sábado, 28 de outubro de 2023


Não é só um banheiro

Se eu entro num banheiro com quadrinhos na parede, com objetos fofos nas estantes, com tapetes bonitos forrando o chão, sei que a casa é de uma moradora.

Só a mulher para decorar o banheiro de um jeito caprichoso e detalhista.

Mesmo que seja um cubículo, ela é capaz de pôr um lustre no teto. Ou lâmpadas de LED de moldura no armarinho.

Na visão feminina, é o aposento mais importante da casa: uma extensão do quarto, uma área de convivência, um provador de roupa, um altar da maquiagem, um closet dos produtos para pele e cabelos.

Ela potencializa o espaço físico com a sua fantasia, transforma o trailer em morada. Não tem como convencê-la de que são apenas pouquíssimos metros quadrados. Nunca se contenta com o tamanho das superfícies. Entornará a pia com sabonete líquido, álcool gel, florzinhas, velas, aromatizadores.

Não se consegue enxergar a torneira, perdida num território próspero de esbarrões, a exemplo do excesso de penduricalhos em loja de decoração. Se há uma fresta na parede, inventará de colocar ganchos para toalhinhas, roupões e toucas de banho. Além da farmacologia básica, tem que encontrar um canto seguro para o secador, para o babyliss. Costuma guardá-los dentro das caixas da loja.

Alegra-se com gavetas e estantes. Não sobrevive sem um armário. Nada mais frustrante para ela do que um espelho sem nada por trás. Um espelho sem fundo. Um espelho de elevador. É como não ter alma. As prateleiras estarão abarrotadas de toneladas de cremes, perfumes, hidratantes e pomadas. Os frascos seguirão estranha hierarquia de recorrência e predileção. Predomina uma ciência na aparente aleatoriedade.

Já para o homem, é o aposento de menor destaque da residência. É visto como mais uma porta entre os corredores. Sequer pensa nas suas condições de uso para os outros, não raciocina que ele pode ser frequentado, reparado e analisado por uma visita.

Não realiza checklist do que falta de provisão. De acordo com a sua mentalidade, o rancho para municiá-lo se resume a pasta de dente, sabonete, xampu, gilete, cotonete e papel higiênico.

Se pudesse, deixaria o lugar abandonado tal sanitário de posto de gasolina.

Não faz nenhuma diferença para ele na hora de escolher um imóvel. É funcional, para necessidades biológicas. Não envolve o seu espírito. Não diz respeito ao seu bem-estar emocional. Não compromete a sua felicidade.

Tenho esse falhado software em mim: banheiro é banheiro, desde que conte com uma ducha forte e quente funcionando. Mal permaneço dentro dele, discreta garagem para ir e vir.

Não me preocupo com mais nada. Não ficarei nele por mais do que 10 minutos. Meus produtos de higiene cabem num pequeno estojo. O que me leva a crer que banheiro para as mulheres é camarim, com acesso direto ao palco dos seus sonhos.

CARPINEJAR 


28 DE OUTUBRO DE 2023
MARTHA MEDEIROS

Concepção de vida

Poderia passar horas falando dos motivos que fazem eu reverenciar a obra cinematográfica de Woody Allen, mas tem uma declaração dele com a qual me identifico mais que tudo: "Adoraria fazer grandes filmes, desde que isso não atrapalhe minha reserva para o jantar". Óbvio que ele já fez grandes filmes, mas o conceito é perfeito: a dedicação ao trabalho não pode ser tão extrema a ponto de roubar os momentos de prazer junto à família e aos amigos, que é quando a gente relaxa e aproveita a vida.

Na primeira vez em que reproduzi essa sua frase, um leitor me mandou um e-mail dizendo que para Woody Allen era fácil dizer isso, pois ele tinha fama, dinheiro e não precisava ralar feito um miserável. É verdade. Em países desiguais, a maioria da população não tem escolha, precisa trabalhar 14 horas por dia para conseguir pagar as contas. Mas o ataque não deveria ser direcionado ao diretor de cinema, e sim ao sistema que impede que este conceito "carpe diem" seja universal.

Em recente postagem no Instagram, destaquei um trecho de uma crônica do meu novo livro que, de certa forma, dialoga com a frase do Woody Allen: "Em vez de focar em ter fortuna, que induz ao excesso de consumismo, mil vezes trabalhar menos, voltar para casa mais cedo e pedir uma pizza. Desculpe o provincianismo, sei que pode soar chocante". O post teve ótima repercussão, mas alguns me perguntaram se eu sabia quanto custava uma pizza, enquanto outros lembraram que comer também é consumismo. Foram reações avulsas, em que o conceito mais uma vez perdeu para a literalidade.

Quando o conceito não é percebido, resta o quê? O ranço. Que não transforma nada.

É por isso que um país que não lê é um país vulnerável. Porque se não exercitamos a interpretação de texto, o que sobra é uma visão restrita, ipsis litteris. A reserva para o jantar, de Woody Allen, significa ser dono do seu tempo, e não escravizado por ele. A pizza da frase que escrevi não significa pizza, mas simplicidade, trivialidade, domesticidade (aliás, essa frase foi pinçada da crônica em que saúdo o caráter de Ricardo Darín, ator argentino que, em uma entrevista, disse que não precisava se render aos papéis estereotipados que Hollywood lhe oferecia, pois já tomava dois banhos quentes por dia e era cumprimentado nas ruas, para que desejar mais?)

Repito: é um conceito, não é uma declaração ao pé da letra. Dinheiro é muito bom. Compra viagens, vinhos, conforto. A questão é o preço que se paga por ele: o custo pessoal não pode ser excessivo. Não vale a pena dar em troca o nosso descanso e nossa disponibilidade para os afetos.

Vale para Allen, para Darín e para todos que se recusam a virar reféns desta sociedade que exige uma performance doentia e cruel. Nossa paz, em primeiro lugar.

MARTHA MEDEIROS

 28 DE OUTUBRO DE 2023
CLAUDIA TAJES

Cancelamento analógico

Esses dias vi um post sobre bloquear e cancelar pessoas nos anos 1980. Tratava-se apenas de cortar a cabeça dos desafetos nas fotografias analógicas, reveladas em papel do jeito que saíam, sem as repetições infinitas e os filtros de hoje.

Quem vive em tempos de Instagram não imagina o ritual para uma foto analógica ficar boa. Pudera, era uma oportunidade única, um clique que precisava pegar todos no seu melhor momento, de preferência rindo e de olhos abertos.

Claro que era impossível.

Vendo fotografias guardadas em uma caixa de plástico para resistir à umidade, aos cupins e aos anos, constato que tenho um dossiê de fotos horrendas capaz de manchar a reputação de muita gente. Não fosse eu minimamente decente, estaria agora chantageando parentes, colegas, escritores e até algumas autodenominadas figuras públicas.

Ora, figuras públicas. Em vez de dizer que apito toca, a pessoa se apresenta nas redes sociais como "figura pública". Faz sentido numa época em que o desejo de ser famoso vem antes de se pensar em alguma coisa relevante para alcançar a fama.

Talvez seja só má vontade minha. Ou então não me adaptei à época.

Voltando às fotos analógicas, uma das melhores que encontrei é a de uma festa de casamento, minha família à mesa e os noivos atrás. Meus pais transmitiram aos filhos o DNA de não saber posar, então cada um de nós olha para alguma coisa, qualquer coisa, menos a câmera: o prato, o lado, o chão, o garfo. Meu irmão pequeno, com cara de susto, olha de soslaio - ainda se olha de soslaio? - para o que deve ser a materialização do tinhoso a poucos passos de nós. O noivo saiu de olhos fechados e a noiva, ah, a noiva, a cara fechada e até mesmo irada dela só pode significar que não queria nos convidar. Ou estaria casando obrigada?

