sábado, 29 de maio de 2010



30 de maio de 2010 | N° 16351
MARTHA MEDEIROS

A elegância do conteúdo

Pouco valerá se formos uma nação de medíocres com dinheiro

De ferramentas tecnológicas, qualquer um pode dispor, mas a cereja do bolo chama-se conteúdo. É o que todos buscam freneticamente: vossa majestade, o conteúdo.

Mas onde ele se esconde?

Dentro das pessoas. De algumas delas.

Fico me perguntando como é que vai ser daqui a um tempo, caso não se mantenha o já parco vínculo familiar com a literatura, caso não se dê mais valor a uma educação cultural, caso todos sigam se comunicando com abreviaturas e sem conseguir concluir um raciocínio.

De geração para geração, diminui-se o acesso ao conhecimento histórico, artístico e filosófico. A overdose de informação faz parecer que sabemos tudo, o que é uma ilusão, sabemos muito pouco, e nossos filhos saberão menos ainda.

Quem irá optar por ser professor não tendo local decente para trabalhar, nem salário condizente com o ofício, nem respeito suficiente por parte dos alunos? Os minimamente qualificados irão ganhar a vida de outra forma que não numa sala de aula. E sem uma orientação pedagógica de nível e sem informação de categoria, que realmente embase a formação de um ser humano, só o que restará é a vulgaridade e a superficialidade, que já reinam, aliás.

Sei que é uma visão catastrofista e que sempre haverá uma elite intelectual, mas o que deveríamos buscar é justamente a ampliação dessa elite para uma maioria intelectual. A palavra assusta, mas entenda-se como intelectual a atividade pensante, apenas isso, sem rebuscamento.

O fato é que nos tornamos uma sociedade muito irresponsável, que está falhando na transmissão de elegância. Pensar é elegante, ter conhecimento é elegante, ler é elegante, e essa elegância deveria estar ao alcance de qualquer pessoa.

Outro dia conversava com um taxista que tinha uma ideia muito clara dos problemas do país, e que falava sobre isso num português correto e sem se valer de palavrões ou comentários grosseiros, e sim com argumentos e com tranquilidade, sem querer convencer a mim nem a ninguém sobre o que pensava, apenas estava dando sua opinião de forma cordial. Um sujeito educado, que dirigia de forma igualmente educada. Morri e reencarnei na Suíça, pensei.

Isso me fez lembrar de um livro excelente chamado A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery, que conta a história de uma zeladora de um prédio sofisticado de Paris. Ela, com sua aparência tosca e exercendo um trabalho depreciado, era mais inteligente e culta do que a maioria esnobe que morava no edifício a que servia.

Mas, como temia perder o emprego caso demonstrasse sua erudição, oferecia aos patrões a ignorância que esperavam dela, inclusive falando errado de propósito, para que todos os inquilinos ficassem tranquilos – cada um no seu papel.

A personagem não só tinha uma mente elegante, como possuía também a elegância de não humilhar seus “superiores”, que nada mais eram do que medíocres com dinheiro.

A economia do Brasil vai bem, dizem. Mas pouco valerá se formos uma nação de medíocres com dinheiro.


Além de grandes, brilhantes

No pós-crise, joalherias oferecem peças enormes, cheias de pedras vistosas, assinadas por nomes conhecidos. Em suma, irresistíveis. A tática está dando certo, e se alguém
precisa de sugestões...


Bel Moherdaui - Fotos Laílson Santos e divulgação


FULGURANTE
Raquel exibe seus brincos imensos, Diane posa com suas pulseiras: graúdas em tudo


Em dúvida sobre como presentear a mulher amada neste Dia dos Namorados? Ah, esses homens... Talvez por distração ou perda temporária de memória, eles vivem se esquecendo do que faz sucesso de verdade. É tão fácil, só quatro letrinhas: joia. Coisas brilhantes e preciosas têm uma carga simbólica única, sem contar o insubstituível suspiro de emoção que acompanha a abertura da caixinha.

Se ainda faltarem argumentos, anote-se que a compra de joias contribuirá para a retomada de uma indústria que cresce nos últimos meses a até 20% – um ritmo chinês, não fosse o período ao que se compara. Aquele mesmo, o da crise, que cortou fundo justamente nos produtos situados no topo do supérfluo. Dá pena até de lembrar.

"Até o ano passado, as principais fábricas de joias de ouro no Brasil tiveram uma queda de 40% a 50% em sua produção. Em 2009, as exportações caíram 28%", diz Hécliton Santini Henriques, presidente do Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos. A crise interrompeu um período de ouro, sem trocadilhos, de crescimento acelerado, mas serviu também para ativar as habilidades comerciais de um dos ramos de negócios mais antigos do mundo.

Um dos recursos foi aumentar o uso de pedras preciosas chamativas, de valor menos elevado que o dos tradicionais diamantes, e diminuir, no caso das peças mais em conta, a quantidade de ouro – este, salva-vidas derradeiro nas épocas de crise, continua sem dar provas de arrefecimento no atual e ainda volúvel momento econômico. "As joalherias passaram a fazer peças mais leves, com mais pedras, que dão impacto maior e reduzem o preço médio", explica Henriques.

Outra estratégia das grandes joalherias foi promover parcerias com mulheres conhecidas no mundo do luxo, dando a suas peças uma assinatura facilmente identificável e, em alguns casos, o ar de modernidade buscado por consumidoras habituadas ao ritmo acelerado da moda em constante mudança e não àquelas peças que deveriam durar para sempre.

"Hoje, as coisas são muito efêmeras mesmo na joalheria. Ao contrário do tempo em que um broche não saía nunca de moda, agora é preciso estar constantemente se renovando. As parcerias enriquecem essa dinâmica", diz Mario Pantalena Júnior, cuja joalheria acaba de lançar uma linha com a arquiteta e chiquérrima socialite Raquel Silveira. "Raquel é muito antenada, mora entre São Paulo e Nova York.

É uma mulher de extremo bom gosto, jovem e bem relacionada", descreve Pantalena. Na parceria, foi desenvolvida a coleção Dentelle, joias em filigrana, um tipo de trabalho em ouro que parecia perdido no passado, mas passou pela devida atualização. A técnica permite fazer joias em tamanhos maiores sem a desvantagem do peso excessivo. "Queria coisa grande, mas muito leve, porque detesto brinco pesado que rasga a orelha", diz Raquel, que fez um total de quinze peças, todas graúdas, no tamanho e no preço – entre 5 000 e 10 000 reais.


EM VERDE
A esmeralda que a salamandra segura tem 36,5 quilates

A tática de aliar nome importante às coleções rende também prestígio e, no caso de uma rede internacional como a H. Stern, a mais desejada das projeções: o uso de peças por grandes nomes do cinema ou da música em festas cujas imagens são infinitamente reproduzidas mundo afora. A primeira coleção da estilista belgo-americana Diane von Furstenberg para a joa-lheria foi um caso clássico.

As pulseiras de ouro (aqui vendidas por uma média de 25 000 reais), ou em versão cravejada de diamantes (a estonteantes 682 000 reais), apareceram mais de uma vez em pulsos estrelados. Diane desenhou uma segunda coleção, também em proporções avantajadas, usando cristais em formatos irregulares.

Outra joalheria tradicional, a Amsterdam Sauer, famosa pela excelência das gemas e pelo conservadorismo do estilo, buscou a renovação diretamente na fonte da maior conhecedora da consumidora de produtos de luxo no Brasil, Eliana Tranchesi, da Daslu.

"Daniel Sauer chegou e tirou do bolso esmeraldas de todos os tamanhos. Em um minuto, ele me convenceu a criar joias com elas", diz Eliana, que concebeu peças do tipo de que suas clientes gostam. Em outras palavras, coisas de rica – a mais original, um anel de salamandra com uma esmeralda de 36,5 quilates, 110 diamantes e dois rubis, custa 38 000 reais. "É interessante ver como são diferentes a compra de uma joia e a de uma roupa.

A joia é uma compra pensada. Em geral, a cliente gosta, vai para casa, avalia, traz o marido para ver, e só aí decide", compara Eliana, que na sua loja facilita o pagamento em até oito parcelas.


EM VERMELHO
Rodonita, ouro e brilhantes no anel de 23 000 reais

Com uma clientela mais jovem, o joalheiro Jack Vartanian também manteve uma característica cara à consumidora brasileira – o tamanho –, acrescida da busca de originalidade.

"A cliente está desperdiçando menos e pensando mais. Para conquistá-la, é preciso fazer peças diferentes e raras", diz. Em busca do diferente, salpicou sua nova coleção de pequenos blocos de rodonita, pedra num vermelho vibrante que em geral é usada em joias aborrecidamente convencionais e subvalorizadas.

Um problema que Vartanian se encarregou de resolver. Seu anel de rodonita de 42 quilates com ouro branco e ouro rosado e sessenta pequenos diamantes custa 22.820 reais. Está certo que por esse preço daria para passar o Dia dos Namorados no Taiti, mas e o suspiro na hora de abrir a caixinha?


Depois de 148 dias...

...chega o 1º dia livre de impostos

Livro demonstra que os brasileiros não toleram mais pagar tributos europeus e receber serviços públicos africanos. Falta um candidato que expresse o desejo do eleitor

Giuliano Guandalini


De cada 1 000 reais que um brasileiro recebe de salário, 400 são consumidos pelos impostos. Esse valor não diz respeito apenas aos tributos cobrados diretamente e subtraídos mensalmente do contracheque. Os impostos estão presentes em todo e qualquer produto consumido.

Existem 83 tributos, taxas e contribuições no país, que consomem em média 40% da remuneração que obtemos com o nosso esforço. De 1º de janeiro de 2010 até a sexta-feira passada, 28 de maio, cada brasileiro trabalhou para sustentar o governo em suas três esferas, municipal, estadual e federal. Foram 148 dias de suor recolhidos aos cofres do estado.

Em troca de que mesmo? Deveria ser em troca de educação, saúde e segurança. Não é, pois a mesma família que só se livrou das garras do Leão na última sexta-feira vai ter agora de recomeçar a trabalhar para pagar por... educação, saúde e segurança.

Uma família de classe média gasta no Brasil um terço de sua renda para pagar escola particular, plano de saúde privado e outros serviços que deveriam ser sustentados pelos impostos. No total, 75% do salário do brasileiro é empenhado em impostos e serviços que os impostos deveriam cobrir.

O economista Antonio Delfim Netto produziu a imagem definitiva para exprimir a tortura a que a população foi condenada, ao chamar o Brasil de "Ingana": uma nação com carga tributária da Inglaterra e serviços públicos dignos de Gana. Uma conclusão similar emerge da leitura de O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo (Record; 196 páginas; 32,90 reais), do cientista político Alberto Carlos Almeida, diretor do Instituto Análise.

O livro resultou da pesquisa sobre a opinião dos brasileiros a respeito dos impostos e da avaliação que fazem do governo no uso dos recursos, realizada a partir de entrevistas com 1 000 pessoas de todo o país. Almeida, autor também de A Cabeça do Brasileiro e A Cabeça do Eleitor, toca em uma ferida exposta e da qual os políticos não querem nem ouvir falar.

Os brasileiros, independentemente de classe social e nível de renda, sabem que pagam impostos demais e gostariam que os governantes fizessem melhor uso dos recursos existentes. Poucos estão dispostos a ser tributados ainda mais sob a promessa de ampliação de benefícios sociais, como o Bolsa Família ou o Vale-Cultura. Acima de tudo, a maioria absoluta dos entrevistados está convicta de que, se tivesse a chance, preferiria pagar menos tributos para ter mais dinheiro no bolso e gastar com escola particular ou saúde privada.

Como resolver o problema da saúde pública, criando mais impostos ou utilizando melhor os recursos já existentes? Oito em cada dez brasileiros ficaram com a segunda opção. O que é melhor, expandir o Bolsa Família ou diminuir a tributação dos alimentos, para que eles fiquem mais baratos?

Mais de 80% dos entrevistados optaram pela segunda alternativa. Mesmo os beneficiados pelo Bolsa Família preferem pagar menos impostos a ampliar o programa assistencial (veja o quadro abaixo). Quando questionados se consideram que seja necessário elevar o salário mínimo, 93% dos brasileiros afirmam que sim.

Mas e se esse aumento for condicionado ao pagamento de impostos? O apoio cai para 56%. Os entrevistados não titubeiam: preferem pagar 100 reais por mês pela mensalidade de um plano de saúde a despender a mesma quantia em contribuições que custeiem o sistema público. Para estimular o emprego, qual a alternativa mais eficaz: diminuir os encargos trabalhistas ou reduzir a taxa de juros?

