sábado, 25 de setembro de 2021


25 DE SETEMBRO DE 2021
LYA LUFT

O fim do mundo

Minha avó paterna, Olga, morava numa casa ao lado da nossa. Foi a melhor pessoa que conheci, bem-humorada, e nos defendendo, meu irmão menor e eu, da severidade de seu filho, nosso pai, quando fazíamos desordens.

Eu não me cansava de ouvi-la falar com ele como filho, dizendo "Arthur" à moda alemã com acento no A. Parecia estranhíssimo aquela mulher grisalha, baixinha, às vezes ralhando com nosso pai. A gente adorava aquilo.

Minha avó Olga falava os dois idiomas, pois éramos de várias gerações no Brasil, mas algumas expressões vinham em alemão e se gravaram em mim.

Uma delas era die Welt geht unter (o mundo está acabando). A graça eram os motivos, como quando meu namoradinho de 18 anos (eu com 15) voltou de férias no Rio onde tinha família. Vestia calça jeans, camiseta amarelo-ovo, tênis e meias da mesma cor ofuscante.

À medida que ele chegava, ela se virou, sacudiu a cabeça e soltou o inevitável fim do mundo.

Hoje, com os indescritíveis horrores ao nosso redor, penso que ela teria de escolher outros termos, talvez "o inferno chegou!!!". Ou "viva Satanás!"

Isso me ocorre hoje, e me dá muita saudade dela, vendo a vergonhosa postura de homens e mulheres que deviam ser modelos e líderes se engalfinhando, insultando, descabelados e salivantes, seus colegas, plateia atônita, envergonhada ou cúmplice, enquanto fatos criminosos são tratados com cinismo.

Tenho vontade de chorar, gritar, escrever com virulência. Mas a certeza de que vai cair no vazio pestilento me detém. O que vai ser de nós? Quem somos e seremos?

Para não desabar porque preciso cuidar da saúde e ainda amo a vida, olho o jardinzinho na sacada do meu quarto e penso que nem tudo causaria a indignação de minha amada avó Olga quando nós adolescentes ainda achávamos graça de horrores tão mais inocentes.

LYA LUFT

25 DE SETEMBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

A quem interessa meu voto

Todo colunista de jornal, vez que outra, recebe mensagens hostis de leitores que não concordam com o que foi escrito. Se o texto for sobre política, então, é inevitável. O leitor está no seu direito, ainda que às vezes exagere, cortando relações como se fossem amigos de infância. Foi o caso do Claudio, um leitor que avisou que nunca mais me leria, mas que, curiosamente, mandou um e-mail de despedida muito educado e com um pedido quase sentimental: por favor, não vote em um ladrão.

Fiquei comovida, juro. Nunca vi esse leitor nem ele sabe nada sobre mim, a não ser que desaprovo esse governo e que ele é a favor, como já havia revelado em e-mails anteriores. O que responder a ele, com a atenção que merece?

Claudio, votarei em 2022 no candidato que tiver as melhores propostas para o país, não para mim mesma. Como cidadã, preciso do governo, mas não tanto como precisam outros. Sou privilegiada. Estudei, fiz faculdade, tive meu primeiro emprego aos 19, nunca sofri discriminação, vivo num bairro seguro de uma grande metrópole. O preço da gasolina afeta meu custo de vida, a criminalidade impede que eu caminhe sozinha à noite, mas, ainda assim, minha vida é infinitamente melhor do que a maioria dos brasileiros. Corri os mesmos riscos só durante a pandemia. Ali não havia privilegiados, estávamos todos à mercê de um vírus mortal que só viria a ser neutralizado através da vacina, do uso de máscara e do distanciamento social, procedimentos que este governo irresponsável negligenciou.

No mais, não preciso olhar para o próprio umbigo na hora de votar. Tenho obrigação, isso sim, de olhar para os lados, para quem é pobre e precisa comer, para quem está desempregado e precisa trabalhar, para quem nunca segurou um livro nas mãos. Ao votar, preciso escolher quem apoia a cultura, quem preserva o meio ambiente, quem transmite boa imagem do país no Exterior, quem atrai investimentos, quem não incita a violência, quem não propaga fake news, quem desenvolve projetos de inclusão, quem respeita todas as religiões, incluindo os sem religião. E, claro, quem combate a corrupção.

Já tenho candidato para o primeiro turno de 2022, e até onde sei, ele não é ladrão. Haverá de fazer alguma aliança que eu desaprove, ceder em questões que me desagradem, desapontará em alguns pontos: política nunca foi um jardim de infância. Mas ele jamais apoiará a ditadura ou exaltará a ignorância, que isso não é coisa de gente equilibrada e comprometida com o futuro. Agradeço sua preocupação e garanto a você: em qualquer configuração, meu voto não irá para um extremista. Porque extremista só haverá um no pleito, e sempre teremos opção mais democrática.

MARTHA MEDEIROS

25 DE SETEMBRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

O primeiro jantar desde a pandemia

Todos com a segunda dose da vacina no braço, todos vivendo dentro dos novos protocolos para se estar vivo. Todos observando rigorosamente o distanciamento, o uso de máscaras, o álcool em gel e a higienização quase obsessiva. Nenhum deles jamais visto em uma daquelas aglomerações da Padre Chagas ou da Fernando Machado - as que mostram que, à noite, todos os gatos são parvos.

Combinaram de se encontrar para o primeiro jantar desde o início da pandemia no único apartamento que tinha uma área aberta, sacada onde mal cabia uma mesa, mas ainda assim com ar livre para circular e acalmar os mais preocupados. Eram seis no começo, continuaram sendo seis dois anos de pandemia depois, mas não sem perdas. O avô e o tio de uma, a mãe de outro, amigos e conhecidos não resistiram ao vírus e ao atraso na chegada das vacinas.

Atraso, vírgula. Descaso. Um crime, e nem dá para dizer que tenha sido culposo.

A casa passou o dia inteiro sendo arrumada com o esmero que as grandes ocasiões merecem. Conheci uma senhora que dizia que as melhores louças, toalhas e comidas deveriam ser destinadas à família, o grupo de fortes que está presente todos os dias, nas boas e nas ruins. É um ponto de vista, mas não o que acontece na maioria dos casos. O que existe de mais especial é em geral reservado para as visitas. Foi um tal de pedir prato vintage emprestado para lá, comprar velinhas para cá, escolher flores, tirar da gaveta os guardanapos de pano com cheiro de jantares passados. Por mais que se lavem os guardanapos de pano, parece que eles sempre guardam as lembranças de outras noites. Nada a ver com as manchas no tecido, são marcas na memória mesmo.

O que servir é sempre uma questão das mais trabalhosas. Há o que só come bife com batata frita. Há o que não pode ver um cogumelo que quase desmaia. Há o intolerante a glúten, à lactose ou a ambos. Há o vegetariano recém convertido, e foi aí que o cardápio se decidiu. Aproveitando que o preço da carne passou de qualquer limite, alguém teve a ideia de fazer uma massa com hortelã e queijo cottage - a sofisticação que cabe no bolso. Os vinhos estavam em oferta no supermercado - e, no dia seguinte, todos sentiriam o efeito de um ótimo português com o preço pela metade. Os copos não ficariam vazios até que o último se fosse.

