarquia do poder, melhor localizado e lucrativo o ponto do político. E corretores de jogo do bicho, vendedores de drogas, mendigos e prostitutas sabem como é importante um bom ponto.

Pode-se até fantasiar que, um dia, deputados, senadores e governantes dispensarão seus salários e viverão exclusivamente de propinas, ou do que ganham nos seus pontos. O que, além de acabar com toda a retórica vazia sobre razões nobres para se eleger e servir à nação, trará um grande alívio para os cofres públicos. A Odebrecht e as outra grandes empresas corruptoras se encarregariam de pagar os políticos, para cada um de acordo com a localização do seu ponto.

Quanto ao tal goleiro do Inter – só para não deixar a história pela metade –, o clube chegou a montar um esquema para vigiá-lo dia e noite. Mas as suspeitas a seu respeito não se confirmaram. Pelo contrário, o Inter deve boa parte do seu sucesso na época às suas defesas. Ele era inocente. O que se pode dizer de cada vez menos políticos brasileiros.


20 de maio de 2017 | N° 18850 LYA LUFT
Lya Luft - lya.luft@zerohora.com.br

As coisas humanas

Quando me chamaram para voltar à ZH e pertencer de novo à família RBS, em começos de 2016, fiquei feliz, era um momento de certa orfandade, e me reintegrar aqui foi uma alegria. É uma alegria. Fui recebida feito filha da casa, meu ego desinflado melhorou e, mesmo que eu não vá à Redação habitualmente, de coração estou entre colegas, funcionários e amigos queridos. 

Um dos pedidos ao fazermos os acertos foi antes uma sugestão: não escrever sobre política como vinha fazendo nos últimos anos em uma revista. Na verdade, nunca fui uma entendida ou comentarista política. Aliás, o tema me assusta. Sempre afirmei, e escrevi, apenas como uma brasileira comum moradora deste planeta complicado que se chama Brasil. Agora a Zero Hora afirmava que escrever o que acho de “coisas humanas” era o que o leitor mais queria de mim.

Achei meio engraçado, meio comovente, me surpreendi um pouco – porque, afinal, política é coisa muito humana e muito nos atinge, aflige ou anima –, mas compreendi que se tratava dessas coisas humanas essenciais: afetos, amizades, colegas, família, otimismo, sofrimento, esperança, decepção, educação, convívio, segurança, moralidade, enfim. Tenho feito isso, e isso tem me feito muito bem. Não posso deixar (ou: posso, mas não quero) de comentar aqui brevemente que a nossa realidade política, que tanto corrói a economia e tanto nos afeta em nossa lida cotidiana, roubando esperanças e jogando aflição sobre todos, mexe extraordinariamente com cada pessoa.

Porém, é preciso reconhecer que, mais do que nunca – como eu disse outro dia a um grupo de funcionários aqui da casa, que me receberam com tanto afeto que me emocionei –, ao fim e ao cabo, no meio das maiores loucuras, confusões e medo, cada vez mais importam as pessoas: clientes, amigos, patrões, funcionários, família, colegas, até meros conhecidos. Se cada um tentar, com simplicidade, o seu melhor nesses lugares e ocasiões, se cada um fizer na vida e no trabalho o melhor que puder, é possível que este mundo, este Brasil, esta cidade melhorem um pouco. Que a gente se sinta mais confortável, mais amparado, mais otimista, mais importante.

Alguém certa vez me fez entender que todo mundo precisa saber-se importante: não em cargos, dinheiro, grandes façanhas, mas pelo menos no seu grupo, seja ele qual for. Eu sei, não é fácil conviver bem. Há pessoas naturalmente irritantes e desagradáveis. Traições acontecem. Afastamentos incompreensíveis também. Mas ser importante para uma pessoa que seja já vale muito. Ser benquisto entre seus colegas é muito. Ser bem-visto e respeitado por clientes, patrões, empregados, ser considerado uma pessoa confiável, um ser humano decente, é muitíssimo. E nos faz bem. E nos estimula.