Não faço ideia de quem seja aquele casal, mas desejo de coração que tenham sido felizes. A foto não prometia muito.

Outro clássico eram os olhos vermelhos. Às vezes um grupo inteiro saía milagrosamente bem na foto, só que todos com os olhos vermelhos. Tudo porque a luz do flash, ao penetrar no fundo da retina, deixava em evidência os vasinhos sanguíneos das pupilas. Isso eu só fui saber ontem, ao pesquisar sobre o porquê dos olhos vermelhos nas fotos. Todos esses anos achando que fotografias analógicas mostravam nosso lado demoníaco. Decepção.

Decepção também era o sentimento quando a gente buscava as fotos reveladas, o que demorava muito. Ninguém aguentava chegar em casa, já ia abrindo o envelope na loja mesmo. Claro que os fotógrafos de talento não passavam por isso, mas para os comuns dos mortais o resultado era: falta de foco, cabeças cortadas, caretas, um que se mexeu na última hora, outro que fez guampinha em alguém - mas isso ainda se faz -, pupilas vermelhas. O jeito era comprar outro filme, 135 -100 ASA - 36 poses - colorido, e tentar mais 36 vezes.

Com todos os seus poréns, as fotos reveladas em papel ficavam para sempre. As que tenho, guardadas na caixa de plástico, vêm desde o tempo dos meus avós. Alguns dos fotografados que moram naquela caixa não contam com a minha estima, mas não teria coragem de rasgar a cabeça e cancelá-los das minhas lembranças. Até porque só cancelo os mal-educados e outros desagradáveis que volta e meia me aparecem no mundo digital. No real, também.

Vontade que dá é a de rasgar os tanques, as armas, as crianças machucadas, os prédios no chão, as mães chorando nas fotografias de guerra. Mas seria um devaneio, não um bloqueio. Melhor desenhar um bigode em uma lambisgoia do jardim de infância. Era ela que o Júnior Paulo, o menino de quem eu gostava, amava. Isso e depois seguir visitando o meu passado em sépia.

CLAUDIA TAJES


28 DE OUTUBRO DE 2023
SARA BODOWSKY

DE VOLTA À ESTRADA

Feliz da vida de contar pra vocês que o Na Estrada está de volta! A versão televisiva da nossa página aqui em Donna e do programa na 102.3 FM visita, a partir deste sábado, a Costa Doce gaúcha.

Vocês vão se apaixonar, como eu, por essa região que recebe cada vez mais a atenção e o carinho dos turistas. Tem doces e gastronomia ímpares, muita natureza e opções surpreendentes de passeios.

Nesse sábado, o destino é um povo acolhedor e que responde sempre um "obrigada" com um "merece": sim, a gente começa essa temporada do Na Estrada com a deliciosa Pelotas (na foto, nossa gravação por lá).

Ainda vão rolar episódios em Rio Grande, São José do Norte e Tavares, com a Lagoa do Peixe. Começa neste sábado, às 14h10min, logo depois do Jornal Hoje, dentro do programa Que Papo é Esse?, na RBS TV.

TCHÊ DELÍCIA!

Fazia tempo que não trazia dica das minhas amadas marmitinhas congeladas para vocês, não é mesmo?

Pois anota aí: provei várias delícias da Tchê Gourmet e virei cliente. Tem bife à parmegiana, massa com molho branco e frango, estrogonofe, sucos naturais, pizzas, pães recheados e até sorvetinhos em forma de pudim. O sabor é bem caseirinho.

A marca nasceu em 2015 pelo amor que a Thayrine Knoll tem pela cozinha. Ela saía oferecendo quentinhas pelos comércios da Zona Sul e assim criando sua clientela.

Hoje os produtos são todos oferecidos por meio do processo de ultracongelamento, que em menos de uma hora congela a comida a -40 C. Isso evita o acúmulo de água e a perda de textura, sabor e nutrientes.

A Tchê Gourmet fica na Av. Otto Niemeyer, 1.699, e está aberta de segunda a sexta, das 9h às 20h e aos sábados, das 9h às 18h. Entrega em toda Porto Alegre e Região Metropolitana. Encomendas pelo WhatsApp (51) 99196-6695. Perfil do Instagram: @tche_gourmet.

EVENTO NO CÉU

E domingo tem feirinha no Céu Bar + Arte. É mais uma edição do Brick de Desapegos, das 17h às 22h, com mais de 20 expositoras entre brechós e marcas autorais.

As comidinhas ficam por conta do Real Fucking Burger e tem chope duplo das 18h às 20h, show do Alemão Douglas a partir das 18h e flash tattoo do estúdio Black Yellow ao longo da feira.

A entrada é franca. O Céu fica na Rua General Lima e Silva, 1.487.

SARA BODOWSKY

28 DE OUTUBRO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

DO APLAUSO À CRÍTICA

Há males que vêm para bem, diz o velho refrão. Mas há, também, atos em que o bem não redime os males. É o caso de agora, quando o governador Eduardo Leite instituiu o ProClima 2050, destinado a que nosso Estado participe do combate às mudanças climáticas. Cria-se um "gabinete de crise climática" para enfrentar o problema que leva à destruição da vida no planeta. Até aí, aplausos.

A crise climática, porém, não brota das nuvens. É provocada (direta ou indiretamente) pelos atos do dia a dia. Para localizar os erros e evitá-los ou mitigá-los, os códigos ambientais estaduais definem o que é permitido e o que é vedado. Nosso Código Estadual do Meio Ambiente, redigido originalmente ao longo de anos, ouviu diferentes setores, de produtores agrícolas a industriais, ambientalistas, geólogos e outros especialistas. E assim, serviu de modelo a outros Estados.

Na anterior gestão de Eduardo Leite, porém, este código modelar foi revogado por iniciativa do governador e substituído pelo atual, que abranda uma série de medidas que impediam (ou mitigavam) os efeitos do aquecimento global. O novo código instituído pelo governo estadual abre caminho a exploração e uso dos combustíveis fósseis, num momento em que todos no mundo apontam o petróleo, o carvão e o gás natural como responsáveis diretos pela crise climática.

Dias atrás, 130 grandes empresas como Nestlé, Bayer, Heineken e Volvo pediram que a próxima COP-28 estabeleça um cronograma para proibir gradualmente os combustíveis fósseis.

Ao revogar o anterior Código Ambiental, o governo de Eduardo Leite divergiu da própria Constituição Federal que instituiu o meio ambiente como um direito de todos.

Passamos a desconhecer que a crise ambiental provém de um conjunto de fatores geradores do horror, mas que o antigo código estadual (revogado por iniciativa do governador) buscava resolver ou até proibia. Indago: solucionaremos o que foi provocado por erros de décadas em apenas sete anos, como prevê o ProClima 2050? Ou, como diz o presidente da associação dos técnicos da Fepam, trata-se de mero "marketing" governamental?

O terrível e inominável na política nacional continua a ser sua transformação em balcão de negócios. Ou não é isso que explica que o presidente Lula da Silva leve ao governo o chamado centrão, dando-lhe a presidência da Caixa Econômica? Ou é um perene estilo de governar?


28 DE OUTUBRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

O PAPEL DO LIVRO

Compreender a complexidade, as nuances e as razões históricas que cercam os temas mais candentes da atualidade no país e no mundo exige a busca de conhecimento aprofundado. Em uma era de informações superficiais nem sempre confiáveis, que chegam em velocidade alucinante pelas redes sociais, a leitura de fôlego permanece como a melhor forma de acumular o conhecimento necessário para o entendimento sobre o que se passa no Estado e no outro lado do planeta. Este é um dos grandes atributos dos livros, outra vez reverenciados na Capital.