A grande maioria dos entrevistados (68%) indica a primeira opção. Nisso, a propósito, a população concorda com os empresários. Uma pesquisa feita pelo Ibope sob encomenda da Fiesp, a federação das indústrias de São Paulo, mostrou que 65% das empresas citam o sistema tributário como a maior trava ao aumento dos investimentos.

A cada resposta que dão à pesquisa do Instituto Análise, os brasileiros, inconscientemente, ecoam uma das principais máximas do economista liberal americano Milton Friedman (1912-2006), para quem "as pessoas sabem gastar o seu dinheiro melhor que qualquer governo". Essa frase, essência do pensamento de Friedman, resume a opinião demonstrada pelos brasileiros no livro de Almeida.

A população quer ter liberdade para escolher. Os eleitores, no entanto, não dispõem hoje da possibilidade de escolher um candidato que os defenda nesse assunto. Nenhum dos principais partidos do país tem a redução dos impostos como uma de suas plataformas eleitorais.

É bem diferente do que se vê nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, onde os tributos são um tema que não pode ficar de fora em qualquer campanha eleitoral. Os políticos brasileiros fogem do assunto e, quando instados a comentá-lo, refugiam-se em respostas vagas.


Marcos Issa/Argosfoto - VERDADE INCONVENIENTE

Almeida, autor de O Dedo na Ferida: os políticos não prometem reduzir tributos porque teriam de rever privilégios

Isso ficou evidente na terça-feira passada, em sabatina com os três principais pré-candidatos à Presidência, promovida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em Brasília. Apesar de todos terem concordado que a carga tributária brasileira ultrapassa os limites toleráveis, nenhum deles exibiu planos para aliviar significativamente esse peso.

O único que ofereceu uma proposta concreta, mas bem restrita, foi o tucano José Serra, que se comprometeu, caso eleito, a reduzir os impostos do setor de saneamento básico. Dilma Rousseff, sem dar detalhes, defendeu uma carga menor para os investimentos.

Marina Silva se comprometeu em buscar a reforma tributária, mas ressalvando que seria difícil tirar esse projeto do papel. Os projetos para estimular o desenvolvimento, de maneira geral, concentram-se em políticas estatais, que implicam invariavelmente uma ampliação dos gastos públicos – e, portanto, mais impostos.

Para Almeida, que trabalha como consultor político, é difícil compreender como os candidatos passam por cima do quase clamor dos eleitores por menos impostos. Por que nenhum candidato tira proveito de uma causa tão popular, que poderia render milhares de votos? O autor arrisca algumas explicações.







Em primeiro lugar, os principais partidos pendem para a esquerda, e a redução de impostos é uma bandeira tradicionalmente de direita. Para os esquerdistas, o estado, por meio dos tributos, deve ser o promotor do desenvolvimento e da justiça social. Além disso, os políticos brasileiros, não obstante sua corrente ideológica, "encontram-se na fila do caixa do Tesouro".

"Todos querem controlar mais recursos públicos", explica Almeida. Finalmente, os políticos fogem da cruz quando o tema é diminuir a tributação porque, se acenarem com essa proposta, precisarão reduzir gastos e rever privilégios. Afirma Almeida: "Todos mandam a conta final para a sociedade. Não precisam de fato ser eficientes. Para cada gasto adicional, aumente-se uma tarifa ali ou uma alíquota acolá e está tudo resolvido".

Aí está a verdade inconveniente que político nenhum gostaria de ver exposta à luz do sol. É o real dedo na ferida. Como demonstra o livro de Almeida, no entanto, a redução dos impostos é uma plataforma eleitoral pronta, que cedo ou tarde será capitalizada politicamente por algum candidato. "Existe o script, mas falta o ator", diz o cientista político. Ainda há tempo para que isso ocorra na próxima eleição. A vontade dos eleitores, de se verem livres de ao menos parte dos 148 dias no ano de servidão ao governo, já foi expressa.

Mark Peterson/Redux - ABAIXO AS TAXAS
Nos Estados Unidos, ao contrário do que ocorre no Brasil, os impostos são tema central no embate político



Apple ultrapassa Microsoft e torna-se 2ª maior dos EUA

Antes de ultrapassar a Microsoft, a Apple já havia deixado para trás a gigante varejista Wal-Mart. Ela só perde para a ExxonMobil
Paul Sakuma - SÍMBOLO DA APPLE

Jobs na apresentação da marca que já é a segunda maior dos Estados Unidos na bolsa de valores

A Apple tornou-se nesta terça-feira (26) a segunda maior empresa dos Estados Unidos ao ultrapassar a Microsoft em termos de capitalização de mercado.

A empresa fundada por Steve Jobs está atrás apenas da ExxonMobil. A ultrapassagem deveu-se à queda das ações da Microsoft na Bolsa de Nova York durante o dia.

O avanço da Apple ocorre apesar de suas próprias ações terem recuado 0,5% no pregão, fechando em US$ 244,11. No entanto, os papéis da companhia valorizaram-se bastante em 2010.

Antes de ultrapassar a Microsoft, a Apple já havia deixado para trás a gigante varejista Wal-Mart. A ações da Apple subiram 16% no acumulado de 2010, com os produtos da empresa saindo sem parar das prateleiras e seu mais recente lançamento de grande porte, o iPad, atraindo os holofotes.

Um mês atrás, os papéis da Apple alcançaram a cotação máxima de sua história, chegando a ser negociadas a US$ 272,46. No fechamento do pregão em Nova York, a capitalização de mercado da Apple era de US$ 222,12 bilhões, contra US$ 219,18 bilhões da Microsoft, segundo dados da Fact Set Research.

Na virada do ano, a capitalização de mercado da Microsoft era de US$ 270,7 bilhões, contra US$ 189,9 bilhões da Apple. As ações da Microsoft desvalorizaram-se 18% nestes primeiros meses de 2010. Nos últimos anos, o valor dos papéis da Apple multiplicou-se por 34. No mesmo período, as ações da Microsoft caíram 2,9%.

A liderança da ExxonMobil ainda é bastante ampla. A capitalização de mercado da petrolífera é de US$ 277,68 bilhões, com suas ações a US$ 59,31 no fechamento da sessão em Nova York.

Para alcançar tal capitalização, os papéis da Apple precisariam ser negociados a US$ 306,00. De acordo com a FactSet, 34 de 38 analistas consultados deram o equivalente a recomendação de compra e estabeleceram preço-alvo médio de US$ 310,77 para a Apple, com alguns deles sugerindo preço-alvo de até US$ 350,00.

No início da semana, analistas do Morgan Stanley estabeleceram o preço-alvo das ações da Apple em US$ 310,00, com alguns deles cogitando cotação de até US$ 400,00 se os lucros vierem como muitos esperam. As informações são da Dow Jones.


29 de maio de 2010 | N° 16350
NILSON SOUZA


A gênese da polêmica

Lá pelo 1.277.500.000º dia, se não me falha a matemática, Deus criou Darwin à sua imagem e semelhança, inclusive com aquela barba imensa da nota de 10 libras. Deu no que deu, como todos sabemos.

Depois de colecionar insetos e plantas, o inglês fez uma viagem de navio à América do Sul, pegou um febrão na Argentina e escreveu o mais polêmico livro de todos os tempos – A Origem das Espécies –, revelando aos humanos a existência de ancestrais que até hoje mantemos enjaulados por puro preconceito.

– Tomara que não seja verdade – disse certa vez uma escandalizada dama francesa ao ser informada sobre a teoria do pesquisador britânico. E complementou:

– E, se for verdade, tomara que ninguém fique sabendo.

Pois ficamos. Não sei se a imprensa é culpada disso também. É bem provável. Que jornalista seguraria uma notícia dessas? Ainda hoje o tema nos fascina.

Outro dia, depois de saborear as minhas bananas matinais, fiquei imaginando um diálogo improvável entre o Criador e a sua irreverente criatura, que a seguir representaremos pelas iniciais D e D, ambas maiúsculas, para mantermos a neutralidade. De acordo com os registros históricos, as frases são autênticas:

D – Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie!

D – A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana.

D – Façamos o homem à nossa imagem, com nossa semelhança, e que ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra.

D – Devemos, no entanto, reconhecer que o homem com todas as suas nobres qualidades ainda sofre em sua prisão corpórea a indelével marca de sua humilde origem.

A audácia não passou despercebida. Veio, então, a primeira advertência e o debate esquentou:

D – Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer.

D – Não tenho o menor medo de morrer.

D – Tu és pó, e ao pó tornarás.

D – A história se repete. Esse é um dos horrores da História.

D – Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei, porque me arrependo de os ter feito.

D – Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças.

Pesquisa recente da BBC londrina mostrou que mais da metade dos britânicos não acredita na teoria evolucionista. Mas, na semana passada, cientistas americanos anunciaram a criação da primeira célula artificial. É polêmica para a eternidade.

quarta-feira, 26 de maio de 2010



26 de maio de 2010 | N° 16347
MARTHA MEDEIROS


As vira-casacas

Fico sempre de pé atrás com pessoas que passam por uma metamorfose radical, virando justamente o oposto do que eram. Quando li um depoimento da outrora Regininha Poltergeist, furacão sensual, musa de Fausto Fawcett e que teve breve carreira como atriz pornô, dizendo que hoje atende pelo nome de Regininha Pentecostes, me deu um frio na espinha. De louca a santa? Ora. De louca a louca e meia.

Acabei lendo um pouco mais sobre essas “perdidas” que se transformam em crentes, as Marias Madalenas deste século. E soube que algumas ex-capas de revistas masculinas hoje estão a serviço da castidade e da abstinência, inclusive pretendem estrear um programa na linha do Saia Justa para “levar uma visão de Deus a assuntos polêmicos”.

Pregam que sexo, agora, só depois do casamento. Dizem que foram traídas por quase todos os homens que tiveram e que já se pegaram entre elas a socos para defenderem a posse de seus bofes. Hoje, arrependidas, concluem que só lhes resta ajoelhar e orar.

O famoso meio-termo, nem pensar. É como se um gremista fanático virasse colorado do dia pra noite, ou vice-e-versa. Sou a primeira a incentivar que as pessoas reavaliem suas escolhas e, caso estejam desgostosas, mudem, se deem a chance de vivenciar novas experiências. Faz parte da dinâmica da vida. Alguns baladeiros notívagos hoje dormem depois da novela e acordam às 5h.

Garotas de programa se apaixonam, casam e têm filhos, virando fidelíssimas esposas. E, se alguns céticos passam a frequentar a igreja, ótimo, nenhuma contradição, estão em movimento, desde que não inventem de se transformar em novos messias.

Prefiro comprar um carro usado da Rita Cadillac a um da Regininha Pentecostes. Desconfio de pessoas que trocam de nome, que “renascem depois do acidente”, como se fosse um acidente ter vivido uma história que já não lhes interessa mais.

Há muitas coisas que fizemos e não voltaríamos a fazer, estamos sempre em busca de crescimento, e trocar de ideia e de hábitos é parte natural da aventura de estar vivo, mas posar de convertida? É acreditar demais em pecado e salvação.

Todos nós temos um pouco de loucos e de santos, somos modernos para nos vestir e caretas para educar os filhos, corajosos para esportes radicais e apavorados para sair de carro à noite.

Se há algo que nos torna criaturas saudáveis é justamente o fato de sermos flexíveis, diversos. E divertidos! O passado passou, não é preciso negá-lo e virá-lo do avesso para legitimar uma nova persona, isso mais parece penitência. Engessar-se num único perfil, seja qual for, é doentio. Nada nos define. A não ser o nosso time, claro.

Uma linda quarta-feira para vc. Aproveite o dia

terça-feira, 25 de maio de 2010



25 de maio de 2010 | N° 16346
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Dois segundos

Uma leitora me diz ser curioso que eu, habitualmente prisioneiro do presente, me deixe levar às vezes por tantas lembranças do passado. Bom, para começar, N., sempre acreditei que o presente é a soma de todos os passados.

Não estou sozinho nessa crença. Há milhares de anos, Confúcio já recomendava: “Estuda o passado, se quiseres adivinhar o futuro”. Longe de mim tentar sondar meu futuro. Mas não me importo de adivinhar o passado.

Agora mesmo, N., me ocorrem dois caminhos para tornar a percorrê-lo. As férias dos anos 60 em Cachoeira, quando havia um novo amor a cada dia e as meninas eram tão belas quanto deusas, e o primeiro dos cursos de Jornalismo Avançado que tirei em Berlim, em 1982, época em que respirar era ser feliz.