Ninguém é inteiramente amado, totalmente compreendido, absolutamente respeitado: faz parte do aprendizado da vida. Mas ser uma pessoa decente é o essencial, porque, neste momento caótico e preocupante, muitas vezes desanimador, saber que existe alguém bom, honrado, atento, digno, é uma dádiva.

Apesar de todas as nossas dificuldades e imperfeições, as coisas humanas são o melhor de tudo – e isso nem um Everest de dinheiro, de grandeza, de importância ou de poder poderá substituir.


20 de maio de 2017 | N° 18850 
MARTHA MEDEIROS

A mesa das crianças

Nunca escondi que meu maior desejo de criança era me tornar adulta. Desde pequena, intuía que seria a parte mais divertida da minha história

Outro dia li um artigo que denunciava como alienante uma prática familiar: a de excluir as crianças da mesa dos adultos na hora das refeições, preparando uma separada para elas.

Quando eu era criança, isso acontecia apenas em dia de festa, quando havia muitos convidados. Nos almoços e jantares diários, em casa, comíamos todos juntos, lógico. Porém, o artigo condenava até mesmo que se fizesse essa separação em ocasiões especiais. Segundo o autor, a prática é traumática e impede a criança de estreitar o vínculo com o pai e a mãe.

Eu devo estar virando matusalém antes do tempo, pois já entrei na fase de achar que tudo isso é mimimi, que estão promovendo besteiras como se assunto sério fosse.

Nunca escondi que meu maior desejo de criança era me tornar adulta. Desde pequena, intuía que seria a parte mais divertida da minha história (uma amiga, outro dia, escutou eu dizer isso e me olhou com uma candura que até me comoveu, ela chegou a murmurar um “coitada” entre os lábios, mas cada qual com seu defeito de origem, esse é um dos meus e nem é dos mais graves). 

Brincar de boneca, andar de balanço, pedalar, subir em árvore: tudo muito emocionante, eu adorava. Mas o que dizer sobre viajar para Londres, namorar, pegar uma estrada, ver filmes até tarde, beber vinho, ler livros sem figuras – tem comparação? A mim sempre pareceu um confronto desleal. Se alguém aí levantar a questão da inocência perdida, a boa notícia é que a minha segue firme e forte. Somos todos crianças grandes, só as brincadeiras é que mudaram.

Pensando assim, seria de se esperar que eu não aprovasse a ideia de sentar numa mesa só para crianças, sendo excluída do mundo adulto, mas eu sentia justamente o contrário: estando em meio aos adultos, eu teria alguém para servir meu prato, para me mandar repetir a lasanha, para vigiar meus modos, e eles conversariam entre si em voz baixa ou através de metáforas sobre algo que considerassem impróprio aos meus ouvidos, o que era humilhante.

Numa mesa sem a presença deles, eu poderia brincar de ser gente grande, enfim.

A mesa era menor, improvisada, exclusiva para meus primos e eu, todos mais ou menos com a mesma idade – pouca. Eu me sentia num restaurante entre amigos, sem nenhuma vigilância, exercendo um papel que eu não via a hora de estrear pra valer: o de estar sob minha própria responsabilidade. E conversando sobre assuntos que os adultos não poderiam escutar, claro. Direitos iguais.

Pelo visto, ainda sou bem infantil, pois quase tudo que a pedagogia considera um trauma, eu encaro como aventura.


20 de maio de 2017 | N° 18850 
PIANGERS

Estudando junto

Eu entendo pais que não gostam de estudar com os filhos. Eu entendo. Eu estudo com a minha filha, sei como é chato estudar com os filhos. A minha filha está estudando os níveis hierárquicos dos seres vivos. Você lembra, reino filo classe ordem família gênero espécie. O Reino Monera e os seres sem organização nuclear. Se já é complicado estudar isso sozinho, imagine estudar isso ao lado de uma criança que queria estar andando de patins.