A 69ª Feira do Livro de Porto Alegre foi oficialmente aberta na sexta-feira e vai até o dia 15 de novembro, na Praça da Alfândega. Lá é possível garimpar obras que contextualizam o conflito hoje em curso no Oriente Médio. Podem ser encontradas publicações que contam como surgiram e se fortaleceram as milícias do Rio Janeiro. Exemplares que refletem sobre os dilemas e tendências da inteligência artificial, um dos temas fascinantes da época atual. E outros trabalhos que convidam o leitor a compreender o desafio existencial de mitigar as mudanças climáticas, problema que os gaúchos têm bem presente após as enchentes e enxurradas dos últimos meses.

Sim, há a opção cômoda de pesquisar livros e adquiri-los por meios virtuais e recebê-los no conforto do lar. E também ler em formato e-book. Mas para os apreciadores do enlevo da leitura, ainda são difíceis de substituir os demais aspectos que fazem a escolha, como a possibilidade de folhear as obras nas mãos e trocar impressões com o livreiro. Mais ainda quando se está ao ar livre em um cenário como o da Praça da Alfândega na primavera, rodeado de jacarandás em flor, e muitas vezes com a oportunidade de encontrar o próprio autor do livro desejado.

Conforme a entidade organizadora, a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL), a edição deste ano - que tem como patrono o escritor e cineasta Tabajara Ruas - terá a participação de mais de 140 autores gaúchos, de outros Estados e internacionais. Como já virou tradição, a área infantojuvenil, voltada a ajudar a forjar o hábito da leitura em crianças e adolescentes, também terá ampla programação.

As atividades da feira incluem sessões de autógrafos, oficinas, palestras e atrações musicais. Visitar o evento, portanto, não se resume a apenas consumar um ato de consumo, mas viver um programa cultural completo, ainda mais em uma região, como o Centro Histórico de Porto Porto Alegre, cercada de outros atrativos, como vários museus e espaços para exposições.

Aos trancos e barrancos, vencendo dificuldades de patrocínio e a mudança de perfil do mercado editorial, a Feira do Livro de Porto Alegre persiste ininterrupta, prestes a completar sete décadas. Não é apenas um dos símbolos da Capital, mas um dos eventos culturais mais importantes do Estado e talvez o mais democrático do setor literário do país. O melhor reconhecimento será a presença expressiva de visitantes. A essência da feira, afinal, é o burburinho do público em meio aos livros.


28 DE OUTUBRO DE 2023
CONSELHO EDITORIAL

OS RISCOS DA IMPORTAÇÃO DA GUERRA

A Guerra do Vietnã, o "imperialismo" americano, o embargo econômico a Cuba e as violações do regime, a crise na Venezuela, o conflito Rússia x Ucrânia. Não é de hoje que temas internacionais - uns mais do que outros - são "importados" para o contexto brasileiro e, em geral, instrumentalizados por atores políticos domésticos.

Com o confronto entre Israel e Hamas não é diferente. Desde o infame 7 de outubro, cada palavra e ação no Oriente Médio alimenta, do lado de cá, a 16 mil quilômetros de distância, discussões apaixonadas (e por vezes raivosas) turbinadas pelo ambiente de polarização nacional.

Recém-chegado do front, onde atuei como correspondente nos primeiros dias da guerra, desembarquei na última terça-feira na reunião mensal do Conselho Editorial do Grupo RBS. Entre os vários desafios que a atual confrontação impõe ao jornalismo, o fenômeno da "abrasileiração" do conflito é um dos que mais preocupam.

São vários os riscos de se olhar rivalidades no Exterior sob as lentes de nossa compreensão do mundo: o primeiro é o de se cair na simplificação da disputa, relegar uma crise ao duelo direita x esquerda, que não só reduz a complexidade da guerra a uma lógica de "mocinho x bandido", como ignora que o Oriente Médio tem dinâmicas regionais próprias. Os movimentos no front ou nos gabinetes são influenciados por variáveis internas e externas e disputas de poder que não cabem em simplificações - tampouco se adaptam à realidade brasileira e a seus dilemas.

Ao "abrasileirarmos" o conflito desconsideramos nuances, ignoramos a História e descontextualizamos decisões. Este é o primeiro passo para que visões obtusas sobre a guerra se cristalizem.

O jornalismo profissional é antídoto para que se evite essa armadilha. Neste Conselho, firmamos posição em torno da necessidade de explicar, contextualizar, lançar luzes sobre fatos nebulosos, buscar diversidade de opiniões e propor soluções. Nossa linha editorial é a favor da paz, contra o terrorismo e em defesa da solução de dois Estados - um israelense e um palestino - legítimos. Buscaremos, em nossos espaços, evitar ao máximo a importação do conflito e o reducionismo desses dias insanos a disputas partidárias e ideológicas brasileiras.

RODRIGO LOPES

28 DE OUTUBRO DE 2023
BALANÇO DE 12 ANOS

Número de idosos cresce 50% no RS

Rio Grande do Sul tem o maior percentual de pessoas acima de 60 anos entre os Estados, aponta o Censo de 2022

O Rio Grande do Sul é o que tem o maior percentual de idosos entre os Estados brasileiros, afirma o Censo Demográfico divulgado na sexta-feira. Em 2022, o RS tinha 2.193.416 pessoas com 60 anos ou mais, o equivalente a 20,15% da população.

Ou seja: um em cada cinco moradores do RS era idoso, segundo as informações coletadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado. O levantamento traz detalhes sobre sexo e idade da população e é um acréscimo à contagem que começou a ser divulgada em junho.

A idade mediana do gaúcho, 38 anos, foi a mais alta na comparação com as outras unidades na federação, o que faz do Estado o "mais velho". O cálculo separa a metade mais jovem da metade mais velha dos moradores e obtém um número, que ajuda os estudiosos no estudo da evolução etária de um grupo de pessoas.

No caso do RS, 50% da população tem idade até 38 anos e o restante está acima disso. Em 2010, a idade mediana no Estado foi 33. A idade mediana do brasileiro passou de 29 anos no censo anterior para 35 anos no mais recente.

O crescimento do grupo dos idosos no RS é observado na comparação com o censo de 2010. Naquele ano, eram 1.459.597 idosos (13,65% do total). O grupo aumentou em 733.819 pessoas em 12 anos, salto de 50,27% entre os dois estudos.

Coqueiro Baixo, no Vale do Taquari, é o município que tem maior percentual de idosos na população: 38,91% dos 1.290 moradores têm 60 anos ou mais. A parcela de idosos no Brasil aumentou 55,96% entre 2010 e 2022: de 20.590.597 para 32.113.490.

Comparação

Ao mesmo tempo, o IBGE também indica que há a menor proporção de pessoas entre 0 e 14 anos em relação ao total da população (17,5%) no RS, na comparação com outras unidades da federação. O grupo representava 32,4%, em 1980, e 20,8%, em 2010. A pesquisa informa também queda no grupo de 15 e 24 anos: em 2022, havia 321.929 pessoas a menos na comparação com o estudo anterior, queda de 18,43% (de 1.746.643 para 1.424.714).

VINICIUS COIMBRA

Do que precisamos

No início do mês, morreu Charles F. Feeney, um bilionário que chegou a acumular U$ 8 bilhões mas que nos últimos anos andava de metrô e táxi e vivia em um apartamento alugado em San Francisco. Feeney fez fortuna com free shops e tecnologia, mas não quebrou e nem era um excêntrico velhinho de 92 anos. Em 1986, depois de contar sete palácios, de Nova York à Riviera Francesa, ele decidiu em sã consciência doar seu patrimônio em vida, reservando para si U$ 2 milhões, uma quantia que considerava suficiente para viver bem.

A história de Feeney me veio à cabeça ao ler o belo relato de minha vizinha de página em Zero Hora, Juliana Bublitz, sobre Nora Teixeira. Como também celebrou o editorial de ZH de 21 passado, ela e o marido, Alexandre Grendene, doaram R$ 80 milhões e puxaram contribuições de outras famílias que garantiram R$ 230 milhões para a construção do mais moderno hospital do complexo da Santa Casa.

