segunda-feira, 31 de janeiro de 2011



31 de janeiro de 2011 | N° 16597
FABRÍCIO CARPINEJAR


Couvert familiar

Todo pai deve se preparar para o vexame. Um dia seu filho terá uma banda de rock.

A formação do grupo é meteórica, inexplicável como sua dissolução. Não se planeja uma banda, acontece, como um beijo, uma fofoca, um suspiro. Ou porque seu guri está entediado e não tem nada a fazer ou porque é ambicioso e corre atrás de tudo que pode ser feito.

O ato é banal como criar um blog e aderir a uma rede social. Talvez nem seja informado, acabou o tempo em que conversar com o pai era coisa séria, antes a criança preparava o terreno com a mãe, avisava o assunto com antecedência, reservava o escritório.

Descobriu a novidade por acaso, ao assistir um vídeo no YouTube. Demorou a reconhecer o filho, que balançava os cabelos como uma vassoura, mas identificou a própria cama e também as cuecas samba-canção, queimadas num estranho protesto do quarteto a favor das baleias. Será um golpe duro, não tinha consciência de que seu filho tocava ou cantava. Nem o filho sabia.

Se você pensava que havia terminado o martírio das exibições escolares; se você dava graças a Deus pelo fim do ciclo dos teletubbies, dos bichinhos da parmalat, dos bananas de pijama; se você comentava que não havia coisa pior do que aplaudir 15 turmas com coreografias exatamente iguais; se você não aguentava o enxoval das fantasias, os ensaios que tomavam os finais de semana e exigiam caronas para cima e para baixo; se você se enxergava livre da obrigação de filmar cada cena e brigar a cotoveladas com o conselho inteiro de pais e mestres pelo melhor ângulo junto ao palco;

se você confiava que não passaria mais pela humilhação de mentir na saída que foi lindo e emocionante e deu um basta ao constrangimento de suportar três horas de pé esperando uma ponta de cinco minutos; se você jurava que não ouviria mais nenhum sermão de diretor profetizando que o futuro é das crianças; se você já se sentia um veterano de guerra, disposto a empinar o peito com as medalhas; se você já entrava com a papelada da aposentadoria, comece a mudar de ideia: seu adolescente é roqueiro.

Deprimente é ouvir como se chama a banda dele, sempre uma nomeação esdrúxula a indicar rebeldia. Grande chance de ser alguma doença venérea: Gonorreia, Sífilis, Herpes. Sorte grande se ficar no corredor dos detergentes e for Diabo Verde ou Pinho Sol.

Na terapia, o que lamentará mesmo é ter brigado com a esposa pelo nome do filho.

sábado, 29 de janeiro de 2011



30 de janeiro de 2011 | N° 16596
MARTHA MEDEIROS


A vida antes da morte

Nada de errado em buscar conforto no espiritismo, mas acreditar numa única vida me parece mais desafiador

Assisti ao Além de Vida, de Clint Eastwood, e excetuando-se a impressionante cena inicial do tsunami, não me empolguei com o filme. Achei os diálogos fracos, o roteiro apático e as cenas de vidência do personagem de Matt Damon muito simplistas - o que, de certa forma, é mais honesto do que recorrer à teatralidade geralmente conferida às sessões espíritas. Mas o fato é que o simplismo reduziu o médium a um garoto de recados.

Respeito profundamente quem se dedica, da forma que for, a estudar, investigar e crer na vida após a morte. Nunca vivi a experiência de ter contato com alguém que já se foi, então reconheço que estou descredibilizada para opinar se ela existe ou não existe, mas nada me impede de levantar uma questão: que diferença faz?

Quando a alma de um falecido se comunica através de atos (no caso do filme de Eastwood, retirando o boné da cabeça do menino Marcus na estação de metrô) ou em palavras (como nas sessões em que um espírito baixa e pede desculpas pelos erros passados), isso sugere que alguém que não vive mais neste plano pode nos proteger ou então ajudar a reconstruir nossa vida.

Os anjos podem orquestrar pequenos incidentes a fim de facilitar nosso caminho aqui na terra ou podem entrar em contato para nos livrar de alguma culpa e serenizar nosso coração avisando que estão bem e que um dia nos reencontraremos.

Então, faz alguma diferença, concordo. Mas não a ponto de gerar apatia, de fazer com que se fique no modo de espera. Há quem acredite mais na vida após a morte do que na vida antes da morte, esta aqui, onde erramos e acertamos. Esta, onde na maioria das vezes nossos anjos estão cochilando e nos deixam à deriva.

Nesta vida presente, onde devemos aprender a lidar com nossas carências e a confiar mais no dia de amanhã do que na longínqua eternidade. Aqui, onde amamos e somos amados, onde devemos praticar o perdão e acertar nossas contas olho no olho, sem transferir dívidas para o além.

Nada de errado em buscar conforto no espiritismo - milhões o fazem - mas acreditar numa única vida me parece mais desafiador, exige mais responsabilidade de nós. Por mim, não precisaria haver nada depois da morte.

Prefiro os pontos finais às reticências. Confissões, declarações, revelações, tudo me parece mais eficiente para nosso sossego quando praticado aqui e agora. Se eu tenho um anjo a olhar por mim, tanto melhor, mas não muda o meu comprometimento com meus atos e minhas escolhas.

Não me agrada a ideia de continuar existindo ininterruptamente, e tampouco as pessoas que eu amo. E o descanse em paz, onde fica? Apagar a luz e dormir. Zzzzzzzzzzz. Essa é a única eternidade que me seduz.

Mas não agora, anjo.

Ruth de Aquino

O vexame das aposentadorias

Os benefícios concedidos a ex-governadores e a seus herdeiros são um roubo e desmoralizam os políticos

Causam asco as aposentadorias inconstitucionais, milionárias e vitalícias de ex-governadores e seus herdeiros. Esses benefícios são um roubo e desmoralizam a profissão de político. Em toda a sua vida ativa, o cidadão comum e assalariado é chamado de “contribuinte”. O nome é correto. Contribuímos ao pagar impostos. No Brasil, infelizmente, os impostos são escorchantes e não servem para seu fim mais nobre.

Em países civilizados, essa contribuição tem um sentido público claro. Medicina e educação costumam ter qualidade e ser gratuitas. Quantos de nós pagaríamos impostos com mais alegria se o dinheiro descontado mensalmente do salário financiasse serviços para os mais carentes e a classe média.

A aposentadoria máxima é de R$ 3.200 por mês para quem trabalha 35 anos. Mas os ex-governadores estão acima das regras. Mesmo que governem um Estado por apenas alguns dias, podem ganhar aposentadoria de R$ 10 mil a R$ 24 mil. Para sempre, até morrer. E, após a morte, as viúvas assumem integralmente o benefício (leia mais).

O Supremo Tribunal Federal, em 2007, considerou inconstitucional a aposentadoria de Zeca do PT, ex-governador de Mato Grosso do Sul. Mas o STF é mais lento quando a ação se destina a derrubar a mesma lei no Maranhão. Essa ação “está tramitando” no Supremo. O alvo é o clã Sarney: José e a filha Roseana ganham pensão vitalícia de R$ 24 mil.

São tantos os penduricalhos na conta do magnata da política José Sarney que, durante um ano, ele não percebeu que depositaram irregularmente o auxílio-moradia de R$ 3.800. Foram R$ 45 mil de “equívoco”, que depois ele afirma ter devolvido.

O senador, ex-presidente e ex-governador do Maranhão ganha subsídio de R$ 26 mil, verba para passagens, casa, gasolina, e ainda por cima uma pensão eterna. Como descobrir aquilo a que não tem direito? Sarney tem direito a tudo, mesmo que seu Maranhão tenha indicadores sociais lamentáveis. Como disse o ex-presidente Lula, Sarney “não pode ser julgado como um homem comum”.

