sábado, 26 de janeiro de 2019


26 DE JANEIRO DE 2019
LYA LUFT

Os desumanos


Uma amiga me pergunta se acho que os homens, no fundo, temem as mulheres. Não acho não, mas com certeza sermos diferentes provoca suspeitas às vezes irreparáveis.

Talvez na era dos trogloditas ou antes, essa criatura esquisita "que sangra todo mês e não morre", ou que de repente se retorce e dela brota um outro ser humano, deve ter causado muito assombro. Nunca saberemos. Estudiosos e entendidos falam até hoje desse estranhamento original. Teorias, desbundes, revoluções morais e imorais devem com certeza ter atenuado isso, ou liquidado de vez. Mas algo restou e ainda se revela seguidamente explodindo em violência.

Cada vez que ouço notícias de espancamento ou morte de mulheres - sim, feminicídio, usemos o termo já que ele existe -, me espanta como é possível que mulheres não débeis mentais nem fisicamente, suportem companheiros que ano após ano, dia após dia, as maltratam. E se (rarissimamente) conseguem uma ordem judicial de afastamento físico dele, o cavalheiro quase sempre a desrespeita: pois leis aqui são feitas para não se respeitar, e a punição quase inexiste. Algumas, que eu sei, depois de conseguirem afastar o truculento de casa, o chamam de volta porque não sabem viver sem ele. Dão chancela ao título de um livrinho que há muitos anos alguém me mostrou: Sou Infeliz, mas Tenho Marido.

O convívio com alguém grosseiro e violento pode ser a única saída que algumas divisam. Ou têm no fundo mais fundo algo de masoquista: apanho porque mereço, sou maltratada porque não valho grande coisa.

O assassinato de centenas, milhares de mulheres no Brasil me dá arrepios: me gela a alma saber que nos matam porque tomaram um porre, porque desejam outra, porque nossa presença, nossa voz, os irrita, porque estão de mau humor, perderam o emprego ou a amante, ou simplesmente, como disse certa vez um adolescente sequestrador de um amigo meu, "hoje a gente saiu de casa a fim de matar alguém". Quanto mais tempo - este meu tempo - passa, menos entendo muitíssimas coisas, entre elas está: o que falta em nossas leis, nossa cultura e moral, para que haja essa banalização de assassinatos de mulheres? O que sentem, pensam, os assassinos? Tive raiva, matei. Estava irritado, esfaqueei. Perdi o resto do salário no jogo, decapitei. Queria dormir e ela só reclamava, esquartejei.

Que chancela maldita dá permissão para esses horrendos fatos? Por qual parcela disso somos responsáveis, nós, mulheres, nós, vítimas? Humildade abjeta, solidão terrível, inércia, alienação, uma eterna culpa vil que nos faz oferecer o pescoço, o coração, ou a vida?

Não sei. Nunca entenderei. Mas não são só as leis profundamente falhadas, a segurança incrivelmente relapsa, a escolha trágica de parceiros monstruosos, que permitem esses crimes: alguma coisa em nós, emocional, cultural, psíquica, ancestral, nos faz vitimas fáceis?

Não sei. Não sei se quero saber. Mas, hoje, quando liguei a TV nos noticiários e mais uma vez, como quase todos os dias, ouvi falar de um assassinato de mulher por seu parceiro, não havia nada a fazer senão vir ao computador e escrever qualquer coisa para desabafar, para esbravejar, clamar, partilhar. O que há conosco, humanos tão desumanos?

LYA LUFT

26 DE JANEIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Tango argentino


Não lembro quem me disse, se foi um ex-namorado, se foi uma astróloga, se foi minha mãe (vai ver ninguém me disse, deduzi sozinha): "Você é um tango argentino". Naturalmente, a frase estava relacionada ao meu jeito de lidar com as emoções.

Elogio ou crítica? Acho que era uma crítica travestida de elogio. Alguém estava dizendo que eu era exagerada, dramática, densa - mas antes isso do que ser uma songamonga, concorda? Um tango é um tango. Inolvidable.

Não faz muito tempo, estive em Buenos Aires e assisti a dois espetáculos de tango: um mais tradicional, com bailarinos formidáveis e números de tirar o fôlego (Rojo Tango, no hotel Faena) e outro mais alternativo, um grupo musical (Orquestra Fernandez Fierro), composto por 12 tipos com pinta de roqueiros bárbaros, neanderthais manejando violinos e bandoneons ao lado de uma jovem intérprete que cantava com o nervo exposto, todos eles fazendo do tango não apenas uma declaração sofrida de amor, mas uma reivindicação social de uma amplitude quase presunçosa - o tango como expressão máxima do que nos transforma em fêmeas e machos, do que nos altera, nos encoraja, nos arrebata. 