Eu sei como é chato. Em alguns momentos, minha filha me pergunta: “Pai, por que que eu tenho que saber isso?” e eu digo “Eu também não sei!”. Mas a gente continua estudando junto, e aquele não é só um momento pra gente conhecer a matéria. É um momento pra gente se conhecer entre a gente. É o momento em que eu posso ouvir como está a escola. É o momento que posso dizer pra não colocar a culpa nos outros se foi ela que não estudou. É o momento em que eu posso relembrar algumas coisas interessantes de história e biologia.

Quando eu estudo com a minha filha, estou aprendendo a ser paciente. Estou aprendendo que o meu trabalho não é tão importante, que tenho que ter tempo pra tirar dúvidas, pra ler junto. Quando estudo com a minha filha, passo a respeitar mais sua professora, que não tem só a minha filha pra ensinar, mas outras 30 crianças com as mesmas dificuldades. E cada pai de cada uma das 30 crianças achando que a professora tem a obrigação de ensinar seu filho. Pais com apenas uma criança pra cuidar, que não conseguem parar um pouco pra estudar com seu filho.

E quantos filhos indo mal na escola de forma inconscientemente proposital, apenas pra chamar atenção desses pais. Apenas pra dizer que gostaria que o pai estudasse junto, que o pai gastasse um pouquinho do seu tempo precioso com o filho. Entendendo a matéria, conversando sobre a escola, decorando as classificações dos seres vivos. Quando você estuda com seu filho você não está apenas estudando a matéria. Você está estudando o seu filho.



20 de maio de 2017 | N° 18850 
L.F. VERISSIMO

A volta

Um dia, a mãe anunciou: “O pai de vocês está voltando”. Os filhos estranharam. O pai saíra de casa 25 anos antes e nunca mais voltara. Quando perguntavam para a mãe sobre o pai, ela respondia “está viajando” e mudava de assunto. E agora chegara uma carta dele dizendo que estava voltando. Não sabia exatamente quando, mas mandaria algumas coisas na frente.

Depois de uma semana, chegou o primeiro pacote. Tiveram que buscar no correio, o pacote era grande. Continha, principalmente, meias. Meias de cano longo e de cano curto, meias para inverno e verão, algumas mais velhas, algumas mais novas. Um cantil. Um guia do Himalaia, com mapas e trilhas marcadas no mapa, e anotações nas margens numa língua indecifrável. Mas principalmente meias. Meias de todos os tipos. Meias de várias cores. Vinte anos de meias.

O segundo pacote, mais pesado, chegou poucos dias depois. Sapatos e chapéus, incluindo botas com cadarço até em cima e duas cartolas, sendo uma com um coldre vazio na parte de dentro. Alguns troféus: uma coruja de bronze espetada num pedestal com dizeres em alfabeto cirílico; uma taça de prata com o nome, na base, da vencedora de uma corrida de planadores em Tessalônica, outro troféu pelo segundo lugar num concurso de salsa em Riga. Fotos emolduradas. 

A de uma mulher oriental sentada na asa de um planador, sorrindo. A de uma loira séria com a palavra “Chien!” e uma assinatura, “Marie Ange”. A de uma morena com um tapa-olho, com as palavras “Te quiero, Chuco”, assinado “Concepción”. Uma foto do Henry Kissinger, com as palavras “Best wishes” e sua assinatura. Dois suéteres de lã.

Sem saber o que viria nos pacotes seguintes, a mãe tratou de arranjar lugar para as coisas do marido. Mandou esvaziar um armário. Se faltasse lugar, usariam parte da garagem. Passaram-se semanas sem que chegasse outro pacote. Finalmente chegou um, menor do que os outros. Da mesma procedência: Nova Délhi. Este era de livros e cuecas. Os livros, quase todos, sobre ocultismo. E, no meio daquela semana, um telefonema surpreendente. 