A OAB entrou no Supremo, na sexta-feira, com ações de inconstitucionalidade contra as aposentadorias de ex-governadores de dois Estados: Sergipe e Paraná. As pensões são descritas como “grave ofensa ao princípio republicano”.
Os benefícios concedidos a ex-governadores e a seus herdeiros são um roubo e desmoralizam os políticos

O Paraná é um caso especial e curioso de hipocrisia. Não contente com os R$ 18 mil mensais que recebeu de pensão nos últimos meses, o senador tucano Álvaro Dias pediu à Justiça mais de R$ 1,5 milhão de benefícios retroativos pelo período em que governou o Paraná, de 1987 a 1991.

Depois de flagrado, disse que a dinheirama seria para doar a uma instituição assistencial que mantém uma creche em Curitiba. “Centavo por centavo”, diz ele. Você acredita?

Digamos que sim. Que Álvaro Dias seja um senador beneficente, em busca de uma vaga no reino dos céus. Mas o senador por acaso sabe que caridade se faz com o próprio dinheiro, e não com o dinheiro de seus eleitores? Eles podem preferir doar para cegos, órfãos, idosos.

Ou simplesmente não doar o que não têm, porque ainda sonham com impostos menores e mais justos no Brasil. Como disse o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, “queremos estancar essa sangria com dinheiro público”.

É estranho que uma imoralidade como essa seja praticada em vários Estados há anos, sem que ninguém se rebele. Ninguém sabia de nada? Fala-se tanto de rombo na Previdência. Nós pagamos mais de R$ 30 milhões por ano de pensões para ex-governadores de todos os partidos. São os mesmos políticos que, no Senado, querem a volta da CPMF porque a saúde está em frangalhos.

Por que o STF não cria uma regra para todo o país? Regrinha básica: “Ex-governadores não podem violar a Constituição nem meter a mão no bolso dos outros”. Dá para entender?

Queria dar voz a um leitor de Belo Horizonte, Luiz Antonio Mendes Ribeiro: “Pura safadeza! Esses políticos desrespeitam as leis, engendram mutretas para se locupletar e não se envergonham de nada. Vamos dar um choque de decência nisso”.

Vamos mesmo?

29 de janeiro de 2011 | N° 16595
NILSON SOUZA


A lição de Camila

Fiz três vestibulares na UFRGS e tenho diplomas de duas faculdades, a queridíssima Fabico (Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação) e a não menos amada Esef (Escola Superior de Educação Física). Significa que, numa das tentativas, fui reprovado com louvor – exatamente na primeira, quando recém concluíra o ensino médio da minha época. Foi horrível.

Ninguém me cobrava nada, minha família era muito mais ligada ao mundo do trabalho braçal do que ao universo das letras, mas eu me senti arrasado, destruído, humilhado. Afinal, aquele era o meu teste de serventia para a vida. Se não era capaz de passar num exame de seleção depois de tantos anos de estudos, talvez eu fosse mesmo um inútil.

Queria, e queria muito, ver o meu nome naquela lista, ser reconhecido pelos colegas, celebrar com eles o sucesso da aprovação. Mas tive que curtir por vários dias a minha fossa, sem qualquer perspectiva de consolo, pois, se as vitórias costumam ser coletivas, a derrota é sempre individual. Como é doloroso encarar um tropeço, especialmente quando se está tentando romper a barreira de emoções que separa a adolescência da idade adulta.

Mas passou. O tempo, como escreveu no peito da camisa um presidente de triste lembrança, é mesmo o senhor da razão. Pena que na adolescência a gente tem pouca consciência disso, acha que tudo deve acontecer rápido, do jeito que queremos. Hoje penso que aquela reprovação acabou sendo uma consistente lição de paciência.

Como não tinha a mínima condição financeira para estudar numa universidade privada, tive que engolir a frustração e me preparar melhor para o exame seguinte. Alcancei o meu objetivo, com um lucro adicional: aprendi que persistir é mais importante do que conquistar tudo com facilidade.

Meu tempo é outro, minha experiência talvez nem tenha significado para a meninada de hoje. Mas a experiência de Camila Chiodi tem. Ela foi a primeira colocada no recente vestibular da UFRGS e vai cursar Medicina, como sempre sonhou.

É provável que tal performance tenha despertado invejas nos garotos e garotas da sua idade. Quem não gostaria de ser Camila? Pois esta jovem de 21 anos, que chegou na frente de 5 mil aprovados e de outros 30 mil que ficaram de fora, vinha de quatro reprovações.

Isso mesmo: por quatro anos consecutivos, ela deve ter sentido a mesma desilusão que eu senti na minha época e que estão sentindo hoje milhares de meninos e meninas que não viram seus nomes no listão.

Sei bem que isso não serve de consolo – e nem acho que se deve tentar consolá-los. Creio que aprender a administrar as próprias frustrações faz parte do processo de amadurecimento pessoal.

Mas tenho certeza de que sairão mais fortalecidos da experiência aqueles que entenderem melhor a lição de Camila sobre essa matéria intangível chamada Persistência, que nem sempre a escola ensina, mas que acaba caindo em todos os vestibulares da vida.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011



26 de janeiro de 2011 | N° 16592
MARTHA MEDEIROS


Depois se vê

Chuva. Nada mais ancestral. Muita água, pouca água, não importa: choverá. Em vários períodos do ano, mais forte, mais fraco: choverá. Em São Paulo, Minas, Rio, Florianópolis. E também na Alemanha, na Nova Zelândia, no Peru.

Choveu nos anos 40, chove em 2011, choverá em 2068. Passado, presente e futuro sob uma única nuvem. Só que o país do futuro não pensa no futuro. Somos totalmente refratários à prevenção.

Tudo o que nos acontece de ruim provoca uma chiadeira, vira escândalo nacional – mas depois. Ficamos estarrecidos, mas depois. O antes é um período de tempo que não existe. Investir dinheiro para evitar o que ainda não aconteceu nos soa como panaquice.

Se está tudo bem até as 14h30min desta quarta-feira, por que acreditar que às 14h31min tudo pode mudar? E então não se investe em hospitais até que alguém morra no corredor, não se policia uma rua até que duas adolescentes sejam estupradas, não se contrata salva-vidas até que meia dúzia morra afogada.

Somos os reis em tapar buracos, os bambambãs em varrer para debaixo do tapete, os retardatários de todas as corridas rumo ao desenvolvimento. Não prevemos nada. Adoramos os astrólogos, mas odiamos pesquisa. Consideramos estupidez gastar dinheiro com tragédias que ainda estão em perspectiva. Só o erro consolidado retém nossa atenção.

A gente se entope de açúcar, não usa fio dental e depois vai tratar a cárie, se sentindo privilegiado por poder pagar um dentista. A gente aplaude a arrogância dos filhos e depois vai pagar a fiança na delegacia. A gente fuma três maços por dia e depois processa a indústria tabagista. A gente corre na estrada a 140 km/h, ultrapassa em faixa contínua e depois suborna o guarda, na melhor das hipóteses. Ou então morre, ou mata – na pior delas.

A gente vota em corrupto, depois desdenha da política em mesa de bar. A gente joga lixo no cordão da calçada, depois se surpreende em ter a rua alagada. A gente se expõe em todas as redes sociais, depois esbraveja contra os que invadiram nossa privacidade.

Precisamos de transporte público de qualidade, mas só depois de sediar a Copa do Mundo. A sociedade reclama por profissionais mais gabaritados, mas ninguém investe em professores e em universidades.

E os donos de estabelecimentos comerciais só irão se dar conta de que estão perdendo dinheiro quando descobrirem os manés que contrataram para atender seus clientes. Treinamento antes, não. Se precisar mesmo, depois.