Não tem sobremesa, lá pelas tantas a anfitriã lembrou, logo percebendo que essa era uma preocupação menor diante do que de doce a noite prometia. Mas é preciso pensar no jantar da Aurora. O que a gente vai oferecer para ela?

Aurora, uma das cachorras mais maravilhosas de todos os tempos.

Agora o primeiro jantar desde que a pandemia começou já aconteceu, uma reunião de pessoas que se gostam há muito e que completaram quase dois anos sem um abraço. Nunca tantas mensagens trocadas, tantos áudios, tanto amor transbordando pelo WhatsApp - que felizmente não tem espaço só para os gabinetes do ódio. Se um dia a vida voltar a uma normalidade que tem tudo para nunca mais ser tão normal assim, que essas sejam as melhores recordações desses tristes tempos.

CLAUDIA TAJES

25 DE SETEMBRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

Sim, minha querida leitora e meu estimado leitor: foi um longo e tenebroso inverno. Lobos uivaram na estepe gelada, as boas ideias sofreram com a temperatura baixa e a sociabilidade humana despencou com um vento que começou a soprar de março do ano passado. Uma quase miniera glacial com geleiras imensas e escassez de tudo, especialmente de esperança. Praticamente um ano e meio de inverno duríssimo. Há sinais de que, em alguns vales, germinam plantas promissoras chamadas vacinas. Tudo leva a crer que, se o frio ainda fustiga e os cuidados permanecem em muitos setores, talvez esteja raiando uma primavera.

Estação nova e aguardada! Nunca tivemos tanta ansiedade pelo fim de uma crise. Uma maneira extraordinária de encarar um novo mundo que pode estar surgindo pela frente é ler coisas boas, novas, instigadoras de ideias e de novos olhares. Ler serve para todas as estações, para a saúde e para as pandemias, para as crises econômicas e para acompanhar a recuperação de mercados.

Dois livros de Michael Sandel darão o que pensar até o verão: Justiça - O que É Fazer a Coisa Certa e A Tirania do Mérito - O que Aconteceu com o Bem Comum (2020, Civilização Brasileira). Os bons exemplos do professor norte-americano, sua aplicação, prática de princípios de ética e de justiça, sua expressão viva e cativante de conceitos dos grandes filósofos justificam o enorme sucesso dos dois livros ao norte e ao sul do Equador. Ambos os textos farão você repensar coisas que o senso comum construiu e que tomávamos por verdades autoevidentes. Se quiser manter a ordem de publicação nos EUA, leia Justiça primeiro. Se daqui até o fim do ano você decidir que tem paciência para apenas mais dois livros, leia esses dois.

Pensando já nas festas de fim de ano, amigo-secreto ou férias? Você pode se abastecer de uma coleção de clássicos da editora Antofágica. Daniel Lameira, Sérgio e Rafael Drummond e Luciana Fracchetta tomaram a decisão, no nosso momento de crise, de lançar obras de referência em capa dura. Antes que sejam interditados judicialmente por insanidade evidente em apostar na cultura formal, aqui vão alguns livros: Na Colônia Penal (Franz Kafka), O Nariz (Nikolai Gógol), Werther (Goethe), Triste Fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto), O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brontë), Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis), A Ilha do Tesouro (Stevenson), 1984 (Orwell) e muitos outros. Quer um bônus? Ilustrações interessantes e variadas nos livros. Exemplo? Portinari aumenta a riqueza do livro de Lima Barreto. Dar um livro bem encadernado com uma bonita dedicatória sua é um presente permanente.

Os livros de Sandel tratam de ideias muito atuais e presentes nos debates internacionais. Os clássicos da Antofágica percorrem ideias eternas do cânone ocidental. Vamos ao Brasil profundo: o aclamado Itamar Vieira Jr. tinha surpreendido o público com seu Torto Arado. A poderosa narrativa do baiano agora aparece como histórias autônomas: Doramar ou a Odisseia (Ed. Todavia). Um Brasil que raramente aparece na internet ou na grande imprensa: ler Itamar virou uma maneira de pensar além da imensa classe média simbólica que nos assombra e cega sempre. A sensação que tenho com os textos dele é de que eu vivo em uma bolha e ele me expulsa de uma razão muito limitada. Faça seu próprio julgamento lendo-o, afinal, livros ajudam muito nisso.

Seu campo é a história? A Planeta (com o selo Crítica) lançou Os Templários, de Dan Jones. A pesquisa dele consagra o que de mais recente sabemos sobre a grande ordem religiosa militar que anima debates até hoje. Prefere um romance policial? A mesma editora (selo Tusquets) lançou Terra Alta, do espanhol Javier Cerca, já famoso pelo livro Soldados de Salamina. No novo livro, a personagem Melchor Marín me levou a imaginar que um dia será alvo de um grande filme. Um desafio: ler o livro Justiça (de Sandel) e depois analisar a vingança contida em Terra Alta, aproximando os conceitos filosóficos e ficcionais. Que primavera seria!

Existe um tema controverso que anima muitas publicações. Devo aplicar a alta filosofia para questões cotidianas? Sócrates e Platão podem responder sobre redes sociais ou depressão? Alguns detestam e eu sempre imagino que, afinal, era esse o objetivo dos pensadores. Marie Robert lançou Não Sabe o que Fazer? Pergunte aos Filósofos (Planeta). Eric Weiner publicou O Expresso Sócrates - Em Busca das Lições de Vida de Filósofos Imortais (Alta Life). Gabriel Chalita lançou pelo novo selo Serena Viver É Verbo - Como a Filosofia Pode nos Ajudar a Entender o Mundo Pós-Pandemia. São livros que buscam nos grandes pensadores uma resposta a questões muito atuais. Por exemplo: você está com crises com seu adolescente? Levinas pode dar dicas preciosas, segundo Marie Robert. 

Está viajando e lida com vontades de prazer? Epicuro é uma fonte na pena de Eric Weiner. Qual a relação entre justiça e generosidade? Aristóteles falará pelo texto de Chalita. De todos os lados, luzes clássicas reinterpretadas para nosso mundo. Confesso: quando li o capítulo do Expresso Sócrates sobre Sei Shônagon e a reflexão sobre as pequenas coisas, envergonhou-me confessar que jamais tinha ouvido falar desta pensadora japonesa Fui atrás de O Livro do Travesseiro dessa pensadora da corte japonesa do século 11. Em outras palavras: os textos me ajudaram a conhecer mais e ser menos ignorante.

Em resumo: ler para que a primavera vença. Ler para restos de inverno serem menos complicados. Ler para ser e para crescer. Uma decisão a ser tomada daqui para o fim do ano. Aceita o desafio de semear esperança no cérebro?

LEANDRO KARNAL

25 DE SETEMBRO DE 2021
INFÂNCIA

OS LIVROS

Brincar é milenar, universal e constitui representações de diferentes aspectos das sociedades nas quais se desenvolveram ou se integraram. A cultura da infância corresponde ao universo dos brinquedos e das brincadeiras que acompanham a criança em todo o seu processo de desenvolvimento. Traz na sua essência os gestos, a poesia, a história e a música de cada lugar, que possui paisagens e características próprias, onde o ser humano traça sua maneira de se relacionar com elas. Algumas brincadeiras são cíclicas, e tais ciclos podem variar de um lugar para outro, relacionando-se com estações do ano, períodos de safras, férias escolares, tipos de vegetações, entre outras.