O casal é o expoente de um fenômeno que, felizmente, está se tornando rotina no Rio Grande do Sul. Por meio de doações a saúde, educação, segurança e obras sociais, um bom número de famílias com recursos vem retribuindo de forma direta, e sem as ineficiências estatais, à terra que os ajudou a erguer patrimônios. Na base do movimento, há a constatação de que apenas empilhar dinheiro não compra felicidade nem assegura a transferência de bem-estar de geração para geração: antes de tudo, vêm os valores morais e familiares que dão solidez a empreendimentos perenes.

Nossas caixas postais estão infestadas de e-mails que prometem "multiplicar o patrimônio" sem esforço, enquanto as redes sociais são inundadas de influenciadores que pescam incautos com o apelo desmesurado de que o prestígio e a felicidade estão associados a carrões ou megaiates. O tema é bem pesquisado. Um famoso estudo da Universidade de Princeton estabeleceu em U$ 95 mil anuais a renda para se ter "satisfação com a vida". O estudo vem sendo torpedeado por outros desde então, porque há muita satisfação com rendas bem abaixo disso e insatisfação com rendas bem acima. No que todos parecem convergir é que emoções positivas antecedem - e não o contrário - a formação de fortunas.

Como já entrei na fase de dizer "no meu tempo", lembro que podíamos ser felizes com um Conga gasto, sem precisar de um tênis para cada esporte. E que uma viagem à praia tinha a mesma adrenalina do primeiro pouso em Paris. E, sim, uma infância feliz era possível sem 17 assinaturas de canais de streaming. Minha vizinha de página aqui produziu também uma emotiva crônica sobre sua relação com a enciclopédia Larousse Cultural. Como sou mais velho, meu Google era o Tesouro da Juventude, que eu e meu irmão devoramos e nos deliciamos. A felicidade também pode caber numa prateleira.

MARCELO RECH 

sábado, 21 de outubro de 2023


21 DE OUTUBRO DE 2023
MARTHA MEDEIROS

Amar é... 

Sempre achei boba aquela série de cartoons "Amar é...". Quem é do século passado, lembra. Dois bonequinhos ilustravam frases melosas: "Amar é... entregar seu coração". "Amar é... não desperdiçar nenhum momento". "Amar é... olhar nos olhos do seu amado". Simplismo irritante banhado em água com açúcar. Como fã do amor, que sempre fui, não me conformava com redatores tão preguiçosos. Se eu faria melhor? Qualquer um faria. Tente em casa, vou tentar aqui mesmo.

Amar é... entregar seu coração para valer, não só como força de expressão. Desviar o olhar do próprio umbigo e se envolver enquanto é tempo: o mundo está de patas para o ar e a violência virou mercadoria. Se você assiste às notícias da guerra sem ficar abalado, é porque já está na prateleira, pronto para ser comprado e usado por quem arregimenta insensíveis a fim de promover o caos. Amar é se informar, não provocar discórdias inúteis. Amar é não incitar preconceitos.

Amar é... não desperdiçar nenhum momento, concordo. Não perder a oportunidade de compartilhar seu conhecimento, em vez de passar horas divulgando informações falsas e desonestas. Amar é não difundir ignorância, que isso já temos em abundância. Amar é controlar a vaidade e evitar ostentações afrontosas. 

Está todo mundo olhando, nossa exposição é total nas redes, então use seu espaço com parcimônia: venda seu peixe, pois você também tem que comer, mas não propague desumanidade, não tente cercear a liberdade alheia apelando para a religião como se ela fosse uma tábua de salvação para os demais, respeite as pessoas como elas são. Amar é não agredir quem está apenas vivendo a própria vida, amar é não se ofender com a maneira como cada homem e mulher escolhe ser feliz. Você talvez saiba algo sobre si mesmo, mas sabe nada sobre os sonhos, as alegrias e o desespero dos outros.

Amar é... olhar nos olhos do seu amado, e nos olhos dos seus filhos, e nos olhos de quem te pede um prato de comida, e nos olhos de quem não teve a mesma oportunidade que você. Amar é não ter medo de ter o espírito aberto, não ter medo de quem é diferente, não ter medo de evoluir. Covardes são manipulados, jamais amados. 

Olhe bem nos olhos dos psicopatas que se fazem de bonzinhos, olhe nos olhos de quem faz promessas que não cumpre, olhe nos olhos daqueles que precisam do seu consentimento para tornar o mundo pior, e diga a eles que não, que você não é como eles, não virará um joguete nas mãos dos cruéis, porque amar é para quem tem esperança, apesar de ela estar por um fio. Amar é para quem ainda tem um resto de pureza na alma. Amar é para quem enxerga em perspectiva e sabe que o amor não se encerra numa historinha romântica a dois, e sim num desfecho grandioso que seja apaixonante para todos.

MARTHA MEDEIROS

21 DE OUTUBRO DE 2023
CLAUDIA TAJES

Catando esperança no meio da tristeza 

Trabalhos difíceis: são muitos. Alguns extremamente desvalorizados, com salários vergonhosos. Outros com cargas horárias pesadas demais, sem garantias, sem proteção. E tem esse trabalho que a gente faz aqui no jornal, de escrever as notícias e colunas, que é difícil por uma razão muito triste: é quase impossível tratar de coisas boas.

A gente tenta, mas todo texto leve acaba parecendo bobão diante do que acontece no mundo. Nem bem aquele espanto com a guerra da Ucrânia, já vem outra muito pior - desculpe por fazer ranking de guerra -, e isso porque os massacres que acontecem agora mesmo em Etiópia, Iêmen, Mianmar e Síria já não merecem as manchetes. Guerras em lugares distantes demais, e entre povos distantes demais da compaixão ocidental, não rendem cliques.

Ainda assim, remexendo aqui e ali, dá para encontrar algumas coisas que fazem o olho brilhar. Os aviões com repatriados brasileiros entram nessa categoria. Que orgulho saber que o Brasil foi o primeiro país a buscar seus cidadãos, e sem mesquinharia sobre os custos da operação. Sabia que os norte-americanos terão que assinar um termo se comprometendo a pagar pelas despesas de seu resgate? E que a Inglaterra já botou preço, R$ 1.800 por pessoa, para buscar seus compatriotas em Israel? Agora é torcer para os brasileiros de Gaza conseguirem sair de lá o quanto antes.

Nessas todas, não falta quem vá às redes sociais reclamar dos gastos do governo com o vai e vem dos aviões da FAB. Inacreditável. Coraçãozinho já virou pedra há tempos. E também não faltam aqueles que desembarcam agradecendo para o pastor da igreja, o prefeito de Sorocaba e o deputado fulano por terem sido resgatados. O falecido Zorra Total não faria melhor.

Outro alento é que começou a temporada das Feiras do Livro. Caxias do Sul e Canoas já coloriram suas praças. A Feira de Porto Alegre, que não foi habilitada para captar apoios e correu o risco de murchar, chega firme e forte com o aporte dos governos estadual e municipal, depois da grita da sociedade e da imprensa. E com Tabajara Ruas ocupando não a cadeira, mas as calçadas e os corredores do Patrono.

Olhando a lista de autores convidados para a 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, nem dá para imaginar os perrengues que a organização passou com a ameaça da falta de recursos. Algumas e alguns: Natalia Timerman, Sidarta Ribeiro, Miguel Nicolelis, a cubana Teresa Cárdenas e tantos mais que eu precisaria pedir a página da Martha Medeiros emprestada para dar a nominata toda. Ah, a Martha vai estar lá. A área infantil também não deixa por menos e entre as suas quase incontáveis atrações vai ter a Paula Taitelbaum com o artista Xadalu lançando Cadê Cadê, o novo e lindo livro deles.