O tango não só como manifestação sexual, mas também de cidadania, o tango como propulsor de uma mudança urgente que inicia na corrente sanguínea e acaba sei lá onde, acho que simplesmente não acaba: um tango puxa o outro.

Estava eu ali, sentada no escuro, em uma sala aconchegante e sofisticada no primeiro espetáculo, regada a vinho de muitos pesos, e em outra noite numa sala improvisada, sem ar condicionado numa noite fria, um muquifo com vinho barato e atmosfera perfeita para receber os aventureiros que transformam o mundo. Em cada um daqueles ambientes antagônicos, o tango seduzia, injetava sensualidade, dramaticidade, o inevitável chamamento ao coração. Como se dissesse: ei, você aí, não é hora de pensar. Sinta! Com força, hombre.

"Você é um tango argentino", lembrei. E concordei, em silêncio. Mas será que ainda sou um tango? Já chorei, acertei o passo, errei o passo, me iludi, me frustrei, insisti, fiz besteira, já dancei o que tinha que dançar - e fui o par perfeito para outros preencherem suas biografias com suor e lágrimas também. Somos todos amadores. Os que amam.

Hoje o tango não representa mais o que sou. Drama combina com palco, não mais com minha vida emocional. Adiós, tango. Passadas mais leves, rostos menos tensos, menos sangue, mais jinga, mais bossa, mais molecagem, mais sacanagem, mais hoje, menos eternidade. O vestido vermelho, o salto alto e o carão podem até ser usados numa mise-en-scéne, mas não durante o jantar de uma segunda-feira. Agora não saio mais da plateia. Prefiro ficar de mãos dadas com a paz, admirando os intensos protagonistas do tango a uma distância segura.

MARTHA MEDEIROS

26 DE JANEIRO DE 2019
CARPINEJAR

Chuva de arroz


O que tem no saleiro? Sal, dirá o mais apressado. Apesar da obviedade, o saleiro guarda grãos de arroz, que tiram a umidade, desfazem as bolas salinas e facilitam a saída do conteúdo.

Poucos percebem a importância do arroz para salgar a comida e não deixar ninguém pagando o mico de bater o pote histericamente na mesa, de um lado para o outro, a fim de desentupi-lo. Ele é essencial, mas invisível. Não obtém a simpatia, mas segura a barra.

Na relação, sempre destacamos o sal da vida, o sonhador, o louco, o visionário, o que não se limita à realidade. Não valorizamos em nada o arroz, aquela figura que enquadra o par, inspirando-o a colocar os pés no chão e concretizar os seus projetos um de cada vez.

Longe do arroz, o sal não sai. Desfalcado de uma pessoa mais objetiva e prática, o casamento não funciona, não será realizada coisa alguma. Haverá apenas rompantes e grandes ideias vazias. As fantasias desaparecerão com o tempo como meros impulsos.

O sal tempera a convivência com a sua criatividade e ousadia. O arroz possibilita que o sal crie condições para que venha à tona e se torne popular.

O sal inventa e não calcula as consequências. O arroz executa planilha Excel de todo gasto e evita dívidas. O sal prefere delirar; o arroz, pensar dentro do possível. O sal privilegia a intensidade; o arroz, a estabilidade. O sal quer o sucesso rapidamente, o arroz monta um plano de ação a longo prazo. O sal é a aventura, o arroz é a serenidade. O sal é destemido, o arroz é cauteloso. O sal é a superfície, o arroz é a base.

Os preconceitos recaem sobre o arroz, visto negativamente como o chato do casal. Tanto que a esposa ou o marido realista é chamado ironicamente pelos demais de "sem sal", já que ocupa o papel difícil da verdade dentro de casa e não esquece o lado ruim de qualquer quimera. Põe defeitos, previne os riscos e estraga o prazer do momento com conversas sérias sobre a longevidade de uma nova panaceia.

Porém, desprovido do arroz, o sal não será conhecido, não chegará à luz do sol, não atiçará a gula de ninguém.

Parece que brilhante é só o sal, jamais o arroz, que surge como um freio da espontaneidade.

O que não se pode esquecer é que, na saída da igreja, os noivos recebem uma chuva de arroz. Um sinal de que amor é esforço e de que a sua sorte depende de quem trabalha e refina o fluxo na sombra.