O repertório das brincadeiras da infância contempla acalantos, brincos, histórias, adivinhas, trava línguas, quadrinhas, fórmulas de escolha, brincadeiras de roda, amarelinhas, jogos, pegadores, brincadeiras com bola, corda, elástico, mão, pedra, o objeto brinquedo.

Cada uma dessas brincadeiras traz a palavra aliada ao gesto. Movimento e desafio são a tônica, e o corpo traduz a capacidade de a criança experimentar, inventar, arriscar e se expressar livremente. Da mesma forma que desafia o corpo na expectativa de atingir seus limites, o faz com as palavras, que se tornam verdadeiros brinquedos. A riqueza da língua materna, a musicalidade da voz falada, a rima, a métrica e poesia, a criatividade e inventividade das crianças, somadas a uma infinidade de movimentos corporais, compõem a diversidade do repertório, que tem o cotidiano como tema recorrente.

Sua localização no tempo e no espaço apontam para história, geografia e costumes do lugar de origem. Nas variantes espalhadas por todo o Brasil, encontramos sinais do rural, do urbano e de particularidades dessa raiz, seja no vocabulário, na paisagem, na vegetação, nos personagens, na alimentação, no trabalho, nas crenças, nas superstições, nas festas e nos gêneros musicais predominantes em cada localidade.

O repertório da cultura da infância brasileira tem sua base herdada dos portugueses e a esse se agregaram elementos africanos e ameríndios. Recebeu também influência de outros povos pelos grandes fluxos imigratórios que aqui ocorreram. Elementos da cultura infantil italiana, alemã, espanhola, francesa, inglesa, norte-americana, japonesa, judaica, boliviana, chilena, entre outras, se misturaram à nossa, tornando-a ainda mais rica e diversa.

De linguagem simples, o sonoro tem privilégios com relação à gramática e ao significado das palavras. Assim, são infinitos os exemplos intraduzíveis e os ajustes linguísticos de sílabas e palavras para que caibam dentro da rima e métrica. São riquíssimas as soluções encontradas pelas crianças para substituir os termos incompreendidos, ou que não fazem parte do seu vocabulário. Esses termos, às vezes sem tradução para o adulto, têm relação direta com os sons do cotidiano.

Mnemonias, réplicas, ditos, fórmulas de terminação de histórias, fórmulas de escolha, trava línguas, adivinhas e quadrinhas são formas de as crianças brincarem com as palavras. De maneira muito divertida e criativa, elas brincam com nomes, números, cores, dias, meses; tiram a sorte, falam de amor, da natureza, do mundo, das pessoas. Desafiam a língua, como desafiam o próprio corpo na brincadeira.

A poética da infância traz na sua essência simplicidade, verdade, pureza, alegria, criatividade e singeleza da criança. Predicados que também fazem parte da essência do povo e da cultura popular brasileira. Neste momento do mundo em que as telas invadiram nossas vidas e que as crianças estão sendo privadas de brincar presencialmente juntas, as brincadeiras com as palavras tornaram-se grandes aliadas para continuarmos brincando com as crianças, mesmo que de longe. Um exemplo são as mais recentes publicações do projeto Luzeirim Poético: Adivinha quem É - Pássaros em Cordel, na qual, brincando com as palavras, Amanda Senna nos ensina sobre os pássaros brasileiros; e Muitos Mundos em um Só, quadrinhas ilustradas de Carol Senna nas quais o personagem viaja observando a diversidade e contempla a sabedoria da empatia.

É uma ave popular

O seu canto eu já ouvi...

Tem a barriga amarela

E o bico preto, que eu vi. 

Canta o seu próprio nome

Esse é o...?

(Resposta: Bem-te-vi)

Adivinha Quem É: Pássaros em Cordel, de Amanda Senna, e Muitos Mundos (em um Só), de Carol Senna, estão à venda no site luzeirim.com a R$ 40 (mais frete). Saiba mais sobre o projeto que resultou nas duas publicações no mesmo endereço 

LUCILENE SILVA

RICOS E POBRES

O rico não quer ser pobre, e o ser pobre não quer a pobreza do rico. Qual a riqueza, que um tem e outro não, e qual a pobreza, que outro tem, mesmo rico? Qual a matéria que a um falta e a outro sobra? Ouro, disse Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.), quem procura racha muita rocha e pouco acha (fr. 22). Outros, em outras obras, carregam muita pedra sem ouro ver, ou, em outra rota, até acham ouro, mas um outro carrega. E se um guardar só para si o ouro, será riqueza? Quando um perde todos os dobrões, deixa de ser o que pensava ser, e vê o tempo no espelho de aflições dobradas, pelo que não tem e pelo que deixou de ter. E outro, se obtiver o ouro com que sonha, saberá ser rico sem ser pobre? E se o pobre nada quiser, apenas sobreviver, nem rico nem pobre, será pobre ou será rico? E o rico que não quer ser pobre, teme a pobreza ou só teme ser pobre?

Riqueza e pobreza não são dons naturais, mas fatos históricos regulados por parâmetros sociais, portanto variáveis nas diversas épocas e civilizações. Nas primeiras cidades, na era neolítica (9.500-3.200 a.C.), na Anatólia, havia pouca desigualdade, em cenários de economia comunitária e coabitação intensa. Na aurora do Estado, porém, com a domesticação das águas no Egito e na Mesopotâmia, iniciou-se agudo acúmulo de riqueza, fruto da progressão geométrica das sementes e da apropriação do excedente por monarcas (faraós e reis guerreiros), com amparo de sacerdotes e burocracia letrada. No apogeu desse processo, ergueram-se, com muita rocha e pouco ouro, as maiores obras da história da humanidade, as pirâmides de Gizé, para sepultar meia dúzia de ricas criaturas.

No século VII a.C, no reino da Lídia (Ásia Menor, hoje Turquia), cunharam-se as primeiras moedas, aperfeiçoadas nas cidades gregas; a economia monetarizou-se com as corujinhas de Atenas (séc. V a.C.) e com as tetradracmas de Alexandre (356-323 a.C.) e sucessores. O Império Romano floresceu com direito às crises da economia monetária: hiperinflação, fortunas exorbitantes e endividamentos brutais. Muito antes disso, porém, a pólis grega teve que enfrentar a tensão social produzida pelo desequilíbrio econômico, e encontrar soluções em prol da harmonia e da unidade e força das comunidades. 

Sólon de Atenas (638-558 a.C.) tratou disso quando impôs o perdão das dívidas e a libertação e repatriamento dos atenienses escravizados e legislou por uma cidade menos assimétrica. Seu Poema da Eunomia (boa norma) exorta para que os ricos moderem a arrogância (hybris) e deplora como alguns cidadãos "persuadidos por riquezas", com "líderes do povo, com pensamento injusto", organizados em reuniões privadas, querem destruir a grande cidade, "sem poupar bens sagrados e públicos". Com isso, abalam os pilares da justiça, produzem miséria e sobrevém a guerra civil (stásis); do egoísmo de poucos advém o mal para todos. Assim um sábio viu o mal efeito da riqueza, quando destrói a cidade.

