domingo, 26 de janeiro de 2014


26 de janeiro de 2014 | N° 17685
ARTIGOS - Percival Puggina*

Castelos de cartas

“Qualquer idiota com mãos firmes e um par de pulmões funcionando pode construir um castelo de cartas e depois soprar para derrubá-lo.”

O que aconteceu na boate Kiss teve muito a ver com as afirmações dessa frase de Stephen King. Aquele local de lazer era um castelo de cartas à espera do sopro fatal.

Muitos brasileiros que emigram para o assim dito Primeiro Mundo passam por um período de adaptação. Para uns, é rápido. Para outros, porém, é um tempo de frustração que se encerra com a decisão de retornar às origens. Na essência da adaptação ao cotidiano dos países mais bem organizados, marcando-a de modo decisivo, está a absorção da seguinte regra geral de convivência: as leis valem para todos e não são inconsequentemente desrespeitadas. Isso costuma ser um choque. A ordem que produz costuma ser vista como enfadonha. Para muitos de nós, o respeito às leis, às regras de condomínio, aos preceitos de um contrato, aos costumes locais, cria uma atmosfera irrespirável.

No entanto, o Primeiro Mundo é o que é, em grande parte, por causa disso. Em virtude de tão fundamental norma, alguns países europeus estão fechando presídios. Há cada vez menos pessoas dispostas a aceitar os riscos inerentes à tentativa de prosperar no mundo agindo no submundo. Em virtude dessa regra, certos imigrantes preferem retornar à zorra nacional, aqui onde as leis são feitas para luzirem no papel e não para, de fato, sinalizarem as condutas.

No Brasil, o costumeiro desrespeito às leis, regras e costumes vai construindo castelos de carta em toda parte. Há castelos institucionais que vemos ser soprados pela falta de racionalidade, desde dentro e desde fora, comprometendo o funcionamento da República. Há castelos de carta estatísticos e contábeis, feitos para iludir, construídos por governos prestidigitadores. Há castelos de carta empresariais, concebidos para encher o peito de vaidades, de dinheiro os bolsos de alguns, e de problemas a vida de muitos. Há castelos de carta em políticas públicas, ineficientes ante a realidade para a qual foram concebidas. E há castelos de carta como a boate Kiss, à espera do sopro quente da morte, à espera da ignição lançada ao ar na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Irving D. Yalom, no livro O Dia em que Nietzsche Chorou, afirma que se subirmos suficientemente alto chegaremos a um nível a partir do qual as tragédias deixam de parecer trágicas. Ele estava errado. Não há nível a partir do qual deixe de ser pungente o diuturno sacrifício humano nas estradas e ruas do país, nos becos das drogas, nos presídios que o Estado já delegou ao comando dos próprios reclusos, nas filas de espera do SUS, na indigente atenção à saúde pública, no mau agouro enfermiço da falta de saneamento básico. Não há altura nem distância a partir das quais o incêndio da boate Kiss deixe de nos queimar a todos. Ele é uma consequência doída, ardida na alma, de uma outra tragédia, que quase não vemos: nosso hábito de dar um jeitinho e driblar a lei. Até que o país nos caia na cabeça.


*ESCRITOR

26 de janeiro de 2014 | N° 17685
ARTIGOS - Marcos Rolim*

Para nunca mais

As tragédias, para além da dor que disseminam e do que há de impensável nelas, costumam produzir impactos políticos e culturais profundos. Diante dos efeitos avassaladores da morte gratuita em grande escala, a forma como as sociedades se organizam e, mesmo, os padrões com os quais elas se concebem tendem a se alterar. O terremoto de Lisboa, de 1755, seguido por um tsunami e por centenas de incêndios, fez com que a filosofia fosse outra. Até então, as tragédias eram imaginadas como castigos divinos. O dia 1º de novembro, quando Lisboa foi destruída e dezenas de milhares de pessoas soterradas, era um feriado religioso em Portugal e as igrejas estavam lotadas de fiéis. Por que Deus os castigaria e por que os que estavam afastados das igrejas e de outros prédios teriam sido poupados?

Questionamentos do tipo permitiram que Voltaire refutasse a teodiceia de Leibniz e que o Marquês do Pombal começasse a investigação específica sobre o fenômeno, pioneirismo que abriria espaço para uma nova ciência, a sismologia. Tendo presente a realidade construída pela ação humana, foi com o Holocausto que a humanidade teve contato com o mal radical e com crimes cometidos por pessoas “normais” que obedeceram, porque desacostumadas ao pensamento. O ideal de um governo mundial, desde então, passou a ser um desafio político; surgiram as Nações Unidas, os Direitos Humanos emergiram como um paradigma ético secular, a realidade miserável do antissemitismo e a história dos pogroms passaram a receber o merecido repúdio e, assim, sucessivamente.

Um ano após a tragédia de Santa Maria, a pergunta incômoda – e, portanto, aquela que deve ser feita em primeiro lugar – é: o que mudou no Brasil? No RS, a mudança mais sensível e que deverá produzir efeitos importantes é a nova legislação (Lei 14.376/2013) de segurança, prevenção e proteção contra incêndios, de autoria do deputado Adão Villaverde (PT), que contou com ativa colaboração da sociedade civil e de especialistas. Tudo parece indicar, entretanto, a necessidade de reformas mais amplas, a começar pela sempre adiada autonomia do Corpo de Bombeiros, instituição central em qualquer política pública na área. Atualmente, apenas 18% dos municípios do RS têm bombeiros, o que significa que mais de 400 cidades gaúchas estão desprotegidas.

Tal carência – que poderá inviabilizar a aplicação da nova legislação – exige a formação de serviços mistos, coordenados por bombeiros profissionais, com poder de polícia, e com voluntários. Tramita na AL/RS a PEC 229, apresentada pelo deputado Pedro Pereira (PSDB), uma proposição que renova o conteúdo da PEC 45, que eu havia apresentado há quase 20 anos, em favor da autonomia dos Bombeiros. De lá para cá, mudaram os governos, o mundo mudou, mas o corporativismo, o cinismo e a ausência de vocação para as reformas seguem se impondo entre nós. Infelizmente, um ano após a tragédia da Kiss, ainda não podemos dizer: “Nunca mais”.