Precisamos mesmo. Só que antes.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011



25 de janeiro de 2011 | N° 16591
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Viagem de trem

Boas notícias começam a trafegar sobre os trilhos. Segundo leio em reportagem de Caio Cigana, publicada em Zero Hora, os indícios sugerem um crescimento chinês de 10% ao ano nas cargas transportadas pelo modal no Rio Grande do Sul.

Não é só. Tramita no Senado, depois de passar pela Câmara, a construção de um novo trecho da Norte-Sul, que chegaria de Belém ao porto de Rio Grande. Na Serra, está próxima do fim a análise da viabilidade do transporte de passageiros entre Bento Gonçalves e Caxias do Sul. Como se não bastasse, estariam em exame a ligação Livramento-Cacequi, Santa Rosa a São Luís Gonzaga, Getúlio Vargas a Marcelino Ramos, dentre outras, aí incluída a Cachoeira-Rio Pardo.

Num Estado em que os trens participam com 9% – para 25% no Brasil – no transporte de cargas, são excelentes novas. E não deixam de conduzir a uma das melhores páginas de minha infância e adolescência.

Os Estados Unidos têm 280 mil quilômetros de ferrovias – e nós nem 10% disso. Eis aí um dado estatístico que me conduz à época em que não só transportávamos pessoas e mercadorias, como uma viagem de trem de Cachoeira a Porto Alegre – e vice-versa – era uma suave aventura do espírito e dos sentidos.

Se for mais longe no cofre da memória, não deixarei de buscar uma lembrança de guri: uma viagem numa cabine exclusiva, no melhor estilo dos trens ingleses, franceses ou italianos. Mas me recordo mais das múltiplas incursões pelo Minuano, com suas poltronas estofadas e seu vagão-bar.

Partia-se no fim da tarde de Porto Alegre e chegava-se à gare de Cachoeira em alguma hora ao redor da meia-noite. Para quem ainda ia enfrentar um baile no sábado e duas reuniões dançantes no domingo, não havia cansaço algum.

Havia, sim, algumas pequenas grandes lembranças inesquecíveis. Como a da bela mulher que, na penumbra e no silêncio do vagão, tomou a minha mão nas dela, e assim avançamos, cúmplices e românticos, pela noite, sem ao menos trocar nossos nomes.

Conta agora Zero Hora que, como mencionei antes, ocorrerá a retomada de pequenos trechos de vias férreas de passageiros. Espero que se multipliquem, para que uma viagem de trem seja um episódio de alegria e de encantamento.

Uma folga gostosa para quem está de folga nas terças-feiras. Lindo dia pra você.

sábado, 22 de janeiro de 2011



e3 de janeiro de 2011 | N° 16589
MARTHA MEDEIROS


Intoxicados pelo EU

A gente perde muito tempo pensando na nossa imagem, no nosso futuro. Até que um dia acordamos asfixiados

Outro dia acordei com uma espécie de ressaca existencial, sentindo necessidade de me desintoxicar, e era óbvio que o alívio não viria com um simples gole de Coca-Cola. Precisava, antes de tudo, descobrir o que é que estava me pesando, e logo percebi que não era excesso de álcool, nem de cigarros, nem de noitadas, os bodes expiatórios clássicos do mal-estar, e sim excesso de mim.

Desconfio que já tenha acontecido com você também: de vez em quando, sentir os efeitos da overdose da própria presença. Desde que nascemos, somos condenados a um convívio inescapável com a gente mesmo. Quando penso na quantidade de tempo que estou presa a essa relação, fico pasma de como consegui suportar tamanho grude. Eu e eu, dia e noite, no único relacionamento que é verdadeiramente pra sempre.

Ando escutando uma banda uruguaia chamada Cuarteto de Nos (que, aliás, fará show esta semana em Porto Alegre), cujas canções possuem letras divertidas e sarcásticas, entre elas, Me Amo, uma crítica bem-humorada a essa era narcísica que estamos vivendo.

O personagem da música não ouve ninguém e não consegue imaginar como seria o mundo sem a sua presença. Tem muitas garotas, porém nenhuma é digna dele. Está muito bem acompanhado a sós. “Soy mi pareja perfecta”.

Intoxicação talvez seja isso: considerarmos que somos um par. Só que no meu caso, sou um par em conflito. Um eu que deseja fugir e outro eu que deseja ficar. Um eu que sofre e outro eu que disfarça. Um eu que pensa de uma forma e outro eu que discorda. Um eu que gosta de estar sozinho e outro eu que precisa amar. Nada de “pareja perfecta”, e sim caótica.

Uma relação tranquila consigo mesmo talvez passe pela conscientização de que não devemos dar tanto ouvido às nossas vozes internas e que mais vale nos reconhecermos ímpares e imperfeitos por natureza.

A vida só se tornará mais leve e divertida se pararmos de nos autoconsumir com tanta ganância e darmos uma olhadinha para fora. A gente perde muito tempo pensando na nossa imagem, no nosso futuro, nos nossos problemas, nas nossas vitórias, no nosso umbigo.

Até que um dia acordamos asfixiados, enjoados, sem ânimo e sem paciência para continuar sustentando a pose, correspondendo às expectativas, buscando metas irreais, vivendo de frente pro espelho e de costas pro mundo.

É a era do egocentrismo, somos vítimas de um encantamento por nós mesmos, mas, como toda relação, essa também desgasta. Fazer o quê? Esquecer um pouco de quem se é, esquecer da primeira pessoa do singular, das nossas existências isoladas, e pensar mais no que representamos todos juntos. Ando cansada de tantos eus, inclusive do meu.


Uma razão para se orgulhar
RUTH DE AQUINO

Existe uma máxima no mundo da mídia: “Good news is no news” (boas notícias não são notícia). Entre os escombros da tragédia de 2011, há uma notícia tão boa que não dá manchete. A cidade do Rio de Janeiro inaugurou o centro mais moderno de controle de operações do mundo, totalmente computadorizado, com radares e alertas para enchentes. Um novo sistema poderá prever dilúvios 48 horas antes e deslocar a tempo famílias em risco de perder suas casas e suas vidas.

O centro carioca de operações tem um telão de 80 metros quadrados – maior que o da Nasa, segundo o prefeito Eduardo Paes. Reúne 30 órgãos municipais e concessionárias e 400 profissionais. É resultado de uma parceria com a IBM. O objetivo é transformar o Rio em referência para o Brasil e o mundo no planejamento de eventos e gestão de crises. A ideia é repetir o modelo em metrópoles brasileiras até a Copa.

O cérebro tecnológico do prédio é um indiano que vive em Nova York, mas tem visitado tanto o Rio que uma de suas bebidas prediletas é a caipirinha e seu point favorito é a Lapa boêmia e musical. É vice-presidente de tecnologia da IBM e seu nome é Guru. Foi batizado como Guruduth Banavar, mas até a mãe dele o chama de Guru (leia a entrevista) .

Em cada monitor, vemos o que está acontecendo naquele momento em todos os pontos da cidade: obras, engarrafamentos, acidentes, falta de luz ou de gás, onde estão os reboques, por onde trafegam os ônibus, onde está sendo recolhido o lixo. É evidente que não basta ter acesso aos dados. Só com inteligência e integração esses dados podem ser úteis. Mas acabou a desculpa “eu não sabia de nada”. O prefeito tem um quarto ali para dormir, em emergências.

Uma reportagem recente da revista The Economist, intitulada “It’s a smart world” (É um mundo inteligente), traduz o que se tenta fazer nesse centro. É como se o mundo real e o mundo digital convergissem para criar eficiência. Para as pessoas comuns, significa menos estresse e mais conforto.

