sábado, 28 de março de 2015


29 de março de 2015 | N° 18116
MARTHA MEDEIROS

Decolagem autorizada

É um impulso natural: abrir-se para novas oportunidades, alargar o campo de visão

Dias atrás escrevi uma coluna que repercutiu. Eu falava do sentimento de ver uma filha levantando voo, saindo de casa para construir sua própria vida fora do país, sem data para regressar. Na ocasião, recebi e-mails de pais e mães relatando experiências semelhantes, contando como foi importante para o amadurecimento de seus filhos essa decolagem rumo à própria independência.

Não foram três ou quatro, foram dezenas de mensagens, provando que essa debandada é mais comum do que se imagina e que só traz benefícios, tanto para quem vai quanto para quem fica muitos comentaram que o relacionamento com os viajantes só melhorou depois que eles partiram.

Estava eu entretida com as histórias que cada um contava quando entrou um e-mail de um pai que assim iniciava seu relato: “Tua coluna me levou às lágrimas”. Pensei: mais um que acaba de voltar do aeroporto depois de se despedir do seu moleque. Mas não. Ele contou que tinha um filho de 38 anos que ainda morava em casa e não dava sinal de querer levantar a bunda do sofá (palavras dele).

Imaginava que, a essa altura, o filho já teria vivido suas aventuras pelo mundo, aprendido um pouco sobre a vida, feito escolhas, mas que, ao contrário disso, criara raízes e não pretendia cortá-las. O garoto (garoto??) trabalhava, era um bom menino (menino??), mas nada de se movimentar.

À medida que o texto progredia, a frustração desse pai ficava mais evidente. No final, já estava insultando o guri (guri??). E eu, que gosto de um humor negro, não contive o riso diante deste “pai às avessas”, como ele próprio se definiu: inconformado por não ver seu filho também levantando voo.

Dei total razão a ele. Quando os filhos saem de casa, a gente se preocupa, sente saudades e tal, mas, no fundo, sabemos que esse rompimento está escrito e que é salutar na vida de todas as famílias. Por mais que dê um aperto no peito, o sentimento que realmente impera na hora da separação é orgulho. Criamos um filho que tem determinação, autonomia, equilíbrio emocional.

Não é preciso que ele vá para Londres, Austrália ou qualquer outro lugar distante. Basta abrir mão de um amanhã previsível, mesmo que seja mudando para o bairro vizinho. É um impulso natural: abrir-se para novas oportunidades, alargar o campo de visão, encontrar-se com um eu mais autêntico. Claro que grande parte da população não conta com esse privilégio: amontoam-se todos sob o mesmo teto por não terem como se sustentar de forma avulsa. Mas quem ganha seu próprio dinheiro e ainda assim se recusa a migrar será para sempre o apêndice de uma estrutura que não foi criação sua, e sim herdada sem esforço, impedindo a formação de uma identidade mais legítima.


Ô garoto, ô menino: coragem. Bata as asas e permita que seu pai voe também.

29 de março de 2015 | N° 18116
FABRÍCIO CARPINEJAR

O perdão custa caro

Qualquer criança confessa. Ou pela pressão da verdade ou pela ameaça das informações desencontradas.

A confissão não expressa maturidade. Tem que ser adulto mesmo para arcar com as consequências de seus atos e pagar a pena (que leva em conta a mentira e também o tempo que manteve a mentira).

Diante da quebra de lealdade no relacionamento, a sinceridade do arrependimento depende da contundência da mudança e rápida e emocionada disponibilidade para a retratação. Não pode haver vacilação e dúvida. Rompe-se radicalmente com o que trazia dor e duplicidade, recusam-se barganha e atenuantes, é deixar uma vida para trás e nascer de novo. Exige uma combinação enérgica de resistência emocional e determinação, para provar que nada se repetirá.

Pois se mostrar arrependido é diferente de cumprir o arrependimento.

O primeiro é um estado provisório, que pode ser da boca para fora, provocado pelo medo de perder alguém. Uma promessa, simplesmente, acalmando os ânimos acirrados.

O segundo é um processo de resiliência, definitivo, para resgatar a igualdade e cicatrizar a confiança daquele que se magoou. É quando transformamos a dívida em responsabilidade, quando transformamos o castigo em justiça, quando aceitamos repor as perdas e recuperar o direito de falar. Alinha-se a consciência novamente ao discurso.

Amadurecimento é corrigir o que foi feito de errado pela dedicação, pelo trabalho, dar o exemplo de integridade em sequência, sem jamais desistir. Com humildade, aguentar a desconfiança e a suspeita de quem feriu. Não desfrutará de meias-palavras, nem de um silêncio agradável: é o caso de se apresentar transparente na intenção e didático nos pensamentos.

Por um longo período, você que errou passará a ser o único a confiar em si, e não conhecerá dias leves. Estará em desvantagem nas conversas, precisará prestar satisfações e confirmar horários. A reincidência estará sorrindo à sua frente quando chora e se contorce de culpa. Terá vontade de retornar ao que era, onde mentia, fazia o que queria e não devia nada a ninguém.

Pedir desculpa é fácil e indolor, diria que é um suspiro letrado, mas carregar “eu errei” todo o dia nas costas que é árduo e tarefa para fortes.