*JORNALISTA

26 de janeiro de 2014 | N° 17685
ARTIGO - Diana Lichtenstein Corso*

O prazo do luto

Abandonamos quase todos os rituais. Hoje eles são uma caricatura do que foram em um passado recente. Se vivêssemos décadas atrás, agora, no aniversário de um ano das mortes da boate Kiss, estaríamos levantando o luto, o período previsto para sofrer estaria cumprido. Voltaríamos a usar roupas normais e estaríamos liberados para as alegrias da vida. Podemos objetar, e com toda razão, que um prazo assim é arbitrário, um luto dura enquanto dura, é um tempo subjetivo, pessoal.

Cada um sabe quanto precisa para juntar seus cacos e seguir em frente, qual é a hora de dar-se conta de que há outros que contam com sua presença. Talvez fosse mais fácil fazer um luto quando ele era tabelado, cercado de prescrições que só nos cabia seguir. Mas os tempos de hoje são de uma maior solidão para esse processo, não existem parâmetros, cada um tem que inventar sua maneira de lidar com a dor.

Enquanto vivemos possuídos pelos efeitos da perda, nossos mortos sobrevivem nos sentidos: são vistos e escutados. Aliás, não é à toa que na ficção há tantas casas assombradas: é na intimidade que as lembranças ganham corpo, as casas são os cemitérios preferidos dos nossos sentimentos. Juramos ter visto uma sombra, que se favorece dos jogos de luz, os ouvidos detectam os passos, a chave na porta, o quarto vazio guarda ecos de ruídos ausentes. A imagem preservada pelo amor substitui o corpo que fomos obrigados a nunca mais ver.

Com o tempo, os fantasmas se transformam em lembranças. Estas têm uma característica inquietante, que é sua aparente arbitrariedade, pois nunca temos certeza de que elas são verídicas. Sua natureza é contrária à realidade, só existem porque algo deixou de existir. Lutamos contra essa transformação com todas as forças, agarramo-nos aos fantasmas, única presença possível de alguém que se tornou ausência. O maior apoio dessas aparições são seus objetos, seus cômodos se tornam mausoléu onde celebrar a perda irreparável. O que ontem era deixar de usar as vestes negras, sinal de um luto oficialmente encerrado, hoje passa a ser o momento de desfazer-se de objetos, roupas, ninharias, de reconhecer que já não há sequer um fantasma que reclama um lugar para morar.

Nesse processo de abrir mão dos restos materiais daqueles que perdemos, há algo que reencontramos: voltamos a notar a presença daqueles que restam vivos ao nosso redor. São pais, irmãos, filhos, netos, sobrinhos, maridos, esposas e amigos que precisam sentir-se importantes, fazer diferença. Entregues à dor, demonstramos que só nos importava aquele que partiu. Infelizmente, no sofrimento somos egoístas, negando qualquer valor aos outros vínculos que não foram perdidos. Por amor aos que não morreram é preciso deixar o morto tornar-se lembrança, tirar da alma os trajes negros, resignar-se a viver.

Um certo exagero da mídia em falar do assunto é também uma resposta coletiva para ajudar em problemas individuais. Como já não temos regras do que vestir, como portar-se, como sofrer, o compartilhamento social ajuda a cada um dos familiares e amigos. Acaba sendo uma forma nova para um problema velho, uma ajuda para seguir em frente depois de enterrar pessoas amadas.


*PSICANALISTA DIANAMCORSO@GMAIL.COM>

sábado, 25 de janeiro de 2014


26 de janeiro de 2014 | N° 17685
FABRÍCIO CARPINEJAR

Mendigo do amor

Até que ponto é possível amar sem ser amado?

Quando amamos platonicamente, o amor pode durar muito tempo. Pois não tem ninguém para estragar nossa idealização. Não há convivência para nos desafiar. É uma paixão estanque, feita de sonho e névoa. É uma vontade desligada da realidade. Temos a expectativa intacta, longe de contratempos. Acordamos e dormimos com o mesmo sentimento, longe de interrupção em nossa fantasia.

Mas quando amamos dentro de um casamento e quem nos acompanha não retribui o amor? Quanto tempo dura? Quanto tempo você suporta a secura, o desaforo, a grosseria? Quantos meses, se cada dia é um ano?

Nem estou falando de falta de sexo, mas a falta de beijo, de abraço, da telepatia rumorosa, do colo, de perceber seus cabelos sendo penteados pelas mãos, de ver seu rosto encarado de forma única e brilhante. Nem estou falando da falta de aventura, mas do conforto protetor, da cumplicidade, do afago que é viver com a certeza de que é admirado. Nem estou falando da falta de viagens, mas do mínimo da rotina apaixonada, ser cuidado mesmo quando está distraído. Não estou falando de arroubos e arrebatamentos, mas da vontade boa de morder seus lábios levemente quando suspira e de esperar o final de semana como um feriado.

Quanto tempo dura o amor sem retorno, sem reconhecimento?

Talvez pouco, quase nada. Quem não se sente amado não é capaz de amar. Não é problema de carência, é questão de tortura.

Extravia-se a cintilação dos olhos. Ocorre um bloqueio, uma desesperança, uma resignação violenta. É como dançar valsa sozinho, é como dançar tango sozinho. É abraçar pateticamente o invisível e não ter o outro corpo para garantir seu equilíbrio.

Você se verá um mendigo em sua própria casa, diminuído, triste, desvalorizado, esmolando ternura e atenção. Aquilo que antes parecia natural – a doação, a entrega, a alegria de falar e de se descobrir – será raro e inacessível. Todo o corredor torna-se pedágio da hostilidade. Passará a evitar os cômodos para não brigar, passará a evitar certos horários para se encontrar com sua esposa ou marido, passará a prolongar os períodos na rua, passará apenas a passar. Combaterá as discussões e gritarias anulando sua personalidade. Despovoará a sua herança, assumirá o condomínio do deslugar. Comerá de pé para evitar o silêncio insuportável entre os dois.

Quer um maior mendigo do que aquele que dorme no sofá em sua residência? Com um cobertorzinho emprestado e com a claridade das janelas violentando os segredos?

Por ausência de gentileza, perdemos romances. O que todos desejam é alguém que diga: não vou desperdiçar a chance de lhe amar. Alguém que não canse das promessas, que não sucumba ao egoísmo do pensamento, que tenha mais necessidade do que razão.

A gentileza é tão fácil. É fazer uma comida de surpresa, é convidar a um cinema de imprevisto, é pedir uma conversa séria para apenas se declarar, é comprar uma lembrancinha, é chamar para um banho junto, é oferecer massagem nos pés, é perguntar se está bem e se precisa de alguma coisa, é tentar diminuir a preocupação do outro com frases de incentivo.