Uma voz feminina, falando inglês com sotaque hindu, identificando-se como Iridia, querendo saber se já tinha chegado “the cage”. O quê? “The cage, the cage.” A mãe custou, mas entendeu. A gaiola! Não, ainda não chegara a gaiola. “The cage, not!”, disse a mãe, e a ligação caiu antes que ela pudesse perguntar quem era, como estava o seu marido e que gaiola era aquela.

Quase um mês depois chegou a gaiola, junto com casacos, calças, um nebulizador, um aparelho para tirar a pressão e um bilhete, em inglês, com a descrição detalhada do tratamento que ele estava fazendo e que não poderia ser interrompido, e uma lista de remédios. Assinado “Iridia”. E com um P.S.: “Ele está levando o pássaro com ele”.

Passou um mês. Dois. Nada de novo pacote. E nada do viajante. Um dia, tocou o telefone e era a Iridia, querendo saber se ele tinha chegado bem e se podia falar com ele. Foi difícil fazê-la entender que ele não estava lá, que não voltara para casa. Então a Iridia disse: “Eu deveria ter adivinhado...”. Ele jurara que estava voltando para casa, que faria a conexão em Londres e estaria no Brasil em dois dias. Na certa, conhecera uma mulher no caminho. 

No avião ou no aeroporto em Londres. O pássaro teria atraído a atenção dela, eles já estariam morando juntos. Ela devia estar, naquele momento, ajudando-o a escolher meias novas. A mãe anunciou aos filhos que o pai ainda demoraria a chegar.

20 de maio de 2017 | N° 18850 
DAVID COIMBRA

Como educar meninos de nove anos

Outro dia, briguei com meu filho. Ele fez algo errado e eu o censurei com certo rigor. A Marcinha acha que fui duro demais.

– Ele vai ficar traumatizado – avisou.

Na hora, reagi: – Que traumatizado o quê! Quanta frescura! Fosse a minha mãe, já me puxava pela orelha!

Depois fiquei pensando: e se o guri ficar mesmo traumatizado? Se o pai é duro, o menino pode se tornar um adulto com medo de autoridades, pode se transformar em um dissimulado, um covarde, um homem que não consegue enfrentar as vicissitudes da vida.

Meu Deus! O que estou fazendo com meu próprio filho? Um profundo e corrosivo remorso tomou conta de minh’alma. Continuei cismando. Deveria ser mais brando, talvez. Mais suave... Ou...

Será?

É que, se você for frouxo demais, a criança inevitavelmente virará uma mimada, uma reclamona, uma birrenta, uma pessoa que exige tudo e nunca fica satisfeita com nada. Por fim, uma infeliz crônica. Conheço gente assim, sobretudo na política.

Aí não dá, por favor.

O ideal é o meio-termo. O caminho do meio, como diria Buda. Você tem de ser firme, quando o momento exige firmeza; dócil, quando o momento exige doçura. Você tem que saber dosar, entende? Aquela história do Che Guevara, que conseguia endurecer-se sem perder a ternura.

Mas como atingir esse ponto de equilíbrio?

Perceba o meu drama, solidário leitor: não tenho dúvida de que já vivi mais do que me resta viver. Quer dizer: devia estar colhendo os frutos da experiência. Cometi erros, passei por contingências, sofri e fiz sofrer, mas agora sei o que fazer. Atingi o ponto em que reconheço os limites e, sobretudo, me conheço muito bem.

É como deveria ser.

Mas não é como é.

O fato é que não conheço completamente nem a mim mesmo. Você entendeu como é trágico isso? A pessoa com quem mais tenho intimidade sou eu, e eu mesmo me surpreendo comigo, em alguns momentos. Como, então, poderei saber o que fazer em relação aos outros, ainda que o outro seja alguém que conheço desde o nascimento, como o meu filho?

Cristo!