Tudo pode ser consertado. Tudo. Desde que se entenda que desculpa é para crianças, e reabilitação é para adultos. Será obrigado a crescer.

quarta-feira, 25 de março de 2015


25 de março de 2015 | N° 18112
MARTHA MEDEIROS

Sete vidas

Estreou recentemente a nova novela das 18h, Sete Vidas, que conta a história de um homem que, quando jovem, doava sêmen para se sustentar, e depois, adulto, descobre que tem sete filhos que não conhece.

Não estou assistindo, mas confio muito no taco da autora, a ótima Licia Manzo. Comecei a coluna usando esse gancho a fim de promover outro tipo de doação que também pode gerar seis, sete, várias outras vidas: a doação de órgãos. Faço questão de apoiar a campanha lançada pela Santa Casa.

Quando alguém morre, é uma vida a menos. É assim que analisamos a morte: como uma perda. Porém, a gente se esquece de que essa vida a menos pode gerar muitas vidas a mais. Basta que se doem o coração, as córneas, o pâncreas, o fígado, os rins e o que mais puder ser aproveitado.

Quem de nós não gostaria de ter serenidade e tolerância diante da morte? Pois é, porém nenhuma religião conseguiu até hoje confortar plenamente os parentes e amigos que enfrentam o desaparecimento súbito de uma pessoa querida. A ausência definitiva de alguém próximo é de uma brutalidade que encarcera a todos num luto sofrido. O tempo não cura, apenas ajuda a administrar a saudade.

Mas há paliativos. No momento em que é preciso superar uma dor extrema, a doação de órgãos pode tornar-se mais eficiente do que as missas encomendadas. É o verdadeiro ato de fé que manterá viva aquela pessoa entre nós.

Pense: o coração de alguém que morreu por causa de um aneurisma pode continuar batendo no peito de um estudante de Medicina, as córneas de quem viajou por lugares paradisíacos pode servir para um fotógrafo. É uma ressurreição possível, que sai das páginas da Bíblia para virar realidade entre nós.

Ninguém quer morrer, ninguém quer perder ninguém, ninguém quer nem mesmo tocar neste assunto, ainda mais estando tão atazanado com o trabalho e outros compromissos cotidianos. Temos tanta coisa a realizar, que necessitamos urgentemente da garantia de que viveremos por no mínimo cem anos. Mas, caso o destino resolva ser mais rápido no gatilho, é muito importante que tenhamos verbalizado para nossos familiares que somos favoráveis à ideia de sobreviver através do corpo de outra pessoa.


Anunciemos em alto e bom som: sou doador de órgãos. Deixemos a declaração por escrito, se preciso for. Não é um tema mórbido. Estamos falando de esperança, de renovação, de generosidade. De uma multiplicação milagrosa de fato: uma pessoa valendo por duas, três, sete.

sábado, 21 de março de 2015


22 de março de 2015 | N° 18109
FABRÍCIO CARPINEJAR

Carta para José Klein

– Quando amamos, é lindo olhar a cascata, mas é muito melhor quando nos jogamos na cascata.

Meu amigo, eu respeito o que diz. Mas defende uma forma única de amar. Uma forma intempestiva, passional, impulsiva. Se ela não aparece desse modo, não compreende como amor. Observar o horizonte seria uma vivência inferior a mergulhar. Assim pode cometer um engano e desmerecer uma grande mulher.

Quem é viciado na paixão – nos sintomas truculentos da paixão – corre o risco de nunca conhecer o amor. Vi febre que era apenas gripe.

A verdade é que o amor nos muda para mudarmos o amor.

Antes queria testar os limites, hoje talvez queira proteger os limites. Antes se orgulhava da fúria, da provocação e da dependência nervosa, hoje talvez busque uma relação que ofereça paz e cumplicidade.

Atualmente, o entendimento e a serenidade a dois podem ser mais difíceis e excitantes do que a loucura que vivia quando se apaixonava.

Pular a cascata não será uma aventura inédita, não vai surpreendê-lo, ainda mais para você que saltou várias vezes.

Já pulou a cascata para entender como a cascata funciona e onde precisa cair. Já absorveu modos de segurança e mecanismos de defesa. Já treinou a queda. Não tem graça. A queda é voo, é acrobacia, é técnica. Não será mais a adrenalina do tombo inaugural.

Educamos o amor a ser progressivamente resistente, a ponto de transformar o nosso temperamento e alterar as nossas exigências.

Não terá mais o arrebatamento, a volúpia e o descontrole anterior. Não porque o amor é mais fraco, mas porque se tornou mais forte pelos amores que enfrentou.

Não pode esperar encontrar um amor de tirar o fôlego, como já experimentou, pois respira na altitude e encorpou o fôlego.

Não pode regrar seus próximos envolvimentos por uma receita. Seu raciocínio segue uma lógica perigosa, tem que ser igual ao que deu certo, que deve perder a cabeça, senão não é amor. Talvez o maior amor seja aquele que devolve a cabeça.

Você não é mais o mesmo para amar como antes. Criou anticorpos, será sensibilizado com o dobro de atenção.

Não repetirá a crise de ciúme, a taquicardia, o balbucio. Mas reconhecerá a disposição, a saudade e o bom humor que existem em todo encantamento.

É um crime amar de novo boicotando as experiências. Como se o amor fosse alheio, pronto. Como se houvesse uma fórmula eternamente igual para si, feita de desequilíbrio e suspensão do tempo.

Você amará superando o que amou e, inclusive, o que deixou de amar.