Até que, para uma coluna que começou para lá de pessimista, falando de guerra, deu para recuperar um pouco da esperança. Coisa que os livros fazem com a gente. Então aproveito para encerrar esse texto com as três garotas-símbolo da Feira do Livro de Porto Alegre, as que nunca se entregam e que mais uma vez estarão, de 27 de outubro a 15 de novembro, em cada canto da Praça da Alfândega: Sônia Zanchetta, a dama da programação infantil, Sandra La Porta, a eminência da programação adulta, e Noia Kern, a voz e os olhos da Feira. Enquanto elas estiverem lá, é sinal de que está tudo bem.

E agora com licença, que vem chegando mais um avião de repatriados e eu quero chorar um pouquinho na frente de TV. Mas de alegria.

CLAUDIA TAJES


21 DE OUTUBRO DE 2023
LEANDRO KARNAL 

João Afonso foi um jurista português entre os séculos 14 e 15. Tornou-se famoso pelo apoio à causa do Mestre de Avis na grande crise de 1383-85, quando parte da nobreza portuguesa queria proclamar o rei de Castela como novo governante de Portugal. Defendeu, com argumentos jurídicos e históricos, as pretensões de D. João de Avis. Ele passou à história como João das Regras.

Dizem que estudou em Bolonha, na Itália. A tradição do Direito Romano, na mais antiga universidade europeia, explicaria seu apoio a um poder monárquico centralizado. O currículo foi atestado pelo cronista Fernão Lopes. No entanto, os registros de alunos da universidade italiana não comprovam a tese.

João serviu à nova dinastia. Para isso, selecionou argumentos e derrubou outros. Se fôssemos mais precisos, ele seria o João das Regras de Avis. Sua devoção não era o debate jurídico isento. Como sabemos hoje, ele fez o papel de defensor de uma causa que necessitava desqualificar todos os pretendentes ao trono português, para que as Cortes reunidas em 1385 indicassem, "livremente", D. João de Avis. Foi um jurista "assessor de imprensa", oferecendo a melhor base para que a decisão fosse favorável ao seu amo.

Isso não é uma crítica ao jurisconsulto. Seria anacronismo puro indicar dubiedade da sua sustentação oral. Havia uma disputa, e ele tomou partido. Sua decisão nem precisaria levar em conta quem o pagava. Poderia ser uma inclinação de foro íntimo a favor de um poder local e contra a perda da independência do reino português. Assim, sua capacidade de interpretação (hermenêutica) teria um parti pris nacionalista. Considerando que os reis da casa de Avis levaram Portugal ao seu fastígio nas grandes navegações, somos inclinados a perdoar a subjetividade de João. 

Sem seu apoio jurídico e argumentativo, talvez o lado castelhano tivesse vencido. Sem D. João I, sem a "geração ínclita", sem os organizadores das caravelas, existiria uma chance de que o Brasil não tivesse sido "inventado" por Portugal. Tudo é um devaneio que possui outro parti pris: que eu também esteja considerando nossa ascendência portuguesa e a língua de Camões um valor que conseguiria relativizar as culpas hermenêuticas de João das Regras. Assim, temos de perdoá- lo ou teriam razão alguns americanos menos letrados e nossa capital seria Buenos Aires...

João das Regras garantiu nossa identidade lusitana? Impossível afirmar. Porém, sem dúvida, ele consagrou uma tradição jurídica que nunca fraquejou no Novo Mundo. Herdamos e expandimos nossa vontade de interpretar leis. Negociamos com o texto, que deve ser esticado ou torcido de acordo com a conveniência. 

Atenção: este cronista não está a afirmar que esta é uma característica de advogados e juízes da nossa querida Terra Papagalli. Nós todos, os nascidos no vasto território brasileiro, somos hermeneutas das regras. Talvez João nunca tenha estudado em Bolonha, mas nós, com certeza, daremos lições aos lentes de Coimbra e das Arcadas de São Francisco em São Paulo. Nascer no Brasil é ser um hermeneuta refinado do duro texto da lei. Lá está escrito que eu não posso? 

Ah, mas em tais e tais condições fica implícito que eu posso desde que... Quem tem filhos ou dá aula sabe - tem de argumentar juridicamente sobre toda norma. E o trânsito? Cada um adapta o código ao seu momento: "Vou estacionar aqui na vaga de idoso, mesmo não sendo permitido, mas é só um pouquinho. Estou com pressa". João das Regras ficaria encantado com o que fizemos da sua ideia. Nunca um pai gerou tantos filhos produtivos e fiéis à cepa.

O ladrão rouba e ainda defende o crime, alegando que a casa assaltada tem coisas "em excesso". É hermenêutica da propriedade privada. O aluno chega tarde à escola no dia de chuva e não quer levar falta, pois havia muito trânsito. É hermenêutica meteorológica. O namorado trai, alegando que seu par o traiu antes. É a hermenêutica do precedente. O guarda multa alguém estacionado sobre a faixa de pedestres? Diz: "Mas só ocupei uma parte pequena". É a hermenêutica da relatividade quântica do espaço.

Ah, João, que legado você nos trouxe! O subjetivo emerge soberano sobre a norma e esfarela tudo. "Tudo o que é escrito desmancha no ar" é como adaptamos o axioma marxista.

E, se num dia, por acidente cósmico, deixássemos de interpretar e passássemos a cumprir as regras? João ficaria inquieto no seu túmulo? Teríamos outra civilização? Ou, mais azedo ainda, teríamos civilização? E se o pintor que prometeu começar a obra na segunda-feira, às 8h da manhã, chegasse às 7h50min com todo o material e disposição? 

E se o engenheiro da reforma anunciasse que o prazo seria cumprido? E se o médico atendesse à hora exata? E se o aviso de "última chamada" no aeroporto fosse, de verdade, o derradeiro? Creio que nunca teria existido a Revolução de Avis, o Brasil não seria ocupado por Portugal e figuraríamos, no máximo, como uma tênue esperança na mente de Deus. Eu sei... Desejar que uma reforma termine no prazo excede a liberdade criativa do sonho ficcional. Tudo tem limites, até a hermenêutica.

LEANDRO KARNAL

21 DE OUTUBRO DE 2023
FRANCISCO MARSHALL

A PAZ POSSÍVEL 

Inspirados por poemas de Goethe (1749-1832) publicados em 1819, o músico argentino de família israelita Daniel Barenboim (1942) e o intelectual palestino Edward Said (1935-2003) criaram em 1999, em Sevilla (Espanha), a Orquestra Divã de Ocidente e Oriente, com musicistas espanhóis e de países do Oriente Próximo (Egito, Irã, Israel, Jordânia, Líbano, Palestina e Síria). Artista extraordinário, Barenboim é a primeira pessoa a ter simultânea cidadania israelense e palestina, e publicou, no dia 10 de outubro p.p., a seguinte declaração: "Eu segui os eventos deste final de semana com horror e a mais alta preocupação, ao ver a situação em Israel/Palestina piorando para profundezas inimagináveis. 

O ataque do Hamas à população civil israelense é um crime ultrajante, que eu condeno veementemente. A morte de tantos no sul de Israel e em Gaza é uma tragédia que vai marcar os tempos vindouros. A extensão dessa tragédia humana é não apenas em vidas, mas também em reféns capturados, lares destruídos e comunidades devastadas. 

Um cerco de Israel a Gaza constitui uma política de punição coletiva que é uma violação dos direitos humanos. Edward Said e eu sempre acreditamos que a única via para a paz entre Israel e Palestina é uma via baseada em humanismo, justiça, igualdade e um fim da ocupação, mais do que ação militar, e eu hoje me encontro firme nessa convicção, mais fortemente do que nunca. Nesses tempos de provação e com estas palavras, eu me solidarizo com todas as vítimas e suas famílias".