Quando o amor para de um dos lados, o relógio intelectual morre. Não se vive desprovido de gentileza. A gentileza é o amor em movimento...

26 de janeiro de 2014 | N° 17685
MARTHA MEDEIROS

Realidade e percepção

Quando se diz que uma imagem vale mais do que mil palavras, logo pensamos em cenas e fotografias que não carecem de explicação: a força de sua mensagem dispensa legendas. Mas imagem não é apenas algo que se enxerga concretamente.

Quando vi a foto do caixão de Ronald Biggs coberto pela nossa bandeira, sabia que aquilo significava apenas uma homenagem do filho brasileiro que o ladrão inglês teve, mas, subliminarmente, a imagem também fazia uma associação indigesta entre o banditismo e as cores verde e amarelo. Essa imagem negativa que temos do nosso país não é gratuita. Por maior que seja a quantidade de brasileiros honestos, incluindo até alguns políticos, não adianta: o Brasil tem um histórico de corrupção e violência que induz a essa percepção.

Percepção é algo que se constrói dia após dia, fato após fato, e que uma vez consagrada, é difícil mudar. Mesmo que todos os trens da Inglaterra partam e cheguem com atraso nos próximos meses, será preciso anos para desfazer a imagem que aquele país tem de pontual. O contrário também acontece. Ronald Biggs, depois que fugiu para o Brasil, não roubava mais nem no troco, era apenas um aventureiro que se transformou em uma folclórica subcelebridade. O episódio do assalto ao trem pagador, cinco décadas antes, foi deixado de lado em prol da construção de uma imagem de anti-herói, e ele acabou sendo enterrado com cobertura da imprensa.

Poucas coisas são tão fortes quanto a imagem que a gente cria. E como todos gostam de saber com quem estão lidando para evitar surpresas, essa imagem vira referência e pode agir a nosso favor e também contra - preconceitos vêm daí.

Nem todo alemão é sisudo, nem todo baiano é preguiçoso, nem todo gaúcho é machista, mas essa é a “foto” que guardamos deles em nossos porta-retratos mentais. Estereótipos de grupo. Individualmente acontece a mesma coisa. A sua vida passa como se estivesse numa esteira de linha de produção, até que um dia você ganha um rótulo – que não veio do nada, você de certa forma colaborou para ser etiquetado como um fofoqueiro, um bebum, um mulherengo.

E também colaborou para ser reconhecido como um cara focado, um homem responsável, um sujeito que cumpre o que promete. Você pode mudar? Pode. Para melhor e para pior. A vida é longa. Angelina Jolie passou de bad girl a cidadã ativista e de família - adotou crianças, visitou países assolados pela fome, a nossos olhos virou outra pessoa.

Mas, para comuns mortais, é bem mais penoso reverter a própria imagem. A imprensa não cobre.


Rótulos, mesmo os bons, são limitadores. O ideal seria que pudessem esperar qualquer coisa de nós, já que somos mesmo capazes de surpreender. Mas o mundo se apega às certezas, não às dúvidas. Então, tenha em mente que tudo o que você faz (e principalmente o que você repete) ficará arquivado na memória daqueles com quem convive, e será um trabalhão desfazer essa imagem. Não que seja impossível, mas vai exigir mais do que mil palavras.

sábado, 18 de janeiro de 2014


19 de janeiro de 2014 | N° 17678
MARTHA MEDEIROS

Topless

Nos primeiros dias do ano foi organizada uma manifestação no Rio de Janeiro a favor do topless, mas, para desapontamento geral, teve adesão de algumas poucas gatas pingadas e o assunto não evoluiu.

Brasil, país da liberalidade, do Carnaval, das popozudas, das mulheres-fruta, da globeleza, do fio dental e demais manifestações de culto ao corpo (sem que nada disso altere a paz familiar), proíbe o topless na beira da praia. Um contrassenso? É, mas explica-se.

O Brasil é permissivo quando o assunto é sexo. De letras de música a comerciais de tevê, aqui quase tudo tem apelo erótico e tudo bem, aceitamos a lascívia como traço de caráter. Seios de fora é uma representação da nossa identidade, da nossa latinidade, das nossas raízes – desde que associada, de forma sutil ou não, à malandragem, à sacanagem, à libido. Por incrível que pareça, é mais chocante ver uma mulher amamentando seu bebê dentro de um ônibus do que arregaçando a camiseta e mostrando os peitos em frente às câmeras num estádio de futebol. Esta será candidata à musa. Ela pode. Mas o gesto maternal sugere indecência.

A amamentação em lugares públicos não é uma atitude sexual, portanto, é algo que perturba, que está fora do nosso contexto. Com o topless se dá o mesmo. Uma mulher com os seios de fora à luz do dia, em volta dos filhos, tomando mate gelado? É atentado ao pudor.

Topless não é um ato de exibicionismo, e sim uma atitude naturalista. Na Europa, basta despontar o primeiro raio de sol para a população tirar a roupa, inclusive nos parques. Em Munique, homens e mulheres dos oito aos 80 anos se reúnem no Englischer Garten, tiram toda a roupa – toda – e ficam lendo seu livrinho numa boa, com a pureza de um recém-nascido. Ninguém sai batendo fotos, salivando com cara de tarado ou marcando encontros atrás da moita. Desde a loira escultural até a senhora pelancuda, todos têm sua privacidade respeitada.

À beira mar o topless é ainda mais comum. Muitas mulheres dispensam o sutiã, não importa o estado de conservação de suas mamas. Fazem isso porque é mais confortável e também para ganhar um bronzeado uniforme, sem as marcas do biquíni. Particularmente, acho mais bonito usar as duas peças, mas não é de estética que se está falando. É do direito que uma pessoa tem de vestir-se (ou, no caso, despir-se) como bem entender, desde que num ambiente propício e sem agredir quem está a sua volta.

Aqui, na novela das nove, homens disputam para ver o “bigodinho” (depilação da virilha) de uma colega de trabalho, e o povo acha a maior graça, mas topless é perversão. Dançamos na boquinha da garrafa, mas não toleramos a liberdade de costumes. E como não se muda a mentalidade de um país por decreto, fazer topless sem estardalhaço ficará para uma próxima encarnação.