Há toda uma tentação em olhar o tempo que se foi como melhor do que aqueles que estamos vivendo. Mas pode ser uma tentação legítima se, como escreveu George Santayana, os que são incapazes de recordar o passado são condenados a repeti-lo.

Condenados talvez seja uma palavra forte. Eu a substituiria por levados ou inclinados a reprisá-lo. Isso porque cada instante da vida é condicionado por aquilo que fomos, ou que experimentamos.

Vivenciei ocasiões de intensa dor, naveguei momentos de trágica realidade. Reluto em voltar a eles, mesmo no mais simples dos pensamentos. Nenhum de nós é feito para a derrota, senão que para a superação.

Singrei também, N., instantes que jamais esquecerei, por sua beleza. Por um desses acasos que a vida apronta, vários desses instantes transcorreram no Exterior, como aquela noite em que assisti a um espetáculo, num teatro de Hamburgo, e no camarote central estava ninguém menos do que a princesa Diana.

Sobre o passado nem o céu tem poder, falava, há mais de três séculos, Dryden. É provável, N., que ele tenha razão, é possível que ele tenha enunciado uma frase definitiva.

Mas eu só pediria a esse céu que ele menciona que me desse o poder de preservar dois segundos de minha caminhada sobre a Terra. Aqueles dois em que Lady Dy repousou, distraída, o seu olhar no meu.

sábado, 22 de maio de 2010



23 de maio de 2010 | N° 16344
MARTHA MEDEIROS


Saúde mental

Armados até os dentes contra qualquer instabilidade, como gozar a vida?

Acabo de saber da existência de um filósofo grego chamado Alcméon, que viveu no século 6 antes de Cristo, e que certa vez disse que saúde é o equilíbrio de forças contraditórias.

O psicanalista Paulo Sergio Guedes, nosso contemporâneo, reforça a mesma teoria em seu novo livro (A Paixão, Caminhos & Descaminhos, em que ele discute os fundamentos da psicanálise). Escreve Guedes: “A saúde constitui sempre um estado de equilíbrio instável de forças, enquanto a doença traz em si a ilusória sensação de estabilidade e permanência”.

Não sei se entendi direito, mas me pareceu coerente. O sujeito de boa cuca não é aquele que pensa de forma militarizada. Não é o que nunca se contradiz. Não é o cara regido apenas pela lógica e que se agarra firmemente em suas verdades imutáveis. Esse, claro, é o doente.

Do nascimento à morte há uma longa estrada a ser percorrida. Para atravessá-la, recebemos uma certa munição no reduto familiar, mas nem sempre é a munição que precisávamos: em vez de nos darem conhecimento, nos deram regras rígidas. Em vez de nos ofertarem arte, nos deram apenas futebol e novela.

Em vez de nos estimularem a reverenciar a paixão e o encantamento, nos adestraram para ter medo. E lá vamos nós, vestidos com essa camisa de força emocional, encarar os dias em total estado de insegurança, desprotegidos para uma guerra que começa já dentro da própria cabeça.

Armados até os dentes contra qualquer instabilidade, como gozar a vida?

A paz que tanto procuramos não está na previsibilidade e na constância, e sim no reconhecimento de que ambas inexistem: nada é previsível nem constante. E isso enlouquece a maioria das pessoas. Quer dizer que não temos poder nenhum? Pois é, nenhum.

Dá medo, no início. Mas o segredo está em acostumar-se com a ideia. Só então é que se consegue relaxar e se divertir.

Ou seja, a pessoa de mente saudável é aquela que, sabedora da sua impotência contra as adversidades, não as camufla, e sim as enfrenta, assume a dor que sente, sofre e se reconstrói, e assim ganha experiência para novos embates, sentindo-se protegida apenas pela consciência que tem de si mesma e do que a cerca – o universo todo, incerto e mágico.

Acho que é isso. Espero que seja isso, pois me parece perfeitamente curável, basta a coragem de se desarmar. O sujeito com a mente confusa é um cara assustado, que se algemou em suas próprias convicções e tenta, sem sucesso, se equilibrar em um pensamento único, sem se movimentar.

Já o sadio baila sobre o precipício.

Lya Luft

O sexo triste dos jovens

"A nós, adultos, cabe não desviar os olhos, mas trabalhar na esperança de que um dia nossos adolescentes conheçam o sexo com ternura"
Ilustração Atomica Studio

Procuro ser aberta ao novo, ao que me agrada no novo e também ao que exige um certo tempo para ser assimilado.

Às vezes há o que não vale a pena ser assimilado, então, vou buscar outras paisagens. Eventualmente não sabemos se vale ou não, então, a gente fica humilde e espera. Uma novidade (para mim) espantosa, narrada e confirmada em mais de um lugar no país, é dessas que não quero assimilar.

Se possível, enterrava numa cova funda, varrida para baixo de mil tapetes, fazia de conta que não existia: o sexo (ou simulacro de sexo) sem encanto, sem afeto, sem tesão, o sexo triste ao qual são coagidos pré-adolescentes, quase crianças, em famílias de classe média e alta. Essas que pensamos estar menos expostas às crueldades da vida.

Talvez eles não precisem comer lixo, correr das balas dos bandidos, suportar brutalidades e incestos, tanto quanto os mais desvalidos. Seu mal vem sob outro pretexto: o de ser moderno e livre, ser aceito numa tribo, causar admiração ou inveja. Cresce, que eu saiba, o número de meninas de 12 a 14 anos grávidas.

O impensável ocorre muitas vezes em festinhas nas quais se servem bebidas alcoólicas (que elas tomam, ou pagariam mico diante das amigas, e com essa desculpa convencem os pais confusos), não há nenhum adulto por perto (seria outro mico, e assim elas chantageiam os pais omissos), e ninguém imaginaria o que ia rolar.

Nessas ocasiões pode rolar coisa assombrosa sob o signo da falta de informação, autoridade e ação paternas. Nem sempre, mas acontece. Crianças bêbadas no chão do banheiro de clubes chiques, adultos cuidando para não sujar o sapato no vômito não são novidade (ambulância na porta, porque algumas dessas meninas ou meninos passam mal de verdade); quantas meninas consigo beijar na boca numa festinha dessas?

Em quantos meninos consigo fazer sexo oral? Sexo que vai congelando as emoções ou traz uma doença venérea, quem sabe uma absurda gravidez – interrompida num aborto, de sérias consequências nessa idade, ou mantida numa criança que vai parir outra criança.

"Roubaram a sexualidade desses meninos", me diz uma experiente terapeuta. Não deixaram tesão nem emoção, mas uma espécie de agoniado espanto, nessas criaturas inexperientes que descobrem seu corpo da pior maneira, ou aprendem a ignorá-lo, estimuladas ou coagidas por incredulidade ou fragilidade familiar, pelo bombardeio de temas escatológicos que nos assola na TV e na internet, com cenas grotescas, gracejos grosseiros em torno do assunto – "valores" e "pudor", palavras hoje tão arcaicas.

Efeito da pressão de uma sociedade imbecilizada pela ordem geral de que ser moderno é liberar-se cada vez mais, sem saber que dessa forma mais nos aprisionamos.

Precisamos estar na crista da onda em tudo, tão longe ainda da nossa vida adulta: sendo as mais gostosas e os mais espertos, desprezando os professores e iludindo os pais, sendo melancolicamente precoces em algumas coisas e tão infantilizados e ignorantes em outras, nisso incluindo nosso próprio corpo, emoções, saúde e vitalidade.

A nós, adultos, cabe não desviar os olhos, mas trabalhar na esperança (caso a tenhamos) de que nossos adolescentezinhos, às vezes ainda crianças, vivam de maneira natural essa delicada fase, e um dia conheçam o sexo com ternura, na tesão de sua idade – forte e boa, imprevista e imprevisível, com seu grão de medo e perigo, beleza e segredo.

Que essas criaturinhas sejam mais informadas e mais conscientes do que, muito mais protegidas que elas, nós éramos. Mas seguras e saudáveis, não precisando lesar sua bela e complexa intimidade com tamanha violência mascarada de liberdade ou brincadeira. Sobretudo, sem serem estimuladas a lidar de modo tão insensato com algo que pode lhes causar traumas profundos, ou anular um aspecto muito rico de sua vida.

É difícil, mas a gente precisaria inventar um movimento consciente, cuidadoso, responsável, contra essa onda sombria que quer transformar nossas crianças em duendes pornográficos, deixando feias cicatrizes, e fechando-lhes boa parte do caminho do crescimento e do aprendizado amoroso.


As razões do mal

A procuradora Vera Lúcia, acusada de torturar a menina que pretendia adotar, tenta justificar sua crueldade culpando a criança. Uma testemunha afirma que ela também batia na mãe. Como uma bruxa má, não demonstra nenhum arrependimento e sua lógica é a da desrazão

Ronaldo Soares e Roberta de Abreu Lima- Alessandro Buzas/Futura Press-

A PROCURADORA VERA LÚCIA admitiu ter chamado T.E. de "cachorra": "Ela estava se recusando a comer e ainda por cima sujava a roupa toda de leite. Perdi a paciência"


Vera Lucia de Santana Gomes

Os contos de fadas, cujos heróis enfrentam bruxas malvadas e lobos maus, inevitavelmente acabam bem. São uma forma de as crianças encararem e exorcizarem seus medos e angústias, dizem os psicanalistas. Mas, só no Brasil, há milhares de meninos e meninas que descobrem, desde muito cedo, que bruxas malvadas e lobos maus podem existir de verdade - e, pior, habitar a casa onde eles moram.

A procuradora aposentada Vera Lúcia de Sant’Anna Gomes, de 66 anos, é uma dessas bruxas malvadas de carne e osso. Presa de número 323 010 do Complexo Penitenciário de Bangu, no Rio de Janeiro, ela se entregou à polícia depois de passar oito dias foragida, acusada de torturar com frieza e fúria uma menina de 2 anos que estava sob sua guarda. Na semana passada, Vera Lúcia falou a VEJA.

Estava vestida com o uniforme das presidiárias - blusa branca de malha, calça azul e chinelos de dedo -, tinha o cabelo pintado de loiro em desalinho e as unhas cor de vinho. Com os olhos fixos e a voz exaltada, ela negou a série de maus-tratos de que é acusada de infligir a T.E., a menina que estava prestes a adotar - mas assumiu sem nenhum fio de remorso a humilhação a que submeteu a criança. "Chamei a garota de cachorra mesmo", afirmou. E acrescentou: "Mas chamar alguém de cachorro não é ofensa.

Os cães são mais amigos e leais do que muito ser humano por aí". Durante os 29 dias em que a pequena T.E. ficou sob os seus cuidados provisórios (os papéis para formalizar a adoção estavam correndo na Justiça), a procuradora a manteve trancafiada em um quarto. T.E., afirmam testemunhas, era alvo de xingamentos constantes e recebeu tantas surras que mal conseguia abrir os olhos, de tão inchados.

Foi nesse estado que representantes do conselho tutelar a encontraram quando foram à casa de Vera Lúcia, movidos por uma denúncia anônima. T.E. passou três dias no hospital para tratar dos ferimentos. Hoje, de volta ao abrigo de menores onde vivia, ela pouco come e quase não fala. Quando um estranho chega perto, assusta-se e foge.
Marcelo Piu/Ag. O Globo
BRUTALIZADA

Quase sem conseguir fechar os olhos inchados pelas agressões, a menina T.E. é transportada para o abrigo onde estava antes de ser levada por Vera

O que faz alguém ser capaz de cometer tamanha brutalidade? E, sobretudo, o que faz alguém capaz de tal brutalidade querer adotar uma criança? A monstruosidade da procuradora é identificada por especialistas como típica dos psicopatas.

Eles são capazes de entender intelectualmente a diferença entre o bem e o mal, mas não demonstram ter aquelas emoções que estão na base do senso moral das pessoas - como ilustra o caso de Vera Lúcia. "Ela não se compadece da dor alheia, não dá sinais de arrependimento e parecia ter prazer em subjugar a menina", afirma o psiquiatra Joel Birman.

Vários episódios na biografia da procuradora revelam essa agressividade. Uma amiga da família de Vera Lúcia contou que, certa vez, recebeu a visita da mãe da procuradora, Maria de Lourdes, que viveu com a filha até morrer, em 2004. Segundo essa amiga, Maria de Lourdes confidenciou-lhe que, quando se enfurecia, Vera Lúcia lhe dava "uns tapas". "Fiquei em choque", disse a mulher a VEJA. Em delegacias do Rio, há registro de quinze boletins de ocorrência envolvendo a procuradora. Um dos casos ocorreu em 2008, ano em que ela estava às voltas com outro processo de adoção.