Segundo o diretor da IBM Pedro Almeida, carioca apaixonado pelo que faz, essa é a base para o conceito de Smarter Cities, ou “cidades mais inteligentes”, que a IBM criou em 2007 e, agora, inclui o Rio como uma das vitrines mais vistosas.
Entre os escombros da tragédia, há uma ótima notícia: o novíssimo centro de alerta para enchentes

No caso das chuvas, a era do achismo e da irresponsabilidade terá de acabar para não se repetir o vale de lágrimas da serra fluminense. Cientistas e geólogos concluíram o primeiro mapeamento do solo da cidade do Rio, depois de fotografar de helicóptero, com câmeras especiais e laser, ruas, vales e morros. Existem hoje 18 mil casas em alto risco em 117 comunidades. Fora o médio risco e o baixo risco.

Caso o novo radar da prefeitura, importado dos Estados Unidos, preveja chuvas fortes, sirenes tocarão. A IBM promete, com seu novo sistema, a ser instalado neste semestre, prever calamidades com dois dias de antecedência. Mais de 2 mil agentes comunitários foram treinados pela Defesa Civil e equipados com celulares para receber alertas por mensagens de texto.

Se um sistema parecido estivesse em vigor na serra do Rio, não estaríamos chorando hoje mais de 700 mortos. Podemos ser solidários e generosos, mas não vamos esquecer que existem culpados.

O que aconteceu em Petrópolis foi um crime premeditado. As estações meteorológicas sofisticadas existem, estão instaladas em lugares estratégicos, uma delas ao lado do vale que deixou de luto dezenas de famílias. Mas não estavam funcionando. Por quê?

O prefeito Paulo Mustrangi diz que era fim de ano, havia raspado o caixa e não tinha os R$ 900 mil para fazer funcionar. O Instituto Estadual de Ambiente afirma que não recebeu nenhum pedido de ajuda do prefeito.

Prefeitos que permitem construir favelas, condomínios e hotéis em encostas e áreas de risco e não tomam providências para garantir o bem-estar de seus eleitores deveriam perder o mandato e ser levados à Justiça. Pensando bem, que Justiça?

Na cidade do Rio, liminares judiciais impedem a prefeitura de reassentar mais de 130 famílias que permanecem em casas condenadas, que já deveriam ter sido demolidas. Quem vai julgar os juízes?


22 de janeiro de 2011 | N° 16588
NILSON SOUZA


Depois do pesadelo

Meu irmão deu uma volta na barca de Caronte, mas retornou para a margem de cá e para seu próprio corpo, depois de 57 dias na UTI do Hospital Dom João Becker, em Gravataí. Foi tratado com imenso carinho e muita competência pela equipe de médicos e enfermeiros comandada pelo doutor Cristian Benicasa.

Em determinado momento de sua doença, com a voz cassada pela traqueostomia, indispensável para facilitar-lhe a respiração, protagonizou um episódio desconcertante para seus familiares. Íamos visitá-lo na Unidade de Tratamento Intensivo e ele nos expulsava com olhares alucinados e gestos de cabeça, uma vez que estava com o restante do corpo imobilizado pelo longo período de sedação.

Agora que está de volta, ainda com limitações físicas temporárias mas perfeitamente lúcido, perguntei-lhe o que viu do outro lado e por que nos mandava embora quando queríamos apenas manifestar-lhe nosso afeto e nossos cuidados com a sua saúde. Compartilho sua resposta com meus leitores, até para que possamos entender o que se passa na cabeça de uma pessoa ressentida pela longa internação, pela enfermidade e pelo efeito das medicações:

– O outro lado é horrível. É um delírio, em que a gente não sabe o que é sonho, o que é pesadelo e o que é realidade. Eu via aquelas pessoas de branco e tinha certeza de que elas queriam matar vocês. Então, eu me desesperava, queria que vocês fugissem de lá, mas ninguém me entendia e eu não conseguia me comunicar.

Felizmente, o pesadelo terminou. Não fugimos, não fomos embora, não o abandonamos nunca em nossos pensamentos e em nossas orações. Aos poucos, graças principalmente à eficácia do tratamento, ele começou a sair do sonho ruim e recuperou totalmente a consciência.

Agora falta-lhe recuperar os músculos amortecidos pela prolongada imobilização. Sabemos que ainda temos pela frente um longo caminho para a retomada normal da vida, mas estamos todos fortalecidos pela experiência e pelo aprendizado. E eternamente gratos ao hospital e aos profissionais que nos prestaram tão precioso atendimento, custeado inteiramente pelo Sistema Único de Saúde.

Voltando agora aos meus delírios literários, penso que talvez nunca venhamos a saber exatamente por que Caronte o devolveu para o nosso convívio depois da viagem iniciada, mas é provável que o mitológico barqueiro – que conduz as almas para o outro lado da vida em troca de uma moeda – também tenha se sentido rejeitado pelo inquieto passageiro. Ou talvez ele estivesse sem a moeda.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011



19 de janeiro de 2011 | N° 16585
MARTHA MEDEIROS


Homens bons

Houve uma época em que fazer uma tatuagem era um ato de rebeldia e despertava preconceitos. Mas isto foi no tempo da pureza e da desinformação, quando a gente não estava a par de outros motivos para se assustar.

Hoje sabemos que bandidos podem usar terno e gravata, que bandidas podem ser mães de bebês e que uma tatuagem não estigmatiza ninguém, é apenas uma forma de expressão, um recurso para não se deixar globalizar neste mundo onde todos se parecem e tudo é descartável.

Minhas duas filhas possuem tatuagem e não consta que sejam menos confiáveis do que jovens que mantêm a pele imaculada. Caso elas tivessem idade e preparo físico para ser salva-vidas, estou certa de que prestariam um serviço da melhor qualidade.

No entanto, elas têm idade e preparo físico para serem vítimas de afogamento, como qualquer um de nós. Eu não ficaria nem um pouco aborrecida se um voluntário com um dragão desenhado no bíceps as tirasse do mar a tempo de elas não constarem das estatísticas absurdas de fatalidades deste verão 2011.

Ao contrário: eu é que talvez elevasse o número de tatuados. Pelo menos a inicial desse super-herói eu levaria pra sempre no meu tornozelo direito.

Quando me perguntam o que a literatura me trouxe de bom, nunca esqueço de citar: a oportunidade de conhecer pessoas que antes eu admirava à distância. Lembro quando, adolescente, busquei o autógrafo do Scliar numa longínqua Feira do Livro de Porto Alegre, segurando um exemplar de O Exército de um Homem Só com as mãos trêmulas.

Até ali, Scliar era pra mim apenas um escritor famoso, o que não é pouco. Hoje, tendo tido a chance de dividir alguns breves momentos em sua companhia, sempre em circunstâncias ligadas à literatura, posso me sentir honrada não só por conhecê-lo, mas por testemunhar o ser humano generoso que ele é. Suas atitudes transcendem a sua obra.

Ele nunca poupa um elogio, um incentivo: chega a ser extremista em seu carinho. Participa ativamente de todos os eventos literários do país, desde os mais badalados até simples bate-papos em pequenas escolas distantes da Capital, levando sua experiência e sua doçura.

Tem uma disponibilidade rara e não se furta em repartir seu conhecimento, que é vasto. Já publicou mais de 70 livros e isso pode parecer produção suficiente, mas ser um exemplo de caráter é algo que o Brasil não pode se dar o luxo de perder. Volte logo, mestre.

Dia internacional do sofá. Aproveite a quarta-feira.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011



18 de janeiro de 2011 | N° 16584
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


E não sabia

Shakespeare falava de um verão eterno, que nunca acaba. Devia ser uma premonição deste janeiro tórrido que nos aprisiona.