19 de janeiro de 2014 | N° 17678 FABRÍCIO CARPINEJAR
carpinejar@terra.com.br

Mudaremos

Era aquele que dizia que não bebeu nada, apesar do bafo de cerveja.

Era aquele que dizia que não fumou, apesar do cheiro de cigarro.

Era aquele que dizia que não pegou as chaves, apesar de ter sido o último a sair com elas.

Era aquele que negava antes de ouvir a pergunta. Das situações mais triviais às mais complexas.

Desprezava as pequenas mentiras. Acreditava que representavam lapsos necessários, pequenas omissões imprescindíveis para viver a dois.

Eu me transformei por amor. Busco ser honesto sempre, assumindo as mancadas e as falhas.

Mentir não me tornava imperfeito, mentia porque não admitia errar. Não aceitava arranhar a minha imagem. Somente mente quem se julga perfeito, e quer esconder seus vacilos.

Atravessei um tabu de décadas, deixei para trás antigas crenças que não entendo de onde tirei.

Todo homem é conservador e resiste às metamorfoses. Até se apaixonar.

“Não vou mudar”, portanto, é uma frase falsa. Apague de seu vocabulário.

Por amor, mudaremos sim. É só mudando que amadurecemos.

Por amor, nos revolucionamos sim.

Pode vir com sua teimosia, com seu orgulho, com sua arrogância, afirmando que é imutável, que não mexerá em seu temperamento, que tem seus hábitos, que foi assim toda a vida, mas mudará sim.

A convivência influencia, abre as ideias, destrói intolerâncias, força a mutação emocional.

Amor é exceção. É quando praticamos a exceção. Pode deixar as regras para os outros.

Quer uma maior declaração do que tentar fazer o que não admitia ou apreciar o que recusava?

Se você mantinha distância de água, por amor fará natação.

Se você alertou que jamais dirigiria um carro, por amor entrará numa autoescola.

Se você alimentava horror de avião, atravessará o oceano atlântico de seu medo.

No relacionamento que dá certo, promessa não é maldição. Ainda que tenha lavrado verdades no cartório, elas serão lavadas dentro de casa: vão desbotar, vão amarelar, vão desaparecer.

Já vi gente parar de beber, parar de fumar, parar de trapacear, parar de trair.

Vícios são abolidos, virtudes são regeneradas: mudaremos sim.

Encontraremos coragem no olhar terno e confiante de nossa esposa. Localizaremos vontade na cumplicidade ingênua do filho.

Mudaremos sempre. Mudaremos vários fins enquanto não vem nossa morte.

sábado, 11 de janeiro de 2014


12 de janeiro de 2014 | N° 17671
FABRÍCIO CARPINEJAR

O que sofre o lavador de louça

Sou um lavador de louça contumaz: retiro manchas, elimino riscos nos copos, realizo milagres com o Limpol e o Sapólio. A esponja e o Bombril são extensões de minhas mãos. Não uso luvas ou água quente por uma questão de caráter; recuso qualquer elemento que seja entendido como uma vantagem.

Faz 30 anos que lavo por persuasão feminina, e já assimilei os sofrimentos do ofício.

O pior não é lavar a louça, é terminar o serviço e a esposa comentar que faltam as panelas. No campo de batalha do fogão, descobrir que resta o triunvirato formado pela panela com o arroz queimado, a frigideira com o molho de carne e a panela de pressão do feijão. Tudo o que lavou não corresponde nem à metade do que cabe ainda lavar.

A notícia aniquila com sua boa vontade. Ao assumir o comando da torneira e do detergente, o mínimo que deseja é visualizar o trabalho a ser feito. Pretende ter a consciência exata do seu esforço. Não quer sofrer nenhum contratempo. O surgimento de quinquilharias de última hora é o equivalente a ser trapaceado na contagem doméstica.

Eu me sinto roubado. Eu me sinto traído pela casa. Eu me percebo humilhado. Nada contra colaborar, o que me incomoda são os imprevistos.

Louça é para profissional. Requer planejamento. Não dá para mudar as regras no meio do jogo. Acabo irritado com o despreparo dos familiares, que nem se desculpam e soltam – com risinhos envergonhados – pires e peças retardatárias na pia.

O pior não é lavar a louça, é lavar antes de servir o doce e o café. Assim que decretar o descanso pousando a chaleira na toalha de crochê, aparecerão pratinhos e xícaras para o segundo turno eleitoral da espuma.

O pior não é lavar a louça, é estender o pano de prato no gancho e sua mulher decidir – porque é você que está com avental naquele dia! – desovar todos os potinhos da comida na geladeira. Precisará dar conta de um estoque completo da Tok&Stok.

O pior não é lavar a louça, é quando esfrega aquela fôrma do assado, debruçado nas frinchas, suando frio, e a família lhe chama sem parar na sala – você não escuta nada porque é impossível participar da conversa ao mesmo tempo noutro lugar.

Mas o pior, o pior mesmo, não é lavar a louça, é secar a louça. Coitado do secador, vice-prefeito da cozinha. Ninguém jamais lembra ou agradece essa tarefa que pode ser exercida pelo vento.

carpinejar@terra.com.br

12 de janeiro de 2014 | N° 17671
MARTHA MEDEIROS

Comédia e tragédia

Eu estava no banheiro do shopping quando escutei duas amigas conversando sobre o filme que haviam acabado de assistir. Uma disse: Li no jornal que era uma comédia e vim disposta a gargalhar muito. 

A outra: Também fui surpreendida, esperava outra coisa, não esse soco no estômago. Estava na cara que elas haviam assistido ao mesmo filme que eu, o impiedoso Álbum de Família, que no roteiro de cinema de Zero Hora está anunciado realmente como comédia, ainda que sejam 120 minutos de descontroles, rancores, humilhação, traição, sarcasmo, agressão física e maquiavelices.

É um filmaço, como quase sempre é quando o cinema presta reverência ao teatro: foi adaptado pelo dramaturgo Tracy Letts, autor da peça homônima, e o diretor John Wells manteve na tela a dramaticidade dos palcos. Em teatro, o exagero é natural, o tom costuma ser ligeiramente mais alto que o naturalismo de uma novela de tevê. Teatro é uma espécie de laboratório da vida e congrega todos os elementos que a ela pertencem.

Álbum de Família mostra o reencontro de três filhas com sua mãe, depois que essa fica viúva, e mais os agregados e parentes próximos que vieram para o funeral. Em poucos dias de convívio numa mansão decadente em Oklahoma, diversos traumas e mágoas eclodem: cada um dos visitantes possui várias dores entaladas na garganta, a ponto de, a certa altura, o espectador começar a achar graça daquele desfile inesgotável de fraturas emocionais.

Família é sempre um prato cheio – e agridoce. Amor e ódio, atração e rejeição, acolhimento e desprezo, idealizações e desilusões, carinho e perversidade: um cardápio sortido de emoções contraditórias distribuídas sobre a mesa. Em volta dela, nós, famintos por compreensão e tendo que ser diplomáticos e civilizados até que uma provocação nos faça perder as estribeiras.

A questão é que entre família não há divórcio. Não existe ex-pai, ex-mãe, ex-filho, mesmo que se suma do mapa, mesmo que peguemos a estrada para o mais longe possível. DNA é praga. Não tem rota de fuga. Nasceu, está danado. Então, melhor condescender do que se estressar.

Há famílias mais serenas do que outras, mais afetuosas do que cínicas, mais cinematográficas do que teatrais. Ainda assim, sempre haverá um papel para cada um de seus membros: o de vilão, o de vítima, o de playboy, o de trabalhador, o de folgado, o de frágil, o de problemático, todos apegados aos motivos que os levaram a ser como são.


E eles se acusarão a vida inteira, e se defenderão, e nunca haverá um consenso, e de nada adiantará tanto berro: de dramáticos passarão a patéticos, inevitavelmente. A classificação que o jornal deu ao filme não está tão errada como parece. Tragédia e comédia cedo ou tarde dão-se as mãos, elas que também são da mesma família.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014


06 de janeiro de 2014 | N° 17665
ARTIGOS  Paulo Brossard*

Guerra psicológica

Em sua mensagem de fim de ano, a senhora presidente, em rede de rádio e televisão, mencionou fatos, supostos ou reais, de suma gravidade; nada menos que uma guerra psicológica contra o Brasil. Isto, dito por alguém do primeiro escalão, do segundo ou mesmo do terceiro, já seria temerário, pelos inevitáveis e variados efeitos que não poderiam deixar de atingir o país, mas é simplesmente espantoso quando dito pela chefe do governo e do Estado, titular do Poder Executivo, que envolve a maior soma de poderes que homem possa possuir e exercitar, que tenha a chefia da administração, exerça o comando supremo das Forças Armadas, tenha a palavra final nas relações internacionais, inicie o processo legislativo, para dizer o menos.

É chocante que isso tenha sido dito pela chefe do governo e do Estado, valendo-se de inexcedível rede de comunicação. Ou a presidente tem ciência dessa situação, cujas consequências podem ser incalculáveis e de difícil aferição, ou, se a denúncia formulada não tiver seriedade, o mínimo que se pode dizer é que a autoridade terá demonstrado a ausência do imprescindível senso de responsabilidade.

Desgraçadamente a mensagem em causa, da “guerra psicológica”, assoalhada pela senhora presidente, parece não ter nenhuma objetividade, pois nela tudo é hipotético, “se alguns setores, seja por que motivo for, instilarem desconfiança, especialmente desconfiança injustificada, isso é muito ruim”. Isto “se alguns setores instilarem desconfiança”, ou seja, trata-se de mera hipótese, “se” e nada mais.

Mas não é só. Na mesma linha, acrescenta a mesma alta autoridade que “a guerra psicológica pode inibir investimentos e retardar iniciativas”, ambas as passagens contêm mera possibilidade ou hipótese apenas possível e nada mais. Aqui a leviandade é mais lamentável e mais comprometedora da dignidade das instituições e, o que é gravíssimo, patrocinada pela chefe do governo e do Estado.

Confesso que escrevo este artigo com o maior constrangimento cívico e com a consequente indignação, ainda que com uma forma extremamente contida. A verdade é que muito e muito mais poderia e deveria ser dito, diante da inédita e inaudita inconsciência revelada. Desnecessário dizer da minha perplexidade em face do acontecido. O certo é que, se nem todos os presidentes eram dotados de atributos excepcionais, de nenhum se poderia dizer que teria incidido em semelhante claudicação funcional.

Alguns dos maiores jornais do Brasil publicaram essa matéria na primeira página, em suas edições do dia 30 de dezembro. Após a estupenda história da “guerra psicológica”, a senhora presidente repetiu “compromisso de manter o equilíbrio das contas públicas e controle da inflação”.

Aqui o expediente cheira a pilhéria, pois foi exatamente a deterioração das contas públicas ao longo do ano uma das maiores causas que minaram a confiança dos investidores, e a inflação continuou em patamares elevados, tanto que, para enfrentar o câncer da inflação, o juro que se mantivera estável na casa dos 7,25% ao ano de outubro de 2012 a abril de 2013, foi sendo elevado até atingir o índice dos 10%, como tinha sido em janeiro de 2012. É dessa forma que as contas públicas, de braços dados com a inflação, refletem as benemerências do governo que se esfalfa na reeleição em campanha aberta, afrontosa à lei eleitoral.

À medida que se entrava no quarto trimestre, os maus resultados administrativos começaram a ser conhecidos e, em breve, os dados completos estarão sendo divulgados em toda a sua amarga objetividade.

Por fim, em lugar de uma mensagem adequada ao encerramento de um período de notórias e variadas dificuldades, a nação foi testemunha de um desengonçado autoelogio em ritmo eleitoral, com fogos de artifício de muitas formas e cores.


*JURISTA, MINISTRO APOSENTADO DO STF

06 de janeiro de 2014 | N° 17665
ARTIGOS - Joaquim Clotet*

Otimismo do começo

No início de cada ano, renovam-se sentimentos, podendo ser também o momento de reafirmar atitudes primordiais à humanidade, como o otimismo, a gratidão e a curiosidade. O poeta Robert Browning convida ao estado de ânimo otimista quando escreve saúda com alegria o que ainda está por vir. Não há dúvida de que se trata de uma admirável forma de começar 2014.

Outra atitude, infelizmente menos comum, é a da gratidão pelo apoio, compreensão, colaboração e, também, pela capacidade de devolver algo, ainda que singelo como, por exemplo, um sorriso, uma sugestão ou um presente. Tal foi a postura do neurologista Oliver Sacks, do Reino Unido, ao completar 80 anos, poucos meses atrás. Um terceiro destacado posicionamento é o da curiosidade e, neste caso específico, o da curiosidade perante o papel sempre crescente da tecnologia. Quem se ocupa do estimulante e enigmático tema é o Instituto para o Futuro da Humanidade da Universidade de Oxford.

O sueco Nick Bostrom é o diretor do centro. Esse filósofo e matemático considera as três tecnologias que constituem, no seu entender, a grande promessa e/ou a grande ameaça para a humanidade: a nanotecnologia molecular, a biologia sintética e a superinteligência ou a mente superior ao atual cérebro humano. O progresso tecnológico na sociedade global avança vertiginosamente. Constitui um exemplo o Tech City, em Shoreditch, zona leste de Londres, que duplica a cada ano.

O Brasil progride em quantidade e em qualidade, sem ignorar as hipóteses e os projetos avançados do Hemisfério Norte. A tecnologia quer ser mais pragmática e adaptada à realidade social e científica circundante. Interessa a tecnologia aplicada ao desenvolvimento que promove a inclusão digital, reduz as desigualdades sociais e regionais, bem como aumenta a autonomia tecnológica e a competitividade nacional. O que ontem parecia um sonho está sendo realidade hoje.

Porém, a tecnologia não é a panaceia para o progresso. Deve estar acompanhada das humanidades e de uma visão transcendente que a complete. Steve Jobs, inovador, empresário e líder das tecnologias da informação e da comunicação, afirmou sem receios: “Trocaria toda a minha tecnologia por uma tarde com Sócrates”. Independentemente do posicionamento de cada um, vale olhar o futuro com bom senso, otimismo e coragem sempre renovados.


*REITOR DA PUCRS

06 de janeiro de 2014 | N° 17665
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Sangue e champanhe

Seus dias começavam com um longo relax na banheira do Lancaster Hotel, em Paris, durante o qual lia Simenon e os jornais da manhã. Ia em seguida fazer suas apostas em Longchamps ou almoçar em algum restaurante da moda, nunca sem a companhia de uma bela mulher e de uma garrafa de Borgonha. Às vezes levava suas garotas para uma esplêndida, antiga mansão dos Rothschilds providencialmente colocada a seu dispor. Ao entardecer empenhava-se em nova caçada no Hotel Crillon, seguida de um jantar que poderia ser no Alexandres’s da Av. George V, culminando tudo com mais amor e algum pôquer.

Estou falando de Robert Capa, o maior fotógrafo de guerra de todos os tempos. Uma notável biografia sua, Sangue e Champanhe, foi recém publicada no Brasil. O autor, Alex Kershaw, traça com maestria o fantástico perfil desse judeu húngaro, nascido André Friedmann e, como tantos de seus compatriotas, condenado desde o berço a inglório fim em um campo de concentração.

Só que ninguém tinha combinado isso com ele. Capa, iludindo seu destino, enfrentou por décadas a morte, primeiro vencendo a fome e a miséria extremas, e logo derrotando-a, com uma câmera na mão, em lugares tão diversos como a China, a Espanha, o norte da África, a Itália, a França, a Alemanha, Israel.

Para quem desafiava a morte, era preciso antes de tudo amar a vida. Robert Capa a queria de paixão, tanto que era um sedutor nato. “Ele era muito atraente, pela aparência, o estilo de vida de cigano, o glamour de seu trabalho, a fama de suas fotos e o perigo de sua vida” – disse uma de suas amadas. Mais há de ter dito a mais bela de todas. Essa atendia simplesmente por Ingrid Bergman e se entregou inteira a ele depois que passearam de mãos dadas num amanhecer de boemia pelas margens de Sena. Foi um affair que, inaugurado assim tão magnífico, duraria anos.

As outras foram inumeráveis, como incontáveis foram seus amigos, gente tipo Cartier-Bresson, Ernest Hemingway, Pablo Picasso, John Steinbeck, John Huston, Irwin Shaw, Ali Khan, Gene Kelly e mais uma multidão. Como o recém citado Hemingway, David Niven e todo um exército de celebridades, Capa foi, alegadamente, o primeiro dos aliados a entrar em Paris em 1944.

Mas não estava preparado para entrar, 10 anos depois, num lugar chamado Indochina (depois mais conhecido como Vietnam), que foi onde se apagou sua estrela.


Leiam o livro de Kershaw, ainda que, em suas 349 páginas, não apareça uma só das fotografias que imortalizaram Capa. Na edição brasileira, o personagem vale suas imagens.

06 de janeiro de 2014 | N° 17665
LETICIA WIERZCHOWSKI

Porque prefiro a ficção

As pessoas sempre me perguntam se escrever ficção é difícil. Costumo responder que difícil mesmo é a realidade. A ficção é areia entre os dedos, massa que se molda segundo os meus mais voláteis desejos. Quando comete-se um erro num romance, volta-se atrás em 30, 40 páginas, e tudo é refeito sem danos maiores do que, talvez, algumas noites em claro. A vida real tem dimensões bem mais difusas...

A vida envolve outros egos e agendas, outros medos e sonhos, envolve outras pessoas. A vida real é barulhenta e furiosa como uma churrascaria num domingo, e a gente tem que seguir equilibrando as tarefas todas como um desses garçons que circulam graciosamente pelo salão com sua bandeja cheia de pratos sujos.

Dito isso, não tenho nada contra a vida real. Os amores, a maternidade, as esperas, os aprendizados, as viagens e os erros da vida real são uma aventura da qual eu não me furto. Não sou o tipo de escritora isolada do mundo, sozinha com a sua inspiração e os seus projetos. Sou pau para toda obra, como diz a minha mãe. No colégio dos meninos, na fila do cartório, no caixa do supermercado.

Mas adoro escapar rumo à ficção, e vou para ela sempre que posso, como quem corre em direção às férias. Por que eu escrevo tudo isso? Porque estou de mudança para o Rio de Janeiro, depois de 12 anos morando em Porto Alegre (sou porto-alegrense, mas já dei algumas voltinhas por aí quando casei com um gaúcho de olhos azuis que tinha se radicado em São Paulo), e mudar dá uma trabalheira danada. Quanta saudade dos fluxos de pensamento, das cenas e dos sumários!

Quanta saudade de um bom diálogo, da tela do computador e dos seus amistosos silêncios. Estou aqui cercada de coisas. Coisas, coisas, coisas, coisas... Coisas por todos os lados! Papéis e registros e contas e listas que se multiplicam feito aqueles bichinhos de iogurte que a minha mãe mantinha num pote sobre a geladeira. Sempre tive pavor daqueles iogurtes caseiros, assim como tenho das listas que ora ocupam a minha mesa sem deixar espaço para os personagens.


Dados cadastrais roubando meu sono. Caixas de papelão nominadas com pincel atômico acumulando-se feito vírus entre eu e os meus pensamentos. Armários com as suas bocas escancaradas, prontos para me engolir. Nãooo! Prefiro as palavras. As palavras são doces e macias e sumarentas... As palavras, estas pequenas frutas do meu paraíso.

06 de janeiro de 2014 | N° 17665
PAULO SANT’ANA | MOISÉS MENDES

Nelson Ned no Alegrete

Procuravam petróleo nas barrancas do Caverá no Alegrete do início dos anos 70. O professor Schneider reunia adolescentes no mezanino da Igreja Matriz para criar o maior coral do mundo. Eu fiz ensaios nesse coral. Mais tossia do que cantava.

As gurias faziam duelos no Colégio Emílio Zuñeda para ver quem usava as saias mais curtas. Estudava-se o conjunto vazio. Alegrete também se queixava de que Mario Quintana aparecia pouco por lá. Até que um dia, em 1972, apareceu Nelson Ned.

Nelson Ned tinha 25 anos e já brilhava com o sucesso de Tudo Passará. Eu tinha 19 anos, era repórter do Hélio Ricciardi e do Samuel Marques na Gazeta de Alegrete. Foi minha primeira entrevista com celebridade. A foto é de uma conversa no Cine Glória, onde ele se apresentaria à noite. Num determinado momento, que pode ter sido o registrado na foto, ele olhou minha calça de veludo estampado e perguntou:

– Você também é cantor?

O cantor da família, na linha do Agnaldo Rayol, era meu irmão Nelson Mendes. Eu era apenas um repórter que amava Jimi Hendrix e Candice Bergen. Nelson Ned, vamos admitir, era o nosso Tony Bennett, mas não fazia muito sucesso entre os jovens. Era cantor de gente de mais idade, de mais de 30 anos. Pessoas de mais de 30 anos eram maduras e geralmente caretas. Mas como cantava o Nelson Ned! Cantava tanto, que, depois de brilhar no Alegrete, foi cantar no Carnegie Hall, em Nova York.

Eram mágicos aqueles anos 70 no Alegrete, e é uma pena que só os que moravam lá soubessem disso. Apareciam na cidade, além do Nelson Ned, o teatro Gira-Gira, um ciclista boliviano que pretendia bater o recorde mundial pedalando sem parar na Praça Getúlio Vargas e um circo, sempre o mesmo, que ia embora e deixava o boato de que uma guria da cidade tinha ido junto com o tratador dos elefantes.

Poucos dos meus amigos queriam cantar no coral do professor Schneider, porque isso seria coisa de guri mole. Paulo Renato Rodrigues pretendia jogar no Flamengo (o do Rio, não o do Alegrete). José Roberto Ramos organizava uma turma de estudantes que iria conhecer a freguesia do Alegrete em Portugal, Elvio Vargas fazia versos alexandrinos para ganhar as gurias, mas as gurias queriam sonetos, e José Airam fotografava paisagens, passarinhos e crepúsculos.

Nelson Ned apareceu nesse ambiente com camisa de seda e correntão no pescoço. Confrontado com o que existe hoje, seria mais do que Tony Bennet, seria um Frank Sinatra. Na foto, feita pelo Salim, o cara do meio é o empresário de Nelson Ned. Quando abri no computador a foto que meu amigo Heitor Schmidt me enviara, porque tinha arquivada em casa, uma turma foi se juntando em torno da minha mesa aqui na Redação.

Riam, gargalhavam, do cabelo e da calça. Um grupo de gente séria. Gustavo Roth, Diego Araujo, Jones Lopes da Silva, Carlos Etchichury, Marcelo Ermel e Vivian Eichler se divertiram tanto, que nem perguntaram sobre o que mais Nelson Ned me disse. Eu conto agora. Quando se fixou na minha figura, como se vê na foto, o gigante quis saber:


– Onde compro aqui no Alegrete uma calça igual a essa tua?

06 de janeiro de 2014 | N° 17665
L.F. VERISSIMO

Carisma

Eu estava vendo o ditador norte-coreano Kim Jong-un na TV e pensei no Jango Goulart. Não que houvesse qualquer semelhança física ou política entre os dois, mas tanto Kim quanto Jango nos fazem especular sobre essa coisa misteriosa chamada carisma – que Jango não tinha e o pequeno e rechonchudo Kim tem muito menos.

Claro, Kim herdou a ditadura do seu pai, que herdou do seu avô. Não precisava de carisma para chegar aonde chegou, bastava o nome. Mas Jango fez uma carreira política importante que culminou na Presidência da República, apesar da evidência de não ter muito gosto pela política ou pelo poder, e nenhum carisma. Também teve um pai político – Getúlio Vargas –, mas conquistou sua liderança no embate e no voto, mesmo com zero de carisma.

Até hoje se especula se a história do Brasil teria sido diferente se a personalidade do Jango fosse diferente, e ele tivesse vontade suficiente para chefiar uma resistência ao golpe de 64. Muito se falou, no rescaldo do golpe, num inexistente “esquema do Jango” que deteria os golpistas. Hoje se sabe que o “esquema” pode até ter existido, o que faltou foi a decisão do Jango de inspirar uma reação, com o risco de deflagrar uma guerra civil. Foi o momento em que um pouco de carisma teria mudado tudo.

Outro caso notório de um político que foi longe sem carisma é o de Richard Nixon, que chegou à presidência dos Estados Unidos, e à reeleição, apesar do seu ar soturno e da sua absoluta falta de atrativos pessoais. Nixon fez a sua carreira como caçador de comunistas durante a Guerra Fria e ganhou o apelido de “Tricky Dick” e uma reputação que justificava o apelido de pouco confiável.

Mesmo assim, só não completou dois mandatos na presidência porque foi derrubado pelo escândalo de Watergate. Faltava a Nixon o que sobrava, por exemplo, a John Kennedy. Houve um famoso debate eleitoral entre os dois em que, na opinião de todos, Kennedy arrasou com Nixon.

Revendo-se a gravação do debate, depois, chegou-se à conclusão de que Nixon, na verdade, vencera. O que convencera as pessoas da vitória de Kennedy fora sua aura de juventude e capacidade de liderança, além da cara limpa em contraste com a cara sombria do adversário. Ganhou o debate o carisma do Kennedy, não o Kennedy.


O que é, afinal, carisma? O Aurélio diz que é a atribuição a alguém de qualidades específicas de liderança, derivada de sanção divina, mágica ou diabólica. Em suma, um mistério. Você nem sempre sabe quem tem, mas sabe imediatamente quem não tem.

sábado, 4 de janeiro de 2014


05 de janeiro de 2014 | N° 17664
FABRÍCIO CARPINEJAR

Amor-sequestro e amor-remanso

Se você se afastou dos amigos, dos filhos, da família, é bem possível que esteja vivendo um amor-sequestro.

Não está numa relação, mas num cativeiro, sem contato com o mundo externo e apartado de uma segunda opinião.

Seu paradeiro é desconhecido, não sai do quartinho escuro, não troca ideias com a roda de colegas, não avalia sua condição, apenas se alimenta das sombras do passado e do pensamento.

Ficará tão sozinho, tão distanciado de sua rotina anterior, que não terá mais uma vivalma para pagar o resgate.

O isolamento é o termômetro da falta de felicidade.

O amor-sequestro consiste em devotar suas energias exclusivamente para sua companhia e esquecer o elo das demais amizades. É criar uma simbiose com o sequestrador (namorada ou namorado), a ponto de discutir por qualquer coisa, por qualquer problema.

Você passará mais tempo tentando salvar o relacionamento do que aproveitando o relacionamento. Enfrentará uma situação de pânico, contando os dias, angustiado com a ausência de perspectiva e de estabilidade. Só falará do mesmo assunto: o tratamento injusto que recebe.

Não há como amadurecer com o amor-sequestro. Ninguém cresce pressionado. Ninguém cresce emparedado. Ninguém cresce cobrado. Ninguém cresce ameaçado do fim.

No amor-sequestro, nada é suficiente. Pode oferecer seu máximo de ternura, que será pouco, o máximo de gentileza e será pouco, o máximo de entrega e intensidade e será pouco.

Quando os pedidos são insaciáveis, você não está sendo amado, demonstra que seu par apenas espera sua falha para humilhar e expor a superioridade.

Tornou-se refém das brigas e da insatisfação do outro. Buscará agradar, e decepcionará com frequência. Buscará reverter a situação, e somente agredirá de volta.

No amor-sequestro, deixa-se de ser inteiro para ser fragmentado, parcial, com dificuldades de resolver o trabalho e dar continuidade para a vida social. Nunca sobra folêgo para novas tarefas e compromissos.

O ideal é o amor-remanso. Ter paz para errar, pensar no erro e retribuir com atitudes afirmativas. Experimentar um relacionamento com a sensação de contar com todo o tempo para alinhar os passos (entender para aprender). Pois a solução dos problemas não acontece com hora marcada.

Os amigos e a familiares se manterão próximos, aconselhando, amparando, valorizando o enlace. Tem chance de sentir saudade, não estará sufocado e asfixiado num mesmo lugar, não se enxergará culpado ou em desvalia. Será admirado pela sua lealdade, por aquilo que você é. Por mais que não esteja certo, sua namorada ou seu namorado estará com você, ao lado, esperando que perceba a verdade, respeitando seu ritmo.

Não há maior liberdade do que a tranquilidade. Desfrutar de calma para se conhecer e assim se doar melhor.


A eternidade está no presente, não no futuro. Que seja eterno porque confiamos.

05 de janeiro de 2014 | N° 17664
MARTHA MEDEIROS

À flor da pele

Quando tento buscar na memória a menina que fui, não consigo me ver chorando. No colégio? Nunca. Em casa? Só de forma muito reservada e profunda no silêncio do meu quarto, jamais por fricotes infantis. Mesmo adolescente, com os hormônios em curto-circuito, tampouco lembro de abrir as torneiras. Era durona, não chorava nem quando havia sério motivo para tal aliás, bastava que algum parente distante tivesse morrido para me dar uma vontade louca de rir. Tinha vergonha de me emocionar.

Depois veio a idade dos namoros, e aprendi a chorar por dor de cotovelo e também por autopiedade. Meu choro era tão sentido, vinha de zonas tão secretas em mim que, mesmo quando o motivo do choro já havia se dissipado, eu continuava chorando pela simples emoção de estar testemunhando a minha tristeza reprimida que finalmente desaguava — eu chorava pela comoção que eu mesma me causava.

Chorei por amor e ainda vou chorar, porque é da natureza do amor despertar nossas fragilidades. Chorei no momento em que minhas filhas nasceram, porque o esforço e a intensidade da emoção do parto faz tudo vazar sem barragem que represe. E chorei de raiva nas poucas vezes em que me senti injustiçada. E só. Tudo choro emocional, mas com razão conhecida.

Porém acabou o tempo de estio, quando eu chorava tão de vez em quando que podia lembrar a data. Nos tempos que correm, as lágrimas também correm — muito! E se antes chorava por alguma emoção irreprimível como o nascimento de um filho ou por um sofrimento doloroso como a partida de um grande amor, ando chorando agora durante a Dança dos Famosos. Quando o Gabiru fez o gol que deu ao Inter o Campeonato Mundial de Clubes, chorei. Quando uma criança canta na festinha da creche: “Quero ver você não chorar/Não olhar pra trás...”, me debulho. Choro em formatura.

Choro em discurso de família. Chorei quando os Stones entraram no palco no Hyde Park e quando Paul McCartney cantou My Love no Beira-Rio. Choro com os fogos de artifício do Réveillon. Choro no trânsito. Choro quando os caixões são fechados, mesmo que eu não conheça quem esteja dentro. Choro ao ver qualquer pessoa chorando. Choro em apresentação de dança da Dullius. Choro em aeroporto. Choro no banho. E quando ouço Chão de Giz, do Zé Ramalho, daí não são apenas olhos marejados: transbordo. Essa música toca em alguma coisa que me cala fundo e ainda não sei o que é.


Dizem que ficamos mais amolecidos com a idade, mas eu achava que estavam se referindo às dobrinhas nos joelhos. Pelo visto, os sentimentos, com o tempo, também afrouxam. Melhor assim: deixam de empedrar e de nos enrijecer por dentro. Deslizam pela face e nos purificam: ficamos banhados, limpos, batizados.