A tensão histórica entre israelenses e palestinos é questão complexa, mas não insolúvel, e só pode ser enfrentada com muita clareza, coragem e humanismo. Eis os axiomas: 1) Essa questão não permite adesão maniqueísta, polarização, exclusão ou generalização. Israel é uma nação complexa e dividida, o judaísmo é muito mais que este país e inclui parte central do humanismo histórico; a Palestina é uma nação sem Estado igualmente complexa, a cultura árabe é muito mais do que a jihad islâmica e é fonte de valores nobres. 2) Há ódio étnico criado por coquetel de preconceitos, erros políticos, educação e mídia malversados e insuficiência de valores de concórdia. 3) A paz é possível, mas não com o predomínio dos homens e dos valores e conceitos que levaram a esta situação horrenda. 4) Sem concessões genuínas não haverá mudança positiva.

Uma situação complexa pode ser equacionada e pacificada, desde que seus componentes sejam discernidos e colocados em uma fórmula produtiva: (violência 1 x antiviolência 1) + (violência 2 x antiviolência 2) + (?) = paz. Há que se apresentar e formular os enganos para que predominem verdades apuradas por fato e pensamento, e não por convicção e violência. Todas as vozes e sobretudo as de israelenses e palestinos inconformados com a violência precisam de apoio para que se reconheçam ambos os povos como dignos e merecedores de destino histórico decente.

O fundamento está dado por arte-humanistas: reconhecimento mútuo, sem promessas e políticas de destruição recíproca; o restante será consequência disto, em um novo ciclo em que a paz produza vida e felicidade.

FRANCISCO MARSHALL

21 DE OUTUBRO DE 2023
CRISTINA BONORINO

VIDA INTELIGENTE

Volta e meia bate uma melancolia com a situação do mundo - imagino que todo mundo tem isso, alguns mais do que outros. Quando vem a tentação de desesperança, sempre recorro a textos do Carl Sagan. Ele foi, para mim, como para muitos, decisivo na escolha da carreira científica. Sagan tinha uma característica fundamental dos cientistas: uma capacidade de se maravilhar com descobertas sobre a natureza. 

Somos treinados a não aceitar meias respostas, ou respostas enfeitadas; o entendimento real depende de conseguirmos reproduzir um fenômeno, muitas vezes, independentemente. Essa busca é extenuante, porque requer um ceticismo disciplinado. E, quando finalmente chegamos à resposta, vem aquela sensação de êxtase - que pode ser maior ou menor, dependendo da importância da pergunta que foi feita.

A pergunta de Sagan sempre foi sobre a existência de vida em outros lugares do universo. Ele criou diferentes programas para a Nasa com esse objetivo. Li nesta última semana que, há 30 anos, um artigo publicado por Sagan e colaboradores ensina como ser absolutamente cético sobre aquilo que mais queremos saber. Em 1989, a sonda Galileo foi lançada para buscar sinais de vida. Sagan convenceu a Nasa e apontar a sonda para o nosso planeta. 

A pergunta do artigo era: será que a sonda é mesmo capaz de detectar vida do espaço? Era como uma história de ficção científica - imagine que estamos vendo a Terra pela primeira vez. Como saber se sabemos mesmo como identificar os sinais? A gente quer tanto detectar vida, que é fácil ser enganado. Chamamos isso de um experimento controle - esse era o controle perfeito! Se a resposta fosse negativa, saberíamos que a sonda não funciona.

O experimento criou uma moldura para todas as buscas de assinaturas biológicas usadas hoje em dia: a existência de vida deve ser a última explicação plausível - precisamos eliminar tudo o que pode ser explicado de outro jeito. Muito inspirador. Preciso disso para lembrar que nós, humanos, somos capazes de algo assim. Porque quando penso que se o experimento fosse buscar vida inteligente não acredito que teríamos um bom controle.

O planeta hoje é um buraco negro de inteligência. Temos toda a ciência para entender as mudanças climáticas e ainda assim não existe acordo planetário para tomar medidas preventivas ou de remediação. E o pior, apesar de sabermos, por estudos de todas as áreas, o quanto a diversidade é a fonte da resiliência e força da espécie humana, não conseguimos conviver com as diferenças. Até quando seremos tolerantes com grupos e pessoas que fazem da intolerância a sua bandeira? Que acham que destruir vidas é a sua missão? Que não admitem coexistir e partilhar um ambiente com respeito mútuo?

Recebemos o dom maravilhoso da vida, mas ainda não dominamos a inteligência para vivenciar essa experiência na sua forma mais sublime. Mas nós sabemos como reverter isso. A solução passa por cada um de nós, diariamente, pensarmos menos em ouvir apenas o que queremos e nos dispormos a entender o outro, mesmo que esse seja o caminho mais extenuante.

CRISTINA BONORINO

21 DE OUTUBRO DE 2023
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA 

VOCÊ É CONSIDERADO UM DOS PIONEIROS DA INTERNET NO BRASIL. CONTE MAIS SOBRE SUA HISTÓRIA DE EMPREENDEDOR DIGITAL.

Eu comecei a trabalhar com 18 anos e, aos 19, ingressei em Engenharia Elétrica na UFRGS em 1979. Fiz estágio já na área de comunicação de dados, na empresa Edisa. Tivemos, no Brasil, um período relativamente longo em que o mercado era reservado para companhias brasileiras que fabricavam computadores, e a Edisa era uma delas. Fiquei nessa empresa até 1984. Nessa época, fui convidado para um projeto superinteressante que era fazer um software para uma aeronave que estava sendo construída pela Embraer. Um caça AMX, subsônico de apoio tático. Um aeroeletrônico feito por uma empresa gaúcha - hoje o controle é israelense. É quase um milagre ter funcionado. Éramos um bando de garotos nerds tocando um projeto matemático. Quando terminou isso, a gente começou a Nutec. O Sérgio Preto, que ainda estava na Edisa e é quatro ou cinco anos mais velho que eu, estava junto nessa. Já vínhamos fazendo um projeto de correio eletrônico baseado em Unix. Oito anos antes da internet.

DE ONDE VINHA O DINHEIRO PARA FAZER ISSO?

Sou filho de um piloto da FAB e de um jornalista. O grande bem que eu tinha era uma moto, paga em prestações. Consegui economizar com meu trabalho e juntei uma poupança de US$ 50 mil. Foi com isso que começou a Nutec. E o negócio cresceu, em 1989 já tínhamos cem desenvolvedores, todos com capital próprio. Não existia capital de risco. Em 1990, conseguimos lançar um software nosso para um terminal gráfico. Montamos o Projeto Image, em Gravataí, e isso nos levou para os Estados Unidos. Aí a gente abriu para investimentos. A CRP (Companhia Rio-grandense de Participações), que era de private equity (investidores privados), tinha algumas famílias gaúchas que investiram US$ 300 mil.

COMO FOI BUSCAR ESSES INVESTIMENTOS?

Teve um sujeito muito importante, que não é adequadamente reconhecido, mas que foi muito relevante: Newton Braga Rosa, professor de Engenharia Elétrica na UFRGS. Foi ele quem nos aproximou da CRP e nos ensinou a fazer um plano de negócio. A CRP gostou muito e fez esse investimento. Eu lembro que US$ 300 mil era 10% do projeto, o total eram US$ 3 milhões. Eu fui morar em Mountain View, abri a Nutec já nos EUA. O Projeto Image, porém, não deu muito certo. Era muito ambicioso. Quando a HP comprou a Edisa, tinha um pouco do preconceito, "not made here", e descontinuaram o hardware. Épocas heroicas...

VOCÊ CHEGOU A SER CHAMADO DE BILL GATES BRASILEIRO. O QUE ACHA DESSA ALCUNHA?