A mais civilizada das estações é o outono, especialmente a partir de maio, quando chegam os primeiros frios. É a mesma que inspirou Verlaine a cantar os longos sons dos violões. É ainda aquela que convida ao primeiro abrigo, à primeira lã.

O inverno daqui, para tornar a Shakespeare, é o da nossa desesperança. Quando escreveu suas memórias, uma obra-prima do gênero, João Neves da Fontoura observou que o aquecimento é um conforto desconhecido em nossas casas, a começar pelas sedes das fazendas. É bem diverso de Montevidéu ou de Buenos Aires, onde a calefação é um complemento do modo de viver.

Já a mais destacada decantada das estações está imersa em poesia. Para Schiller, a primavera da vida floresce uma vez e nunca mais. Para Tennyson, na primavera a imaginação dos jovens se volta, ligeira, para pensamentos de amor.

E assim voltamos ao verão.

Algumas das melhores épocas de minha vida, eu as vivi entre dezembro e março. Primeiro era uma temporada em Cachoeira, com direito a piscina, a Réveillon, raparigas em flor com delicadas sandálias cai-cai, um mês na Chácara da Penha, lendo e relendo os romances de Machado e de Erico, tudo culminando com um mês em Capão da Canoa, com parada obrigatória na Sacc e no Meu Pontinho.

Foram épocas inesquecíveis, de amizades perenes e de paixões súbitas e inamovíveis. Um dia típico incluía banho de sol, banho de mar, para deixar no Atlântico a ressaca do baile ou da reunião dançante da véspera, tardes com jogos de cartas, namoros, jantares num daqueles pequenos restaurantes acolhedores e simples, que serviam as melhores iguarias da estação.

Um dia típico não deixava de incluir também a branda aragem do oceano e as meninas trajadas de short, ou o seu puro olhar respondendo ao teu olhar.

Parece que tem um poema de antigamente que reproduz tudo isso: eu era feliz e não sabia.

Uma Ótima terça-feira. Aproveite o dia

sábado, 15 de janeiro de 2011



16 de janeiro de 2011 | N° 16582
MARTHA MEDEIROS


A síndrome da repetição

Temos nossas dores de estimação, nossos erros reincidentes, um caminho que parece uma infinita highway, mas é, no fundo, uma grande rotatória

Somos os mesmos e vivemos como nossos pais. Não, não era assim que eu queria começar, mas tenho essa mania de sempre iniciar uma crônica assinalando o gancho que me inspirou, seja uma música, um filme, um papo com uma amiga, um e-mail de leitor. No entanto, essa crônica nada tem a ver com a música do Belchior que a Elis eternizou, a citação foi apenas por força do hábito: todos nós vivemos em constante estado de repetição.

Até pouco tempo atrás eu procurava um analista para conversar um pouco, fazer balanços, enfim, ele era uma espécie de pronto-socorro emocional, e funcionava. O curioso é que, a cada vez que eu o procurava, voltávamos sempre ao mesmo assunto, as nossas conversas envolviam sempre os mesmos problemas – e eu sempre abandonava o tratamento me sentindo melhor, porém a mesma.

Será minha vida tão monocromática? Não é. O que acontece é que todos nós temos nossas dores de estimação, nossos erros reincidentes, um caminho que parece uma infinita highway, mas é, no fundo, uma grande rotatória. Acabamos sempre no mesmo ponto, dando as mesmas voltas.

Faça o teste: você discute com sua mãe sobre diversos motivos ou sempre pelo mesmo? Com seu pai a discussão é mais variada ou empaca sempre na mesma questão? As queixas de suas namoradas são diversas ou parece que elas combinaram de dizer a mesma coisa? E as suas queixas sobre os outros, mudam muito?

Quando você vai ao médico, ele não recomenda sempre o mesmo pra você? E você, naturalmente, não cumpre. Se você está casada há 25 anos, responda com sinceridade: a primeira briga que teve com seu marido foi muito diferente da que teve semana passada?

Existem pessoas na minha vida que conheço desde que nasci, fomos colegas de berçário, e não é força de expressão, tenho mesmo uma amiga que nasceu um dia depois de mim, no mesmo hospital, e mal sabíamos que riríamos e choraríamos juntas por toda a vida, não só pelo espanto do parto.

Ela é apenas uma entre tantas outras que conheço há séculos, e seguimos sendo quem sempre fomos, e a cada encontro nos repetimos, e isso é a glória: saúdo os reconhecimentos, as sólidas histórias de vida e de companheirismo, o não precisar se reinventar constantemente. Algumas coisas mudam ao nosso redor, mas nossa essência, nossas dúvidas e nossas perguntas – principalmente as perguntas – seguem as de sempre.

Outro dia um amigo me disse que os únicos relacionamentos que duram são aqueles em que o casal renova os motivos das brigas. Bacana. Pedi pra ele me apontar um exemplo.

Ele pensou, pensou, pensou, e depois começou a rir e me enrolou com uma conversa que já ouvi mil vezes, e eu, como em outras mil vezes, retruquei, e acabamos a tarde num abraço afetuoso mil vezes repetido e ficamos de não demorar para nos ver de novo, mas vai demorar, porque sempre demora, sempre foi assim. Tudo acontece do mesmo jeito o tempo todo.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011



12 de janeiro de 2011 | N° 16578
MARTHA MEDEIROS


Arte a domicílio

Tempos atrás não existia entrega de comida em casa. Quando as telepizzas surgiram, foi um oba-oba. Podia-se finalmente reunir a turma para assistir a um filme (cinema em casa, outra facilidade) e fazer um programa seguro e econômico, já que não era preciso estacionar o carro na rua nem pagar uma exorbitância por uma garrafa de vinho. Eu sigo gostando de sair com os amigos, conhecer lugares novos, arejar as ideias em ambientes bonitos e, claro, ir ao cinema, mas não desprezo uma festinha caseira.

Pois agora soube que já existe delivery de peças de teatro. Em São Paulo, há pelo menos dois grupos que agendam apresentações a domicílio. O dono da casa afasta os sofás da sala, retira os tapetes, convida uns amigos e todos assistem a uma apresentação profissional a dois palmos do nariz. Terminada a performance, são servidos os salgadinhos, os drinques, e o elenco se junta à pequena plateia para conversar sobre o assunto da peça ou outro tema qualquer.

Lógico que uma coisa não substitui a outra. Nada como assistir a um espetáculo em local apropriado, com palco, cenografia, iluminação e toda a reverência que o teatro imprime.

Assim como a energia de um show nunca será reproduzida num DVD: é incomparável a experiência de ouvir centenas de pessoas cantando e dançando juntas, numa conexão eletrizante que celebra a vida e a arte. Mas quem já teve a oportunidade de ser plateia de um solo “só para seus olhos” sabe que o sublime acontece do jeito que for.

Já vi uma grande atriz interpretar um texto sentada no chão da sala de uma amiga. Um músico reconhecido tocar violão sozinho em seu estúdio, só para mostrar a nova canção que estava concluindo. Vi bailarinos da companhia de Maurice Béjart ensaiando passos à beira da piscina de um hotel em que por acaso eu também estava hospedada. Shows privativos inesquecíveis.

O mais inesquecível deles, no entanto, aconteceu nos anos 80, quando eu namorava o vizinho de um pianista. Eles moravam no prédio mais secreto de Porto Alegre, que existe até hoje, na Vicente da Fontoura. Da rua, avista-se uma porta, nada mais. Não se enxerga a edificação.

Essa porta conduz a um longo corredor, e só lá no fundo, então, descortina-se um terreno sem cobertura, com os apartamentos dando todos para um mesmo jardim, como se fosse um condomínio de praia daqueles antigos.