Garanto que há também esse amor que começa suave e tranquilo, para depois ganhar violência e arrebatamento. Não precisa ter sempre, de início, o salto no escuro.

22 de março de 2015 | N° 18109
MARTHA MEDEIROS

Elogio à memória

O médico britânico Richard Smith gerou polêmica, recentemente, ao afirmar que o câncer é a melhor forma de morrer. Aos que já perderam alguém para essa doença infeliz, a pergunta que fica no ar é: como assim? Dr. Smith explica que, entre a morte súbita, a falência múltipla de órgãos, a demência ou um câncer, este último estaria em vantagem por dar ao paciente a oportunidade de se despedir dos seus afetos e prazeres, de refletir sobre a vida, de visitar certos locais pela última vez e de se preparar para a partida conforme suas crenças.

A polêmica se acirrou mais ainda quando ele disse que os investimentos para pesquisar a cura do câncer deveriam, ao menos em parte, ser direcionados a estudos sobre as doenças da mente.

A primeira vez que enxerguei o câncer com olhos menos dramáticos foi ao ler o livro Por um Fio, do dr. Dráuzio Varella, em que ele relata sua comovente experiência como oncologista. Agora, ao assistir ao filme Para Sempre Alice (que achei meio fraco, diga-se), reforcei a ideia de que o câncer dispõe mesmo de alguns benefícios nessa competição macabra.

A atriz Julianne Moore ganhou o Oscar de melhor atriz ao interpretar uma mulher de 50 anos que sofre do mal de Alzheimer. Ela perde palavras, não reconhece feições, esquece com quem estava conversando, e sobre o quê. Menos mal que ainda consegue produzir flashbacks, lembrar a infância e acontecimentos remotos. Porém, nos casos em que a memória vai inteirinha para o brejo, de que adiantou ter vivido?

Não faz sentido atravessar tantos conflitos e amores, ter cometido tantos erros e acertos e não poder, lá adiante, contabilizá-los. No inventário de uma vida, vale o que se fez e o que se sentiu. Se tudo for esquecido, esvaziam-se nossos 80 anos, nossos 90 ou 100. Qualquer longevidade passará a valer um segundo.

Espero um dia olhar para fotos antigas e me reconhecer no sentido mais amplo, recordar o que eu vivia naquele momento do clique, dizer “parece que foi ontem” sem sofrimento. Quero lembrar sabores, sorrisos, gestos, enfim, os flashes que iluminam a estrada atrás de nós. Quero inclusive lembrar os arrependimentos e as dores, que vistos de longe parecerão bem menores – e essenciais. Quero rir muito de mim, me recordando de trás pra frente.

Porque, se não for assim, nossa vida terá valido para os outros, os que nos lembram, mas não terá valido para nós mesmos. Seremos uns desmemoriados sem alicerces, vagando num presente ilusório, desaparecendo a cada minuto que passa.

Se temos que morrer um dia (que jeito), que seja abraçados a nossas recordações. A integridade de uma vida está em seu reconhecimento, mesmo que, junto às boas lembranças, sejamos obrigados a reconhecer também a proximidade do fim. É o preço. Pior é morrer alienado, sem poder avaliar, através da memória, se valeu ou não a pena.


segunda-feira, 16 de março de 2015


16 de março de 2015 | N° 18103
EDITORIAL ZH

O RECADO É PARA DILMA

É imperioso que a presidente da República assuma a sua responsabilidade e dê respostas práticas, coerentes e eficazes às demandas nacionais.

De volta às ruas pela primeira vez depois do fenômeno de massas deflagrado em junho de 2013, os brasileiros deram uma clara demonstração de maturidade democrática nos atos que, iniciados ainda na quinta-feira, favoráveis ao Planalto, culminaram ontem com manifestações expressivas de crítica e rejeição ao governo Dilma Rousseff. Se, há menos de dois anos, as reivindicações não chegaram a ser claramente entendidas, nem contempladas, agora não há mais como ignorá-las.

Os cidadãos vestidos predominantemente de verde e amarelo que tomaram ruas e praças das principais cidades do país, ontem, disseram com clareza que não suportam mais a corrupção, que estão insatisfeitos com o governo e que esperam soluções para a instabilidade política e econômica. E é a presidente Dilma Rousseff que está sendo cobrada. Cabe a ela dar as respostas.

O Brasil protestou pacificamente, mas disse inequivocamente o que quer. Felizmente, os excessos e ameaças verificados nas redes sociais não se materializaram. O ponto fora da curva foram alguns equívocos tanto na pauta dos defensores do governo quanto na de seus opositores. É o caso do lobby em defesa de corporativismos e da partidarização da máquina, visível nos atos de apoiadores da presidente Dilma.

É o caso, igualmente, de uma bandeira legítima e democrática, mas precipitada, que é o pedido de impea- chment, diante da inexistência de um fato concreto, neste momento, para respaldá-lo. Outros absurdos isolados, como pedidos de intervenção militar ou do fim do Supremo Tribunal Federal, só podem ser explicados pelo desconhecimento das consequências de uma ruptura ou do papel das instituições. No seu conjunto, as manifestações mostraram por todo o país uma predominância do bom senso e da civilidade, o que contribui para o fortalecimento da democracia.