Não há mal na riqueza nem bem inato na pobreza, mas há um preço no excesso (hybris), e quem o paga não é só quem deve, mas a cidade e todos. A bela riqueza é a justa medida.

FRANCISCO MARSHALL 


FELICIDADE

Quando Laurie Santos, professora de Yale, decidiu montar um curso sobre a ciência da felicidade, ela não imaginou que a procura fosse de milhares de alunos - teve que lecionar no teatro da universidade. O cerne do curso era entender por que as pessoas, quando alcançavam seus sonhos, não ficavam completamente felizes. Era como se os desejos e expectativas da vida moderna se opusessem e os puxassem para lados diferentes - como conciliar isso?

O curso virou o podcast The Hapinness Lab, com milhões de assinantes no mundo. A primeira versão, em 2019, explorou o que a ciência traz de novidade sobre o tema. Mas, em 2020, Laurie não pôde se esquivar de trazer a origem de todas as ideias científicas debatidas no programa. Para a surpresa de muitos, as respostas a muitas das questões atuais já haviam sido introduzidas há séculos.

Há 2500 anos, na Grécia, o trabalho de um grupo de pessoas muito inteligentes foi pensar sobre questões essenciais. Não eram perfeitos; não havia mulheres. Mas alguns indivíduos excepcionais deixaram contribuições eternas. Por exemplo, Aristóteles - meu "santo padroeiro". Seu interesse atual é a pandemia (ciências biológicas)? Aristóteles criou esse campo. Ou as viagens ao espaço (física)? Aristóteles. Ou só quer saber de dramas e comédias da Nextflix? Vamos ver: Aristóteles, na Poética!

Mas é nos volumes da Ética que ele traz a imagem do cocheiro tentando dominar dois cavalos que não se alinham, e as ideias de como harmonizá-los para conseguir chegar ao destino - a felicidade. Para ele, existe um caminho para ser uma pessoa melhor: agir de forma a melhorar a vida dos que nos cercam. Para Aristóteles, encontrar seu verdadeiro espírito - seu daimon - vem de praticar atos que resultem em ciclos de proporcionar bem- estar e senti-lo - em si e nos demais. Muitas das ideias que os gregos clássicos deixaram para o Ocidente já haviam sido exploradas por filósofos no Oriente - de Lao Tzu a Confúcio, muito estava lá.

Escrevo isso porque a prefeitura de Porto Alegre propôs excluir o ensino de filosofia do currículo escolar. O resultado de educar sem aprender com os grandes pensadores seria - vamos pensar - um futuro infeliz. Em que todos, mesmo líderes de países, não se importassem com o bem- estar dos demais. Em que decisões fossem tomadas pensando apenas no privilégio de poucos. Em que presidentes fossem escolhidos para serem bufões em nível internacional, cujas trapalhadas tivessem consequências funestas, e servissem para desviar a atenção enquanto alguns poucos se aproveitam. É esse o futuro que você quer para seus filhos?

Em tempo: Aristóteles dedica os dois últimos capítulos da sua Ética para a importância dos amigos na sua vida - algo que os budistas já tinham descoberto, milênios antes. Um curso de filosofia não só te ensina sobre o mundo, mas garante um ótimo papo para o próximo café. Confere lá, prefeito!

CRISTINA BONORINO 


25 DE SETEMBRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

MÁSCARAS

A variante Delta, que se espalha pelo mundo, está entre nós. Vai competir com a Gama, originada em Manaus. Impossível prever qual delas prevalecerá, já que a seleção natural é imprevisível, como nos ensinaram Charles Darwin e Alfred Wallace.

Não há estudos comparativos entre as duas. A Gama leva a vantagem da primazia no país; a Delta, a da carga viral elevada que consegue atingir nas vias aéreas superiores. Estudos realizados na Inglaterra mostraram que a concentração do vírus delta nas mucosas nasais chega a ser mil vezes superior à da variante Alfa que surgiu no Reino Unido no último trimestre do ano passado.

Uma coisa é certa, entretanto: em todos os países em que chegou uma variante mais contagiosa, houve aumento do número de casos, portanto de óbitos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Delta deslocou rapidamente as demais variantes que circulavam no país, duplicando o número de casos e de mortes, nas duas últimas semanas.

É pouco provável que fenômeno semelhante não se repita no Brasil, à medida que essa variante encontrar uma população em que apenas 22% estão completamente imunizados.

Como agir para evitar as consequências trágicas de mais uma onda, que parece inexorável?

Sejamos realistas: um ano e meio de epidemia é tempo demais. Todos estão cansados do isolamento, a economia enfrenta uma crise com quase 15 milhões de desempregados e cerca de 35 milhões na informalidade, gente que se ficar isolada engrossa a multidão dos que passam fome.

Por outro lado, como já tivemos mais de 3 mil mortes diárias, a média de pouco abaixo de mil transmite a sensação falsa de que as vacinas já controlaram a epidemia.

No ritmo lento em que caminha a vacinação, no entanto, se não pudermos contar com o isolamento, o que sobra? A lavagem das mãos e as máscaras.

De abril do ano passado - quando ficou comprovado que as máscaras ofereciam proteção -, até março deste ano, quando caiu o general que sabe lá por que interesses ocupava o Ministério da Saúde, o governo federal não se dignou a conduzir uma campanha sequer para explicar e reforçar a necessidade de usar máscaras.

Durante todo o ano de 2020, a única campanha nacional para incentivar o uso de máscara, no rádio e na TV, foi realizada pelo Todos pela Saúde, grupo que administrou a doação de R$ 1,2 bilhão feita pelo Itaú-Unibanco.

É o preço que pagamos por viver num país em que o presidente insiste até hoje em expor a cara descoberta e em dar exemplos diários de como os brasileiros devem fazer para disseminar o vírus e provocar mais mortes.

Esse coronavírus já provou que sofre mutações capazes de torná-lo mais contagioso. Enquanto existirem no mundo populações não vacinadas, variedades novas surgirão uma atrás da outra, colocando em risco de morte quem não foi imunizado com as doses necessárias e em risco de desenvolver uma doença de intensidade mais leve, mesmo os vacinados, mas que pode deixar sequelas físicas prolongadas.

Já que não há como contar com o atual Ministério da Saúde, despreparado e subserviente, as secretarias estaduais e municipais devem assumir a liderança na promoção do uso de máscaras. Num esforço conjunto com a iniciativa privada, temos que repetir exaustivamente pelos meios de comunicação de massa, que a máscara é a única saída.

As máscaras de pano atenderam às necessidades, enquanto eram a única solução para um país dependente das que chegavam da China. Elas ajudaram a conter a disseminação do vírus, mas agora dispomos de opções mais eficazes. Temos de fazer as máscaras cirúrgicas e as N95 chegarem às mãos dos que mais precisam: os brasileiros mais pobres que utilizam transportes públicos.

Incrível que ainda não tenhamos providenciado essa distribuição nas estações de trem, de metrô e nos pontos de ônibus das áreas periféricas e centrais das cidades brasileiras. Não é possível que faltem recursos financeiros para uma intervenção tão barata. Quantas máscaras podem ser compradas com o dinheiro gasto para cobrir os custos de uma só diária, de alguém entubado numa UTI do SUS?