Durante uma das visitas ao bebê, soube que a mãe havia desistido de entregá-lo (quatro anos antes, sua primeira tentativa de adoção tivera o mesmo desfecho). Raivosa, arrancou do recém-nascido as roupas que havia comprado.

Não satisfeita, fez denúncia caluniosa contra a mulher, a quem acusava de querer vender a criança. A delegada que colheu seu depoimento, Maria Aparecida Mallet, lembra: "Ela agia de forma prepotente e tentava me intimidar: ‘Sabe que eu sou procuradora do estado?’".

Proveniente de uma família do subúrbio carioca, filha de um médico e de uma dona de casa, Vera Lúcia nunca manteve laços estreitos com os parentes, tampouco com seus ex-colegas no Ministério Público Estadual, onde trabalhou durante quinze anos. "Era muito competitiva, dada a picuinhas, e se achava a dona da verdade. Ninguém queria ficar perto dela", resume um ex-chefe.

Depois que se aposentou, doze anos atrás, a procuradora passou a preencher o tempo com os animais de estimação (tem um poodle e dois gatos siameses), viagens de cruzeiro para o Nordeste e o tarô, que costumava jogar na internet para colegas de comunidades virtuais chamadas, nem tão ironicamente no seu caso, Caldeirão, Vassoura e Intuição e Magia Prática.

Na denúncia contra ela encaminhada à Justiça consta a suspeita de que faria parte de uma seita satânica. Uma testemunha conta que viu, em seu apartamento de 200 metros quadrados, no bairro de Ipanema, Zona Sul da cidade, vodus e bonecos com rosto desfigurado, ladeados por imagens de Buda e uma coleção de 150 baralhos de tarô. Era ali que a procuradora costumava ficar reclusa. Diz o seu sobrinho Carlos Ariosto: "Ela é tão fechada que não chegou nem a apresentar à família a menina que iria adotar".

DE VOLTA T.E., em foto recente, no abrigo de menores: ainda assustada, ela foge de desconhecidos


Casada duas vezes (uma delas com seu atual advogado, Jair Leite Pereira), Vera Lúcia optou por não ter filhos. Mas de seis anos para cá andava obcecada pela ideia de adotar uma criança. Chegou a escrever, no Orkut, a uma comunidade que reúne pretendentes à adoção:

"Quero finalmente formar a família que nunca tive". Seu objetivo declarado era ter a quem deixar sua pensão como procuradora, hoje de 23 000 reais, e os bens, entre os quais uma casa debruçada sobre a valorizada Praia de Geribá, em Búzios. Esse tipo de argumento normalmente desqualifica o candidato à adoção por não traduzir um desejo genuíno de maternidade.

Mas não é o único dado absurdo no processo que levou a procuradora a obter a guarda de T.E. A autorização do estado para que alguém com evidentes problemas psicológicos acolhesse uma criança em casa expõe as fragilidades da lei de adoção no Brasil - tanto a antiga, que vigorava quando Vera Lúcia conseguiu a autorização para adotar, quanto a atual (veja a reportagem).
Selmy Yassuda
PENSÃO DE 23 000 REAIS

Vera Lúcia diz que queria adotar para ter com quem deixar sua pensão e seus bens. Na foto, sua casa de praia em Búzios, com o muro pichado

Desde o dia em que chegou à casa da procuradora, no último 17 de março, T.E., a quem Vera Lúcia chamava de Bia, foi alvo de sua ira - segundo relatam as empregadas. "A patroa tapava o nariz da menina e enfiava a comida com a mão dentro de sua boca. Puxava o cabelo dela e a fazia bater a cabeça numa mesa de mármore com toda a força", conta Luzia de Almeida.

Aos berros, Vera Lúcia ainda xingava: "Prefiro mil vezes meus bichos a você, sua sem-vergonha. Você é safada igual à sua mãe". A mãe de T.E., que vive de bicos no Rio, teve a menina com um italiano que nunca a registrou como filha. Abandonou-a por duas vezes, mas hoje, sem se identificar, afirma: "Quero reaver a guarda da minha filha".

O quadro da menina preocupa os especialistas que a acompanham. Foram tantas as pancadas na cabeça que não se sabe se haverá sequelas neurológicas. Por decisão da Justiça, Vera Lúcia terá de custear o tratamento psicológico de T.E. e lhe pagar uma pensão mensal equivalente a 10% de seus rendimentos enquanto viver. Apesar da bruxa processada, não é um final de conto de fadas.


Os que teimam em sonhar, sonhar, sonhar



ENCONTRO UM livro no sebo de que sou freguês, um pouco adiante da estação de Putney Bridge, logo ali, e compro. Na verdade, levo três. Mas é sobre um que quero falar: Jules e Jim, do francês Henri-Pierré Roché.

Foi transformado num filme, hoje um clássico, por Truffaut, com o mesmo nome. Não poderia ser diferente. O que impressionou Truffaut, quando descobriu o livro, em 1955. foi exatamente o nome. A sonoridade, originalidade dele.

Basicamente, é a história de dois homens, Jules e Jim, que compartilham convicções, causas, charutos — e mulheres. Coisas de franceses.

Truffaut, fora o título, ficou impressionado com a idade de Roché. Era seu primeiro romance. Ele tinha mais de 70 anos. Jules e Jim passou despercebido. Os resenhistas não o notaram, e muito menos os leitores. Mas Truffaut, então ainda um jovem aspirante a cineasta, sim, e isso mudaria tudo.

O homem que começava a vida se aproximou do homem que a encerrava, unidos por um livro do qual um era o autor e outro um leitor. Roché tivera uma jornada movimentada ao longo dos anos. Seu círculo de amigos artistas era notável. Era muito amigo de Marcel Duchamp, e foi ele quem aproximou Picasso dos americanos quando o apresentou a Gertrud Stein.

Truffaut disse ao velho que pretendia filmar Jules e Jim.

Roché ficou entusiasmado. Tentou apressar o projeto do jovem amigo, até porque o tempo não corria a seu favor, mas não teve sucesso. Truffaut tinha sua agenda e suas prioridades. Quando Jules e Jim foi lançado, no final dos anos 50, Roché já estava morto.

Não viu o sucesso póstumo de seu romance desprezado ao chegar às livrarias. Por causa do filme, o livro foi traduzido em várias línguas. É uma história parecida com a do sueco Stieg Larsson, o autor da Trilogia Millennium. Uma estréia também tardia: 50 anos.

Mais cedo que Roché, é certo, mas mais tarde que quase todo romancista relevante. De Balzac a Flaubert, de Machado de Assis a Dostoievski, de Eça de Queiroz a Jorge Amado, de Tolstoi a Graham Greene, antes dos 30 o grande escritor já apresentou as armas.

E a notoriedade depois da morte.

NUNCA É CEDO DEMAIS NEM TARDE DEMAIS SEGUNDO ELE

Há um outro ponto comum entre ambos. Um detalhe não de todo insignificante. O nome Lisbeth, que não é tão comum assim. Lisbeth Salander, a hacker sociopata de tatuagens e piercings no corpo miúdo, é a razão maior do fenômeno da trilogia. Lisbeth, em Jules e Jim, é o nome de uma das filhas da mulher mais importante na vida de Jules e Jim. Lisbeth aqui, Lisbeth ali. Não me lembro de Lisbeth nenhuma em todos os demais livros que li em minha vida.

Mais que tudo, há uma beleza singular na história de Roché e Larsson. A capacidade de sonhar num momento da vida em que quase todos nós já somos cínicos e descrentes, e já aposentamos nossos projetos e ideais. Epicuro escreveu que nunca é cedo demais e nem tarde demais para começar nada, mas quem acredita nisso exceto sonhadores como Roché e Larsson?

Quando Susan Boyle disse, na primeira vez que apareceu na televisão, que queria ser cantora profissional, foi recebida com gargalhadas pela platéia. Tinha quase 50 anos. A recepção detestável do auditório, paradoxalmente, virou parte da glória de Susan Boyle.

O Jim de Roché, “alto e fino”, era ele mesmo. Assim como Mikael Blomqvist, de Larsson, é na essência autobiográfico, um jornalista de esquerda decidido a arriscar a vida no combate a vilões.

Truffaut prestou uma derradeira homenagem a Roché. O ator que interpretou Jim foi escolhido pela semelhança com Roché. Era alto e fino.


22 de maio de 2010 | N° 16343
NILSON SOUZA


Prazer, Geada!

Engajo-me irrestritamente neste exército antibullying que parece estar se formando em nosso Estado para combater, com a arma da conscientização, todas as formas de violência, maus-tratos e humilhações contra pessoas fragilizadas física ou emocionalmente. Não se trata de sair pelas ruas, praças e pátios de escolas caçando adolescentes agressivos.

Para isso existem as autoridades e os responsáveis pelas instituições de ensino. O que nos cabe, como voluntários de uma cultura de paz, é contribuir com exemplos, com a educação familiar e com atitudes que possam inspirar outros cidadãos a refletir sobre o tema – e a evitar o clima propício ao deboche, ao achincalhe e ao espezinhamento.

Apelidos, por exemplo.

Passei a vida toda sendo tratado por apelidos e nunca me importei com isso. Quando cursei Educação Física, no tempo em que ainda tinha cabelos brancos, era chamado de Geada pelos colegas e até mesmo por professores. Se algum dia parei para pensar no assunto, devo ter concluído que era um apelido simpático, poético até. Luiz Coronel que o diga: “Geada vestiu de noiva/ os galhos da pitangueira...”

Mas nem todos são assim: há apelidos preconceituosos, degradantes e excludentes. Por que dar trânsito a eles? Sabemos todos que há pessoas mais sensíveis a determinados rótulos, especialmente aos que se referem à sua aparência física, origem ou raça. O que custa perder uma piada para preservar o respeito pelo outro? Para saber se um apelido é ofensivo ou não, basta nos colocarmos no lugar de quem não está sendo tratado por seu verdadeiro nome.

Você gostaria de ser chamado de, digamos, Dunga? Do jeito que ele reage às perguntas quando é entrevistado, às vezes fica a impressão de que também não gosta. Mas o treinador da Seleção é, obviamente, um caso especial: um dia ele até pode ter rejeitado a comparação com o personagem da história infantil. Agora, com a fama internacional, o apelido passou a fazer parte de sua identidade.

Contam-se nos dedos, porém, os alcunhados que conseguem virar o jogo e transformar nomes depreciativos em identificação positiva. Apelido, na maioria das vezes, é uma marca infamante. Claro que existe um lado engraçado nisso.

Não há como ignorar a criatividade de algumas pessoas que se especializam em apelidar colegas de trabalho e de escola, ou mesmo desconhecidos. Porém, a coisa perde a graça quando causa constrangimento e deriva para a humilhação. Aí se torna inaceitável.

Vamos pensar seriamente nisso?

quarta-feira, 19 de maio de 2010



19 de maio de 2010 | N° 16340
MARTHA MEDEIROS


Doe palavras

Houve um tempo em que ser in era ser moderno, significava que você estava dentro, sabia das coisas. Os outros estavam out, por fora.

Usei menos de 140 caracteres para escrever as duas frases acima. Os famosos 140 caracteres que limitam as mensagens enviadas pelo Twitter, essa febre que tomou conta do mundo, para meu espanto. A troco de que as pessoas precisam anunciar, várias vezes ao dia, o que estão pensando ou fazendo?

Sei que estou na contramão de certos costumes, mas o fato de ficar de fora dessa ansiedade generalizada não me faz sentir antiga, ao contrário, me faz sentir avançada, e não estou falando de idade avançada, não aproveite a bola picando.

O fato é que a única ferramenta da qual deveríamos ser dependentes é a própria cabeça, que é quem determina se somos livres ou não. Podemos contar com diversas engenhocas eletrônicas, mas não a ponto de nos tornarmos reféns delas.

Vale pra tudo. Pessoas vestem roupas que não combinam com seu peso, altura, estilo, mas, como são peças da moda, é o que basta para instalar a obrigatoriedade de usá-las. O comércio é que mais lucra com essa necessidade descontrolada de consumir o que nos apresentam como novo, e que deprime os que não conseguem fazer parte da tribo dos descolados. Mas descolados de quê? Estamos cada vez mais aderentes, grudados, embolados na vida uns dos outros, iguais a todos. Sou de uma época em que a diferença é que nos destacava.