Mas o Planalto e os demais setores públicos demandados devem respostas imediatas às reivindicações levantadas pelos brasileiros, especialmente às exigências de combate à corrupção e de correção de rumos na política e na economia. O apelo mais forte é dirigido particularmente à presidente da República, de quem os brasileiros esperam mais dinamismo na condução do país e posições inequívocas no combate à corrupção, que não poupou nem mesmo uma empresa de tamanho simbolismo como a Petrobras.

Os cidadãos querem ver também o cumprimento na prática de suas promessas de campanha, que tomaram rumo inverso com a disparada da inflação, o retrocesso na produção e o aumento do desemprego – tudo isso potencializado pela instabilidade política.

Depois dessa nova onda de manifestações, é imperioso que o governo se mostre mais humilde, mais disposto ao diálogo, à transparência e à comunicação franca. E que a presidente da República assuma a sua responsabilidade e dê respostas práticas, coerentes e eficazes às demandas nacionais.


sábado, 14 de março de 2015





OIÊ ANJO ADORÁVEL BOA NOITE!!!

Estava aqui pensando em

Algo especial pra você, mas

Não encontrei nada à sua altura


MAS LHE DIGO, QUE TE GOSTO MUITÃO!





15 de março de 2015 | N° 18102
MARTHA MEDEIROS

Pensar não é agir

Nunca esquecerei minha professora de História. Seu maior desejo era conhecer Roma. Era tão apaixonada por esse sonho que chegou a memorizar o mapa da cidade, julgava-se capaz de caminhar por suas vias com mais desembaraço do que um morador local.

Ela retinha a cidade em pensamento. Sentia o aroma de suas trattorias, a fuligem deixada pelas scooters, a imponência de suas edificações. Aprendeu italiano e adquiriu fluência no idioma. Tinha a viagem formatada dentro de sua cabeça, até parecia que já tinha ido. Mas morreu sem jamais sair do Brasil.

Da mesma forma, lembro uma tia distante que na adolescência se apaixonou por um garoto e decretou para si mesma que, se não casasse com ele, não casaria com ninguém mais. Nunca namoraram, mas ela criava os diálogos de seus encontros, sentia a mão dele segurando a sua dentro do cinema, imaginava seu vestido de noiva, escolhia nome para os filhos que teriam.

O rapaz casou com outra e ela continuava visualizando o sobrado em que morariam, os cuidados que teriam com o jardim, o apoio que dariam um ao outro quando a vida exigisse. Essa minha tia faleceu com mais de 80 anos. Virgem.

Dois casos extremos. Porém, longe das extremidades, na vida mundana de cada um, também há desejos desse naipe, que se realizam apenas dentro da imaginação, se é que o verbo realizar aqui se aplica.

A fantasia é um recurso luxuoso. A fantasia ameniza frustrações. A fantasia alimenta a autoestima sem danificá-la. A fantasia quase substitui o ato concreto.

Quase.

O pensamento fantasioso obedece ao script que determinamos, mas não basta. A realidade é muito mais poderosa. Acontece a nossa revelia, sem cumprir os requisitos que nossa mente inventou. A fantasia é um subterfúgio legítimo, porém os fatos que fantasiamos não merecerão uma única linha na nossa biografia. O que vale é a experiência. Sofrida. Vingada. Curtida. Exaltada. O que for. Mas vivida.

Está aí mais uma coisa que se aprende com a passagem do tempo: pensar não é agir. Pensar é pensar, é proteger nossa vontade, embalá-la, encarcerá-la no idealismo e se conformar com um prazer hipotético. Pensar é sem gosto, sem tato, sem cheiro, sem risco. Vale a pena uma vida sem risco?

Agir, não. Agir é um salto sem rede. Agir é uma viagem, uma vertigem. É ficar disponível para o bem e o mal. Agir é para os audaciosos, corajosos, merecedores do lugar mais alto do pódio. Agir é para quem tem autoconfiança e, no caso de tudo dar errado, ter também o humor necessário para se consolar e seguir adiante. Agir é o mais potente afrodisíaco.


São poéticos aqueles que vivem no sonho, mas tornam-se imunes à sedução.


15 de março de 2015 | N° 18102
FABRÍCIO CARPINEJAR

Sair para festa

Quando nossa mulher está mais linda, não podemos nem chegar perto.

É ela se arrumar para uma festa, absolutamente desconcertante e sensual, que não podemos tocá-la.

É uma contradição: no instante em que ela se produz, perdemos a chance de namorá-la.

O romance é suspenso, estaremos apartados de sua beleza por algumas horas, afastados do templo, expulsos de qualquer chamego.

Uma parede de vidro desce entre o casal. Um biombo baixa entre os corpos.

Podemos enxergá-la, admirar de longe, elogiar e bater palmas, não nos aproximar.

É um divórcio simbólico, sentimental, justamente quando está maravilhosa, nos enchendo de orgulho por sermos os escolhidos de sua vida.

Trata-se de uma Cinderela para os olhos, não para as mãos. Um pavão com alma de porco-espinho, armada para se defender da gente.

Não podemos beijá-la na boca senão vamos borrar o batom.

Não podemos roçar os lábios nas bochechas senão vamos corromper a maquiagem e sujar a roupa.

Não podemos cheirar o pescoço senão levaremos todo o seu perfume.

Não podemos abraçá-la senão vamos abarrotar seu vestido.

Não podemos acariciar seus cabelos senão vamos estragar o penteado.

Não podemos alisar as coxas senão vamos desfiar as meias.

Não podemos andar naturalmente de mãos dadas já que estará de salto. E precisamos cuidar de suas unhas para não fazer nenhum movimento brusco e lascar as pontas.