A se manter a tendência atual, o número de óbitos no Brasil ultrapassará o dos Estados Unidos. Ostentaremos humilhados esse recorde mundial. Não podemos deixar que a sociedade viva a fantasia de que a epidemia está em seus dias finais. Não está, o vírus ficará por aqui.

DRAUZIO VARELLA

25 DE SETEMBRO DE 2021
MONJA COEN

PRIMAVERA

Eu nunca tive uma prima chamada Vera. Tive uma sogra.

Nosso primeiro encontro não foi bom. Eu tinha 13 anos de idade e o meu noivo, 20. Ela, a sogra, considerava que eu era responsável pelo filho vir me pedir em casamento. Unilateral? Bem, houve uma época, depois do casamento, em que ela me levava a jogar Bridge no Clube Harmonia, em São Paulo. Era o que ela fazia uma vez por semana.

Li um livro sobre Bridge. Método Goren, se não me engano. E fui jogar em dupla com um desconhecido numa competição com um grupo de senhores e senhoras, que podiam ser meus avós. Mas tudo isso é outra história. O passado passou e ficou uma vaga memória. Não vou comentar sobre a falecida sogra Vera. Teria sido eu, teria sido ela? Uma outra vida que se desencadeou nesta.

Agora sim, chegamos aqui e é primavera. Pássaros cantando passarinhas... O desabrochar das flores. Tantas e de tantas cores. Não é para nós que desabrocham, embora sejam agradáveis aos olhos humanos. A quem tem olhos capazes de ver. Há tantos tipos de olhos, de olhares, de pontos de vista, visões. Alguns são incapazes de ver e outros enxergam demais. O equilíbrio sagrado, onde está?

Como anda a sua visão? Meu olho direito anda embaçado.

Disseram-me que há um calo lá no fundão. Tenho um olho calejado - seria de tanto olhar, ler, escrever, estimular, usar?

Não há cura. Possibilidade de cirurgia, sempre com algum risco. Risco de riscar, de prejudicar mais ainda? Será? Aguardo novos exames em outubro. Estamos quase chegando lá.

Mas ainda não. Estamos aqui, no agora, onde todo passado e todo futuro é.

25 de setembro, sábado. Passamos pelo Equinócio de Primavera durante a semana. Dia e noite exatamente com a mesma duração. Seriam ações duras? Dia e noite são um par, ou seja, um. Sem o outro, este não é.

Falar-se-ia em noite se só houvesse dia?

A mente da equidade é a mente Buda, a mente desperta, a mente de sabedoria. O que é equidade: mesma duração do dia e da noite, mesmo valor, importância a tudo e cada um. Toda e cada vida importa. Respeitar, incluir, cuidar de tudo que existe, inclui você e toda vida do Cosmos que mantem a sua vida viva. Mantém a morte morta.

Na primavera há alegrias, tristezas, nascimentos, mortes, prazeres e alergias. Não é só flores e beleza visual. Para quem não vê, o que é a cor?

Há muitos anos conheci um africano com deficiência visual. O aparelho ocular perfeito, não tinha nem mesmo o calo no fundo do olho, que embaça um pouco a visão. Entretanto, nada enxergava. Passara por um trauma medonho - vira suas filhas e esposa serem estupradas e mortas à sua frente. Ele amarrado em uma cadeira. Genocídio. Dessa tarde em diante ficou cego. E você, com tantos abusos e crimes, tantas violências e racismos, tantos desgovernos e desigualdades, continua vendo com clareza a realidade? Alguns esbanjando vacinas e outros sem ar...

Lanço um livro este mês, com Allan Dias Castro: A Monja e o Poeta. Ele escreveu poesias e eu comentei em prosa. Transbordamos ternura, reflexões, e a possibilidade de pensar quando poucos são os que ainda pensam e comentam, conversam, dialogam e sendo diferentes podem discordar sem perder o respeito, o afeto.

Primavera, que não é prima, mas é a primeira verdade que chega após a neve branca.

É tempo de desabrochar a mente de equanimidade. Sorrir, incluir, cuidar, querer bem, amar e transformar a si e ao mundo na renovação da vida. Aprecie! Mãos em prece. 

MONJA COEN

25 DE SETEMBRO DE 2021
J.J. CAMARGO

UMA TRISTEZA EM CADA ESQUINA

Com menos de um quinto da população com reserva econômica para ficar em casa, enquanto milhões de empregos eram pulverizados, era previsível que depois de 18 meses de controvérsias estéreis as nossas esquinas estivessem repletas de comerciantes amadores vendendo bagulhos baratos que penduram nos retrovisores dos nossos carros, na esperança de comover-nos, e voltando correndo antes que o sinal abra, só para constatar que ainda não foi dessa vez.

Mais triste ainda é o batalhão de famélicos que, não tendo nada para oferecer, portam improvisados cartazes de papelão anunciando o desespero pela sobrevivência, na expectativa remota de que a palavra "fome", multiplicada pelo número de filhos, acenda um resíduo de misericórdia. A maioria disfarça a indiferença olhando o celular, enquanto alguns, poucos, alcançam umas moedas, através de uma fresta no vidro, tão pequena que não permita que um gesto de tamanha magnanimidade abra o caminho para um assalto.

Num sábado lindo, prenunciando primavera, o Adilson se instalou numa esquina movimentada, onde a sinaleira de três tempos lhe dava a chance de circular entre os carros com seu passo manco. Seu equipamento comercial se resumia a um caixote que servia de depósito de microbandejas de isopor, com morangos mirrados, trazidos sabe-se lá de onde.

Quando o sinal fechou, ele pegou uma amostra em cada mão e se deslocou entre os carros para mais uma tentativa. Tendo deixado a retaguarda aberta, se expôs ao inacreditável: foi assaltado. Duplamente. Ao ver um moleque de posse de uma de suas preciosas bandejas, saiu em corrida desengonçada atrás dele, e um comparsa completou o roubo, apanhando o que restava da sua féria e correndo na direção oposta. Quando o sinal abriu, deu tempo de ver que só tinha sobrado o caixote.

Dobrei na esquina, andei uns 30 metros e, desconfortável, estacionei. Voltando para a rua, o encontrei sentado no caixote, segurando o rosto entre as mãos, com os olhos fechados. Arregalou o olho choroso contra o sol quando percebeu que eu falava com ele, porque afinal ele não tinha mais nada para ser levado. Sentei na mureta e, entendendo que eu não tinha o protótipo de assaltante, ele relaxou:

- O que foi, seu doutor? Eu sou o Adilson.

Tinha vindo do Interior com dois irmãos, que ele se empenhara em convencê-los que a vida na cidade grande era mais fácil, e os três tinham conseguido emprego como pedreiro e auxiliar de obras. Com a chegada da pandemia, a construtora fechou depois de dois meses sem trabalho e os irmãos tinham voltado para a roça. Quando quis saber porque ele tinha ficado para trás, foi de uma sinceridade arrasadora:

- Por causa do meu pai, que tinha dito que um dia eu ia voltar para casa, arrependido. Ainda não estou pronto para essa vergonha.

Os médicos experientes são especialistas em consolar, porque é isso que fazemos todos os dias, a vida toda, mas que coisa ruim é ficar sem palavras!

Como se eu fosse responsável pela pobreza do mundo, quis saber o quanto ele teria faturado se todo o estoque tivesse sido vendido. A modéstia da ambição, me comoveu ainda mais:

- Ah, por cima, ia me sobrar uns 34 pilas, mas quebrava meu galho no fim de semana.

Arredondei a conta para cima e, antes de sair, pensando que eu só tinha livrado a miséria de dois dias, e sentindo a dor antecipada da segunda-feira implacável, ainda ouvi um agradecimento que me liquidou:

- Mas não percisava, doutor.

J.J. CAMARGO

25 DE SETEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

A teimosia da vida

Vinha rodando pela cidade quando vi que, em um carro vermelho que deslizava à minha frente, o motorista abriu a janela e jogou fora uma sacola plástica. Cara, aquilo me deu uma raiva. Olhei para a sacola, que agora jazia no leito da avenida, e decidi ver quem era aquele motorista de péssima educação. Dei um jeito de avançar, troquei de pista e emparelhei com o carro dele. Na verdade, ela: uma mulher de punho gordo. Nisso reparei. No rosto prestei pouca atenção, mas aquele punho, que estava logo atrás da mão que segurava o volante, era tão gordo que tinha dobras.

Não podia fazer nada para obrigar aquela mulher de punho gordo a parar o carro, descer e ir buscar a sacola plástica que ela atirou na rua, mas, com toda a minha força e a minha fé, roguei-lhe uma maldição:

- Que o lixo com o qual você emporcalhou a cidade volte para você, mulher de punho gordo! Que, de alguma forma, você reencontre essa sacola plástica, talvez lhe entupindo a calha da casa, talvez obstruindo um cano, o que causará inundação em seu banheiro imundo! Ele vai voltar, mulher de punho gordo! Ele vai voltar!

Segui meu caminho meio irritado com o desleixo das pessoas com sua própria cidade, mas decidi que aquilo não ia me aborrecer, não ia estragar meu dia. Fazia uma linda tarde de primavera, de temperatura amena e sol festivo, não havia razão para me aborrecer. Acionei a minha playlist e, de primeira, a música que veio foi uma bela e suave do Tom Waits, em que ele diz que espera não se apaixonar por certa moça.

O som combinou com a paisagem. A brisa da primavera balançava as folhas nas copas das árvores e a luz amarela do sol a tudo aquecia e a voz rouca do Tom Waits parecia dar ritmo ao movimento vagaroso e bom da natureza. Foi assim que esqueci a raiva da mulher de punho gordo e passei a me sentir feliz.

Continuei rodando macio com meu carro e ouvindo a música e admirando a cidade que passava e então vi, ao longe, o famoso guapuruvu da 24 de Outubro. Escrevi sobre ele no ano passado: trata-se uma árvore imponente, de 50 anos de idade e tronco majestoso. Durante décadas, ela coloriu a avenida com suas flores amarelas, mas, um dia, um de seus galhos caiu sobre um carro estacionado e o amassou. Foi o que bastou para o guapuruvu ser condenado à morte. Os homens vieram e lhe amputaram os galhos pequenos e lhe arrancaram as folhas e o que resta do guapuruvu é seu tronco e quatro galhos grossos que partem dele e se elevam, despidos, aos céus, como se estivessem em oração.

Foi essa a imagem que vi do meu carro, e ela me entristeceu.

Então, eu ficara com raiva da mulher que jogou a sacola na rua, depois alegre com a música e a paisagem doces e, finalmente, me senti triste por causa do guapuruvu mutilado. Tudo isso em poucos minutos.

Mas fui me aproximando, fui chegando perto da grande árvore e, como tive de me deter devido ao trânsito pesado, pude olhar com cuidado para o alto, e então vi: dos troncos atorados do guapuruvu brotavam galhos, e desses galhos pendiam folhas. Fiquei abismado. Será que o guapuruvu estava renascendo? Será possível que ele volte a ser frondoso e ostente novas flores amarelas na primavera e no verão?

Aquela ideia me encantou e, encantado, retomei a felicidade. Tom Waits continuava cantando, o vento ainda balançava as copas das árvores e a cidade estava azul e amarela e a vida insistia em vicejar no guapuruvu de membros decepados pelos homens. Pode ter sua doçura uma tarde de primavera em Porto Alegre.

DAVID COIMBRA

25 DE SETEMBRO DE 2021
ARTIGOS

SOCORRO, PAREM AS BICICLETAS!

A Zero Hora do dia 8/9 nos diz que "Andar de bicicleta em Porto Alegre será mais seguro somente depois de 2100", pelo aumento de ciclovias e ciclofaixas: quase 500 quilômetros (!) em 2109. Fiquei preocupado.

Não por mim, pois no atual estado da arte das ciências da saúde é difícil que uma pessoa viva 121 anos. Fiquei pesaroso pelas pessoas pedestres que virão.

Bons tempos quando nós, pessoas peregrinas, éramos oprimidas apenas por carros, ônibus e lotações. Andavam eles, soberanos, nas ruas, e raramente invadiam as calçadas. Com a gasolina a peso de ouro e os carros híbridos/elétricos inacessíveis para a maioria da população, esses meios de transporte serão cada vez mais raros.

Hoje e já há algum tempo, as bicicletas, sob o signo da proteção ambiental, tomaram pretensões hegemônicas e passaram a oprimir as pessoas que optaram pelo meio de transporte mais rudimentar: os pés.

Há uma qualificadora: as magrelas, diferentemente dos automotores, frequentam calçadas, corredores e demais espaços que, a rigor, seriam apenas para pedestres. Mesma coisa quanto a patinetes e congêneres, dos quais não falarei nestas breves linhas.

Sim, caminhar na orla do Guaíba, naquele trecho desde a Fundação Iberê Camargo, tornou-se tão perigoso quanto caminhar no Centro. Neste, o risco é ser atropelado por um automotor. Naquele, o risco é ser prensado entre bicicletas.

Pessoas ciclistas de todas as idades, gêneros, muitas sem máscara, andam na faixa de pedestres, ignorando que as pessoas peregrinas são lentas e fracas e precisam ser respeitadas no seu espaço - cada vez menor. Paradoxalmente, as pessoas ciclistas tornaram-se para as pessoas peregrinas aquilo que os automotores representam para elas: perigo.

Até 2100, caso mantida a progressão de desrespeito e falta de civilidade por parte de algumas pessoas ciclistas, com quase 500 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas, talvez não seja mais possível sair de casa a pé. Se caminhar será cafona, não sei. Mas será extremamente arriscado.

SAMUEL SALIBA MOREIRA PINTO


25 DE SETEMBRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

RISO CHINÊS

A China volta a ser o centro de atenção do mundo. A eventual quebra do gigante imobiliário Evergrande pode incidir nas bolsas de valores de cada país e derrubar economias consideradas sólidas.