Mas não chego a ser um caso perdido, a tia aqui sabe que Twitter e outras parafernálias podem ser úteis. Tem gente que já encontrou carro roubado e filho sumido na noite graças a alguns torpedos. Nem todos os sucintos 140 caracteres com que andamos resumindo nossos pensamentos são descartáveis.

Um exemplo disso é a iniciativa tomada pelo Instituto Mário Penna, de Belo Horizonte, que trata de pacientes com câncer. Não revoluciona nada, mas ao menos dá um sentido a esse impulso de distribuir palavras.

O projeto é justamente esse: Doe Palavras. Você escreve uma mensagem de apoio aos doentes e ela é veiculada nos monitores internos do hospital, para que todos possam ler. Dei uma olhada no teor dessas mensagens e, a despeito de toda a boa intenção, elas me pareceram monótonas. Criatividade não dá em árvore, sabemos.

Os textos dizem sempre a mesma coisa: tenha fé, Deus está com você e blablablás que, repetidos à exaustão, perdem o efeito.

Mas se você é um twitteiro criativo, entre nessa campanha enviando frases divertidas, empolgantes, inteligentes, que façam a criatura que está lá, sofrendo em cima de uma cama, sentir-se viva, dar uma risada, ter ainda mais vontade de recuperar a saúde. Ânimo não cura, mas ajuda. Frases que fujam do marasmo, versos bons, refrões de música, pensamentos filosóficos, aforismos que façam pensar. Quando o cérebro é provocado, todo o corpo responde junto.

Se o prezado leitor também é um alienígena sem twitter, pode fazer isso através do site www.doepalavras.com.br. Você estará enviando as melhores vibrações para quem realmente precisa delas. Não que a gente não queira saber o que você jantou ontem e a quantas anda a gravidez da Juliana Paes, óbvio.

Uma gostosa quarta-feira para vc. Aproveite o dia.

terça-feira, 18 de maio de 2010



18 de maio de 2010 | N° 16339
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A balança e eu

Tem pessoas que, ao despertar, seu primeiro encontro é com os sonhos em que mergulharam. Há outras que pedem ao relógio mais alguns minutos de sono.

Já eu, me dirijo em disciplinada marcha batida em direção à balança. Em alguns segundos, acompanhando o rumo do ponteiro principal, descubro se emagreci ou se engordei.

Não é uma prática muito louvável. Existem maneiras mais diversas e mais recomendáveis para acordar. Você pode, por exemplo, fixar-se no canto dos pássaros, acompanhar a sinfonia com que um sabiá saúda a manhã. Você pode penetrar em pensamento na neblina que abraça a cidade e imaginar o sol que ela ciumentamente oculta. Você pode concentrar-se nos navios que singram nosso rio que é chamado de lago e devanear com seus incertos destinos pela rosa dos ventos.

Mas chega a hora em que, antes do banho, você lança um olhar ao dial da balança. É como um juiz de sua forma física.

A mim, ele tem poupado de condenações. Com um metro e 74 de altura, não vou além dos 67 quilos. Isso quer dizer que estou razoavelmente esbelto e deixei para trás as épocas em que me defrontava com 78 ou 82 quilos no mesmo exercício matinal.

Já é uma conquista de alguns anos. A que devo ela?

Acho que primeiro a um ritual que cultivei com toda a paciência e espírito esportivo. Trata-se de caminhar, a cada dia, não importa se esteja esplêndido ou apronte uma reprise do Dilúvio Universal, por estas calçadas de Porto Alegre.

Mas não é tudo. Tem ainda o departamento da alimentação. Meu desjejum é um copo de café com leite, guarnecido de duas fatias de pão light, levemente decoradas de requeijão também light. Ao almoço, encaro um prato reforçado de salada mista, uma quantidade comportada de arroz com feijão e um peito de frango grelhado ou um bife na chapa.

Há ainda outras incursões de livre escolha pelo território do trivial variado. Já pela metade da tarde, me presenteio com um sanduíche, de novo light, ou com uma salada de frutas. À noite me contento com um consomé, mas não dispenso dois cálices de vinho.

É pouco? Guardo minhas compensações. Os fins de semana são livres, como são igualmente as festas a que compareço, embora não esqueça nunca de que em meu dicionário consta a palavra moderação. O prêmio? Me sentir em minha idade com a alma tranquila e o coração leve.

Ainda que com chuva uma linda terça-feira para vc

sábado, 15 de maio de 2010


Claudio de Moura Castro

O parto do livro digital

"A canibalização do livro em papel dá calafrios nas editoras, embora as gravadoras tenham sido salvas pela venda digital"
Ilustração Atômica Studio

Não há razão alguma para uma pessoa possuir um computador em sua casa." Isso foi dito, em 1977, por K. Olsen, fundador da Digital. De fato, os computadores eram apenas máquinas de fazer contas, pesadas e caras.

Mas, com os avanços, passaram também a guardar palavras. Aparece então a era dos bancos de dados. Tal como a enciclopédia de Diderot – que se propunha a armazenar todos os conhecimentos da humanidade –, tudo iria para as suas memórias. Mas não deu certo, pois a ambição era incompatível com a tecnologia da época.

Os primeiros processadores de texto foram recebidos com nariz torcido pelos programadores. Um engenho tão nobre e poderoso, fingindo ser uma reles máquina de escrever?

Não obstante, afora os usos comerciais e científicos, o PC virou máquina de guardar, arrumar e recuperar textos, pois lidamos mais com palavras do que com números. Como a tecnologia não parou de avançar, acelerou a migração de dados para as suas entranhas. Por que não os livros? O cerco foi se apertando, pois quase tudo já é digital.

Para os livreiros, cruz-credo!, uma assombração. Guardaram na gaveta os projetos de livros digitais. Mesmo perdendo rios de dinheiro em fotocópias não autorizadas, a retranca persistiu. Havia lógica. Quem tinha dinheiro para ter computador preferia comprar o livro. Quem não tinha dinheiro para livro tampouco o tinha para computador. Mas o mundo não parou. Hoje os computadores são mais baratos é há mais universitários de poucas rendas.

O enredo se parece com o das gravadoras de música, invadidas pela pirataria, mas salvas pelos 10 bilhões de músicas vendidas pela Apple Store. Nos livros, a pirataria também é fácil. Por 10 dólares se escaneia um livro na China, e é incontrolável a venda de cópias digitais piratas, já instalada confortavelmente na Rússia.

Nesse panorama lúgubre para os donos de editora, entram em cena dois gigantes com vasta experiência em vender pela internet. A Amazon lança o Kindle (que permite ler no claro, mas não no escuro), oferecendo por 10 dólares qualquer um dos seus 500 000 títulos digitais e mais 1,8 milhão de graça (de domínio público). Metade das suas vendas já é na versão digital.

A Apple lançou o iPad (que faz mais gracinhas e permite ler no escuro, mas não no claro), vendendo 1 milhão de unidades no primeiro mês do lançamento. Outros leitores já estão no mercado. É questão de tempo para pipocarem nos camelôs as cópias chinesas. E, já sabemos, os modelos caboclos estão por aparecer. Quem já está usando – com o aval dos oftalmologistas – garante que não é sacrifício ler um livro nessas engenhocas. As tripas do Kindle engolem mais de 1 000, substituindo vários caixotes de livros.

Nesse cenário ainda indefinido, desponta uma circunstância imprevista. Com a crise, os estados americanos estão mal de finanças e a Califórnia quebrada, levando a tenebrosos cortes orçamentários. Para quem gasta 600 dólares anuais (por aluno) em livros didáticos, migrar para o livro digital é uma decisão fácil. Basta tomar os livros existentes e colocar na web. Custo zero? Quase. Um Kindle para cada aluno sai pela metade do custo.

O governador da Califórnia é o exterminador do livro em papel. Texas, Flórida e Maine embarcam na mesma empreitada, economizando papel, permitindo atualizações frequentes e tornando o livro uma porta de entrada para todas as diabruras informáticas. E nós, cá embaixo nos trópicos?

Na teoria, a solução pública é fácil, encaixa-se como uma luva nos livros didáticos, pode reduzir a cartelização e democratizar o acesso. Basta o governo comprar os direitos autorais e publicar o livro na web. Com os clássicos é ainda mais fácil, pois não há direitos autorais.

No setor privado, as perplexidades abundam. Alugar o livro, como já está sendo feito? Não deu certo vender caro a versão digital. Vender baratinho? A canibalização do livro em papel dá calafrios nas editoras, embora as gravadoras tenham sido salvas pela venda digital. Muda a lógica da distribuição. Tiragens ínfimas passam a ser viáveis.

O contraponto é o temível risco de pirataria. Não há trava que não seja divertimento para um bom hacker. Na contramão desses temores, Paulo Coelho se deu bem, lançando seu último livro gratuitamente na internet, junto com o lançamento em papel. Cava-se um túmulo para as editoras e livrarias? Vão-se os anéis e ficam os dedos? Ou abre-se uma caixa de Pandora fascinante? Só uma coisa é certa: o consumidor ganha.

Claudio de moura castro é economista


Nas barbas da justiça



O PT descobriu que o crime eleitoral compensa e que pode continuar usando impunemente a máquina e Lula na propaganda da candidatura oficial

Milhões de brasileiros assistiram na semana passada ao programa do PT. Durante dez minutos, foram apresentados detalhes da biografia da ex-ministra Dilma Rousseff, algumas de suas ideias e opiniões. Entremeado com números sobre as realizações do governo Lula, o programa mostrou também o presidente narrando a emoção que sentiu no dia em que conheceu a ministra.

"E um belo dia, em 2002, entra na minha sala uma mulher com um laptop na mão (...). Quando terminou a reunião, me veio na cabeça a certeza de que eu tinha encontrado a pessoa certa pro lugar certo."

Em uma daquelas inacreditáveis coincidências, minutos antes de o programa ir ao ar, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) colocou em julgamento uma reclamação contra outro programa do PT, exibido em dezembro, que teria usado o espaço para promover ilegalmente a candidatura de Dilma Rousseff.

O resultado é que o partido perdeu o direito de veicular seu próximo programa nacional e terá de pagar multa de 20 000 reais. Dilma também foi multada em 5 000 reais. A sentença, no papel, foi dura. Mas seu efeito prático é um deboche.

O anúncio da condenação, na noite de quinta-feira, ocorreu uma hora e meia depois de o partido exibir um novo programa que, não fosse a demora da decisão judicial, nem poderia ter ido ao ar. A Justiça tarda mas não falha, certo? Errado. A decisão só vai ter impacto no ano que vem, quando a eleição presidencial estará decidida. A Justiça Eleitoral tardou e falhou.

A demora do tribunal em analisar o caso adiou a punição para 2011 e permitiu que o PT exibisse cenas eleitorais ainda mais explícitas que as condenadas pelo TSE. Ao lado de Dilma, Lula apontou sua candidata como a responsável pelo sucesso do governo e sugeriu que ela é a única capaz de continuar sua obra.

O programa foi visto por mais da metade dos brasileiros que estavam com a televisão ligada. "A relação custo-benefício do desrespeito à lei foi totalmente favorável ao PT", diz Alberto Rollo, especialista em legislação eleitoral. O desprezo que se vê às regras eleitorais não pode ser creditado apenas à notória lentidão da Justiça.

Pela legislação em vigor, as campanhas começam somente em julho, depois das convenções partidárias que oficializam os candidatos. Antes disso, como não há candidato, também não há punição para quem infringir a lei, como Lula e a campanha de Dilma vêm fazendo. Ou seja, além de lenta, a Justiça é frouxa na hora de punir. A maior pena já aplicada por campanha antecipada, de 20 000 reais, é irrisória se comparada ao que está em jogo em uma campanha presidencial.

A prova de que crime eleitoral compensa pode ser vista no comportamento do presidente da República. Nos últimos dois anos, Lula participou de mais de 400 eventos públicos. Dez resultaram em investigação do TSE. Cinco já foram arquivados, três ainda não foram analisados e dois levaram o tribunal a multar o presidente. Nesse período, porém, Dilma deixou de ser uma desconhecida do eleitorado para se tornar uma candidata viável, com quase 30% das intenções de voto.

Ou seja, a antecipação da campanha, apesar de criminosa, foi vital para a candidata de Lula. Na semana passada, um dia antes de o TSE condenar o PT a uma pena sem efeito, o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos e o advogado-geral da União Luís Adams se reuniram para avaliar os riscos da associação entre o presidente e a campanha do PT. Concluíram que, por enquanto, não há problema incontornável. A preocupação deve aumentar apenas depois de a candidatura de Dilma ser lançada oficialmente, em junho.