Mas não vá me entender mal, também: sei que sou um bom pai e, mesmo que vez em quando seja mais firme, nunca bati no meu filho ou coisa que o valha. Faz mais de ano que não o coloco de castigo, inclusive. E ele é um bom guri, certamente que é. Só que, como todo menino de nove anos de idade, às vezes tem comportamentos irritantes e aí é claro que deve ser reprimido. A punição educa, digo sempre. A questão é a dose. Qual é a dose perfeita?

Você se preocupa demais? Ou se preocupa de menos? Tem que prestar mais atenção naquilo? Ou não deve dar bola? Vai passar com o tempo? Ou é preciso intervenção? Ele come muito ou pouco? Está muito magrinho? O rendimento na escola é o adequado? Fica tempo demais ao computador? Lê menos do que deveria? Será que é normal gostar de bichinho de pelúcia nessa idade?

CRISTO!

Só tenho perguntas. Não tenho respostas. Não pergunte nada, quem somos, para onde vamos, de onde viemos, não pergunte nem onde fica o Alegrete, que, aliás, era a terra do meu pai. Meu pai... Será culpa dele? Será culpa da minha mãe? Os pais sempre têm culpa, não é?

Sempre.

Arrastarei minha culpa pelo tempo que me cabe debaixo do sol, uma culpa pesada como se fosse uma bola de aço presa a uma corrente. Mas seguirei em frente e, quem sabe, mais tarde, direi ao meu filho:

– Sim. A culpa é minha. Mas tentei fazer o melhor.


20 de maio de 2017 | N° 18850 
MARIO CORSO - Psicanalista

MU

Qual é a palavra que mais faz falta à língua portuguesa? Cada um tem sua lista, a que encabeça a minha é mu. Aposto que você já precisou dela e não a tinha na mão, teve que dar mil voltas, usando várias palavras, quando teria resolvido a querela usando apenas uma. Sabe quando o interlocutor te pergunta dando duas opções: afinal, é ou não é? Você é contra ou a favor?

Falássemos japonês ou coreano, poderíamos responder “mu”, ou, se fosse chinês, que provavelmente deu origem ao termo, a resposta “wu” acabava a discussão. Essas duas letras são de uma sabedoria que nossa tradição ocidental não possui, muito menos de forma tão concisa. A palavra significa: desfaça a pergunta, ela não tem resposta possível dentro deste contexto. É uma forma radical de dizer nenhum dos dois, mas é mais do que isso, pois elegantemente desconsidera a lógica da pergunta.

Para a maioria das perguntas, uma resposta binária serve, mas, para muitas das questões decisivas da existência, não. Sem mu, você tenta argumentar sobre a complexidade, e seu interlocutor, rispidamente, refaz a pergunta tentando arrancar um sim ou não. Quer forçar uma escolha dentro da lógica que lhe faz sentido. O que fazer com esse povo que, usando a classificação de Nelson Rodrigues, chamaríamos de “idiotas da objetividade”?

Se você não está convencido de que um terceiro termo é possível e necessário, responda usando sim ou não à seguinte questão: você já parou de espancar seu filho? A resposta binária admite que você espanca e que tem um filho! Esta é uma questão autoevidente da simplicidade falaciosa, mas nem sempre temos uma transparência tão visível. Às vezes, quem faz a pergunta nem é malicioso, está apenas usando uma lógica rasa, ignora quanto planta na boca alheia teses e ou fatos da sua própria compreensão reducionista.

Eu gosto do termo para meu uso próprio, para não cair em armadilhas, pois nosso cérebro adora construir ficções dualistas que nos parecem razoáveis e não o são. Escorregar para o binarismo e ir chafurdar na lama da idiotia da objetividade é um passo rápido. A vacina é desconfiar sempre da lógica das perguntas, sobretudo das nossas.

As épocas de crise açoitam esse terceiro termo. Por urgência, por afobamento, as respostas mu são exiladas, não ouvidas. O drama é que justamente as soluções tendem a ser da ordem do pensamento mu. Carecemos de desmanchar as falsas oposições que nos separam e impedem uma outra forma de ver a realidade. A sabedoria nem sempre é responder a uma questão, mas, sim, saber quando o melhor seria reformulá-la.