Aos 20 anos de idade, passei dois meses por lá, convidado pela Federação Pan-Chinesa de Estudantes Universitários, em minha condição de presidente da União Estadual de Estudantes. No quinto ano da revolução de Mao Tsé-tung, a China ainda era pobre, homens e mulheres se vestiam iguais, em brim azul. Em vez de caixas registradoras elétricas, como aqui, eles usavam o ábaco, somando rápido ao mover botões numa caixinha de madeira.

A China tinha 600 milhões de habitantes, sobrava mão de obra e escasseava tecnologia. Em viagem de trem, observei um espetáculo fantástico: em fila de quatro quilômetros, milhares de homens passavam de mão em mão regadores de jardim, para irrigar lavouras com água de um rio. Foi o sinal de uma contração ao trabalho que, décadas após, transformou a China em potência mundial em tecnologia e produção.

Na volta (numa época em que se viajava pouco), em palestras por várias cidades, arranquei irônicos risos da plateia ao dizer que a China "seria a grande potência" mundial talvez ainda antes do novo século 21. Alguns pensavam que eu ironizava, outros que eu errava redondamente, mesmo ao lembrar que os chineses tinham descoberto a bússola, por um lado, e o carrinho de mão por outro, que abriram caminho ao desenvolvimento. Na austeridade de então, dizia eu, se preparavam para ser a grande potência mundial.

O riso que provoquei na época tem hoje significado oposto. Já não é irônico, mas de ansiedade por saber até que ponto o calote de US$ 300 bilhões de uma empresa chinesa pode provocar um terremoto nas finanças do mundo. É um riso amarelo, e chinês, portanto.

Não repetirei o que a imprensa e a TV já acentuaram sobre as incongruências, fantasias ou, até, mentiras do presidente Bolsonaro em discurso na assembleia geral da ONU. Aquele Brasil para- disíaco que ele descreveu não existe.

O presidente dos EUA, Joe Biden, ao falar pouco depois, parecia responder às fantasias de Bolsonaro. Lembrou que não se combate a pandemia à bala e que a "guerra fria" não deve voltar jamais, acentuando o perigo das mudanças climáticas como o novo desafio a enfrentar.

Aqui, o poder atual ressuscita o cadáver putrefato da "guerra fria" e, ao desdenhar a defesa do meio ambiente, sorri ao horror das mudanças climáticas.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

25 DE SETEMBRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

NOVA CHANCE PARA AS FERROVIAS

Um dos grandes gargalos da infraestrutura do país, com reflexos no custo Brasil, é a reduzida utilização de ferrovias. Estima-se que os trens correspondam hoje a apenas 20% da matriz de transporte nacional, bem abaixo de outras nações com território continental. Nos Estados Unidos, por exemplo, a participação chega a quase 30%. Na Austrália é mais da metade e, na Rússia, incríveis 80%. Pelo fato de o Brasil ser relevante produtor e exportador de commodities e devido às grandes distâncias que precisam ser percorridas, o estímulo ao modal sobre trilhos é uma medida lógica e sempre reclamada, mas negligenciada no país.

Como em toda área que exige concessões, segurança jurídica é basilar. Modelagens equilibradas, com direitos e deveres justos para operadores e poder concedente, também são essenciais. Espera-se que, agora, o Brasil possa ingressar em uma nova era, com maior incentivo ao crescimento do transporte ferroviário. O Senado Federal deve votar nos próximos dias o novo Marco Legal das Ferrovias, discutido desde 2018 pelo Congresso. Na prática, vai substituir uma medida provisória publicada pelo governo federal no final de agosto, com termos semelhantes. Após queixas dos senadores, chegou-se a um acordo para deixar a medida provisória caducar, passando a valer o texto elaborado pelo parlamento, após ampla discussão. Mas, desde a publicação da MP, o Ministério da Infraestrutura já recebeu sinalizações que indicam investimentos vultosos nos próximos anos.

Uma das novidades positivas é a criação do instrumento da autorização ferroviária. Segundo o ministro Tarcísio Gomes de Freitas, sem dúvida um dos mais competentes da Esplanada, já existem 14 requerimentos de investidores privados que pretendem construir e operar estradas de ferro nessa modalidade, que reduz a burocracia para a entrada de operadores privados em um negócio hoje ainda muito concentrado no Brasil. Seriam mais de 5,3 mil quilômetros de trilhos novos, espalhados por 12 Estados. O investimento estimado é de R$ 80,5 bilhões.

Abre-se, assim, uma série de oportunidades. A construção dos projetos, em primeiro lugar, tem o potencial de movimentar a economia, gerar grande demanda de produtos e serviços e gerar empregos. Quando essas ferrovias estiverem prontas, contribuirão para um país mais competitivo, com um transporte de custo inferior e menos poluente, diminuindo ainda a excessiva dependência das rodovias, já saturadas.

A projeção do Ministério da Infraestrutura é chegar a 2035 com o modal ferroviário representando 40% da matriz de transporte nacional, o dobro da atual. Um salto e tanto para um período inferior a 15 anos. Lamenta-se apenas que, por enquanto, não exista nenhum projeto previsto para o Rio Grande do Sul, onde também há grande mercado a ser explorado e a malha existente é subaproveitada. Principalmente no agronegócio, mas também nos bens industriais de fábricas que comercializam para a região central do país. O uso de trechos ociosos, aliás, é outro nó a ser desatado com a nova legislação. Chegou a hora de os empreendedores também analisarem oportunidades no Estado. O trem da História está passando.

OPINIÃO DA RBS

25 DE SETEMBRO DE 2021
MARCELO RECH

No controle da aeronave

Você está em um avião que passa súbita e violentamente por uma turbulência. Os passageiros se olham, alguns pensam coisas horríveis, até que se ouve a orientação da tripulação: “Apertem os cintos porque estamos atravessando uma área de turbulência”. Se tem alguém dando instruções, então há comando e controle.

Finalmente, ouve-se a voz do piloto informando que “acabamos de atravessar uma área de turbulência”. Para alívio de muitos passageiros, o comandante pode até discorrer sobre a segurança do avião nessas circunstâncias. O que a tripulação faz nessas horas é transmitir informações baseadas em técnica e equilíbrio, não muito diferente da prática do jornalismo em momentos de sobressaltos, como o que vivemos no início da semana, com a crise do mamute chinês Evergrande.

Tais momentos de inquietação, como se assiste também durante a pandemia, levantam uma questão: e se não houvesse jornalismo, se não houvesse repórteres, editores e comentaristas que, baseados em técnica, apuração da verdade e experiência não iluminassem as dobras das crises para orientar a população a navegar nesses mares revoltos? Ou para vigiar os poderes e levantar questões incômodas? Ou ainda para denunciar malfeitos e identificar e disseminar bons exemplos e boas causas? Muita gente pode não ter se dado conta, mas em todo o mundo esse jornalismo independente que divulga informações e orientações abalizadas baseadas no interesse comum está ameaçado pela gradual erosão de receitas.

Numa tendência global, mais de metade das verbas publicitárias digitais já é capturada por Google e Facebook, em uma concentração de poder jamais vista e que preocupa muitos países. No Brasil, segundo o Atlas da Notícia,16% da população já não conta com um meio de comunicação na própria cidade – ou seja, fica à mercê de boatos e rumores espalhados por aventureiros ou ingênuos. Em alguns casos, políticos e empresários locais são submetidos até mesmo a extorsões por bandoleiros digitais que se aproveitam de vácuos nasleis ou do medo e paralisia nas reações.