Claro que não. Primeiro que a diferença na conta bancária não deixa nenhuma dúvida... Nessa época inicial da internet teve um frisson, a gente virou meio estrela do momento, saí em capa de revista, dava entrevista. A Business Week me colocou a alcunha. Foi quando o Terra abriu capital em Nasdaq. Isso foi em 29 de novembro de 1999, lembro bem. Foi um espanto o que aconteceu. A gente lançou a ação a US$ 13, e ela subiu que nem um foguete. No final de março, valia US$ 135. Para nós, que éramos uns durangos do Rio Grande do Sul, era um espanto.

ERA MAIS COMPLICADO SER UM EMPREENDEDOR DE MÍDIA E DE INTERNET SAINDO DE PORTO ALEGRE, QUE FICA DISTANTE DO CENTRO FINANCEIRO DO PAÍS?

Meu pai nasceu em Barretos (SP), foi servir na base aérea de Canoas, conheceu a minha mãe, que é uma gaúcha. Eu sou uma mistura de paulistas com gaúchos. Quando tinha dois anos, meu pai foi fazer engenharia no ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Nasci em Canoas, mas saí do RS com dois anos. Voltei com sete, saí de novo com 12. Quando fui para os EUA, aos 31 anos, em 1991, nunca mais voltei para o Estado. Então, eu me sinto meio vira-lata, um produto do mundo. 

Mas o RS é muito importante do ponto de vista tecnológico. A invenção do setor agroindustrial brasileiro é gaúcha. Acho que há uma certa timidez gaúcha que não deveria existir. Uma das implicâncias que tenho com meus amigos é que a última coisa que um gaúcho quer ser é balaqueiro. Então, o gaúcho é um falso tímido. Ele se acha, mas tem medo que os outros saibam que ele se acha. Aí fica nessa... Somos um povo trabalhador, com uma variada cultura, um Estado que tem o potencial de contribuir muito. E contribui, mas pode ainda mais.

DE ONDE VOCÊ ACHA QUE VEM ESSA FALSA TIMIDEZ?

Uma vez, dei uma palestra em Porto Alegre tentando explicar a internet, quando era um negócio muito novo e ninguém estava muito preocupado. Mas as pessoas queriam ouvir. Aí teve um senhor, conhecido no Estado, que veio apertar minha mão e falou: "Tchê, não sei se tu entende desse negócio de internet, mas vou te dizer uma coisa, tu é muito inteligente". E esse é o máximo cumprimento que você vai ter... É uma coisa travada. O gaúcho me parece travado. Não sei a origem disso.

A NUTEC VIROU O ZAZ, DEPOIS, O TERRA. COMO FOI ESSE SEU PIONEIRISMO?

O software de correio eletrônico original da Nutec era pioneiro, uma plataforma de correio eletrônico quando não existia internet. Eram conexões ponto a ponto, e as roteávamos assim. Então, em comunicação de dados, éramos muito bons. Eu participava do Softex, que era um programa do governo federal de exportação de software. Como éramos uma das companhias pioneiras, eu participava de comitês e reuniões. O Tadal Takahashi, que é o grande nome pioneiro da internet brasileira, era da Unicamp. Foi ele que botou a RNP (Rede Nacional de Ensino e Pesquisa) de pé. Foi o primeiro núcleo de internet brasileira, só de instituições acadêmicas. 

No mundo, a internet começou como uma pesquisa de comunicação de dados, contratada pela ARPA ("Advanced Research Projects Agency Network", em inglês) por meio de um protocolo desenvolvido pelo MIT, o TCPIP. O Tadal colocou os primeiros servidores TCP/IP no Brasil, foi ele que montou e se conectou com as universidades americanas. Esse é o início da internet brasileira. Aí as coisas foram acontecendo.

O QUE É A MAGNOPUS, ESTÚDIO DE REALIDADE VIRTUAL DO QUAL VOCÊ É COFUNDADOR E CHAIRMAN?

Conheci essa turma em 2011, eles haviam ganhado um Oscar com A Invenção de Hugo Cabret. Ben Grossmann, Alex Henning. Me apaixonei por uma tese de investimentos e os convidei para trabalharmos juntos. Primeiro tentei comprar a companhia deles, mas acabamos fundando a Magnopus. São tecnologistas criativos, Hollywood é um celeiro desses caras há muitas décadas, pelos orçamentos altíssimos que permitem investimentos em computação gráfica. 

O capital da Magnopus é 95% brasileiro. Essencialmente eu e meus amigos. A Magnopus está reinventando a computação imersiva. No futuro, você não vai ter uma tela na sua frente, como hoje. Um dia você via botar uns óculos e vai ser uma mistura entre físico e digital. Em um paper que escrevi em 2000, que pode ser exagerado, disse que o córtex visual não sabe se é real ou digitalmente gerado. 

Um dia, você vai ancorar uma tela de cem polegadas onde quiser. Essa ampliação cognitiva que existe hoje, por causa da computação espacial e da inteligência artificial, vai mudar os humanos. Não vão ser os mesmos: vamos ter superpoderes. O que a Magnopus faz são projetos para grandes companhias de tecnologia. Os clientes são Disney, Sony, Meta. A gente simplesmente reinventou, junto com a Disney, o jeito que se faz animação. O Rei Leão, de 2019, foi feito 100% com material nosso.

COMO FOI ESSE TRABALHO?

A gente fotografou 50 hectares no Serengeti (parque nacional da Tanzânia). E aí reproduzimos esse ambiente em estúdio, era como se os animais andassem em volta. Mas o projeto d?O Rei Leão é 50% da Disney. São projetos muito grandes e muito técnicos, precisa muita coisa para pôr em prática. Acabamos de terminar um projeto da Amazon em Nova York que é o maior light panel do mundo. Então, a Magnopus é um grande experimento de algoritmos e tecnologia. E aí você pergunta: você não tem medo de risco? A poupança da família Lacerda já foi, uma boa parte dela. É tudo tão interessante que a atração que tenho por isso supera o risco.

EM MEADOS DA DÉCADA DE 2010, O MOVIMENTO DAS CHAMADAS BIG TECHS AGLUTINOU O MERCADO EM PLAYERS MENORES, CONCENTRANDO GRANDES FATIAS DE INVESTIMENTO EM GOOGLE E FACEBOOK. QUAL SUA VISÃO SOBRE ESSE MOVIMENTO DE MERCADO?

Podemos refletir a partir de vários ângulos. Um deles é mais ideológico: tenta-se bloquear a aquisição de pequenas empresas pelas grandes. E, supostamente, essas aquisições, pelo poder que as big techs têm, reduziriam a inovação e a diversidade. Mas eu penso um pouco o contrário. Em muitos dos projetos que essas empresas apostam há um nível enorme de incerteza: você não sabe se o algoritmo vai parar de pé, se as coisas vão funcionar. O software não era uma possibilidade narrativa há 20 anos, e agora é. Mas o dinheiro investdo nele era meio fundo perdido. Se você pegar o início do Vale do Silício, ele foi inventado pelo Departamento de Defesa americano, foi dinheiro a fundo perdido para experimentar coisas.

HÁ MAIS ESPAÇO PARA INOVAÇÃO NOS EUA DO QUE NO BRASIL?

Acho que há absurdamente mais espaço nos EUA do que no Brasil.

POR QUÊ?

Do ponto de vista da tecnologia, acredito que há três fatores que explicam isso. O primeiro é que os EUA têm um Ensino Fundamental que realmente traz as crianças para a matemática. Esses dias vi uns números, não sei bem a fonte, que indicavam que, entre os estudantes do Ensino Médio no Brasil, 5% ou 6% queriam ir para as exatas, computação, engenharia. Nos EUA é algo entre 26% e 29%.

POR QUE ISSO ACONTECE?