Nas noites de verão, dormíamos com a janela aberta e nossos sonhos eram embalados por recitais exclusivos vindos do apartamento em frente, onde morava o talentoso Geraldo Flach, que atravessava a madrugada ao piano. Pura arte a domicílio.

Ainda que com chuva, uma ótima quarta-feira para você.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011



11 de janeiro de 2011 | N° 16577
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Faltou dizer

Acompanhei neste início de ano uma apresentação em que empresários faziam um balanço de sua caminhada ao longo de 2010. Foi todo um coquetel de números, percentuais, balanços, curvas de lucro, escaladas de ranking e uma porção de cifras mais. Sobrou lugar para pitadas de vaidade, orgulho de conquistas, vitórias sobre as sendas instáveis e volúveis da economia.

Mas faltou algo essencial. Ninguém se lembrou de temperar a salada de algarismos com alguns fatos básicos que deveriam orientar nossa comum trajetória sobre a Terra.

Falo de coisas sem cotação na Bolsa, sem pregão nos mercados e, no entanto, donas de mais valor do que uma ação blue-chip. Me refiro a bens sem preço e que contudo deveriam ser medidos pelos mais altos índices de apreciação humana.

Não ouvi ninguém falando do GFC – Grau de Felicidade Coletiva – de sua empresa.

Não escutei menção ao NSG – Nível de Satisfação Global – de seu empreendimento.

Não percebi alusão à MBG – Média de Bem-estar Geral – da companhia.

Pois, muito além das moedas sonantes, é disso que se tece a vida.

Muito além dos valores palpáveis, a existência de cada um se constroi de alguns artigos imateriais.

Como o quê?

A fraternidade, que nos faz sentir um pouco irmãos uns dos outros. A solidariedade, que é uma mão estendida – e não só nos momentos de dificuldade. A harmonia, que como um maestro invisível nos faz tocar os mesmos acordes dessa imensa orquestra que é a vida.

A amizade, que, feita de afeição e carinho, aproxima e integra as pessoas mais diversas. A cordialidade, uma palavra que deriva de coração, e tanto como este é signo de união. A coerência, que é o segundo nome de algo chamado de simetria de propósitos e princípios.

E muito mais calaram os ilustres palestrantes, deixando exposta uma verdade cada vez mais ausente de nossa caminhada: a de que a vida, muito mais do que matéria, é também espírito.

domingo, 9 de janeiro de 2011


DAMIÁN TABAROVSKY - tradução PAULO MIGLIACCI

O livro do ano

Mistérios do verão portenho

NUNCA VOTEI em candidato que tivesse vencido uma eleição, e nem em um livro que tenha conquistado o primeiro lugar nas pesquisas que jornais costumam fazer nos finais de ano. Ou mesmo o segundo, ou o terceiro. Quem pode dizer? Tendo em conta os habituais vencedores de votações -políticas e literárias-, talvez eu deva considerar de modo positivo minhas derrotas sistemáticas. Em todo caso, sei perfeitamente quais são os melhores livros da literatura argentina em 2010, se é caso de fazer um balanço.

Um deles é "Qué Hacer", de Pablo Katchadjian. Nascido em 1977, já havia publicado dois romances, divertidos e de tom experimental, interessantes, mas que não deixavam prever o salto em direção a uma obra de arte.

Porque é isso que "Qué Hacer" significa: um romance que se movimenta com perfeição na herança do nonsense, na tradição de [Raymond] Queneau, no jogo de palavras, no humor radical, na engenhosidade. O livro de Katchadjian é um desses raros romances que satisfazem ao leitor mais inteligente.

OUTRO LIVRO DO ANO
Conheço Juan José Becerra -nascido em 1965 e apenas dois anos mais velho que eu -há pelo menos uma década e meia. Trata-se de uma das pessoas mais inteligentes com quem já tive contato na vida. Evidentemente, eu havia lido seus três romances anteriores e diversos de seus livros de ensaios.

Todos me interessaram muito, e escrevi diversas vezes sobre ele, mas sempre tive a sensação de que os livros não atingiam a estatura intelectual do autor, de que ficavam abaixo de Becerra.

Até que, dois meses atrás, apareceu "Toda La Verdad", um romance que mudou a equação: Becerra por fim escreveu um dos livros-chave da literatura argentina contemporânea. A história de um engenheiro milionário que um dia abandona tudo e vai a pé para o campo, onde vive por muito tempo na solidão e na pobreza; depois retorna, escreve um livro de autoajuda e se torna famoso (entre muitas outras peripécias).
O próximo romance de Becerra está anunciado não por uma editora argentina mas na Espanha, antes das traduções que inevitavelmente chegarão.

COM AR CONDICIONADO
Buenos Aires em janeiro é uma cidade deserta. As afortunadas famílias de classe média partem de carro para as praias 400 quilômetros ao sul, a classe média alta voa para Punta del Este e muitos trabalhadores viajam de ônibus para passar o dia em suas províncias de origem.

O asfalto se derrete, não há coisa alguma para fazer e as pessoas como eu, que não saem da cidade, procuram os lugares equipados com ar condicionado: restaurantes, bancos e, por que não, também cinemas.

O bom ar condicionado que existe na sala de cinema do Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires é uma, mas não a única- razão para recomendar uma visita. Em janeiro, o grande cineasta Edgardo Cozarinsky organizou um ciclo chamado "Elogio da Arte Impura", no qual a cada dia são exibidos os melhores filmes do cinema argentino e clássicos do cinema mundial. Estarei lá. Meus amigos também.

MODAS EDITORIAIS
As grandes editoras estavam sossegadamente ganhando fortunas com a publicação de livros chatos e previsíveis contra o governo de Cristina e Néstor Kirchner. Eles são corruptos, malvados, autoritários, e assim por diante.

Escritos habitualmente por jornalistas com sérias dificuldades para conjugar um verbo no infinitivo ou escrever sentença de mais de cinco palavras, esses livros vendiam milhares de exemplares. Tudo corria bem até que Néstor Kirchner morreu, e o clima social mudou (ao menos por enquanto; na Argentina, como dizia Marx, tudo que é sólido se desmancha no ar).

Agora Cristina se tornou viúva e é preciso respeitá-la, e Néstor é quase um mártir de quem é necessário falar bem. Além disso, não há por que descartar a possibilidade de uma vitória de Cristina nas eleições presidenciais deste ano.

Na verdade, os livros é que foram descartados: envelheceram irremediavelmente, de um só golpe. Já não ocupam as primeiras posições nas listas de best sellers, e já não são vistos nas livrarias.

O que farão as grandes editoras agora? Ah, os mistérios do verão em Buenos Aires...

sábado, 8 de janeiro de 2011



09 de janeiro de 2011 | N° 16575
MARTHA MEDEIROS


Terapia alternativa

Uma pia lotada de louça e um tanque transbordando de roupa suja é a metáfora perfeita para a salvação

Conheci Zeca Baleiro no final de 2010 e, além de confirmar seu talento musical, descobri que ele escreve bem e que inclusive publicou um ótimo livro, Bala na Agulha, em que reúne crônicas postadas em seu blog, e também versos e frases soltas.

Entre suas reflexões sortidas, encontrei um poeminha que diz: Terapia/faço em casa/ao pé da pia. Alguns anos atrás escrevi um texto em que defendia essa mesma ideia, a de que lavar louça é uma terapia alternativa das mais eficazes: quando estou com a cabeça encardida de pensamentos inúteis, pego esponja e detergente e começo a lavar todos os copos e pratos empilhados na bancada da cozinha.

É como se eu desaguasse ralo abaixo todas as minhas dúvidas e inquietações.