Ao se levar a avaliação dos advogados ao pé da letra, tudo indica, portanto, que Lula seguirá usando o cargo em benefício de sua candidata. As próximas pesquisas de intenção de voto é que vão dizer se a lei será mais ou menos respeitada.

O ministro do TSE Marco Aurélio Mello é um dos mais incomodados com as ilegalidades. Ao votar pela punição ao PT na semana passada, ele anotou: "Confesso que, tendo pisado neste tribunal em 1991 e tendo assumido a presidência em duas eleições, jamais me defrontei com algo tão escancarado".

Ruth de Aquino

Os homens, o amor e a fidelidade

Não existe homem fiel. Uma afirmação tão categórica desperta reação indignada. “Ah, o meu marido é fiel, tenho certeza.” “Nunca traí minha mulher, eu a amo.” Entre essas convicções, existe um oceano de nuances. Como definir a infidelidade?

Frequência dos casos, envolvimento sentimental, distância geográfica e o nome da amante – tudo conta? Segundo uma psicóloga francesa, a fidelidade masculina é tão rara que a mulher deveria parar de se preocupar: “O homem costuma trair também quando ama”.

Autora de Les hommes, l’amour, la fidélité, livro recente ainda não editado no Brasil, Maryse Vaillant não se baseou em estatísticas, mas em dezenas de entrevistas. Sua preocupação não foi quantificar infiéis ou traídas. Mas entender por que os homens têm muito mais aventuras – e o que isso tem a ver com amor ou desamor. Seriam eles eternos meninos, pulando a cerca sempre que a cerca fosse irresistível?

“Eu gostaria sobretudo que as mulheres parassem de pensar que a culpa é delas quando seu homem as trai. As mulheres não são responsáveis pela libido dos homens”, me disse Maryse numa conversa em Paris. “Não sugiro que elas devam ser mais tolerantes com as pequenas infidelidades do marido. Cada mulher é de um jeito e sabe o que é essencial com o homem ou os homens de sua vida. Não existe uma norma.”

No livro, conhecemos Ben, “o monogâmico infiel e mentiroso que só ama sua mulher oficial”. É um perfil bem comum. Adora a mulher e os filhos, idolatra a família, valoriza o trabalho. Mas não se imagina abdicando de seus casos sexuais, nunca amorosos. Nada que ameace a família ou magoe a mulher. É discretíssimo, mais cuidadoso ainda nestes tempos de internet. Ele se casou para toda a vida. As outras só importam porque o fazem se sentir atraente e vivo. Ben não se considera infiel.

Outros perfis de homens: o polígamo ansioso, que quer ir para a cama com todas. Liberdade sim, casamento nunca. “Esse homem imaturo é cada vez mais frequente, mas especialmente na juventude”, diz Maryse. Só que alguns jamais passam desse estágio. Ou passam, mas voltam sôfregos à ativa muito depois, com a ajuda de medicamentos e a ingenuidade da velhice.

Para uma psicóloga francesa, os homens fiéis são tão raros que a mulher nem deveria se preocupar

Há os infiéis crônicos, que se apaixonam também pelas amantes. “Esses continuam a aumentar – junto com os divórcios. Associam casamento à paixão e vão buscando outras eternamente. São homens meio perdidos que acham que só as mulheres podem ajudá-los a crescer e amadurecer.”

Existem os fiéis cativos e obsessivos, mas “esses têm ciúme até do passado da mulher e podem se tornar violentos”. Por fim, o espécime raro e sonhado por tantas mulheres: “o fiel por alegria e convicção”. Seria um perfil mais comum entre casais de meia-idade, que começam uma relação madura e plena após alguns insucessos.

Não há novidade no fato de que homens traem mais que mulheres – e mais por sexo que por amor. É um traço cultural, mas eles também se sentem mais livres por não engravidar nem dar à luz. Isso tudo nós já sabemos, e alguns de nós já enfrentamos com mais ou menos inteligência, valentia e sofrimento.

O livro é mais provocador ao admitir a infidelidade breve e discreta como experiência salutar e até necessária ao sucesso de alguns casamentos. “Neste caso, a infidelidade não é uma prova de amor ou desamor, mas uma prova de liberdade.”

E para a mulher? “Para algumas mulheres, que conseguem separar sexo de sentimento, o mesmo ocorre. Mas a maioria delas tem outras prioridades, como o casal e a família”.

Perguntei a dois amigos casados se um homem pode ser fiel por longos anos a uma única mulher. “É possível, mas dói”, respondeu um. “Não existe homem mais fiel do que eu”, disse o outro. “Ahn, aquele caso? Aquilo só foi uma escorregadela.”

Maryse queria que as mulheres sofressem menos depois de ler o livro. Que soubessem que nunca poderão impedir uma traição se tiver de acontecer. Que jamais terão controle sobre a libido de seus homens, por mais que os fiscalizem. Que, se forem traídas, não significará que não são amadas. Será que serve de consolo? Melhor relaxar... e – quem sabe? – experimentar.


15 de maio de 2010 | N° 16336
NILSON SOUZA


Nunca é tarde

A Alice do filme é bem diferente da menininha da história original de Lewis Carrol, que encantou muitas infâncias. Da minha, lembro-me bem de ter visto num livro antigo a gravura do coelho branco, com um relógio maior do que ele, repetindo incessantemente na legenda:

– É tarde! É tarde!

Pois agora encontrei na tela do cinema uma Alice saindo da adolescência, quase mulher, fugindo do casamento arranjado para o subsolo desconhecido dos desafios humanos – onde ocorrem a aventura e a transformação. Gostei do filme. Sei que os críticos andam torcendo o nariz para a fantasia do diretor Tim Burton, que teria transformado os personagens do escritor britânico em manequins coloridos, mas sem alma.

Não vi assim. E nem as crianças que estavam na mesma sessão, pois várias delas largaram os sacões de pipoca para aplaudir a dança do Chapeleiro Maluco. Quando as crianças aplaudem espontaneamente um lance, o jogo está ganho. E elas voltaram a aplaudir no final, num atestado sonoro e definitivo do encanto do espetáculo.

Gostei, principalmente, porque Alice espalha mensagens orientadoras em três dimensões, desde a chave esquecida sobre a mesa na hora em que a personagem encolhe até a simbólica mutação da garota atormentada por um sonho em mulher independente e decidida. Influenciado pelo aplauso das crianças, dei nota 9 para o filme quando a menina-dos-meus-olhos me questionou ao final.

Também ela já começa a deixar a adolescência para trás. Depois, em outro momento de nosso cotidiano, aproveitei o conhecimento recíproco para adverti-la amavelmente num momento de distração:

– Cuidado para não esquecer a chave em cima da mesa!

Metaforicamente, Alice e o seu país de maravilhas subterrâneas também nos fazem encolher e crescer a cada cena. O cinema tem esse poder envolvente de nos transportar para outros mundos, para outras épocas e para outras formas de ver a vida. A sala escura é um pouco como a toca do coelho, imaginada pelo reverendo escritor há quase 150 anos: nunca se sai dela o mesmo.

Saí de Alice pensando no tempo que a gente perde na vida quando deixa de lado coisas simples como levar a criançada ao cinema numa tarde de sábado. Quase sempre temos coisas mais importantes a fazer, trabalhos, compromissos sociais, tarefas inadiáveis.

Quando nos damos conta, estamos transformados em coelhos apressados, consultando o relógio nervosamente e correndo para chegar a lugar nenhum. Mas sempre dá para encontrar o caminho de volta.

E, se mantivermos um resquício de fantasia no coração, nunca é tarde.

quarta-feira, 12 de maio de 2010



12 de maio de 2010 | N° 16333
MARTHA MEDEIROS


A dificuldade em ser original

Com tanta coisa acontecendo no mundo, deve ser moleza arranjar assunto fresquinho para escrever. Foi o que me disseram outro dia, e me flagrei pensando: quem dera.

Recebemos uma overdose de informação, mas isso não significa que os acontecimentos sejam surpreendentes a ponto de fazer a festa dos colunistas. É leite tirado de pedra diariamente. Como ser original quando tudo se repete e repete e repete?

O Brasil inteiro está comentando a lista de convocados pelo Dunga, uns o criticando, outros o absolvendo, e daqui a um mês uma nova Copa começará em que nossa seleção terá boa chance de vencer, e alguma de perder. Já não passamos por isso antes, igualzinho?

Questões envolvendo a extradição de um criminoso, ataques sangrentos no Iraque, crise nas Bolsas de Valores, barreiras comerciais afetando a relação entre países, alerta para chuva forte, violência nas estradas. Mais do mesmo.

Atos insanos surgem aqui e ali, nos escandalizando por alguns dias, fazendo com que discutamos sobre mentes doentias e a necessidade que tantos têm de espetacularizar a própria história, e então, passado o susto, viramos a página.

Crises econômicas, conflitos religiosos, garotos matando colegas de aula, veteranos do esporte tentando se manter na ativa, casamentos e separações de celebridades, campanhas eleitorais, denúncias de corrupção, tendências da moda outono-inverno, cantores adolescentes que viram ídolos instantâneos, últimos capítulos de novela. O que ainda suspende a nossa respiração?

Tivemos recentemente a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, que foi um acontecimento histórico. Depois esfriou. O que temos de quente, pra hoje, são as preocupantes ameaças ambientais ao planeta, em especial o vazamento de óleo no Golfo do México e um vulcão ativo que tem causado transtornos no Hemisfério Norte, mas isso já não é notícia de ontem?

Cada vez que sento diante do computador, nada me parece moleza. O que é que ainda falta dizer? O que ainda nos deixa perplexos? Como ofertar um pouco de originalidade ao leitor? Que pretensão. Desde o 11 de setembro de 2001 que o mundo não tem sido original. Não que eu deseje que atentados dessa magnitude se repitam: já bastam os homens-bomba, que viraram rotina.

É só um desabafo: hoje, os absurdos se sucedem em escala industrial e os fatos novos são como mariposas, nascem e morrem no mesmo dia.

Por essas e outras, persevero no trivial, que, contrariando sua natureza, passou a ser o inusitado da vida.

Uma ótima quarta-feira. Ainda que com chuva tenha um lindo dia. Aproveite.

terça-feira, 11 de maio de 2010



11 de maio de 2010 | N° 16332
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Manhã de domingo

Tem alguns que preferem um feriado ou um sábado, mas para mim não há mais perfeito sinônimo de serenidade do que uma manhã de domingo. Tu lês os jornais do dia, as revistas da semana, pensas vagamente onde irás almoçar, escutas músicas de tua particular estima e consideração.

Da rua te soam o canto dos pássaros, a tranquila conversação de pessoas que não têm pressa, o latir amigo desses pequenos cães que saem a passear seus donos. Das redondezas chegam vozes e um aroma de churrasco bem temperado.

Se é um princípio de outono, o dia se desnuda cedo de uns traços de neblina e abre caminho a uma paisagem feita da claridade de um céu civilizado. O ar torna-se límpido e a atmosfera, transparente. É como se vivesses em latitudes europeias, com quatro estações bem demarcadas.

De algum andar incógnito te alcançam os tons e as harmonias de um piano e te inspiram pensamentos de paz. E te recordas de um outro piano, de uma das casas em que moraste, e dos acordes que dele recolhiam pessoas que partiram ou que o carrossel da vida extraviou.

São estranhas as múltiplas vidas contidas em tua própria vida. Sentes falta delas, mas não há remédio conhecido para a saudade. Mas saudade é uma palavra revestida de ternura e em sua síntese se parece com as órbitas de astros dispersos e no entanto ordenados em sua intrínseca harmonia.

Pegas um livro e, à medida que o folheias, sentes que fala de ti. Fala de teus sonhos e de teus desejos e de tuas recordações e de teus anseios e de certas pessoas que prezas e que gostarias de rever. Fala de teus projetos, não os irrealizados, mas aqueles que vais simplesmente adiando, pelo simples gosto de tê-los.

Ligas o computador e vais digitando as teclas e as telas, até chegar no capítulo dos e-mails. E ali está à tua espera uma branda mensagem, a que ainda não sabes como responder. Escreves algumas linhas de improviso, receoso de que não é isso que querem ouvir de ti.

É quando pousa em uma das sacadas o pássaro azul ao qual não aprendeste a dar um nome. É um pássaro incerto, pois vem sem data e sem aviso e jamais apresenta sua carteira de identidade. Cumprimenta-te brevemente e ganha os espaços de sua circunstância.