O ensino brasileiro é de repetição e regramento. É sintático, e não semântico. Não vai no significado das coisas. E, para você pegar uma criança e despertar um interesse genuíno, uma curiosidade, você tem que mostrar como charada. Mostrar o mistério, como é o universo. Quem faz bem isso é a Coreia do Sul. E Cingapura. A curiosidade é um diferencial humano, as crianças são curiosas, querem desvendar as coisas. E a matemática é uma linguagem da natureza, de mistério, charada, jogo, não é uma coisa entediante. Mas a tornamos entediante. Esse é o segundo aspecto que eu gostaria de ressaltar: a sedução da curiosidade. A gente deveria ter universidades que realmente estimulem a descoberta, e não que ensinam a fazer rapidinho para se livrar do problema e conseguir um emprego. O mundo acadêmico americano ele é infinitamente mais rico do que o brasileiro. Tem um compromisso com tornar o aprendizado interessante. O terceiro fator: capital, no Brasil, é muito caro. Tivemos recentemente uma pequena bonança, mas logo voltamos ao normal. Capital de risco é para ser perdido. Você vai errar. Em Palo Alto, na Califórinia, existe o Friday Failure Celebration. Um festival que celebra as falhas. Fica todo mundo tomando cerveja, fim de tarde, sexta-feira, e os empreendedores fracassados contando suas histórias. Uma sociedade precisa ter um excedente de capital para aguentar as falhas. É o que as big techs fazem com as Magnopus da vida. Às vezes dá muito certo, mas nem sempre. Então, você precisa ter capital abundante. Acho que a salvação está aí. O empreendedorismo talvez salve o Brasil. Hoje as pessoas não pensam mais em Petrobras ou Banco do Brasil. Claro, muitas pensam, mas há muitos jovens talentos em tecnologia decidindo fazer seus próprios negócios.

HOJE, PORTO ALEGRE QUER SE COLOCAR COMO REFERÊNCIA NA INOVAÇÃO, AO MESMO TEMPO EM QUE PERDE POPULAÇÃO E TEM UMA DEMOGRAFIA DE PESSOAS MAIS VELHAS. O QUE A CIDADE DEVE FAZER PARA SER UMA REFERÊNCIA NESSA ÁREA?

Difícil, hein. Eu tenho para mim que a cultura gaúcha... Vai baixar um gauchismo aqui, mas vá lá. A gente se acha porque o RS tem bom nível cultural. O Estado é um exportador de talentos para o Brasil. Ao mesmo tempo, tenho amigos, da minha geração, brilhantes, mas que nunca conseguiram sair do RS. E há um apego, um bairrismo, as raízes que trazem as pessoas de volta. Então há uma equação toda... Mas há potencial. 

O South Summit é algo sensacional, o (José Renato) Hopf fez uma coisa quase milagrosa. Pelo nível acadêmico que a gente tem nas escolas, a gente conseguiria ser o grande núcleo de desenvolvimento de tecnologia do Brasil, sim. E, quem sabe, começar um novo ciclo brasileiro nessa área. O Brasil, se tiver um mínimo de gestores competentes, está fadado a ser rico. Tem mais luz e água do que os outros países, tem terra fértil. Inclusive a gauchada que subiu criou uma agroindústria que é uma das maiores do mundo. 

Não sei se isso envolveria programas de governo, não sei se essa galera que se reuniu para apoiar o South Summit poderia colocar capital para transformar o potencial numa realidade. Não sei ao certo. A cultura brasileira, de modo geral, não é uma cultura generosa. As famílias vão ficando ricas e guardam a riqueza para si. Desculpa a franqueza, mas é isso aí. É claro, que você pega o que um Jorge Paulo (Lemann) faz, na Fundação Estudar, e vê que tem caras que são filantropos exemplares. Mas acho, e aqui vai um pouco de crítica, que a gente tem de promover filantropia de verdade. E acho que o Rio Grande do Sul é o lugar em que, com filantropia, poderia fazer maravilhas. O insumo humano é riquíssimo.

COMO VOCÊ VÊ A EXPLOSÃO DAS INICIATIVAS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA) NO MERCADO?

Eu acho que a IA com conteúdo imersivo vai mudar a humanidade. Acho que esse é o segundo fenômeno humano fundamental. O primeiro, há 80 mil anos, foi a invenção da linguagem. A gente não se deu conta ainda do que está vindo, porque imagina você ter uma visão de raio X, enxergar um espectro eletromagnético ampliado, ver ultravioleta, infravermelho. 

Transportar-se para outro lugar. Imagina você ter uma capacidade intelectual ampliada cem vezes, mil vezes. Você ter acesso imediato a todas as suas memórias. O milagre d?O Rei Leão, que ninguém sabe, é que ele foi filmado em Point Cloud. Isso significa que, na pós-produção, você pode reeditar o filme de qualquer ângulo. É uma plataforma inteira de software que a gente desenvolveu em 2016-2018. A gente não entendeu ainda o que a IA vai nos trazer. Nós vamos ser super-humanos. 

Vamos ter superpoderes. A primeira geração dos Rockfellers, que explorou petróleo, lá na segunda metade dos 1800, levava uma semana para escrever dois memorandos e fazer três ligações telefônicas. A gente faz isso em 15 minutos. O que produzimos em um ano seria uma vida desse povo. O fenômeno da IA é um fenômeno da capacidade de concentração na resolução alta. Na resolução longa, os humanos são bons; na curta, somos criaturas incrivelmente distraíveis. Quando começarmos com a nova evolução de biologia eletrônica, a gente começará a ter conhecimento íntimo, e aí o estudo das ciências cognitivas vai cair no espaço de ciência pura, essencial.

O QUE VOCÊ DIRIA PARA QUEM ESTÁ COMEÇANDO A INVESTIR EM NEGÓCIOS DIGITAIS?

O horizonte de oportunidades mal começou. O espaço vai ser absurdo, a humanidade vai se reinventar através desses criadores, desses empreendedores, que vão usar a tecnologia de forma absolutamente impensada. Toda vez em que há um novo salto tecnológico, tentamos adaptar as funções anteriores para as novas possibilidades. Na verdade, quando a gente começou em 1996, quando começou a internet no Brasil, eu jamais imaginaria um fenômeno como o das redes sociais. E eu era pago para inventar esse tipo de coisa. Hoje não existem mais pequenos empreendedores. Tem computadores baratos que têm uma potência absurda, e você tem acesso a informação e algoritmos de código aberto... Ou seja, as oportunidades são ilimitadas. 

E assim seguirá nos próximos 10 ou 15 anos. E aí, voltando para os tecnologistas criativos, acho que, apesar daqueles três fatores que eu mencionei que são um problema para o Brasil, a garotada vai conseguir desenvolver conhecimento em matemática, em física, em computação. Porque somos um povo criativo. A gente pensa coisas, cria muito, até por ter um ambiente instável. Alguns dos melhores gestores que eu conheci na vida são brasileiros, porque são treinados numa escola de vida dura. Este é o momento das grandes oportunidades da área de tecnologia. Nunca vi nada parecido com tantas frentes, tantas possibilidades, especialmente nessa nova revolução cognitiva.

Quando a moeda era o cruzado novo, José Sarney, o presidente e o fax, o que havia de mais novo em tecnologia, Marcelo Lacerda já estava operando sistemas com correio eletrônico entre computadores. Esse é um dos passos da trajetória desse pioneiro da internet brasileira que, aos 63 anos, agora é executivo da Magnopus. A empresa de computação imersiva tem clientes como a Disney, parceira na criação do ambiente digital no qual foi feito o filme O Rei Leão em live-action. Gaúcho de Canoas, Lacerda relembra a ZH a sua história e dá dicas para quem quer empreender nos ambientes digitais. Para ele, o cenário competitivo tomado pelas big techs não assusta: é um momento para apostar em inovação e acreditar nas novas possibilidades da inteligência artificial, que podem nos tornar "super-humanos".

LUÍS FELIPE DOS SANTOS