PS: Aprendi isso no inclassificável livro Zen e a Arte de Consertar Motocicletas. Premonição ou não, tinha acabado de retomar o livro, quando soube da recente morte do autor, Robert M. Pirsig.

sábado, 13 de maio de 2017



13 de maio de 2017 | N° 18844 
LYA LUFT

Maternidades

Talvez o assunto esteja esgotado em termos literários. Ainda haverá o que escrever em poemas, crônicas, romances e contos sobre essa experiência transformadora e inigualável, para algumas deslumbrante, para outras apenas inconveniente, assustadora ou trágica? Haverá ainda algo que não se conseguiu descrever em todos os livros do mundo? Por outro lado, essa experiência tão diferente para cada uma, que pode ir de êxtase e euforia a amargura, tem sido objeto de milhares e milhares de esforços para reproduzi-la em frases faladas, escritas, cantadas, por toda parte – talvez desde sempre.

Acho que não há muito mais a dizer, e raramente escrevo sobre datas. Mas esta me agrada, e, sim, gosto do Dia das Mães. Gosto de qualquer celebração que renove nossos pensamentos e emoções. Comercialização de sentimentos? Só pra quem leva a vida como consumo, mede amor pelo gasto e precisa, quem sabe, encobrir suas culpas com visita, telefonema ou presente.

Na vida dita normal (sem discutir o que é isso) nas relações amorosas, entre as quais a de mãe e filhos se inclui, claro, nem tudo é dramático e transcendental. Quase sempre fica entre aquele curativo e beijo na hora do joelho esfolado, noites sem dormir junto da criança doente, colo na hora do coração partido, risadas juntas nas aventuras cotidianas, segredinhos bem guardados, olhar vigilante procurando não intervir nem aborrecer, amor desmedido querendo não oprimir. Mais a chatice inevitável “bote o casaquinho, não fale de boca cheia, não bata no seu irmão, respeite os outros, volte cedo, olhe com quem anda saindo, se cuideeee!!!”. O mais difícil: corrigir sem humilhar, proteger sem enfraquecer, estimular sem iludir. (E ainda tem aquela culpa obtusa que nos assalta mesmo se o filho quebra o pé escalando o Everest: por que não cuidei dele?)

Assistir (discretamente) aos voos que se pode divisar, no resto rezando e torcendo, e sendo otimista: a cria vai dar certo, seja lá o que isso signifique. Não vai quebrar demais as asas e a cara, não vai sofrer demais, vai ser um ser humano decente e bom, e bem-sucedido nas suas escolhas, sejam de profissão, de parceiro, de modo de vida. A gente recebendo um telefonema, um whats, uma visitinha, pra se certificar de que afinal está tudo bem – e ficar feliz da vida.

Mas há as maternidades atormentadas: filho doente, filho viciado, filho perseguido, filho acidentado, assassinado, filho fazendo escolhas negativas, filho precisando de coisas que não se pode dar porque o dinheiro não chega, enfim, filho sumido no mundo ou na morte. Isso, não há palavras que expliquem, então sobre isso me calo, por profundo respeito.

Termino com minha tripla experiência de maternidade: euforia e assombro, cada vez que de mim saiu um ser humano, uma pessoazinha – e a cada vez pensei e disse em voz alta, sem querer: “Mais uma pessoa no mundo”.

Isso me impressiona e comove até hoje: cada um é uma pessoa, com sua personalidade, suas decisões, sua vida, sua morte. Pouco vou poder interferir. Procurar não estorvar já é difícil. Mas posso fazer com que saibam que, seja como for, onde, quando, a mãe vai estar sempre do seu lado, muitas vezes sem entender direito, muitas vezes desajeitada, muitas vezes impotente, mas, inteiramente, um colo, um abraço, e um amor que nenhuma palavra de nenhum idioma poderia definir.