É aí que toca pela primeira vez o som de um celular.

Uma ótma terça-feira para vc ainda que com chuva como continua por aqui.

sábado, 8 de maio de 2010



09 de maio de 2010 | N° 16330
MARTHA MEDEIROS


Duas histórias sobre mães

Nem todas as mães nascem com o dom da abnegação, e nem por isso são pessoas más, apenas não alcançaram a dimensão da entrega necessária para criar outro ser humano

Essa semana, duas leitoras me mandaram depoimentos pessoais que dividirei com vocês, mas com nomes fictícios. Um foi assinado por Anita, que me contou que, numa loja, foi atendida por uma balconista jovem e humilde que comentou ter quatro filhos, e que pretendia partir para o quinto.

Anita, mesmo correndo o risco de ser indiscreta, perguntou se o salário dela comportava o sustento de cinco crianças, no que a balconista respondeu: Ora, elas têm pai. Anita não se conteve e declarou: Acho que uma mulher pode ter tantos filhos quantos ela conseguir sustentar sozinha.

Diz Anita que a balconista ficou perplexa, e talvez muitas outras mães também fiquem, mas foi corajosa e realista a sua observação. Marido não é seguro-desemprego, não vale por uma previdência privada. No caso de uma separação, claro que ele terá obrigação de dividir as despesas relacionadas aos filhos, mas, infelizmente, sabemos que nem sempre a coisa se dá com essa civilidade.

Alguns pais não podem ou não querem arcar com seus deveres e transferem a responsabilidade para quem manteve a guarda. Enquanto a briga é decidida na justiça, as crianças ficam desassistidas. A questão é que podemos ter quantos filhos desejarmos, desde que não transformemos o sonho romântico de ser mãe numa dívida impagável com nossos filhos e com a sociedade.

O segundo depoimento veio de uma senhora chamada Vânia que me contou que passou a vida escutando sobre como as mães são amorosas e perfeitas, mas a dela não foi nada disso. Era uma mãe desatenta, egoísta e sem o menor talento para o ofício. Vânia deve ter motivo para tanta mágoa, já que hoje sua mãe está com 95 anos, tem câncer no cérebro, e nem assim Vânia consegue perdoá-la. E se culpa, porque reconhece que já deveria ter virado essa página.

Se sua mãe não lhe causou nenhum dano concreto, se apenas não foi a mãe sacralizada que você dava como certo que teria, tente mesmo perdoá-la, Vânia. É provável que você mesma já seja mãe e saiba que há sobre todas nós uma cobrança descabida.

Se o erro dela foi ter pensado mais em sua própria carreira, em seus próprios amores, em sua própria felicidade, ainda assim, antes de ser condenada, merece ser compreendida, porque é preciso reconhecer que nem todas nascem com o dom da abnegação, e nem por isso são pessoas más, apenas não alcançaram a dimensão da entrega necessária para uma tarefa desse porte: criar outro ser humano.

Entre os cinco filhos da balconista que atendeu Anita pode haver algum que irá julgar a mãe uma inconsequente, caso ela não consiga bancar as necessidades básicas de todos os irmãos, e os filhos de Vânia talvez um dia a cobrem por ter passado a vida amargurada com a avó deles.

Por trás das cortinas desse espetáculo chamado maternidade, há muito desajuste e muito rancor por conta de uma idealização excessiva. Mãe não tem superpoderes. Se tiver juízo, já está bom demais.

Lindo domingo, especialmente para você que é mãe ou será um dia.


Parece até ficção

A série policial Millennium, criada pelo sueco Stieg Larsson, é um legítimo evento cultural. Mas seu autor morreu antes de vê-lo acontecer

Isabela Boscov
Fotos Divulgação e Jan Colsioo/AP
DOIS HOMENS EM UMA MISSÃO


Michael Nyqvist, em cena do filme, no papel do jornalista engajado Blomkvist, e o autor Larsson, que dedicou a carreira a patrulhar a ultradireita: expor o que os outros não querem ver é dever do ofício


Stieg Larsson não era sujeito de fazer nada pela metade. Quando o jornalista sueco decidiu virar romancista, primeiramen-te elaborou sinopses detalhadas para cada um dos dez livros de uma série policial – todos protagonizados pelo jornalista Mikael Blomkvist e pela investigadora particular Lisbeth Salander. Então escreveu até o fim os dois volumes iniciais.

Só aí pensou em publicá-los: Larsson escrevia depois dos longos expedientes na redação da Expo, a revista que fundou e que mal conseguia sustentar, e de início não estava seguro de que a obra teria pernas para ir longe. Mas, à medida que a série foi tomando forma, constatou que ela poderia ser a porta para uma vida diferente. Estava certo.

Assim que o primeiro livro, Os Homens que Não Amavam as Mulheres, foi lançado na Suécia, um pequeno culto começou a se formar em torno dele – e em particular em torno da antissocial, tatuada, lacônica, magérrima, perturbada e ocasionalmente violenta Lisbeth Salander, uma moça de 24 anos e inteligência brilhante, mas que a maioria das pessoas julga ser retardada, tal a carapaça com que ela se protege.

Larsson, porém, não conheceu a popularidade de sua personagem. Em 9 de novembro de 2004, antes que o primeiro volume tivesse chegado às livrarias, o autor viu que o elevador do prédio de Estocolmo onde funcionava a Expo estava quebrado. Pegou as escadas – e, na subida, sofreu um infarto. Morreu aos 50 anos, morando de aluguel e quase sem dinheiro. Havia acabado de entregar as provas do terceiro volume à editora e ia pela metade do quarto episódio.

Conhecida como Millennium, em referência à revista da qual o personagem Mikael Blomkvist é editor, a decalogia que a morte prematura de Larsson reduziu a trilogia já vendeu cerca de 28 milhões de exemplares em mais de quarenta países – números que qualificam a série como um legítimo fenômeno editorial. (No Brasil, o trio completado por A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar e publicado pela Companhia das Letras soma até aqui 280 000 cópias vendidas, um colosso para o padrão nacional.)

Os proventos desse êxito vêm se expandindo velozmente em outro território ainda: o do cinema. Nesta sexta-feira, estreia no Brasil o filme baseado no primeiro volume, Os Homens que Não Amavam as Mulheres (Män som Hatar Kvinorr, Suécia/Dinamarca/Noruega/Alemanha, 2009), com uma recomendação expressiva dos europeus: 90 milhões de dólares de bilheteria no continente.

O suspense é uma reprodução fiel do enredo de Larsson. Fidelíssima, aliás. Muitos dos diálogos entre Blomkvist e Lisbeth (os suecos Michael Nyqvist e Noomi Rapace) são reproduzidos tal e qual aparecem na página. A excisão de pequenas passagens que não caberiam nas duas horas e meia de projeção foi feita com bisturi – é palpável o receio do diretor dinamarquês Niels Arden Oplev de desagradar aos fãs.

Nos três enredos deixados por Larsson, assim como na maioria dos romances policiais publicados hoje em dia – o gênero vem passando por uma forte revitalização criativa –, o "quem fez" é quase um pretexto. As revelações de fato perturbadoras são de outra ordem: estão na venalidade, na brutalidade e na imoralidade que se encontram logo abaixo até das superfícies mais lustrosas.

Revirar esses monturos que a maioria preferiria ignorar é o trabalho do jornalista, por dever e convicção (e Blomkvist é sem dúvida o alter ego de Larsson); e é a missão da investigadora, porque ela própria é uma vítima da indiferença do sistema.

Declarada legalmente incompetente, em razão de sua presumida instabilidade psíquica, Lisbeth a certa altura é seviciada pelo tutor que deveria protegê-la. Como sua palavra não vale, resolve a questão por meios próprios, e chocantes.

Larsson, assim, é um dos muitos autores contemporâneos que vêm levando o policial em uma volta completa até o seu ponto de partida, na era vitoriana, como uma expressão de mal-estar em face de um mundo que se transfigurava muito rapidamente, de perplexidade diante do mal que as pessoas ocultam e de fascínio com aqueles que têm a habilidade de ver o que os outros não enxergam – os detetives, como Blomkvist e Lisbeth.

A série Millennium desperta paixões. O crítico Mark Lawson, do jornal inglês The Guardian, observou que, na praia, no verão europeu, quase todos os turistas tinham um dos livros em mãos, tornando a leitura algo próximo de uma experiência coletiva.

A trilogia tem ingredientes poderosos para atrair assim: não só a maneira como repercute com seu tempo e a figura tão solitária de Lisbeth, como a aura de um escritor quixotesco que foi vingado postumamente pelo sucesso – mais as teorias conspiratórias segundo as quais ele teria sido assassinado por uma das organizações neonazistas que patrulhava.

Em uma coincidência infeliz, porém, também abaixo dessa superfície sedutora se desenrolam intrigas amargas. Comunista de terceira geração que nunca abandonou suas convicções e que, com a revista Expo, se dedicava a desmascarar as ações da ultradireita, Larsson tinha ganhos modestíssimos e jamais viu motivo para deixar um testamento.

Na década de 70, fez um documento sem valor legal que parece ser fruto de um impulso simbólico, já que nele legava todas as suas posses a uma entidade de esquerda. Como essas posses eram então inexistentes, é compreensível que o documento não contemplasse Eva Gabrielsson, com quem Larsson morou durante mais de trinta anos, até sua morte.

Eva e o escritor não se casaram, por temor de que seu endereço viesse assim a constar de arquivos públicos e facilitar as ameaças de morte que sofriam por parte dos alvos de Larsson.

Quando ele sucumbiu aos dois maços diários de cigarros, ao sedentarismo e ao stress crônico, deixou Eva a descoberto: a lei sueca não reconhece uniões informais. Sem testamento, seu espólio foi transmitido para seu pai e seu irmão. E, ao mesmo tempo em que o culto à série se iniciava, começou também uma batalha feia nos tribunais pelos direitos sobre as obras.

Eva finca os calcanhares, com um argumento de força: um laptop com cerca de 200 páginas prontas do quarto livro, o que Larsson deixou inacabado, e que poderia vir a ser completado e publicado. Como Lisbeth Salander, a viúva do escritor foi trapaceada pelas regras – mas tenta se defender com os meios que tem à mão.
Divulgação


À PRÓPRIA SORTE
A perturbada e estranha Lisbeth, que é seviciada por seu tutor (Peter Andersson): uma personagem obrigada a se defender das regras que deveriam servir para protegê-la.

Lya Luft

A canção de qualquer mãe

"Filhos, vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei ou mereci ou imaginei ter"

Ilustração Atômica Studio


Que nossa vida, meus filhos, tecida de encontros e desencontros, como a de todo mundo, tenha por baixo um rio de águas generosas, um entendimento acima das palavras e um afeto além dos gestos – algo que só pode nascer entre nós.

Que quando eu me aproxime, meu filho, você não se encolha nem um milímetro com medo de voltar a ser menino, você que já é um homem. Que quando eu a olhe, minha filha, você não se sinta criticada ou avaliada, mas simplesmente adorada, como desde o primeiro instante.

Que, quando se lembrarem de sua infância, não recordem os dias difíceis (vocês nem sabiam), o trabalho cansativo, a saúde não tão boa, o casamento numa pequena ou grande crise, os nervos à flor da pele – aqueles dias em que, até hoje arrependida, dei um tapa que ainda agora dói em mim, ou disse uma palavra injusta. Lembrem-se dos deliciosos momentos em família, das risadas, das histórias na hora de dormir, do bolo que embatumou, mas que vocês, pequenos, comeram dizendo que estava maravilhoso.

Que pensando em sua adolescência não recordem minhas distrações, minhas imperfeições e impropriedades, mas as caminhadas pela praia, o sorvete na esquina, a lição de casa na mesa de jantar, a sensação de aconchego, sentados na sala cada um com sua ocupação.

Que quando precisarem de mim, meus filhos, vocês nunca hesitem em chamar: mãe! Seja para prender um botão de camisa, ficar com uma criança, segurar a mão, tentar fazer baixar a febre, socorrer com qualquer tipo de recurso, ou apenas escutar alguma queixa ou preocupação.

Não é preciso constrangerem-se de ser filhos querendo mãe, só porque vocês também já estão grisalhos, ou com filhos crescidos, com suas alegrias e dores, como eu tenho e tive as minhas. Que, independendo da hora e do lugar, a gente se sinta bem pensando no outro. Que essa consciência faça expandir-se a vida e o coração, na certeza de que aquela pessoa, seja onde for, vai saber entender; o que não entender vai absorver; e o que não absorver vai enfeitar e tornar bom.