Em escala mundial, se não houver uma reversão da tendência, a desintegração do jornalismo independente e de qualidade vai produzir, em uma ou duas gerações, um caos informativo, no qual as versões dosfatosserão controladas por governos ou estarão a serviço da especulação, do fanatismo ou do ativismo puro e simples. Sem as barreiras de contenção do jornalismo profissional, crises financeiras sistêmicas – reais ou forjadas – criarão ondas de pânico e se tornarão um cataclismo de dimensões inimagináveis. Étambém por isso que muitos países, da Europa à Austrália, começam a aprovar legislações que obrigam as megaempresas digitais a negociar em bases simétricas a devida remuneração pelo uso de conteúdos jornalísticos nas suas plataformas. Antes que seja tarde demais, as tripulações estão reassumindo o comando das aeronaves.

MARCELO RECH

25 DE SETEMBRO DE 2021
J.R.GUZZO

Moderação sem censura

É realmente muito esquisito viver numa época em que a função de lutar pelas liberdades individuais passou a ser exercida, basicamente, pelo governo – e não pela sociedade civil, no grande leque de instituições que vai da mídia e da OAB até as entidades de representação profissional e os partidos políticos. Está acontecendo no Brasil de hoje, o tempo todo. A última manifestação desta anomalia é a batalha, travada nos tribunais e no Congresso, em favor da liberdade de expressão. Quem está a favor da liberdade é ogoverno. A maior parte daquilo que se chama de “forças democráticas” está contra. Pode?

 É assim que o governo, depois de tentar sem sucesso aprovar uma medida provisória, enviou ao Congresso um projeto de lei para limitar a interferência das grandes plataformas de comunicação na publicação de informações, opiniões ou notícias produzidas por seus usuários. A todo e qualquer instante, Twitter, Facebook, Instagram e demais operadores dessas redes eliminam o que não querem ver publicado. As plataformas chamam a isso de “moderação”. O nome real para o que fazem é censura.

Ninguém trabalha, no dia a dia da vida real nas redes, num exame criterioso do material enviado para publicação–o que acontece é a proibição e punição sistemáticas de tudo o que consideram de “direita” ou politicamente errado. As punições não se aplicam a conteúdos específicos; o sujeito é reprimido pelo conjunto da obra, ou porque a rede não vai com a cara dele, e sempre sem explicação nenhuma. A lei, para tudo, exige que se diga com precisão porque “A” ou “B” está sendo acusado de alguma coisa. Na internet não precisa. O projeto de lei do governo pede que seja aplicado na área o que está previsto naConstituição, no tocante aos princípios mais elementares da liberdade de expressão e de pensamento.

O texto é um hino à moderação. Não proíbe as plataformas de removerem publicações ou de suspenderem a participação de usuários, ou de “perfis”. Estabelece, somente, que o usuário seja informado com clareza sobre qual a regra que ele desrespeitou e que tenha a oportunidade de fazer uma defesa prévia. Fica expressamente proibido, no texto da nova lei, qualquer apoio à prática de crimes contra a vida humana ou a dos animais, ao terrorismo e ao tráfico de drogas, à discriminação racial ou de orientação sexual –epor aí vamos. 

Não ficou faltando nada. Ou melhor: só não fica aberta a possibilidade de fazer censura porque o censurado é bolsonarista ou defende a cloroquina. Não há nada no projeto que possa ser considerado como um incentivo ao ódio, à mentira ou ao totalitarismo. Como seria possível achar que alguma coisa nesse texto não é razoável? Mas pode estar certo de que os jornalistas, e junto com eles todo o universo social-democrata, equilibrado e intelectual, vão ficar horrorizados – a tentativa de defender a liberdade vai ser denunciada como um ataque à liberdade. É onde estamos. 

J.R. GUZZO

sábado, 18 de setembro de 2021


18 DE SETEMBRO DE 2021
LYA LUFT

Educação e utopia

Já escrevi, e repito, que sou de uma família de professores: meu pai, o pai dos filhos, agora um filho, eu mesma ex-professora de linguística, até descobrir que aquela não era minha vocação. Me dava alegria o contato com os alunos, me fazia sofrer toda sorte de regras, por mais justas que fossem. O tema educação me é muito próximo, muito querido, é mesmo fundamental, e começa com aquela educação em casa, onde as crianças aprendem limites e possibilidades, voos e raízes, compostura, gentileza, firmeza, discernimento - mesmo os menorzinhos. Aprendem por osmose (sem diálogos solenes) questões de respeito e afeto. Quando forem à escola, não serão os pequenos selvagens que os pais entregam para que os mestres os transformem em civilizados.

O professor deveria ser, na pirâmide geral, um dos funcionários mais bem pagos, porque dele dependem futuro, postura, preparo, eficiência e humanidade de jovens e crianças - e, não é metáfora, do país. O mestre deveria ter excelentes condições de trabalho, para continuar a se preparar, para acompanhar os alunos, dialogar, escutar, reconhecer como pessoas, não importa se têm quatro ou 18 anos. (E para que nos intervalos professoras não tenham de vender docinhos ou lingerie às colegas, e os professores fora do horário na escola não tenham de fazer bicos a fim de dar de comer aos filhos.)

Acredito, de maneira quase feroz, na necessidade de despertar, não só entre os responsáveis mas no povo em geral, a noção clara de que na educação devemos buscar excelência, o que não tem a ver com elitismo - todos temos direito ao melhor, que não significa dinheiro. Que a escola possa dar o melhor ambiente (basta que seja decente, sem ser um palácio), com os melhores professores, para que os alunos possam também descobrir, e cultivar, o melhor de si. 

Não é justo achar genial que se deve aprender brincando - não falo em criancinhas de maternal -, reproduzindo o hábito de muitas famílias em que não se pode dizer não ou dar um leve castigo (uma hora sem tablet já assusta) porque a criança, o adolescente, ficaria traumatizado. E assim os tratamos como pequenos ou grandes imbecis. Fazemos muita cerimônia com esse assunto: numa palestra, um professor me perguntou que motivo dar aos alunos para que estudassem. Minha resposta foi totalmente espontânea: "Para que não fiquem burros". Risada geral, aplausos, e até eu fiquei refletindo nisso: deixar de ser ignorante é, mais do que um dever, um direito de todos.

E não me digam que os governos estão falidos. Talvez estejam falidos o ânimo e a vontade geral, começando pelas autoridades, contagiando famílias, os próprios jovens e - por que não? - as crianças. Nada justifica que, mesmo empobrecidos e assustados, iludidos por cada vez mais novos projetos e comissões palavrosos e ineficazes, não se coloque a educação em primeiro lugar em qualquer orçamento. Gente preparada vai colaborar nas condições de vida, saúde, economia, na melhoria da existência de indivíduos, no progresso geral, e na administração decente da tão maltratada coisa pública.

De modo que, se consertarmos um pouco que seja nossas nada brilhantes cabeças, talvez a educação deixe de ser uma utopia.

Texto originalmente publicado em 25 de fevereiro de 2017

LYA LUFT