Viramos amigos no momento de sair para um evento. Repentinamente amigos.

Éramos maridos um pouco antes, sem nenhum receio de envolvimento e tato, e agora os caminhos são inacessíveis.

Estamos impressionados, excitados, seduzidos, loucos para nos agarrar como na primeira vez, girar a chave da boca pelo segredo do coração, mas não existe como, temos que nos controlar e nos prevenir de silêncios, ela demorou o dia inteiro para se vestir e se esmerar, não há como jogar fora a produção e a longa vizinhança do espelho.

Somos cúmplices da beleza. E também vítimas da beleza.

As mulheres não compreendem por que os homens buscam sair da festa mais cedo, o quanto ficam emburrados, embirrados, de canto, mudos e paspalhos, o quanto são estraga-prazeres no melhor dos brindes e das músicas.

Não é ciúme, mas saudade. Não é inveja, mas nostalgia. É o desejo mais banal de ter sua esposa de volta.


Respeito os sentimentos masculinos. Só que, no fim das contas, agimos de modo egoísta e machista. Temos a mulher todo o tempo conosco, e não percebemos que, naquela noite, ela se arrumou para si, para brilhar sozinha, é um momento dela e para ela. Não atrapalhe com sua ansiedade.

15 de março de 2015 | N° 18102
LUIS AUGUSTO FISCHER

Frio no frio

Ólafur Grímsson, experiente cancionista islandês, deu mostra de sua excelência para uma pequena plateia reunida no StudioClio, sexta-feira passada. Não tendo passado pela grande indústria pop – cd, dvd, shows massivos, foto com a Madonna –, ele tem a liberdade de ostentar uma marca ao mesmo tempo singela e poderosa: ninguém como ele foi até aqui capaz de síntese tão ousada e poderosa entre a tradição dos “rímur”, tradicionais poemas rimados, e a levada meio pop, meio rock. Muito melhor do que Björk, sua compatriota famosa, Grímsson merece ser conhecido por todos, mas restará sendo uma senha entre alguns, porque o provincianismo permanece uma pecha fácil contra aqueles que provêm de regiões não-hegemônicas, como é o caso da Islândia, e que não foram pasteurizados pela mídia dominante, como ele.

Nunca fiz isso na vida: começar um texto com um parágrafo falso, para depois dizer que é falso e realmente começar a escrever. Paciência. Também para isso há uma primeira vez.

A fantasia desse Grímsson aí (com o nome do atual presidente da Islândia real) me acorreu ao espírito ao cogitar em como relatar, com a força possível e toda a verdade cabível, a peculiar experiência que pude presenciar no dia 6 de março agora: Vitor Ramil fez um pocket-show em Reykjavik, capital do distante país islandês, como desdobramento quase natural do lançamento de uma edição local, bilíngue, de seu conhecido ensaio A Estética do Frio, que resultou em Fagurfræði Kuldans, com tradução de Luciano Dutra (leia texto de Luciano Dutra sobre a Islândia na página 9), também editor, e Gerður Gestsdóttir, pela editora sagarana – nome que é ao mesmo tempo o nome do livro de brasileiro Guimarães Rosa, mas traz em seu íntimo o termo saga, islandês.

A temperatura externa era próxima do zero, e a sensação térmica perto dos 10 negativos; dentro do espaço do show, como ocorre em regiões preparadas para o frio, devíamos estar perto dos 20 positivos. A Estética do Frio, todo mundo sabe, é uma reflexão muito original feita pelo Vitor mais de 20 anos atrás, e depois reescrita e repensada algumas vezes. Sua matéria primeira, como o título explicita, é a busca de um jeito de fazer arte ligado ao frio. Qual frio?

Perguntei ao Luciano, ex-aluno de Letras da UFRGS que vive na remota ilha como tradutor entre o português e o islandês (e o sueco e dinamarquês, seus parentes próximos), o que evoca a palavra “frio”, na vida real islandesa. Ele me disse que a associação mais direta é com “imprevidência”, “despreparo”, e não com temperatura baixa. Passa frio, lá, quem não usa a roupa certa, não se alimenta, não se abriga direito – as chances de viver sem frio lá são totais, num país em que não há pobreza extrema, em que um ministro é tratado por “tu”, em que banqueiro especulador vai para a cadeia.

Para o Vitor e para nós, gaúchos, frio rima sensação física, agradável e temível, com aqueles 30 ou 40 dias anuais que impõem temperaturas abaixo dos 15 graus, raramente zerando o termômetro. Mas é mais: como flagrou o Vitor, de forma muito expressiva para ele e muitos que vêm depois, o frio marca o jeito gaúcho de ser brasileiro.

O show? Vitor começou pelas beiras, brincando com algumas inversões que quadravam ao paralelo 65 norte, ele que mora quase no paralelo 32 sul, na metade do contrário: Foi no Mês que Vem; depois aquela que começa evocando o “quarto de não dormir”; depois a bossa nova dolente Não é Céu. Mas é o que então? Aí o centro: Estrela, estrela, Noite de São João, Milonga de Sete Cidades, Ramilonga, Milonga de los Morenos. Afirmações: estética do frio, numa cidade gelada que não sente frio.