Que quando nos afastarmos isso seja sem dilaceramento, ainda que com passageira tristeza, porque todos devem seguir seu caminho, mesmo que isso signifique alguma distância: e que todo reencontro seja de grandes abraços e boas risadas.

Esse é um tipo de amor que independe de presença e tempo. Que quando estivermos juntos vocês encarem com algum bom humor e muita naturalidade se houver raízes grisalhas no meu cabelo, se eu começar a repetir histórias, e se tantas vezes só de olhar para vocês meus olhos se encherem de lágrimas: serão apenas de alegria porque vocês estão aí.

Que quando pareço mais cansada vocês não tenham receio de que eu precise de mais ajuda do que vocês podem me dar: provavelmente não precisarei de mais apoio do que do seu carinho, da sua atenção natural e jamais forçada. E, se precisar de mais que isso, não se culpem se por vezes for difícil, ou trabalhoso ou tedioso, se lhes causar susto ou dor: as coisas são assim.

Que, se um dia eu começar a me confundir, esse eventual efeito de um longo tempo de vida não os assuste: tentem entrar no meu novo mundo, sem drama nem culpa, mesmo quando se impacientarem. Toda a transformação do nascimento à morte é um dom da natureza, e uma forma de crescimento.

Que em qualquer momento, meus filhos, sendo eu qualquer mãe, de qualquer raça, credo, idade ou instrução, vocês possam perceber em mim, ainda que numa cintilação breve, a inapagável sensação de quando vocês foram colocados pela primeira vez nos meus braços: misto de susto, plenitude e ternura, maior e mais importante do que todas as glórias da arte e da ciência, mais sério do que as tentativas dos filósofos de explicar os enigmas da existência.

A sensação que vinha do seu cheiro, da sua pele, de seu rostinho, e da consciência de que ali havia, a partir de mim e desse amor, uma nova pessoa, com seu destino e sua vida, nesta bela e complicada terra. E assim sendo, meus filhos, vocês terão sempre me dado muito mais do que esperei ou mereci ou imaginei ter.


O fascínio do estupro

O que leva o cinema a investir na violência sexual
Luís Antônio Giron

Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV

O cinema tem conjugado sexo e crueldade como nunca. Não me refiro à pornografia, mas aos filmes de autor, aqueles que transportam o espectador a um outro plano, exigindo-lhe reflexão e atitude sobre o que se passa diante de seus olhos. Sequências “autorais” envolvendo sexo, perversão e violência sexual andam ganhando mais adeptos, tanto de quem está atrás das câmeras, como da plateia.

A tolerância do público a certas modalidades de tabus parece maior, talvez porque os espectadores as vivenciem no cotidiano. Os cineastas não fazem mais que espelhar – e não raro refratar – a imagem que têm do mundo.

Não há inocentes em tal jogo. Há um desejo das audiências e outro de agradar a estas. Assuntos que soavam insuportáveis cinquenta anos atrás hoje são vistos como rotineiros. É preciso então avançar e forçar limites. Que razão há para tamanha obsessão transgressiva? Responder que talvez seja porque não haja mais a figura da transgressão é errado. Não fosse ainda um tabu, não chamaria atenção, não lotaria as salas e não resultaria em grandes bilheterias.

Todo mundo sabe que basta estampar a palavra “sexo” em um anúncio, que aparece gente interessada. E o cinema é, entre as artes, o maior campo de testes dos instintos mais básicos do espectador. Então lanço uma questão constrangedora: será que se avançaram os limites até o ponto de sexo e violência se acoplarem e assim fazer com que hoje o estupro no cinema passe por atração erótica?

Mas é preciso responder à pergunta de modo lento, para não ferir suscetibilidades. Comecemos pela história. Desde que surgiu, a arte da imagem em movimento tem mostrado cenas fortes. Vamos lembrar cenas de exibicionismo e luxúria de Intolerância (1916), do pioneiro W.D. Griffiths; corpos nus de nativos dos mares do sul em Tabu (1931), do expressionista alemão WF Murnau, e assim por diante. A quantidade de ousadia só fez aumentar em variedade, intensidade e fusão com a brutalidade.

O sexo explícito ganhou status de excelência estética partir de O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, lançado em 1976. O filme retrata a obsessão de um casal por sexo, que culmina com uma cena de castração. A novidade estava em que os próprios atores faziam sexo diante das câmeras. Depois veio o canadense David Cronenberg e sua extensa galeria de tarados.

Em Crash (1996), um conto sobre pessoas que atingem orgasmos em acidentes de carro, o diretor chegou a colocar a atriz cult Holly Hunter em cenas cruas e repugnantes. Agora são incontáveis os diretores que lançam mão do recurso. Nos anos 90, os diretores dinamarqueses do grupo Dogma abusaram dele. Mesmo em produções pós-Dogma isso acontece.

O longa-metragem do diretor dinamarquês (e fundador do Dogma) Lars von Trier, Anticristo, de 2009, contém episódios de mutilação do clitóris da personagem principal, interpretada pela atriz e cantora Charlotte Gainsbourgh, e as habituais sequências “líricas” de cópulas reais – no caso desempenhadas por dublês.

Se o sexo explícito teve seu tempo (que pode voltar, obviamente), a moda atual é o estupro. Até aí nenhuma novidade. Fiz uma busca no site IMDB com a palavra “rape” (estupro em inglês) e o resultado foi 2711 títulos.

O número de filmes com cenas de estupro (inclusive pornôs) começa a se multiplicar a partir dos primeiros anos da liberação sexual, na primeira metade da década de 60. Houve uma mudança de mentalidade a partir de então. Não vou arrolar dezenas de longas-metragens de arte que investem em cenas do tipo. Os estupradores começam até a ganhar certa simpatia na filmografia recente.

No ano passado, a história da violação de uma adolescente foi às telas na adaptação do diretor Peter Jackson do best-seller Uma vida interrompida (Lovely Bones), de Alice Sebold – e quase rendeu ao ator que fez o estuprador, Stanley Tucci, o Oscar de coadjuvante.

A peculiaridade da trama está na forma como ela é contada, pela própria vítima, diretamente do limbo. O que significa que a audiência tem acesso a detalhes ainda mais escabrosos do crime. E as pulsões de amor e morte são tocadas por eles.

Vou repetir o argumento de Walter Benjamin: no escuro, cada espectador se projeta na imagem projetada na tela. Assim, o processo de identificação é incontornável. Por isso, Benjamin definiu o cinema como “arte psicanalítica”. Na situação simulada do estupro, somos a um tempo vítima e agressor. Ocupamos os corpos e as almas dos dois lados do ato.

Ultimamente, o gênero estupro seguido por morte tem merecido maior atenção dos diretores. Quero mencionar dois filmes de suspense. Um faz boa carreira nos cinemas e outro entra em cartaz na semana que vem: o argentino

O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, e a produção dinamarquesa Os homens que não amavam as mulheres, do diretor Niels Arden Oplev, suspense baseado no romance homônimo do sueco Stieg Larrson, best-seller mundial.

São produções aparentemente díspares. Apesar de uma ser sul-americana e outra nórdica, ambas guardam pelo menos quatro aspectos em comum, além de abordar o estupro de uma forma intrigante.

O argentino O segredo de seus olhos ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009

Em primeiro lugar, são enredos de casos criminais arquivados há mais de 25 anos. No filme argentino, a cena se passa em Buenos Aires no ano 2000.

O investigador aposentado Benjamin Esposito (Ricardo Darín) se encontra com sua antiga chefe (e paixão), a juíza Irene Hastings (Soledad Villamil) para tentar reabrir um caso acontecido em 1974: a morte de Liliana Colotto (Carla Quevedo), uma jovem de 23 anos seviciada, violada e morta em sua casa.

O filme dinamarquês, ambientado em Estocolmo em 2006, conta as peripécias de um jornalista investigativo de esquerda, Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), é chamado por um rico empresário Henry Vanger (Sven-Bertil Taube) para investigar o desaparecimento de sua sobrinha Cecilia Vanger (Marika Lagercrantz), de 16 anos, durante uma parada de Dias dos Namorados numa ilha sueca em 1966.

Blomkvist se une à hacker punk Lisbeth Salander (Noomi Rapace) e descobre que a desaparição da menina é relacionada com uma série de estupros ocorridos nas redondezas num período de 20 anos.

O pano de fundo político responde pelo segundo aspecto convergente. Ambos os casos são acobertados e se relacionam a regimes ditatoriais. Melhor não entrar em detalhes para não estragar a surpresa. Mas basta dizer que os estupros estão ligados à impunidade de criminosos vinculados a determinada conjuntura de poder.

A política será determinante para a resolução dos casos. Campanella usa o caso policial para elaborar uma metáfora da Argentina, um país que só depois de muitos anos conseguiu superar o trauma da guerra suja, que levou milhares de inocentes à morte. Já Niels Arden Oplev se vale dos crimes seriais acobertados para mostrar que um país supostamente resolvido como a Suécia oculta uma sociedade doentia, capaz dos atos mais atrozes.

A terceira coincidência repousa na crise da meia-idade e de carreira por que passam os dois protagonista: tanto Esposito como Blomkvist se encontram em fim de carreira e, mesmo assim, continuam obcecados pelo desvendamento de seus respectivos mistérios.

Tanto um como outro anseiam pela redenção que a resolução de um enigma pode conter. E os dois são apaixonados por mulheres problemáticas.

A juíza é rica e está comprometida com um empresário, e deixa Esposito partir, numa cena melodramática, passada em uma estação de trem. Blomkvyst é praticamente estuprado na cama por Lisbeth, e se encanta por ela – que, aliás, já havia sido estuprada pelo padrasto e pelo tutor, e se vingou ateando fogo ao carro daquele e torturando este.

Finalmente, os dois roteiros são unidos pelo tema do estupro seguido por morte. Em O segredo de seus olhos, o foco está na beleza de Liliana, apesar dos ferimentos profundos deixados pelo assassino.

A câmera passeia com volúpia pelo corpo nu violado e ensanguentado, até dar um close up nos olhos vidrados da morta, olhos enormes e... sonhadores. São os olhos do cadáver e do possível criminoso que levam Esposito, fascinado pela beldade morta, a começar a investigação.

Em Os homens que não amavam as mulheres, os olhos abertos dos cadáveres colecionados pelos criminosos também são mostrados em detalhe. O filme dinamarquês é pródigo nos requintes sádicos. Os assassinatos são cometidos como rituais satânicos, repletos de símbolos e citações bíblicas. Na trama sueca, não há espaço para sentimentalismo.

Na trama sueca Os homens que não amavam as mulheres, não há espaço para sentimentalismo.

Por fim, os filmes dramatizam os comportamentos macabros e perturbadores. Os estupros que são confessados pelos criminosos como momentos de iluminação e triunfo. Como se obrigar alguém a fazer sexo e depois matar representasse a realização de antigos anseios.

O assassino de Liliana confessa o crime diante do investigador e da juíza de uma forma inusitada: exibindo o pênis, ele diz que obteve o maior prazer de sua vida ao fazer sexo e assassinar Liliana Colotto.

Uma experiência de suprema transgressão, que também encanta o estuprador do filme sueco. “Estuprar é uma experiência fantástica”, diz ele, enquanto começa a enforcar Blomqvyst. “Não existe nada igual a matá-las. O que mais gosto é o olhar delas no momento em que se decepcionam, ao saber que não vou salvá-las, que elas vão morrer. É um instante maravilhoso.”

Por mais que resista por saber que se trata de ficções, o espectador acaba se deixando levar pelo enredo e, talvez, involuntariamente, conduzido a uma situação-limite que poderia ser real. É o que Aristóteles denomina catarse, de purgação dos desejos por meio de um mecanismo de transferência, para usar um termo mais moderno. Durante o processo, sacrificamos, somos sacrificados e, por último, atingimos a purificação.

A operação teria um fundamento pedagógico, e resultaria em bom comportamento social. Não estou tão certo disso. Entre o mistério que se apresenta e a possível remissão dos pecados, o caminho me parece tempestuoso. Entre um e outra, existe o apelo da transgressão. O cinema atual induz o espectador a fantasias proibidas, e entre elas tem enfatizado a do estupro.

Ora, o estupro como atração erótica é uma distorção. Para mim, estupro é sexo ruim, mesmo em fantasia. Não há tema vedado à arte, se ela é grande. Agora, porém, os diretores têm confundido a exploração do interdito com excelência estética. O resultado só pode ser o rebaixamento dos sentidos – e da reflexão.

Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras