sábado, 29 de outubro de 2016


29 de outubro de 2016 | N° 18673 
LYA LUFT

Difícil tarefa



Quando crianças, o tempo para nós é sempre “agora”: brincar, mamãe, com sorte mais carinho do que violência, coisas desse tipo. Somos imediatistas. Depois, ainda pequenos, contamos o tempo pelas vezes em que teremos de dormir: “Quantas vezes tenho de dormir até o Natal? Até o aniversário?”.

Saindo do limbo da infância, começamos a ter projetos. Precisamos ter projetos. Nos dizem que temos de ter projetos, mais do que desejos ou sonhos, porque estamos ficando “grandes” e precisamos ser responsáveis. Alguns sonhos e desejos podem se transformar em projetos cada vez mais complexos e a mais longo prazo, à medida que nos tornamos adultos. 

Com eles chegam as frustrações: eu queria ser rico, acabei remediado, queria ser famoso, sou um anônimo. Eu queria se médico, acabei taxista. Eu queria ser modelo, virei uma acomodada dona de casa; eu quis viajar o mundo, e só agora, quase na velhice, vou conhecer o Rio.

A frustração tem a medida do desejo que não se realizou, ou da nossa incapacidade de nos adaptarmos ao real – sem perder a capacidade de voar. Não é preciso pisar na Lua para ser bem-sucedido, nem ter um Everest de dólares para se sentir bem na própria pele, isso que eu chamo de “ser feliz”. Gostar do que conseguimos: fazer caber nossas alegrias, isso que fazemos, desde que não nos humilhe nem degrade. 

Por que não posso ser bem-sucedida tendo uma casa simples mas acolhedora e uma família em que, apesar das brigas naturais, nos apoiamos uns aos outros em lugar de criticar? Por que conduzindo pessoas num táxi não posso fazer bem a elas e sustentar minha gente? Por que não sendo modelo, mesmo assim não posso me achar bonita, simpática, rica de emoções e coisas boas?

O problema maior é descobrir quem somos, o que desejamos e o que podemos. Ignorar, superar, os preconceitos, as regras, as receitas de ser bem-sucedido e feliz. Empoderamento, palavra clichê do momento (até rimou), me aborrece um pouco. Por que teríamos de ser todos poderosos? Importa, mais que isso, sermos decentes, dignos, úteis, amorosos, compassivos, criativos, e capazes de ver – mesmo na correria desta vida moderna – a beleza das nuvens disparando no céu, a dança das copas das árvores ou das ondas do mar quando venta forte. De telefonar para o amigo em dificuldade, dedicar um tempo aos filhos, ou aos pais, escutar o parceiro com carinho, enfim, sermos humanos sem maior complicação.

Para entender quem somos, quem queremos ser, quem podemos ser – não o que os outros, a turma, a sociedade, querem que sejamos –, é preciso parar pra pensar. “Parar pra pensar? Nem pensar! Se eu paro pra pensar, desmorono”, é a frase mais comum. Então esse deveria ser nosso heroísmo fundamental: interromper a agitação, um momento que seja, clarear a paisagem interior dominando a impaciência e o pessimismo. 

Enfrentando como podemos a realidade de um país confuso num mundo conturbado, na floresta de enganos em que se desperdiçam bons amores e desejos. Assim talvez sejam menos dolorosas as inevitáveis frustrações que por toda parte espreitam – porque viver, e conviver, sem perder a bondade nem a coragem, é difícil tarefa.




29 de outubro de 2016 | N° 18673 
MARTHA MEDEIROS

Minha dica: “Enclausurado” merece mesmo esse título, já que é um livro que prende o leitor

Enclausurado

Quando soube que o livro Enclausurado era narrado por um feto, gelei. Não sou muito fã de narrações feitas por crianças, o que dizer de um ser que nem criança ainda é? Na mão de um escritor menos tarimbado, teria tudo para transformar-se numa bizarrice, mas estamos falando do grande Ian McEwan, cujo talento anula qualquer desconfiança. Mestre é mestre: fui direto da primeira à última página sem pausa para buscar um copo dágua. E minhas gargalhadas confirmaram o prazer da leitura. Fazia tempo que não me divertia tanto.

De dentro da barriga da mãe, escutando tudo o que ela conversa, assim como os sons que a circundam, o bebê absorve informações sobre o mundo atual, incluindo alguns segredos íntimos e bem indigestos: mamãe planeja, com o amante, matar seu pai. Infiltrado no corpo da iminente assassina, ele é uma testemunha auditiva e impotente. Só lhe resta tentar entender o que está acontecendo lá fora e torcer para que a vítima escape. Eu quase pude ver o sorriso no rosto do autor enquanto ele se dedicava à engenhosa tarefa. Como toda boa trama policial, a parte psicológica é sempre a mais saborosa.

Aquele pequeno ser já formado (é o nono mês de gravidez), sem espaço para expandir-se, aguardando entediado o momento de nascer, acaba forçosamente participando do crime e recebendo informações privilegiadas: ele escuta os batimentos cardíacos de sua mãe, percebe a adrenalina provocada pelo medo dela, interpreta as nuances de seu tom de voz, sente as emoções todas que ela sente, desde o pânico contido até o prazer mais obsceno. Aliás, a descrição das relações sexuais da gestante sob o ponto de vista de quem está presenciando o ato de perto – muito, muito perto! – são absolutamente originais. E cômicas, claro.

Começou a Feira do Livro de Porto Alegre. Bancas e balaios com mil tentações, mas esta é a minha dica. Um texto espetacular e inteligente em apenas 200 páginas (sei que há pressa em voltar ao smartphone) e com um enredo que merece mesmo esse título, já que Enclausurado é um livro que prende o leitor.

Já que pretende ir à Feira, aproveite para me prestigiar no Pavilhão de Autógrafos. Aguardarei você às 17h do próximo sábado, dia 5, quando lançarei Um Lugar na Janela 2, o segundo volume dos meus relatos de viagens, em que me apresento nada enclausurada: livre e solta pelo mundo.




29 de outubro de 2016 | N° 18673 
CARPINEJAR

No tempo em que todos estavam vivos

O aniversário nunca será na fase adulta como na infância. Não haverá mais a longa véspera da meia-noite, entre dormindo e acordado, naquela vigília pelo presente. Não haverá mais o lar em completa algazarra por uma única pessoa: você no centro do mundo, uma pessoinha de pálpebras rápidas, piscando diante da mãe preparando a panela de brigadeiro, as forminhas de salgados e cuidando para o bolo não afundar acendendo e apagando a lâmpada do forno. Não haverá mais a estranha exclusividade de provar qualquer doce antes do almoço.

Um exército de mãos rompe a rotina para dar conta das atividades domésticas acrescida de novidade de seu aniversário.

E não é obrigado a fazer nada, a não ser assistir ao espetáculo de seu nascimento a ser repetido fora do ventre. Os irmãos não lhe machucam, não implicam, oferecem um indulto abençoado de gracejos. Colegas lhe tratam bem e com respeito, existe uma veneração de brilho, tios e tias mexem em seu cabelo, roubam beijos, brincam com a demarcação de sua breve existência com a marionete dos dedos.

Você só tem que apenas esperar uma surpresa depois da escola denunciada em cada riso da família. Não passou por nenhuma dor e separação para estragar a alegria, nenhuma cadeira estará vaga pela morte ao redor da mesa. Os avós estão ainda vivos e vêm de longe com suas malas xadrez do interior e pacotes improvisados longe das lojas.

A memória não é maior que a imaginação. Desperta da cama, como se fosse um sapato de couro envolvido em papel seda dentro de uma caixinha. Você colocará chapeuzinho cônico, com o elástico apertando o queixo imberbe. Soprará as velas com a ajuda dos outros, o melhor aniversário é do tempo em que não tem força no pulmão para apagar a chama da vida.

Assim que você cresce, a festa é um fingimento – um alegre fingimento, mas fingimento –, enfrentará o trabalho de convidar os amigos e de negociar os presentes, sofrerá com alguma perda e gafe. Precisará receber os convidados e não poderá parar um minuto de servir e ver se se todos estão felizes, comendo e bebendo.

Acabou a comemoração inconsciente, acabou a sensação de medo bobo, acabou o olhar guloso ao teto repleto de balões coloridos para definir qual deles levará para voar dentro do quarto.

Quando crescemos, os aniversários são solitários mesmo de casa cheia. Casado ou solteiro, ficará responsável pela sua alegria. Ninguém mais aplacará a expectativa e resolverá a carência. Persistirá a consciência de que estamos envelhecendo mais do que inaugurando uma idade.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016



26 de outubro de 2016 | N° 18670 
MARTHA MEDEIROS

É por aqui?


Tinha um compromisso no bairro Bom Jesus, região de Porto Alegre que frequento quase nunca. Deram-me o endereço e uma pista de onde a casa ficava, o resto era comigo. Não uso GPS, mas, se sobrevivi até aqui sem ele, não seria agora que iria me perder. Me perdi.

Não deveria ter sido complicado, a rua é uma travessa da Protásio Alves, avenida bem conhecida da cidade. Mas existe outra coisa bem conhecida na cidade: a ausência de placas indicativas nas esquinas. Você precisa entrar na Rua das Camélias: como faz se não tem sinalização? Nem na Rua Nazaré, nem na Santa Isabel, nem na Jerusalém, nem na Rua Páscoa. Ou você é um intuitivo, ou pergunta. Assaltado pela dúvida já está, agora é torcer para não ser assaltado por um transeunte.

Citei o bairro Bom Jesus porque foi ali que passei por esta situação, mas vale para toda a Capital – placa é algo que às vezes tem em uma esquina e na outra não tem. E tudo bem.

Tudo bem pra quem? Certamente não para motoristas de táxi. Não para turistas. Não para quem está buscando um endereço longe de casa. Não para quem não vive preso a aplicativos.

Viajo bastante, e entre tantas coisas que despertam minha admiração está a sinalização urbana das demais metrópoles. Placas padronizadas em cada esquina. E em bom estado. Como é que conseguem? Deve custar uma fortuna e exigir alta tecnologia, imagino.

Porto Alegre já teve, um dia, esse luxo. Em algum ano remoto, foram colocadas placas azuis com letras brancas sinalizando cada logradouro – em postes e fachadas, e algumas até em árvores, muito bucólico. Mas a cidade cresceu. Alguns prédios foram demolidos. Postes caíram. As placas das árvores foram arrancadas por alguma ventania ou levadas por um colecionador. E a reposição foi de 0%. Não é prioritário.

Não espero que Melo ou Marchezan encontrem a solução para esse problema em seus primeiros meses de governo, eles têm medidas bem mais sérias a tomar a fim de melhorar a vida dos porto-alegrenses (acabar com os celulares nos presídios, por exemplo – aliás, uma questão: as celas possuem tomadas para que os aparelhos sejam recarregados?). Depois de o novo prefeito tratar o assunto segurança com a seriedade e rigidez que merece, espero que sobre um tempinho para essa reivindicação que parece menor, uma bobagem.

Placas de sinalização, que elitismo! Pode ser, mas não custa lembrar que a ausência de sinalização, queira ou não, sinaliza do mesmo jeito: para o descaso e o provincianismo.

Depois de dar carona para uma senhora que caminhava pelas redondezas e que foi muito prestativa, encontrei a rua desejada. Só ainda não encontrei resposta aceitável para tanto relaxamento.

sábado, 22 de outubro de 2016



22 de outubro de 2016 | N° 18667 
MARTHA MEDEIROS

Oposição contra si mesmo

Ser contra avanços legais e contra a arte, só por represália, é uma oposição tola que não dá em nada

A estupidez humana não cessa de bater seu próprio recorde. Como se sabe, gays são proibidos de doar sangue por um período de até 12 meses após terem tido relação com um parceiro do mesmo sexo. O Ministério da Saúde continua classificando os homossexuais como grupo de risco, sem considerar que muitos deles estão numa relação estável e fazem uso de preservativos.

Grupo de risco somos todos. Uma mulher que tem parceiros eventuais sem exigir camisinha é o quê? Héteros que transam com ela e com outras sem proteção, são o quê? Respondo: são doadores bem-vindos, ou seja, a restrição aos gays é discriminatória. Orientação sexual, por si só, não determina a qualidade do sangue. Foi para acabar com esse atraso que o deputado federal Jean Wyllys criou um projeto de lei, e aí reside meu desalento: por Jean Wyllys ser de esquerda, quem é de direita reluta em apoiá-lo. “O que vier dele, eu rejeito.”

É o mesmo raciocínio de quem não assistiu ao estupendo Aquarius por achar que é filme de petista (!!!). A posição política de alguns integrantes da equipe, manifestada na pré-estreia em Cannes, foi vista como um desaforo e gerou um revide provinciano: “Ou você pensa como eu, ou tudo o que você faz não presta”. O mesmo vale para quem deixou de admirar Chico Buarque. “Se não houver afinidade partidária, não te escuto, não te vejo, não te leio.”

Por outro lado, vi muitos esquerdistas comemorando o fato de Eduardo Cunha ter levado uma sapatada de uma senhora no aeroporto Santos Dumont. “Esta me representa!” foi a frase repetida nas redes, ditas pelas mesmas pessoas que, no ano passado, ficaram indignadas por Guido Mantega ter sido hostilizado num restaurante em São Paulo – exemplo clássico de dois pesos, duas medidas. 

Quem não gostaria de dar uma sapatada numa criatura abjeta? Mas é para evitar que liberemos nossos impulsos ao bel-prazer, causando linchamentos físicos e morais, que existe um troço chamado lei. Quando ela vale só para alguns casos (os que nos interessam), temos um problema, Houston.

O conceito de esquerda e direita parecia superado, mas voltou forte e ainda mais dividido nestes tempos tecnológicos, em que o contato direto e instantâneo entre as partes acirra a disputa pela razão. O resultado é a rivalidade destemperada entre “Nós x Vocês”, sendo que ninguém leva em conta que “Vocês” podem ter boas ideias a despeito de não jogarem no nosso time.

Ser contra avanços legais e contra a arte, só por represália, é ser contra si próprio, uma oposição tola que dá em nada.



22 de outubro de 2016 | N° 18667 
LYA LUFT

O terrível e o sublime

Que somos animais predadores com vernizinho de civilidade, ou de humanidade, se quiserem, isso me parece óbvio. Basta soltar as amarras num impulso de raiva, num momento de ódio, num fanatismo qualquer, e lá vamos nós, nada bonzinhos, matando, esquartejando, estuprando, aniquilando com mísseis ou espalhando morte e tripas com algum homem-bomba. Lá vamos nós treinar menininhos para matarem com fuzis maiores do que eles. Lá vamos nós queimar prisioneiros vivos dentro de jaulas aos olhos de uma multidão, ou matar nas ruas só porque “hoje deu vontade”.

Onde, quando ouvi ou li coisas parecidas? Foi no Holocausto? Está sendo em tantos holocaustos atuais? Foi Nero, que mandou matar a mãe e matou com pontapés na barriga sua mulher grávida, que mandava empalar cristãos cobertos de óleo em postes, para queimarem iluminando seus jardins? Nero, incompreensivelmente discípulo do meu amado filósofo Sêneca, cujos pensamentos sábios, harmoniosos, nobres e tranquilizadores leio e releio desde adolescente? 

Comentei com um de meus filhos, quando falávamos mais uma vez sobre a violência no Brasil e também aqui, que, lendo um bocado de História, até acho que melhoramos muito. Não havia imprensa, não havia organizações, não havia democracia que botasse limite na ferocidade humana.

Mas hoje, mesmo tendo avançado em relação às barbáries passadas, aqui nas nossas ruas não temos sossego. A cada dia, alguém que conheço ou que é conhecido de algum amigo é assaltado, e tudo termina com o suspiro de alívio: “Ainda bem que só levaram minha carteira, meu carro, não minha vida nem minha mulher ou meus filhos. Tivemos sorte”.

Que vida é essa, que pensamento funesto? Terrível atestado da nossa vergonha e conformidade, e da incompetência de quem deveria administrar o país. O crime começa a compensar. O criminoso nos controla. Saímos pouco à noite, e com receio; não paramos o carro nos sinais vermelhos a altas horas, o que aliás nos foi há tempos sugerido por uma autoridade de segurança, se não me engano. Em cidades como Rio, e lugares do Norte e Nordeste, está vivo o espírito dos jagunços, tiroteios, mortes, roubos de grandes quantias, bancos arrombados, cofres explodidos. Criminosos fugidos, às vezes mortos eles e os policiais. Mas a loucura prossegue, e cresce.

Meus filhos brincavam nos terrenos baldios perto de casa, há algumas décadas, e ninguém se preocupava com a possibilidade de tragédias hoje banais. Ao escurecer, a gente chegava na esquina, chamava “Venham tomar banho e jantar!”. E vinham, suados, cansados e felizes, os pais de nossos netos, que já não andam sozinhos nem até a escola. Sei que é ingenuidade querer de volta aqueles tempos, mas podíamos estar mais civilizados.

O consolo é que essa humanidade sedenta de sangue também produz milagres como as obras de arte e seus autores. Van Gogh, Monet, Mozart e Bach, Shakespeare e Pessoa, todos os sublimes: os artistas. Mas também os mais cotidianos gestos dos jovens alegres e saudáveis, das crianças carinhosas, dos pais maravilhados, tudo o que nos faz acreditar que não produzimos só barbárie e repulsa, mas claridade, beleza e – apesar de tudo – esperança.



22 de outubro de 2016 | N° 18667 
CARPINEJAR

Longevidade do amor

Sempre que duas casadas se encontram disputam quem está mais tempo com o seu par. Existe uma concorrência pelo troféu moral. Elas nem percebem a mania, é um cacoete involuntário, como coçar os olhos diante do sono.

Fui visitar o ateliê da estilista Solaine Piccoli, que vem confeccionando o vestido de noiva da minha mulher. Proibido de espiar os movimentos no provador pela superstição da cerimônia, puxei conversa à toa e perguntei quanto tempo ela tinha de casada. Solaine encheu a boca: 43 anos juntinho de Ernani.

Cândida, a sua assessora, se sentiu ofendida com a realeza da amiga e atalhou:

– Eu estou casada há 39 anos, mas namoro o meu marido há 44. Se é por isso vou completar bodas de rubi no ano que vem. Solaine não se deu por vencida:

– Mas, se é por namoro, eu estou há 49 anos com Ernani e completarei bodas de ouro. Só eu devo ter visto Cândida bufando de raiva. Buscou disfarçar a contrariedade e logo emendou:

– Mas eu conheço de vista o meu marido há 51 anos. Amizade também conta, não?

– Pode contar, como quiser. Daí tenho 60 anos de amor à primeira vista e comemoro bodas de diamante – replicou Solaine.

A partir de uma pergunta banal, fui exposto a um coliseu de leoas famintas pela posteridade romântica. Pretendiam ganhar o título de maior longevidade no amor. Não aceitavam a proximidade da adversária.

Para assinalar a vitória da intimidade, usavam qualquer indício remoto de antiguidade dos laços com os seus homens, desde aceno a esbarrão na rua.

As amigas colocavam a cumplicidade em risco. Gritavam, esperneavam, batiam na mesa. No calor da discussão, jogavam pesado, dispostas a desclassificar a rival questionando separações em algum período e somando finais de semana longe.

Não entendia absolutamente nada. Ambas atingiam seis décadas e uns quebrados de convivência com os seus maridos naquela conversa, apelando para os mais platônicos sinais, e eu não conseguia fechar as contas. Não aparentavam, cada uma delas, mais de 50 anos de idade. Já eram mais casadas do que nascidas.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016



Jaime Cimenti

Cíntia, a madrinha


O anúncio de Cíntia Moscovich como patrona da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre brotou natural e vibrante como as flores dos jacarandás deste início de primavera.

Explico a escolha do título aí de cima. Logo que soube do anúncio, lembrei imediatamente de 1995, quando o querido e saudoso Caio Fernando Abreu foi patrono do evento. Júlio Zanotta Vieira era o presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro à época (ele o foi de 1994 a 1997). Júlio - lembram-se? - foi o responsável pela introdução da cobertura de plástico e tantas outras novidades, que estão até hoje incorporadas ao evento. 

A feira tornou-se outra depois de suas gestões. A festa conta, há décadas, com os incansáveis e competentes Jussara Rodrigues, Sônia Zanchetta, Gerson Souza e tantos outros funcionários e colaboradores que desejo que se sintam citados. Se fosse nominar todos, precisava de todo o jornal. Hoje, o brilhante e moderno Marco Antônio Cena Lopes está no timão da Câmara e inovou com um programa de televisão sobre a feira, o TV Feira do Livro.

Mas voltando aos queridos Caio e Cíntia. O Caio disse, à época, que se sentia mais padrinho do que patrono da Feira. Pois foi o que eu senti quando ouvi o nome da Cíntia como patrona. Ela é nossa madrinha, nossa dinda da feira, por sua alegria, sua informalidade, seu bom humor e seu carinho com a literatura, os livros, os leitores, os escritores, os editores, os agentes , os distribuidores, os livreiros, os jornalistas e com as pessoas em geral. 

Não é por acaso que ela tem origem no Povo do Livro.

Jornalista, escritora premiadíssima, ministrante de oficinas, mestra em literatura, cronista, desde O reino das cebolas (1996) até Essa coisa brilhante que é a chuva (2012 - Prêmio Portugal Telecom), Cíntia - que já não precisa usar o sobrenome, mesmo caso de Erico, Dyonélio, Lya, Moacyr, Josué, etc - vai abençoar e dar um upgrade esportivo, alegre e bem-humorado para nossa feira, além, é claro e principalmente, de ser uma patrona altamente consistente do ponto de vista literário e jornalístico, como já disse antes. A feira e nós vamos ganhar muito com Cíntia. Tomara que ela também ganhe muito com a experiência.

Peço licença para fazer justiça e dizer que nossa madrinha tem essa energia, essa alegria e esse pique todo, porque, ao seu lado, está o fiel escudeiro e companheiro de todos os dias e noites, o escritor, músico e gatólogo Luis Paulo Faccioli, que tomo a liberdade de indicar como padrinho honorário de nossa feira. Como eu sou de Bento e ele é de Caxias, sempre chamo ele de "querrrrrrrrrrrrrridooooooo". Cosa nostra, agora revelada em público.

Nem vou repetir que o livro é uma das maiores invenções da humanidade, que é um objeto de design incomparável, que o livro impresso segue impávido, que a leitura silenciosa e solitária de um livro é uma experiência única para a fantasia, a inteligência, a liberdade e viajar pelos caminhos do infinito.

a propósito...

Desculpa, Cíntia, se o texto não foi exclusivamente sobre ti e tua bela e já grande obra. Como és a madrinha e como te conheço há décadas (não muitas, somos piás, ainda), sei que queres bem e abençoas, como eu, os livros, as pessoas, os leitores e essa galera do livro, que pode não ser tão grande nem tão rica ou poderosa quanto a gente gostaria, mas que tem qualidade, importância e eternidade, que é o que interessa. Gente fina, elegante, sincera e do bem. Uma pessoa, um livro, é quase sempre paz e amor. Ótima Feira, ótimo amadrinhamento, Cíntia. Deus nos abençoe! 

Jaime Cimenti

O fantástico antes do fantástico

É na infância, com a leitura de contos de fadas ou de mitos, que geralmente começa o nosso fascínio pela literatura fantástica. O volume Antologia Fantástica da Literatura Antiga (Ateliê Editorial, 264 páginas, R$ 65,00), organizado pelo diplomata e escritor Marcelo Cid, contempla trechos relativamente curtos que podem ser entendidos como literatura fantástica, um gênero que só passa a ter esse nome no século XX, mas é encontrado ao longo das narrativas históricas ou poéticas, ou mesmo em obras filosóficas de séculos passados.

A antologia reúne cerca de 300 histórias provenientes da antiguidade greco-latina num arco de tempo que começa no século VIII a.C., com excertos de Homero, e se estende até o século VI d.C., com textos poéticos mas também obras de Filosofia, História, Teologia e Medicina (quem diria?), são narrativas breves, dotadas não só de algum evento extraordinário, mas também de certa incômoda estranheza, que só faz aguçar a curiosidade dos leitores.

"O fantástico em literatura tem certa dose de pathos, ausente no maravilhoso. Remete ao insólito, ao onírico, ao inconsistente, e funciona especialmente bem quando o autor diminui o estranhamento do que narra e aumenta sua credibilidade ou sua conexão emocional com o leitor, por meio de artifícios que este logo aprende a reconhecer", explica o organizador Cid.

Quem tiver predileção pelo gênero fantástico se verá brindado não com poucas histórias do seu gosto, sem o trabalho de encontrá-las dispersas entre outras de gênero diverso ou perdidas em livros inalcançáveis. Como anfitriões educados, elas nos convidam gentilmente à leitura, mas aos convidados é difícil parar de ler e ir embora.

O certo é que, mesmo hoje, em nossa civilização "pós-moderna", tão tecnológica e eletrônica, com tantas facilidades de comunicação, ainda queremos ler o que não podemos ver, queremos aquelas antigas histórias contadas à beira de uma fogueira, sobre deuses, monstros, coisas mágicas e, como os leitores não têm tempo de garimpar as pepitas em livros espalhados por aí, Marcelo Cid, durante anos, fez esse trabalho para eles. Todo leitor é um aventureiro, é alguém que deseja ser seduzido. Os leitores vão reconhecer, nesta antologia, personagens que conheceram em obras modernas. Tempos e histórias se misturam. Para quem lê, como se sabe, a história da literatura é a história de suas leituras.
Portanto, na antologia, os textos que misturam sonho com realidade mostram que Jorge Luís Borges tinha razão: "cada escritor crea sus precursores", ou seja, os leitores são livres.

lançamentos

Todos querem ser Mujica (Diadorim, 160 páginas), do consagrado jornalista Moisés Mendes, com apresentações de Luis Fernando Verissimo e Denise Nunes, traz crônicas bem escritas e posições claras de quem sempre disse o que pensa e sente sobre vários temas atuais, especialmente política brasileira.

A força do tempo - Histórias de um repórter fotográfico brasileiro (Libretos, 182 páginas), de Kadão Chaves, um dos maiores profissionais do fotojornalismo no Brasil, traz centenas de fotos que mostram sua paixão pelo registro da história brasileira. Sua vida e suas aventuras fotojornalísticas são uma coisa só, em mais de 40 anos de trabalho.

O que cabe em um abraço (L&PM Editores, 214 páginas), novo livro de crônicas do médico, professor e escritor J.J.Camargo, traz histórias, reflexões, lembranças e anedotas que vão além de relações entre médicos e pacientes. Mostram a natureza humana e que é melhor ser feliz hoje que ficar esperando o amanhã.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016


19 de outubro de 2016 | N° 18664 
MARTHA MEDEIROS

Poesia e liberdade

Assim que soube da escolha de Bob Dylan como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, meu primeiro pensamento foi: como assim, e Philip Roth? Porém, minha indignação corporativista durou poucos minutos, nem cinco. Poesia não é monopólio dos livros, e Bob Dylan foi premiado por causa dela, por esse gênero que dificilmente se traduz e que não tem endereço fixo.

Poesia é um troço tão livre, que confunde. A gente se acostumou a confiná-la em versos, sonetos e hai-kais geralmente impressos ou recitados em saraus – quase nunca a percebemos num formato popular como uma canção. Todos sabem o que é um poema. São aquelas frases bonitas que alguns não compreendem, mas que dão uma levitada na alma. São colocações que todos reverenciam, pois fogem do lugar-comum. É uma maneira suave de externar o que deveria se manter como um humilde segredo. É um patamar mais elevado da simplicidade. São expressões líricas que, mesmo lidas em silêncio, tornam-se sonoras.

Poesia obedece a um ritmo, portanto, não deixa de ser um gênero musical. Bob Dylan canta poemas muito bons, dizem. Não sei, meu inglês não é suficiente para essa avaliação, mas, se deslumbra a tantos, por algum motivo deve ser.

Quando soube da notícia, imaginei Philip Roth ganhando um Grammy, só para revidar. É piada, mas não seria impossível de acontecer. Se algum músico transformasse em canção um parágrafo desse estupendo escritor norte-americano e virasse um hit, Roth poderia repartir o prêmio máximo da música, sim. Kleiton e Kledir gravaram um disco inteiro (o álbum Todas as letras) com músicas compostas por escritores e o resultado foi um sucesso, até em Nova York o projeto foi reconhecido. Artistas migram, invadem a vizinhança, são experimentais por natureza. Poesia não rima com reduto. Rima com alforria.

Numa era em que se discute a identidade de gênero, quando pessoas lutam para libertar-se da obrigatoriedade de representar o sexo com que nasceram, querer limitar quem é músico e quem é escritor soa como uma discussão obsoleta. Hoje, todos podem ser tudo. Sem entrar no mérito se isso é um avanço ou uma esquizofrenia, assim é. Quem vai ousar restringir a área de atuação de um artista? A Academia Sueca resolveu seguir a tendência: abriu-se também.

Bob Dylan não seria Bob Dylan sem o uso preciso das palavras, e a palavra é a matéria-prima da literatura. Eu torcia por Philip Roth, mas resigno-me: vivemos num mundo sem fronteiras, onde restrição não rima com mais nada.

terça-feira, 18 de outubro de 2016



18 de outubro de 2016 | N° 18663 
CARPINEJAR

Da paixão ao desencanto

O Uber e Porto Alegre formam um típico caso de paixão que não vem vingando depois que a relação ficou séria no Facebook.

Sabe aquele namorado que faz tudo durante os três primeiros meses para conquistar e logo retira os agrados assim que passa a morar junto?

Quem não conhece esta história? No princípio é o homem dos sonhos, para casar e gerar filhos. Compra flores, puxa a cadeira, esbanja educação e paciência, presenteia a sogra, arruma jantar com vinho e luz de velas, prepara surpresas e espalha declarações pelos cantos secretos. É começar a namorar e sentir que conquistou definitivamente a pessoa, a performance some e surge o ogro monossilábico, egoísta, desprovido de comoção e gentileza.

O Uber foi assim na capital gaúcha: prometeu mundos e fundos no começo apaixonado e perdeu o interesse quando a convivência normalizou. A sensação é de que desejava sexo e fingiu que amava. Cometeu uma descarada propaganda enganosa.

No início, há três meses, era somente Uberblack, carros de quatro portas e bancos de couro. Não era um motorista, mas um chofer, tamanho o cuidado com a aparência. Cavalheiro, comedido, trabalhava de terno e saía do seu lugar para receber o cliente.

Só vinha carrão como Toyota Corolla, Honda Civic, Azera e Sonata. Apesar do luxo e do conforto, os preços acabavam sendo mais baratos do que o táxi. Não havia como não se maravilhar e não disseminar o serviço adiante.

Hoje o que aparece no Uber (conhecido como UberX) é Ford Ka, Fiat Palio, Renault Clio e Gol, carro apertado que você vacilaria em entrar até para tomar carona. Os motoristas estão vestidos de qualquer jeito, alguns vêm de bermuda. Pararam de oferecer balas e água. Já vi veículo chegar todo adesivado com Herbalife. Alguns surgem com cinto frouxo e ar-condicionado pifado. A rapidez de atendimento, de no máximo cinco minutos, decaiu, motorista aceita nova corrida quando nem finalizou a anterior. De semelhança com o período de estreia, apenas a voz feminina do Waze.

E, para piorar, inventou-se a tarifa dinâmica, na qual a corrida, dependendo da procura, pode custar três vezes mais do que o valor normal. É uma roleta-russa, não tem como prever quando vai pipocar em seu aplicativo. Desse jeito, uma viagem do bairro Petrópolis ao aeroporto, que custaria R$ 27 em um táxi, é de R$ 37 pelo Uber.

Acho que o Uber acredita que o porto-alegrense é um otário e que não notou o fim do romance. A tendência é voltar para o antigo relacionamento.

sábado, 15 de outubro de 2016



15 de outubro de 2016 | N° 18661 
LYA LUFT

A criança que nos habita

Muitos leitores dizem que, lendo meus romances, acham que eu devo ter sido uma criança infeliz: “Que tragédia de então alimentou sua fantasia atual?”.

Divertida ou um pouco irritada, mil vezes expliquei: nem sempre o escritor fala de si mesmo. Nada das famílias que inventei é a minha família, nem a da infância, muito menos a de agora. São invenção, são ficção: ficção vem do latim fictio, aliás ligado a fingere, fingir. Portanto, a maior parte das histórias de ficção é fingimento, tão bem fingido, que às vezes até na hora de escrever nos parece verdade. Por isso digo que minhas histórias são “a verdade da minha mentira”... Quando criei minha primeira personagem anã, Sibila, a Bila das Parceiras, por exemplo, houve quem se dispusesse a pesquisar minha família para descobrir o anão, ou os anões. Sinto muito, a minha gente sempre foi mais pra gigante. Mas que a pobre Bilinha me parecia real, parecia.

É verdade também que seguidamente o que escrevemos reflete coisas, fatos, pessoas, emoções – que foram reais mas ali aparecem transfigurados. Então a infância não é, afinal, o nascedouro dos nossos medos ou alegrias, como tanto falei e escrevi? Penso que sim, e não é simples explicar essa contradição, pois minha infância, numa cidade pequena, numa casa grande com belo jardim, pais cuidadosos, avós, tios, primas, primos e um irmãozinho menor, foi tudo menos trágica. 

Verdade que, tendo morrido antes de eu nascer um primeiro filhinho, acho que fui cercada de excessivos cuidados, do tipo “não anda na chuva, bota o casaco, não senta na pedra fria, olha o vento encanado”, mais algumas crenças de então, que hoje nos fazem rir, como “se comer fruta sem lavar, vai ter vermes na barriga, se engolir semente de laranja, vai nascer uma laranjeira na barriga, se sentar na areia sem a toalha, vão entrar bichinhos na sua... e se comer melancia e beber leite, cai morta”.

O que me afligia e ainda me acompanha não eram as circunstâncias nem as pessoas, mas a minha desvairada imaginação, que ainda me faz rir quando ninguém acha graça, me faz sofrer quando todos julgam alguma coisa muito banal. Eu detestava o Gordo e o Magro, chorava na matinê de pena deles: várias vezes minha mãe teve de me tirar do cinema, pois eu começava a perturbar as outras crianças.

Mas tenho certeza, sim, de que na infância a vida traça o perfil que procuraremos preencher pelo resto do tempo. Clima amoroso, alegre, seguro apesar das normais brigas ou discussões? Vamos tropeçar menos nesse caminho firme. Ambiente frio ou violento, desinteresse, rancor ou permissividade demais? Possivelmente vamos cair mais vezes, quebrar a cara e a alma. 

Há muitas maneiras de, simplificando os enigmas e labirintos da nossa psique, explicar por que na adultez somos de certo jeito. Mas, junto com a criança que fomos, temos sempre, como fiel e severa companhia, a contrapartida de tudo isso: a capacidade de escolha. Não somos totalmente determinados. O fantasminha infantil em nós pode chorar sozinho no escuro, rir sem motivo além de se sentir feliz – mas adolescentes, adultos, velhos, temos o ônus de optar nas encruzilhadas.

A criança que nos habita não desculpa tudo.



15 de outubro de 2016 | N° 18661 
MARTHA MEDEIROS

A mulher careca

Era uma mulher tranquila. Contou que estava tratando a reincidência do tumor, e falou isso com uma calma que fazia parecer que era apenas uma chatice. A vida a chamava

Estávamos as duas tomando um chá de cadeira porque o sistema havia caído (adoro a piada que diz que antigamente lutávamos para derrubar o sistema e agora, quando ele cai, é sempre um suplício). Eu estava renovando o meu passaporte, e ela, fazendo o seu primeiro. Já havíamos entregado os documentos e cada uma estava sendo atendida por um funcionário, uma mesa ao lado da outra. Faltava apenas tirar as fotos, mas precisávamos esperar. Puxamos conversa.

Ela estava preocupada justamente com a questão da foto. Perguntou para mim se precisaria tirar o gorro que usava. Respondi que sim, ninguém pode tirar fotos para passaporte usando chapéu ou algum outro adereço que dificulte a identificação. Nem sorrir podia. Foi então que ela me disse que estava em tratamento contra um câncer de mama. Não havia um fio sobre a cabeça.

Não sei se a preocupação dela era com a vaidade (o local estava apinhado) ou se tinha receio de que, quando fosse viajar, as fronteiras estrangeiras a barrassem por não ser reconhecida com um longo cabelo loiro, ou com um farto cabelo crespo, ou com uma penugem grisalha – não sei o que viria quando o tratamento acabasse, mas viria.

O sistema voltou e deram prosseguimento aos trâmites. O funcionário que a atendia avisou que, por fim, era hora de tirar o gorro. Ela me olhou, suspirou fundo e o tirou bem lentamente, como se evitasse chocar. Foi então que vi o quanto ela era bonita. Seus olhos eram claros, eu não havia reparado. De um segundo para outro, pareceu bem mais jovem. Metida que sou, disse a ela: tire a foto e não volte a colocar esse gorro (quase disse “esse gorro medonho”, mas me calei a tempo). Você é linda.

Ela era linda.

Esse pequeno recorte de uma tarde de terça-feira ficaria sem registro se, ao retornar para casa, não tivesse me dado conta de que estamos em pleno Outubro Rosa, o mês em que a sociedade se mobiliza para conscientizar as mulheres sobre a importância de se prevenir contra o câncer de mama. Eu já fiz minha mamografia anual mês passado e quem ainda não fez, estando acima dos 40 anos ou tendo casos de câncer de mama no histórico familiar, deve se mexer. 

Adiar pra quê? Não sei o nome da moça. Estava acompanhada do marido, mas não o vi. Era uma mulher tranquila. Contou que estava tratando a reincidência do tumor, e falou isso com uma calma que fazia parecer que era apenas uma chatice. A vida a chamava. Claro. Quem faz passaporte tem um plano. Seja qual for, envolve deslocamento, busca, avanço, movimento. Coisas boas.

No momento da foto ela não sorriu porque não podia, mas tinha um acessório secreto que ninguém a impediria de usar, a danada da confiança.


15 de outubro de 2016 | N° 18661 
CARPINEJAR

Deixar para depois


No casamento, você sempre deixa para depois. Acredita que a pessoa mais importante de sua vida pode esperar, já que dorme e acorda ao lado dela todo dia, já que ela vai entender os seus contratempos.

Atende primeiramente os estranhos do trabalho, agrada aos desconhecidos das redes sociais, está preocupado como os demais lhe enxergam mais do que como realmente é entre quatro paredes.

Casamento torna-se adiamento. Aquele bilhete não é tão urgente, aquela conversa de pacificação é empurrada para o futuro, aquele final de semana enamorado não é prioritário.

Só na separação é que agimos. Para resgatar uma paixão, somos capazes de aprender a cozinhar, aprender a dançar, aprender a faxinar.

Com o casamento, desaprendemos a cozinhar, a dançar, a faxinar. Guardamos o fôlego adormecendo cedo, poupamos as palavras não descrevendo os nossos dias, existimos menos dentro de casa, desistimos rapidamente da gentileza pela informalidade. Não podemos gastar com o supérfluo. Supérfluo é o que envolve o próximo. A avareza cresce disfarçada de economia.

Na reconquista, não dispensamos trabalho, madrugamos, viajamos continentes dentro do quarto, pedimos dinheiro emprestado para socorrer o tempo perdido com a distância.

A verdade é que fazemos tudo errado até perder aquilo que era certo.

Só amamos sofrendo. Só amamos quando o outro nos abandona, quando o outro se cansa, quando o outro se despede.

Só procuramos as janelas quando a porta fecha, só nos importamos com os detalhes quando o conjunto desaparece. Só amamos na contrariedade, para provar que ainda prestamos.

Só amamos com o orgulho ferido, quando somos testados. Só amamos com a desilusão, quando somos contestados.

Só amamos com a recusa, quando somos condicionados a nos esforçar para reaver a confiança.

Só amamos com o chicote da indiferença nas costas, apanhando das expectativas.

Infelizmente valorizamos mais a saudade do que a proximidade.

Banalizamos o corpo, apenas respeitamos a ausência, que é correr atrás para ter de volta a vida passada. Somos encarnações arrependidas de matar o amor de tédio.

Para ser feliz a dois, é necessário combater a facilidade e não se conformar nunca com a disponibilidade do beijo, do toque e do abraço.

Intimidade é jamais desistir de perguntar, não é pensar que já conheceu inteiramente alguém. As respostas mudam conforme a esperança.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016


12 de outubro de 2016 | N° 18658 
MARTHA MEDEIROS

A menina por trás da porta

Durante a maior parte da infância, dividi o quarto com meu irmão. Havia duas camas, uma cesta de vime onde guardávamos os brinquedos e um armário pequeno. Jamais brigamos por espaço, porém, mesmo havendo uma convivência amistosa, eu mal podia esperar para ter um quarto só meu. Nunca fui muito otimista quanto a ter meus sonhos realizados: fui daquelas meninas que se achavam meio esquecidas pelos deuses. Tinha uma vida boa, com o básico sendo plenamente atendido (amor familiar, escola, amigos), mas desconfiava que meus desejos secretos continuariam secretos por um tempo indefinido.

Até que aos 11 anos trocamos de endereço e eu tive, afinal, um quarto só pra mim. Impossível descrever meu sentimento naquela primeira noite no apartamento novo, a sensação de poder ficar sozinha comigo mesma, de poder desligar o abajur na hora que quisesse, de colar nas paredes alguns pedaços de poemas e as fotos dos meus ídolos, de escutar meus discos sem que ninguém se sentisse perturbado. Foi o início da minha existência, valendo.

Não era apenas um local para dormir. Era uma sala de visitas. Muita gente entrou no meu quarto, alguns escondidos na mochila, sem que meus pais soubessem.

Os Beatles não só me visitaram: moraram no meu quarto durante anos. Nós cinco cantávamos juntos, enquanto eu me apaixonava por Londres sem ter noção de quão longe ficava.

Gostava também de ópera-rock, tanto que Jesus Cristo Superstar e Tommy não saíam do toca-discos. Eu trancava a porta do quarto para que ninguém me visse em cena com a trupe: o elenco inteiro dançava sobre meu tapete.

Ganhei uma máquina de escrever e através dela recebi outras centenas de convidados: todos os personagens e situações que inventei. Do lado de fora, a casa escutava apenas um tlec, tlec, tlec abafado e inofensivo, mas o barulho que minhas ideias faziam era de quem estava dando uma festa para 500 pessoas.

Não bastasse essa bagunça, o quarto ainda passou a ser compartilhado com Monteiro Lobato, no começo, e mais tarde com Anais Nin, Charles Bukowski, Fausto Wolff, Caio Fernando Abreu e demais visitantes vindos de universos distantes do meu, alguns até do além.

Nunca fui punida nas poucas vezes em que mereci. “Vá para seu quarto e só saia de lá quando eu mandar.” Sério, era pra ser um castigo?

Criança deve brincar na rua, praticar esportes, ter contato com a natureza, socializar com a turma. Fazia tudo isso e bastante. Mas ainda lembro da sensação de voltar à tardinha, tirar os tênis, tomar um banho, jantar e então entrar num mundo ao mesmo tempo íntimo e megapovoado. Não, não era um smartphone. Era um troço mais avançado. Imaginação.



12 de outubro de 2016 | N° 18658 
PEDRO GONZAGA

O PROGRAMA


Se eu pudesse escolher mais uma atividade inviável (além do latim, da poesia, do saxofone), gostaria de ter um programa de televisão que percorresse as livrarias do Brasil para apresentá-las, mas somente as de rua, aquelas que, como os antigos cinemas desaparecidos, guardam o charme de estarem em contato com as calçadas, de terem o próprio café, habitadas por livreiros dedicados, entregues a um metiê obsoleto: saber o livro que ainda não sabemos querer, cuidar dos volumes como se não fossem meras caixas de sapato.

Minhas ideias sempre esbarram no financiamento. Mas vejam, o custo de produção de uma temporada, com folga, não chegaria a 0,1% do que nos levantou um ex-ministro da economia (o espanto das grandes somas colocadas em unidades), valor que também daria, por exemplo, para comprar 10 shows de pequeno porte, 10 montagens de teatro, ou, pasmem, publicar 25 livros de autores independentes. 0,1%. Por vezes agradeço não ter o raciocínio matemático do meu tio Regis: há muita coisa no país que é melhor não calcular.

A primeira temporada seria no Rio Grande do Sul, interior e capital. Em Porto Alegre, há quatro lugares a visitar: no Bom Fim, Palavraria; na Cidade Baixa, Bamboletras e Sapere Aude; no centro, a clássica Palmarinca. Aos queridos amigos dos sebos, peço que aguardem a segunda temporada. No interior, há pelo menos seis livrarias que justificam um turismo de leitores às suas cidades. Em Canela, a charmosa Empório Canela, que, além de tudo, é um bistrô espetacular. Em Gramado, o requinte da Sucelus. 

Em Santa Cruz, o belíssimo prédio e as tortas inesquecíveis da Iluminura. Em Pelotas, no centro, o acervo da Livraria Mundial. Em Caxias, a elegância e a variedade da Arco da Velha, com seu café de qualidade superior. Por fim, o programa chegaria àquela que é uma das mais impressionantes livrarias que já conheci, incluindo aí as de outros países, uma joia localizada num casarão de esquina em São Francisco de Paula, a Miragem, com seu interior amadeirado e seus muitos pisos surpreendentes.

Senhor das coisas inviáveis, quem sabe um dia eu faça um programa-piloto. Por ora esta crônica é o que posso fazer.

sábado, 8 de outubro de 2016



08 de outubro de 2016 | N° 18655 
LYA LUFT

Ser quem somos

Acabo de ler um livro muito interessante, ainda não traduzido aqui, She’s not there (Ela não está lá), da Random House, da professora universitária, autora de várias obras, inclusive ficção, colaboradora de jornais importantes dos Estados Unidos Jennifer Finney Boylan. Ela também é transgênero: nasceu menino, sempre se sentindo menina. (Transgêneros nos Estados Unidos começam a se revelar mais, embora ainda com problemas – preconceito é o principal.)

Numa entrevista dela numa TV americana, anos atrás, eu soube que aquela Jennifer discreta e tranquila antes fora James – casado com uma mulher com quem teve dois filhos, numa parceria amorosa, até que James começou a lhe revelar seu tormento: tinha nascido no corpo errado. Agora queria levar isso adiante, mudando de gênero: médicos, hormônios, cirurgias, psiquiatras, terapia individual e de casal.

Graves crises, angústia das duas partes, mas não queriam se separar. Depois de dois anos, James já se chamava Jennifer, agora com documentação correta, até certidão de nascimento. A esposa lhe deu um incrível apoio apesar das incertezas, pois dizia: “Eu ainda amo a pessoa que agora é Jenny, pelas suas grandes qualidades humanas. Não saberia viver sem ela”. Os dois filhos pequenos não tiveram nenhuma crise séria e até inventaram um nome para Jenny: “maddie”, mistura de mamma e daddy. Bem orientados, amados, acompanhados, hoje são universitários bem-sucedidos.

James havia tirado um ano sabático na faculdade onde, professor prestigiado, lecionava há muitos anos; depois, já como Jenny, escreveu uma carta aos colegas e à direção, expondo sua realidade e dispondo-se a aceitar a demissão. Para surpresa sua, foi recebida com respeito: nessa mesma faculdade, havia três professoras transgêneras, fato de que nem ela sabia.

Eventualmente troco e-mails com a professora Boylan, pois quero traduzir o livro acima mencionado mas ainda não encontrei editora. Acompanho (no YouTube) algumas das suas palestras em universidades e me impressionam a seriedade, sabedoria e leveza com que fala e age. Alta e magra, cabelo claro comprido e liso, sem maquiagem, tranquila e bem-humorada, essa mulher, com sua bravura e o apoio de pessoas amadas, venceu a luta essencial: saber quem somos, quem queremos ser – e realizar isso, não necessariamente em questão de gênero, mas escolhas diversas, trabalho, parceria, vida.

Esta coluna nasce da tristeza que me causa qualquer preconceito, mistura de desinformação, arrogância e medo, com que tão prontamente rotulamos as coisas humanas: sexo, política, jeitos de ser. Somos pouco solidários com o outro, sobretudo se não combina com nossos conceitos. Quantas amizades se desfizeram nestes tempos por razões políticas? Quanto sofrimento, no mundo inteiro, de pessoas que não cabem em padrões (quem os inventou?): altos, baixos ou gordos, intelectualizados ou simples, extrovertidos, quietos, nervosos, masculinizados, efeminados, e sabe lá o que mais.

Um pouco de respeito ao diferente não nos faria mal. Todos temos a nossa dor. Todos queremos compreensão, oportunidade, esperança – e, com sorte, afeto. E em geral merecemos isso.



08 de outubro de 2016 | 
N° 18655 CARPINEJAR

Sindicalismo do amor

Quem cobra perde a razão, essa é a parte triste do amor. Aquele que não está recebendo atenção, deixado de lado, passa a reclamar incessantemente e começa a ser o chato da relação.

Encarna a obsessão do grevista, da passeata, do protesto. Interrompe o trânsito das palavras para defender o seu ponto de vista.

Sacrifica a espontaneidade para salvar a vida a dois. Não gostaria de estar resmungando, mas a passividade e a indiferença só vêm piorando as condições de convivência. Não tem o que fazer. Ou é gritar contra a rotina ou é se conformar com a infelicidade.

Tornou-se o sindicalista da emoção, a CUT da emoção. Acabou a paz da confiança, o que se escuta é buzinada e megafone na cama. Fala diante de qualquer gesto que frusta a sua expectativa. Pede reajuste sexual e de ânimo e não se envergonha de se expor ao risco da demissão.

Da mesma forma que é legítima a luta pela reforma agrária do coração, ela também inviabiliza o andamento natural da casa. As ladainhas provocam um mal-estar de permanente rivalidade. Tudo é motivo para DR. Ou é ausência de opinião ou é egoísmo. Ou é uma fala torta ou é falta de mensagens. As insatisfações não têm trégua. O lado ofendido só redunda o pessimismo e estabelece uma comparação injusta com a época de apaixonado.

É como um jogo de futebol que para a todo momento, cheio de faltas e cartões. Não há mais emoção da torcida e os gritos de apoio – mas somente vaias e ameaças. Fazer as malas vem à tona com o cansaço dos debates e tensiona o futuro.

Dificilmente o relacionamento amadurecerá e ganhará viço. É um caminho sem volta.

O sindicalismo sentimental não costuma vencer as suas batalhas. A outra parte fica desprovida de margem de manobra para errar e se isola, acuada e agressiva, no orgulho ferido. Não tem tempo de corrigir o comportamento, pois vai responder um problema e é lembrado de um novo.

Já não dá para discernir se quem protesta realmente espera dias melhores e uma conversão súbita ou deseja somente provar que a sua companhia não presta e que não vale a pena insistir.

O ideal é alternar momentos de reivindicação e de incentivo, revezar as críticas com as juras, e não banalizar as cobranças e profissionalizar a dissidência. Não é possível se recuperar sob pressão. A angústia mata a criatividade do amor.



08 de outubro de 2016 | N° 18655 
MARTHA MEDEIROS

Voo solo

Vivemos num mundo em que a independência, a liberdade e a autonomia são hiperconsideradas. No entanto, as pessoas ainda se sentem intimamente aterrorizadas com a perspectiva da solidão, mesmo que momentânea

Cheguei faz pouco de uma escapada: passei uma semana sozinha em Nova York. Cruzei por lá com outros viajantes desacompanhados, gente do mundo todo, dos 18 aos 80, mas parece que essa realidade ainda causa desconforto para aqueles que não se imaginam fazendo o mesmo. Na volta, ao entrar no táxi que me trouxe do aeroporto pra casa, o motorista puxou assunto e me questionou se eu gostava de viajar desse modo. Prefiro viajar com namorado, respondi, mas, se estou num período de entressafra, vou igual e gosto muito. Ele sentenciou: Você pensa que gosta.

Do alto de seu desconhecimento a meu respeito, ele decretou que eu mentia para mim mesma. Petulância facilmente explicável: é mais fácil duvidar do desprendimento dos outros do que assumir a própria incapacidade de se satisfazer consigo próprio.

Vivemos num mundo em que a independência, a liberdade e a autonomia são hiperconsideradas. É o que queremos para o país que a gente vive, é o que desejamos de uma profissão, é o que pretendemos para nossos filhos ao se tornarem adultos. Valores que dignificam o caráter e que tornam as relações mais íntegras e verdadeiras. No entanto, as pessoas ainda se sentem intimamente aterrorizadas com a perspectiva da solidão, mesmo que momentânea.

Em Nova York, conversando com uma jornalista inglesa, viajando sozinha também, falamos sobre a delícia de caminhar pelas ruas sem pressa, entrando e saindo de galerias de arte, de lojas, de parques, no total controle do nosso tempo e da nossa vontade. De se permitir, em um museu, ficar 10 minutos em frente a cada quadro, ou passar por todos dando uma rápida conferida e tchau. 

De ir a shows, de pegar o metrô e de alugar uma bicicleta sem precisar submeter-se às concessões habituais de quem viaja em dupla ou com um grupo. Discordamos apenas sobre as refeições: almoçar sozinha num bistrô, com mesa na calçada a fim de testemunhar o passeio dos outros, me diverte, mas troco o jantar por um piquenique no quarto do hotel, acompanhada de um bom livro. Já a inglesa disse que era a parte que mais gostava – à noite, escolhia um restaurante estrelado e proporcionava a si mesma um banquete de rainha sem o menor constrangimento.

Por que a maioria das pessoas não consegue nem cogitar uma jornada a sós? Os que se sentem atraídos pela ideia dizem que é por falta de coragem, mas o mais provável é que seja por vergonha. Nem pensar em dar a impressão de ser um abandonado por Deus, de não ter um mísero amigo com quem se aventurar pelo mundo, de ter que enfrentar o olhar piedoso dos casais. Ninguém acreditará que foi uma escolha, e sim a única alternativa de um rejeitado.

Enquanto se dá trela para a opinião dos outros, melhor seria aceitar que você, o tempo inteiro, está na melhor companhia que se pode desejar.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016


05 de outubro de 2016 | N° 18652 
MARTHA MEDEIROS

Tem alguém aí?

Eu achava que detinha algum conhecimento, ao menos o suficiente para conseguir atravessar os dias identificando o terreno onde pisava. Lembro inclusive de ter sido uma criança com ares de veterana, topetuda, mas o tempo passou, a roda girou, e hoje, à medida que os dias se sucedem, mais amadora me sinto. 

Em algum momento dei uma cochilada e esse breve instante de distração foi suficiente para o mundo fazer um looping e me desalojar. Acordei agorinha e estou me desconhecendo. Não me transformei numa barata, e sim numa moscona – cada um com sua metamorfose. O fato é que não sei de mais nada. Estou nauseada, boiando nesse mar de opiniões contundentes. Quero voltar a pisar em terra firme, mas para isso preciso que alguém me resgate.

Tem alguém aí? Tem alguém aí que ainda duvide de alguma coisa? Dúvida é a ausência de certeza. Não costumava ser pecado mortal ter dúvida, tínhamos várias e de certa forma era um estado de alerta positivo, nos conduzia à investigação, ao aprofundamento dos fatos e de nós mesmos. Só que para esclarecer as dúvidas era preciso paciência.

Tem alguém aí com paciência? Paciência é a virtude de saber esperar e de ser perseverante. Esperar. Lembra esperar? É, faz tempo. Coisa que não há mais. Não há mais tempo para pensar antes de responder, pensar antes de agir, pensar antes de acusar, pensar antes de ofender. Ninguém dedica nem dois minutos a fim de se portar com civilidade, nem meio minuto para escolher entre o sim e o não. Hesitou, perdeu. Azar o seu.

Tem alguém aí com compaixão? Compaixão é o sentimento de identificação com quem sofre ou passa por dificuldades. Muito nobre, mas para que serviria compaixão, alguém saberia dizer? Temperar saladas, evitar rugas, ganhar dinheiro? Antigamente servia para temperar amizades, evitar conflitos, ganhar paz de espírito. Pouco lucrativo, entendo.

Tem alguém aí não querendo ganhar nada com isso?

Agride-se. Persegue-se. Humilha-se. Debocha-se. Patrulha-se. Quanto mais se pega no pé, mais se ganha em estatura. Se eu flagro o outro no erro, ponto pra mim. Deixo claro que o bom sou eu. Que o certo sou eu. É a forma mais rápida de se autoelogiar sem dar muito na vista.

O que tenho visto? Muita gente eloquente, inteligente, posicionada, articulada, bem-resolvida, politizada e não aceitando vacilações: julgamento sumário para quem não estiver do meu lado. Em outra encarnação, devo ter tido carteirinha desse clube, mas como eu dizia no início do texto, dormi no ponto, não paguei todas as mensalidades, mosqueei.

Tem alguém aí que não é tão bom? Que não sabe tudo? Que está meio perdido? Então segura aí, me espera, vou com você. Também não estou me achando.

terça-feira, 4 de outubro de 2016


04 de outubro de 2016 | N° 18651 
CARPINEJAR

Somos a própria casa

A casa reproduz a nossa insatisfação. Nunca estamos plenamente felizes. Sempre existe algo a reformar ou uma chance de colorir a planta original.

Você pode ter amplos espaços e não contar com uma garagem. Ou você pode usufruir de quartos gigantescos e, em contrapartida, suportar um banheiro apertado.

Existirá um limitador, um defeito que baixará o valor do imóvel. Há apartamentos majestosos sem paisagem nenhuma, por sua vez há quitinetes de envesgar o proprietário com belezas transbordando das janelas. Já vi apartamentos encravados em encantadoras áreas verdes, porém ameaçados pelo deslizamento. Mesmo as mansões desfrutam de contrariedades, ou são muito longe, ou excessivamente protegidas e afastadas do aeroporto.

Algo dentro da casa não corresponderá às expectativas, só que terminará compensado pelo resto. Assim como você deixa passar um traço falho em sua personalidade em nome do conjunto.

A casa é um jeito de aceitar a imperfeição.

Ou você pode melhorar o apartamento para vender ou melhorá-lo para morar – e isso já expõe a sua visão de mundo. Ou você pode ter apenas um cantinho para dormir ou cultivar a solidão com o capricho das estantes e das plantas.

Sou a minha casa, de algum jeito. Faz sentido. A cozinha é pequena e colada à área de serviço, traduzindo a minha inabilidade com as panelas. Queria desfrutar de uma estrutura de chef, mas me resignei a um espaço funcional. Por incrível que pareça, os amigos farejam o meu ponto fraco e preferem ocupar a estreita cozinha durante as festas. Nem reclamo, nem mais mando o povo sair.

Já a sala, em nítida oposição, é um estaleiro. Revela a minha intensa sociabilidade e alegria de anfitrião. Evidente que gosto do enfrentamento e dos longos debates, simbolizados pelos sofás laterais, um de frente ao outro. As visitas são obrigadas a se encarar.

O lar é a minha cara, extravasa o meu temperamento. Bate o sol de tarde clareando as mesas e cadeiras e destranco os janelões para receber ventos engarrafados de esquina.

É um apartamento de frente, e descubro quem chegou no portão mais espiando pelas cortinas do que atendendo ao interfone.

Moro numa biblioteca, entretanto não abro mão da nostalgia do campo. A churrasqueira está no centro do escritório, não na varanda como é o costume. Diz muito sobre o meu orgulho das tradições gaúchas. Enfeito as prateleiras com brinquedos de madeira e jogos antigos como pião e cinco-marias, o que indica que não abandonei completamente a infância. Os quartos são do mesmo tamanho – apesar da independência financeira, não consigo tirar vantagem sobre as crianças. Não abdico também de um longo corredor entre as portas, todo poeta que se preza possui uma galeria de fotos e quadros dedicados aos seus fantasmas.

Quando entro em uma casa, estou conhecendo a alma de alguém e não tiro nada do lugar. Vá que mexa em uma dor secreta e um nervo inflamado.