Fiquei pensando nos islandeses presentes, que balançavam o corpo ao ritmo para eles tão estranho mas amável, e nos brasileiros não gaúchos da sala, que deviam estar sentindo nas entranhas o igual e o diverso, de cambulhada. A voz, o violão, a dicção daquele cantor ali diante deles, sem o carimbo da indústria mundial do entretenimento fácil, tudo dependeu apenas do encanto da hora, sem os compromissos profundos, os pressupostos complexos, as demandas identitárias que moldam nossa audição do Vitor.


Melhor assim? Pior? Diferente, agradável mas exigente, experiência de vida intensificada em símbolo, exato como são os feitos artísticos de valor, desentranhados da matéria viva de um tempo, de um lugar, este fronteiriço sul do Brasil que reviveu ao ser cantado nos longes do norte.

quarta-feira, 11 de março de 2015


11 de março de 2015 | N° 18098
MARTHA MEDEIROS

Levantando voo

Ontem minha filha embarcou num avião para uma viagem ao Exterior sem data de retorno. Está realizando um sonho antigo, mas que se tornou premente nos últimos meses. Formada, inquieta, faminta por novas experiências de vida, acumulou salários, vendeu alguns pertences, passou madrugadas pesquisando as menores tarifas de passagem e hospedagem, arrumou a mala e se foi.

Muitos pais têm vivido essa ruptura: ver seus filhos partirem em busca de mais conhecimento e amadurecimento, jovens que precisam abandonar o ninho para um voo solo a fim de descobrirem uma nova direção e um ponto de vista que os surpreenda. Querem nascer de novo, agora sem cordão umbilical de nenhuma espécie.

O mundo deu uma encolhida. Pelo WhatsApp, ela poderá postar o que está almoçando, pelo Skype verei seu novo corte de cabelo, pelo Face irei acompanhar suas fotos e bateremos papos digitais, coisa, aliás, que absurdamente já fizemos estando ela no seu quarto e eu na sala. Então, o que significa, mesmo, distância?

Nos dias atuais, as distâncias tornaram-se bem menos dramáticas, não há mais invisibilidade e silêncio, estejamos a poucos metros ou a muitos quilômetros da pessoa amada. O toque continua restrito aos corpos presentes, mas já não perdemos ninguém de vista. E isso nos libera para sofrer menos e pensar com mais positivismo sobre as separações.

Desde que a colocaram nos meus braços, na maternidade, percebi em seus olhos que ela não se conformaria com os limites impostos pela segurança de uma vida regrada. Sempre considerou o mundo seu quintal. A palavra estrangeiro nunca encontrou lugar em seu vocabulário. Todos os seus objetivos foram tratados como realizáveis, independentemente de onde, de quando, de quem, de como.

Os filhos voltam, quase todos. Nem que seja para nos visitar. Se ela não vier, eu irei até ela, não é esta a questão. O que me sensibiliza é que a nossa vida está mudando – mais uma vez. Um ciclo se encerra para dar início a outro. A família até então estruturada se decompõe para que cada um de seus membros forme outros núcleos, novas rotinas. 

Ela voltará um dia, mas para morar em seu próprio apartamento. Ou voltará para morar em São Paulo. Ou voltará casada. Voltará – mas nunca mais a mesma. O que vivemos juntas nesses últimos 23 anos virou memória desde ontem. A partir de agora, estaremos iniciando uma viagem inédita ao futuro, estando aqui ou estando fora.


Não posso ficar triste, mesmo com o coração apertado. É da vida esse chamado, que é atendido por aqueles que têm coragem de partir e mais coragem ainda de chegar. De chegar neles mesmos, que é onde cada um, não importa a via escolhida, confirma a razão da própria existência.

11 de março de 2015 | N° 18098
EDUCAÇÃO O VOVÔ DA TURMA

Bixo aos 85 anos

AGRÔNOMO APOSENTADO, Luiz Alberto Ibarra resolveu realizar um antigo desejo: ingressou na faculdade de Direito, em Porto Alegre

Dias antes do início do ano letivo, Luiz Alberto Ibarra estava receoso com o retorno à rotina acadêmica, experiência vivida uma única vez, mais de seis décadas antes.

– Eu nessa idade... – ponderava. – Será que a gurizada vai me aceitar?

A mulher, Suely, tentava amenizar a ansiedade:

– Vai! Tu tá com a cabeça boa.

Depois de uma trajetória dedicada às tradições gaúchas e às atividades como agrônomo e jornalista, seu Luiz, 85 anos completados em fevereiro, decidiu que não poderia mais ignorar uma pendência antiga. Encorajado pelo exemplo de um amigo da mesma faixa etária, matriculou-se no curso de Direito na Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (Fadergs), em Porto Alegre. Sonhava com a carreira desde a década de 1940, quando fez amizade com um grupo de estudantes de Agronomia e enveredou por esse caminho. Trabalhou na Emater e no extinto Diário de Notícias. Com a aposentadoria, em 2000, viu- se inquieto nos dias, de súbito, ociosos, e o desejo dos tempos de moço voltou a ser considerado.

“Não caibo em mim de tanto orgulho e emoção!”, escreveu a neta Rafaela no Facebook em 3 de março, junto de uma foto do avô preparado para o primeiro dia como acadêmico, com a pasta pendurada no ombro. “Aos que serão colegas, façam bom proveito de um dos caras mais inteligentes do mundo! Aos professores, que permitam novas descobertas e conhecimentos, mas garanto que eles que ganharão mais”, completou Rafaela, que presenteou o idoso com um gravador para registrar as explanações em aula.

Seu Luiz se sentiu “um estranho no ninho” quando chegou para o primeiro período de Direito Penal I, no prédio da Rua Uruguai, campus Centro da Fadergs.

– Era o vovô da turma. Aquela mocidade, aquela juventude toda. Eu era uma ilha cercada de jovens por todos os lados – conta ele, aos risos.

Aproximou-se dos colegas mais velhos, entre os quais descobriu um jornalista, com quem teve bastante assunto. Arriscou-se também diante de um menino que chegou com um skate debaixo do braço:

– Vai me emprestar para descer as escadas?

Sentado na segunda fileira, tomando notas, seu Luiz deu início ontem à segunda semana como universitário. Na sala de aula com cerca de 30 alunos, quatro deles ainda não completaram 18 anos, como Henrique da Luz, que comentou:

– Me formar em Direito é um sonho. É o sonho dele também. Acho legal.

Em 1h15min de aula, o aposentado fez três intervenções, expondo dúvidas e completando as frases que a professora Natalia Pinzon deixava no ar ao incitar a participação da classe. Relatou a notícia de um crime ouvida no rádio pela manhã, despertando o debate do grupo.

A formatura está 10 semestres distante. Seu Luiz pretende aguardar um pouco para que possa refletir sobre o que fazer com a nova profissão. Se concluir o curso no período previsto, se tornará bacharel aos 90 anos.

– Estou aqui para aproveitar o tempo e modificar a ideia de que o idoso só fica em casa.


larissa.roso@zerohora.com.br

sábado, 7 de março de 2015


08 de março de 2015 | N° 18095
MARTHA MEDEIROS

Oficialmente adulta

Adolescente, passei de ano. Por média.

No ano seguinte, fiquei em recuperação, mas passei de novo. Já não era tão obediente. Enfrentava os pais. Achei que assim viraria uma adulta. Ilusão.

Transei pela primeira vez. Aprendi o que era amor, porém mais adiante me atrapalhei com a dor, não soube rimar os dois. Comecei a trabalhar. Ganhar dinheiro nos dá alguma independência, mas ainda não. Adulta mesmo, ainda não.

Formatura, o próprio nome diz. Formada. Feita. Pronta. Habilitada. Parece que sim, mas ainda é uma ilusão, apenas nomenclatura, força de expressão.

Carteira assinada, avancei na profissão e fui morar sozinha. Adulta, por fim. Mas tinha medo na hora de dormir, não sabia preparar um reles macarrão, comia congelados e a roupa ainda era lavada no tanque da família. Só morar sozinha não basta.

Ganhei prêmios, fiz um nome, aumento de salário. Para logo ali na frente ser demitida por ausência de esforço, a cabeça mais para poesia do que para prosa. Adulta eu parecia, mas no fundo eu sabia que faltava.

Li tudo o que caiu em minhas mãos. Velhos safados, romances policiais, literatura feminista, novos autores, realismo fantástico. Peguei emprestado um monte de sabedoria para elaborar a minha.

Sobrevoei o oceano, viajei só com minha mochila, percorri países em trens, dormi na casa de estranhos, fiz uma verba minúscula render dois meses e voltei sem nenhuma cicatriz e com autoconfiança escapando pelos bolsos. Parecia adulta, mas então as perguntas não respondidas voltaram a assombrar.

Dependia de outros aniversários para declarar-me pronta.

Casei. Virei a senhora de alguém, a senhora de mim mesma. Engravidei. Duas filhas. Casa própria. Perigosamente, a vida ganhou um sentido. Separei. Recomecei. O sentido mudou.

Os versos que fazia de brincadeira evoluíram para alguma coisa de verdade e eu virei, de repente, escritora.

E como escritora inventei respostas, amadureci em público, acreditaram em mim mais do que eu mesma acreditava, estive muito perto, perto mesmo, de ser declarada oficialmente adulta.

Um dia antes da posse é que a gente descobre.

Não é o amor sacramentado, não é o destino honrado, não é o rosto marcado, não é o corpo amaciado, não é o sofrimento acumulado, não é o cérebro bem ensaiado, não é a quilometragem rodada, não é nada disso que nos contaram.

Oficialmente adulta me declarei no instante em que descobri que nenhum mistério se decifra e que sempre saberei muito pouco. As perguntas se renovam, acumulam, vão e voltam trazendo ainda mais indagação. Porém, a incerteza de repente deixa de assustar, a vida vira um passeio, aprende-se a gostar das pausas, já não é preciso nenhuma perseguição.

Oficialmente adulta, por fim?

Pensando bem, quase lá, mas ainda não.



08 de março de 2015 | N° 18095
FABRÍCIO CARPINEJAR

E a poligamia?

Se a poligamia fosse lei, nada seria fácil.

Alegria em excesso desanda em embriaguez e termina em ressaca e dor de cabeça. O prazer em dobro triplica a incomodação. Imagine vocês, mulheres, com a possibilidade de se casar com dois homens.

Marmanjo junto é máfia de criança. Eles ficariam na sala jogando videogame nas folgas, gritando, bebendo cerveja e pedindo mais uma revanche.

Voto minoritário na programação, perderia o comando da tevê, não contaria com a complacência para assistir a seriados e filmes românticos.

Seus dois maridos seriam melhores amigos, alimentariam segredos entre si e responderiam tudo de maneira monossilábica para evitar discussões. Restaria o chuveiro para chorar.