Dou fim à gordura que se acumula na minha massa cinzenta, as ideias vão ficando mais límpidas e, ao término do serviço, a cabecinha fica pronta pra ser usada de novo, tinindo como um cristal.

Caio Fernando Abreu, a quem ando relendo, também escreveu: “Ninguém enlouquece quando tem um tanque de roupa suja pra lavar”. Ou seja, a vida prática pode nos salvar da loucura.

O fato é que ninguém discorda: a ociosidade é mesmo um passaporte para o universo das caraminholas. A falta de um trabalho e de tarefas a cumprir nos transforma em experts em deduções estapafúrdias e em criadores de problemas inexistentes. Uma pia lotada de louça e um tanque transbordando de roupa suja é a metáfora perfeita para a salvação. Foque no que deve fazer e pare de buscar o sentido da vida.

A loucura tem sempre a ver com excesso, inclusive excesso de tempo livre. É muita angústia, muita cobrança, muita indagação, muita procura de cabelo em ovo.

À medida que usamos nosso tempo para atividades que exigem concentração específica no que se está fazendo, como, por exemplo, um projeto para concorrer ao Nobel de pesquisa científica ou lavar louça, o tempo excedente servirá para descansar e deixar que aflorem apenas os pensamentos mais prioritários. Adeus às elocubrações desnecessárias.

Se mesmo quem possui uma rotina atribulada vive em constante hemorragia mental, imagina quem pode ficar a manhã inteira se espreguiçando na cama, não tem supermercado pra fazer, não precisa ficar atento aos horários dos ônibus e com patrão nenhum exigindo eficiência: acaba mesmo pirando na batatinha. É muita inapetência a serviço do Coisa Ruim.

Portanto, ocupe-se. O trabalho não só dignifica, mas economiza nossos neurônios – não os desperdice matutando, matutando, matutando. Quando estiver pensando muita besteira, amarre um avental na cintura e mantenha sua sanidade.

MARCELA BUSCATO

Chega de enrolar

Novos estudos sugerem que deixar tarefas para depois faz parte do instinto humano. Como evitar esse mau hábito e botar em prática as resoluções de Ano-Novo
Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 8 de janeiro de 2011.

montagem sobre foto getty images


Janeiro é o mês em que as pessoas costumam traçar planos, reavaliar objetivos e pensar nas coisas que gostariam de mudar em sua vida. Assim como Jano, o deus romano de duas faces que dá nome ao mês de janeiro, nesta época olhamos simultaneamente para o passado e para o futuro, animados pela esperança de recomeçar.

Há uma vontade genuína de mudança, mas ela costuma esbarrar, para boa parte das pessoas, numa barreira tão sólida quanto invisível: o hábito de adiar tarefas difíceis ou chatas, deixando-as para amanhã. Ao final de um ano de adiamentos, descobre-se que a vida mudou muito pouco.

Ao contrário do que parece, esse não é apenas um problema seu. Ou apenas de seu filho, que não estuda. Ou da nova garota no trabalho que não cumpre prazos. Empurrar com a barriga é uma tendência universal, profundamente enraizada no comportamento humano. É tão antiga que os romanos já tinham um nome para ela: procrastinar, que significa, literalmente, mover alguma coisa de um dia para o próximo.

Uma pesquisa recente da consultoria Triad PS, de São Paulo, que ouviu mais de 3.500 internautas, sugere que até 70% dos brasileiros postergam a realização de tarefas. Nos Estados Unidos, segundo levantamento do psicólogo americano Joseph Ferrari, pesquisador da Universidade DePaul, pelo menos 20% da população se encaixa na categoria de procrastinadores crônicos - são pessoas que adiam a realização de tarefas compulsivamente, a ponto de atrapalhar a carreira e os relacionamentos pessoais.

Mas nem é preciso ir tão longe para esbarrar com as consequências negativas do hábito de deixar tudo para amanhã. Quem nunca perdeu o sono com o acúmulo de coisas atrasadas, que é o resultado invariável da procrastinação?

Quem nunca se sentiu culpado depois de uma sessão de quatro horas em frente à TV, quando havia tantas coisas urgentes precisando de atenção? Quem não morreu de raiva de si mesmo por ter adiado, sem justificativa, aquele telefonema importante que, depois, acabou esquecido?

A procrastinação deixa de ser apenas mau hábito e se torna um risco quando contamina a vida profissional. Segundo a pesquisa da Triad PS, 64% das pessoas afirmam adiar sistematicamente tarefas no trabalho. Os prejuízos são grandes.

O risco mais óbvio é perder o emprego. “Postergar tarefas é típico de gente acomodada, que não busca soluções para os problemas”, diz Sofia Esteves, presidente da consultoria DM RH. “Não há mais espaço nas empresas para profissionais assim.” Outro problema é criar um clima ruim no ambiente de trabalho. “Hoje, os projetos são feitos sobretudo em equipes”, diz Edson Rodriguez, consultor de gestão de pessoas.

“Ninguém quer pagar pelos atrasos do colega nem empurrá-lo o tempo todo.” O procrastinador limita seu horizonte profissional. Não aprimora seu trabalho porque faz tudo às pressas e tem medo de enfrentar novos desafios – porque conhece sua limitação. Em um mercado competitivo, vai ficar para trás. “As pessoas que chegam ao topo são as que sabem usar seu tempo”, diz o especialista em gestão de tempo Christian Barbosa, da Triad PS.

A boa notícia para todos nós, que temos alguma dessas manchas no currículo, é que especialistas de áreas tão distintas quanto economia, filosofia e psicologia estão debruçados sobre o tema da procrastinação para nos ajudar a conciliar o pouco tempo de que dispomos com a disposição que em geral nos falta.

Uma série de livros recém-lançados ou prestes a chegar às livrarias mostra que é possível dar fim à procrastinação e parar de enrolar.

Sim, existem técnicas para sacudir a preguiça e vencer a tentação de empurrar as tarefas para daqui a pouco. Mas, para conhecê-las, leitor, não deixe a leitura desta reportagem para depois. Esse depois poderá virar nunca!



08 de janeiro de 2011 | N° 16574
NILSON SOUZA


Qual dos dois?

Gosto de indagações. Esta que vem aí faz parte de um poema de Cora Coralina:

“Estavam ali parados. Marido e mulher.

Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça

tímida, humilde, sofrida.

Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,

e tudo que tinha dentro.

Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar

novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,

entregou sem palavra.

A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou, se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar.

E não abriu a bolsa.

Qual dos dois ajudou mais?”

De agora em diante é comigo, a poetisa goiana não tem culpa do que virá.

Os homens são assim, diretos, objetivos, confiantes. Acreditam que podem resolver qualquer situação intrincada com um estalar de dedos. Para que ficar ouvindo lamúrias se meia pataca é suficiente para aliviar a dor alheia e apaziguar a própria alma?

As mulheres não hesitam em compartilhar suas dores e as alheias, preferem as palavras ao gesto, a fé à fuga (ainda que a fé, nesta minha mente masculina, também possa ser uma fuga), a emoção à razão.

Nós somos práticos, elas são detalhistas. Nós vamos direto ao ponto, elas dão voltas. Nós jamais admitimos que estamos perdidos, elas perguntam onde fica o destino.

Aprendi que isso vem do tempo das cavernas. Nossos bisavós trogloditas saíam para buscar o alimento da família
Nós edificamos templos, fazemos guerras, governamos nações. Elas constroem sonhos, geram a vida e têm o poder da sedução. E ultimamente também governam nações.

Ainda cabe perguntar qual dos dois ajuda mais? Gosto de indagações, mas nem sempre tenho as respostas.

, tinham que se concentrar no caminho para poder voltar, tinham que apurar a vista para surpreender a caça, tinham que usar a força para se impor sobre as outras espécies. As mulheres ficavam cuidando das crias, providenciando a alimentação, conversando com as outras fêmeas enquanto seus companheiros não voltavam.

Desenvolveram a fala, o olhar periférico, múltiplas habilidades para fazer várias coisas ao mesmo tempo e esta imensa capacidade de expressar sentimentos que o poema singelo da senhora Cora escancara.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011



05 de janeiro de 2011 | N° 16571
MARTHA MEDEIROS


A vida é curta

Amanhã é Dia de Reis. Segundo a tradição, é quando se deve desmontar a árvore de Natal, mas fico pensando se a trabalheira não será à toa. O próximo Natal já se aproxima, não seria mais conveniente deixar a árvore onde está, como um enfeite vitalício da casa? O espaço entre dois Natais nunca foi tão curto.

Constatado o milagre da redução dos anos (antigamente eles possuíam 365 dias, mas desconfio de que somem hoje no máximo uns 274), o melhor a fazer é desfrutar o tempo que nos resta.

Pra começar, chega de seguir ao pé da letra as regras de bem viver estabelecidas pela intelectualidade. Claro que cultura é importante, que não se deve desdenhar da sabedoria transmitida pelos filósofos, que a inteligência é o valor maior. Mas basta desse monopólio: é chegada a hora de valorizar também os instintos.

Se a palavra de ordem é produzir, produzir, produzir, responda com uma boa soneca: durma depois do almoço. Assuma o espanhol que há em você: siesta! Se não puder sair do escritório, tire um cochilo onde estiver, estique-se em algum canto, durma no carro, dentro do banheiro, sentado numa cadeira. Feche os olhos e desapareça por 20 minutos, mesmo que todos continuem vendo.

Você está indo bem na terapia, quase acredita que está se curando, ainda que não tenha entendido exatamente do que deve se curar. Mas, sem que seu digníssimo analista suspeite, reprise alguns de seus erros de vez em quando. Recaia. Sucumba. Vai atrasar o tratamento? Vai. Mas logo, logo, é Natal, jingle bell, paz na terra, estarão todos perdoados por terem reincidido em seus pequenos e deliciosos crimes contra si mesmo.

Se dirigir, não beba. Se costuma ficar violento, não beba.Se é do tipo que dá vexame, não beba. Se tem um histórico de alcoolismo, não beba. Mas se não for colocar ninguém em risco, muito menos a si próprio, celebre. Tim-tim!

E se é verdade que dentro do mais chique dos mortais há um brega enrustido que não vê a hora de se manifestar, eis o momento. Abuse do Roberto Carlos, cante no chuveiro, leia um best-seller daqueles que fazem seus amigos torcerem o nariz e enfeite seu drinque colocando nele uma sombrinha de papel colorido.

A sombrinha de coquetel é o símbolo máximo do “estou nem aí para o que irão pensar, sempre quis me sentir num luau havaiano”. Pode ser uma sombrinha metafórica, desde que simbolize seu estado de espírito, que faça parte do plano de desestressar e curtir a seu modo o restinho de ano que sobra. Estamos em janeiro, o inverno é amanhã e o Natal não demora. Contra-ataque com a sombrinha.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011



04 de janeiro de 2011 | N° 16570
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Receita para 2011

Nestes primeiros dias de 2011, eu queria ter 10 anos menos.

Nestes dias inaugurais do Ano Novo, eu desejaria não ter dito palavras, não ter tomado atitudes das quais me arrependeria.

Neste período inicial de uma nova era em minha vida, eu gostaria de ter feito gestos de que me esqueci.

Almejaria ter usado mais vezes o verbo almejar, para desejar paz, saúde, felicidade a todos os que me eram próximos.

Queria não ter calado a palavra quase dita, a frase quase formulada, a declaração quase enunciada.

Nestes primeiros dias de 2011, eu gostaria de ter a idade da inocência.

Eu pretenderia não haver ouvido ainda todas as músicas que me comoveram.

Eu ambicionaria não ter lido ainda todas as obras-primas que me emocionaram.

Eu aspiraria a não ter visto ainda todas as grandes telas da pintura que mexeram com meu coração e minha alma.

Eu pretenderia ser tão puro de mente que todo o saber me fosse desconhecido.

Me apeteceria desconhecer toda a ciência, para que eu próprio a descobrisse.

Ansiaria por desvendar todos esses pequenos, grandes segredos da alma humana, só para esquecê-los depois.

Ambicionaria voltar a cada trecho dos livros que me tocaram, só pelo gosto de reinventáa-los.

Anelaria tornar a cada grande museu que visitei, ao menos para reecontrar a Mona Lisa, a Vitória de Samotrácia e a Vênus de Milo.

E em tudo isso buscaria, em cada sentimento e anelo e desejo, o melhor de mim mesmo, aquele que procura norte e rumo na beleza.

domingo, 2 de janeiro de 2011



02 de janeiro de 2011 | N° 16568
MARTHA MEDEIROS


Deixe-se em paz

Que mania a gente tem de fazer listinha de resoluções, como se uma simples virada de ano bastasse para nos transformar em uma pessoa mais completa

Geralmente é o que se deseja intimamente: paz para o mundo, paz para todos, paz para os torcedores, paz para os moribundos, paz para os iraquianos. É um desejo legítimo, mas qual a nossa contribuição prática para ajudar a construir uma serenidade universal? O máximo que podemos fazer é garantir nossa própria paz. Portanto, esses são os meus votos: deixe-se em paz.

Parece uma frase grosseira, mas é apenas um desejo sincero e generoso. Deixe-se em paz. Não se cobre por não ter realizado tudo o que pretendia, não se culpe por ter falhado em alguns momentos, não se torture por ter sido contraditório, não se puna por não ter sido perfeito. Você fez o melhor que podia.

Aproveite para estabelecer metas mais prosaicas para o futuro que virá, ou até meta nenhuma. Que mania a gente tem de fazer listinha de resoluções, prometer mundos e fundos como se uma simples virada de ano bastasse para nos transformar numa pessoa mais completa e competente.

Você será o que sempre foi – e isso já é muito bom, pois presumo que você não seja nenhum contraventor, apenas não consegue dar conta de todos os seus bons propósitos, quem consegue? Às vezes não dá. Vá no seu ritmo, siga sendo quem é, não espere entrar numa cabine e sair de lá vestido de super-homem ou de supermulher. Deixe de fantasias. Deixe-se em paz.

Se quer tomar alguma resolução, resolva ajudar os outros, fazer o bem, dedicar-se à coletividade, seja mais solidário. Não deixe os menos favorecidos na paz do abandono, na paz do esquecimento. Mas esquecer um pouco de você mesmo, pode. Deve. Não se enquadre em comportamentos que não lhe caracterizam, não se enjaule por causa de decisões das quais já se arrependeu, não se arrebente por causa de questionamentos incessantes.

Liberte-se desses pensamentos todos, dessa busca sofrida por adequação e ao mesmo tempo por liberdade. Nossa, ser uma pessoa adequada e livre ao mesmo tempo é uma senhora ambição. Demanda a energia de uma usina. Será mesmo tão necessário pensar nisso agora? Deixe-se em paz.

Não dê tanta importância à melhor roupa para vestir, à melhor frase para o primeiro encontro, às calorias que deve queimar, à melhor resposta para quem lhe ofendeu, às perguntas que precisa fazer para se autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Deixe-se em paz.

No fundo, estou escrevendo pra mim mesma. Não me deixo em paz. Estou sempre avaliando se agi certo ou errado, cultivo minhas dúvidas com adubo e custo a me perdoar. Tenho passe livre para o céu e também para o inferno. Preciso me deixar em paz, me largar de mão, me alforriar.

Só falta alguém ensinar como é que se faz isso.