A privada nunca teria a tampa abaixada, os frascos e as garrafas jamais estariam bem fechados, as bandejas de gelo morreriam vazias.

Os homens de casa fariam aquelas porquices masculinas – arroto, flatulência, palitos e cotonetes sujos em lugares improváveis – e passariam o dia impunes porque estariam em maioria dentro da residência.

Uma toalha molhada na cama irrita, agora ponha duas em sequência e os lençóis formarão um repentino banhado. Pense o que seria dirigir um carro com dois copilotos palpitando sobre o melhor caminho ou pressionando para estacionar numa vaga do tamanho de uma bicicleta?

Raciocine a frustração de aparecer com corte novo no cabelo e nenhum dos dois reparar a mudança. Mentalize o constrangimento de dissuadir sexo ao despertar com dois homens excitados roçando suas pernas quando você ainda nem escovou os dentes ou tomou café da manhã.

Pois é. O paraíso mora dentro do inferno.

Agora sonhem vocês, homens, com a chance de subir ao altar com duas mulheres ao mesmo tempo.

O que significaria contentar duas sogras? Aguentaria almoçar na casa de uma no sábado e depois em outra no domingo? Sabe o desespero que é quando uma mulher não consegue hora com sua manicure? Pois preveja duas não conseguindo um encaixe e entrando em pânico.

Multiplique a demora para sair a uma festa, tem paciência? Acompanharia a dupla pelo rali dos provadores dos shoppings? Onde deixará suas roupas ao dividir o armário com duas mulheres? Na despensa da cozinha? Dentro de uma mala debaixo da cama?

Se é uma maratona fazer uma mulher gozar, como satisfazer duas? Não poderia pregar os olhos antes de cumprir a tabela. E não invente de adiar o prazer de uma delas para o dia seguinte sob o risco de difamação.

Seria obrigado a decorar duas datas de aniversário, de início de namoro, de primeiro beijo, de primeiro abraço, de primeiro jantar, de primeira festa, afora peculiaridades de gostos e tamanhos da roupa. E nunca poderia confundir a com b, o que geraria uma crise ciumenta sem precedentes.

Casado com duas mulheres, gastaria metade de seu tempo curtindo e comentando as fotos delas nas redes sociais. E ai se visualizasse uma mensagem no whatsapp e não respondesse no ato. Ou se respondesse uma e esquecesse a segunda.


A exclusividade é um luxo. Não reclame de monogamia. Não é à toa que o Carnaval só dura quatro dias.

quarta-feira, 4 de março de 2015


04 de março de 2015 | N° 18091
MARTHA MEDEIROS

AUTOCRÍTICA

Nunca fui fã ardorosa do Brasil. Suas lindas praias, sua música, sua irreverência, nada disso jamais foi suficiente para superar meu desgosto profundo por ter gente morrendo em corredor de hospital, por professores ganharem uma merreca de salário, por não podermos andar com segurança pelas ruas e demais indignidades com que convivemos dia sim, outro também.

Desde que passei a ter o mínimo de consciência política, entendi que ética não era o nosso forte. Quando o PT apareceu, simpatizei, mas não cheguei a acreditar em salvadores da pátria porque a minha descrença estava bem sedimentada. Ainda assim, dei meu voto lá no início, era uma possibilidade. Que se cumpriu até certo ponto, mas o partido se revelou vulnerável como qualquer outro e o resto da história está aí. A roubalheira, que sempre existiu, tomou conta da maior empresa estatal do país e o vexame ganhou proporções monumentais.

O quadro geral é de tristeza. Porém, o que tenho visto é uma alegria perversa entre os caçadores de bruxas. Parece que as pessoas estão salivando diante dos escândalos, satisfeitas por poderem satanizar à vontade os dirigentes do país. Não acho que corruptos mereçam absolvição, estamos sob o comando de maus gestores e péssimos exemplos de cidadania, e torço pela punição de todos aqueles que saquearam o Brasil.

Estarei nas ruas no dia 15 de março porque acredito que o povo precisa se expressar, mostrar que está vigilante, mas a raiva contida em muitas declarações contra os petistas não me representa.

Uma coisa é se manifestar – inclusive com humor – a fim de pressionar pelo fim da impunidade. Demonstra amadurecimento da população. Mas, no momento em que chamamos a presidente de vaca, fazemos brincadeiras sórdidas alusivas ao rosto de Cerveró ou culpamos o PT pelo espirro do cachorro do vizinho, trocamos a maturidade da nossa indignação por um bullying coletivo que mais revela nossa pobreza de espírito do que grandeza como nação.

Faço parte da elite e me sinto à vontade para fazer uma autocrítica: sim, os elitistas talvez estejam, consciente ou inconscientemente, vingando-se de uma suposta perda que imaginaram que teriam com a ascensão de um partido popular ao poder. No fundo, torceram para que desse errado e, agora que o castelo de cartas ruiu de fato, há uma comemoração evidente. Uma desforra. Um clima de final de campeonato, como se o gol da vitória tivesse finalmente sido marcado.

No entanto, só vejo perdedores nesse jogo. Uma grande nação de perdedores. Nada de engraçado está acontecendo. A única vitória possível se confirmará caso, num futuro próximo, a impunidade já não for dada como favas contadas e uma nova classe política nascer dos escombros e reinventar o país.

E se a ética vier a ser o nosso forte, em todas as camadas da sociedade.