CARPINEJAR

26 DE JANEIRO DE 2019
PIANGERS

Seu filho não precisa de um celular

Sei que é difícil de imaginar uma família hoje em dia que não tenha cada um de seus membros olhando para uma tela pequena de telefone, mas existiu uma época em que não tínhamos essa tradição. Acredite se quiser: houve um tempo em que as crianças jogavam bola na rua e soltavam pipa (procure no Google), mas isso faz décadas. Eu mesmo, quando era pequeno, já ouvia minha mãe dizer que "antigamente que era bom, as crianças brincavam no meio da rua". O meio da rua era perigoso, mas cresci jogando bola em uma quadra na praça do bairro. Hoje em dia as crianças crescem jogando futebol no videogame.

Fui a um encontro social, dia desses, parabenizar uma amiga que está grávida. Levei fraldas de presente, como se fazia na minha época, mas a futura mamãe me disse que hoje em dia a moda é outra: suporte para tablet. Ela já tinha ganho um suporte de tablet para o carrinho e outro para o encosto do banco do carro. Fiquei chocado. A criança nem nasceu e já tem uma programação intensa planejada, Patati Patatá no carrinho, Galinha Pintadinha indo pra creche.

Fui olhar na internet e existem capas infantis para tablet. Diz o anúncio que são mais "fáceis de segurar por crianças de menos de dois anos". Navegando mais um pouco, descobri que tem até penico com tablet, pra criança fazer cocô sem desgrudar do YouTube Kids.

Em restaurantes, pobres pais dando de comer na boca de crianças grandes, que estão muito ocupadas jogando no celular. Nas piscinas, crianças com tablets à prova de água. Crianças pequenas, que não sabem nem digitar ainda, apertam o botão do microfone e falam para o celular o que querem assistir. E funciona! Entendo os pais que acham isso bonitinho, "meu filho é um gênio da tecnologia" devem pensar. Como aquelas gracinhas de vestir criança com roupa de velhinho ou fingir que o filho está dirigindo o carro. Mas são crianças e deveriam fazer coisas de criança, mas agora estão lá, viciadas no Luccas Neto e implorando por bonecas LOL.

Não sei exatamente qual será o impacto de tanta tela no futuro dos pequenos, mas sei qual é o impacto no presente: elas estão mais imediatistas. Diferente da televisão, por exemplo, no celular eles têm tudo o que querem na hora que querem. Já clicam no "PULAR ANÚNCIO" do YouTube. Já assistem a um vídeo navegando por outros vídeos, a que vão assistir em seguida. Assim, exigem que a vida real seja imediata também. Se tornam impacientes. É por isso que seu filho, às vezes, grita "SUCO!" quando está com sede. Quer o suco agora! Pra ontem! Sem "por favor" nem "obrigado", que no celular não tem essas frescuras.

Seu filho não precisa de um celular. Seu filho precisa de você. De vez em quando, com a sua companhia e tempo controlado, um vídeo ou jogo no telefone é divertido. Mas ainda não inventaram nada mais legal do que a vida offline.

PIANGERS

26 DE JANEIRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

Com quem conversamos?

Quem nunca errou ao usar seu celular? Os puros absolutos podem jogar a primeira pedra nos pecadores do vale da morte da etiqueta digital. Luciana Caran e Thais Herédia lançaram o Manual dos Pecados Digitais, com ilustrações de Maria Eugênia Longo. O texto é uma arma eficaz para que cada um de nós pare e pense a respeito dos exageros e grosserias da era digital.

O texto é curto e utilíssimo. Parece um alerta sobre uma velha parábola dos dois jovens peixes que, ao serem inquiridos por um mais velho sobre como estava a água, perguntam estupefatos: "O que é água?". A água é aquilo do qual não mais nos damos conta, de tão natural e onipresente. A água é o vício deformador que o mundo digital trouxe sem que as pessoas percebam. Perdemos todas as noções e os limites no uso do celular.

Não irei descrever as muitas e boas reflexões do texto. As autoras analisam tanto as infrações éticas e desvios psicológicos causados pelo uso inadequado dos smartphones quanto algo que poucos estão conscientes: lavam as mãos e depois ficam manipulando na mesa do restaurante uma tela infectada. Único trecho do livro que revelarei: "Cada aparelhinho pode carregar até 23 mil fungos e bactérias, entre outras nojeiras. Uma única "sujeita", a Staphylococcus aureus, aparece em quase metade dos smartphones no Brasil, segundo uma pesquisa da Unicamp. Imagine que as pessoas tocam os lábios e a boca até 25 vezes em um hora. Eca".

Em comportamentos errados não vale o argumento histórico ou sociológico, do estilo "sempre foi assim" ou "todo mundo faz assim". O bom Aristóteles acredita na prática da virtude. O hábito é, segundo o filósofo, uma segunda natureza. Usos podem ser criados e eliminados. O celular é um objeto que lhe pertence. Deveria servir ao dono. Examine qualquer restaurante e retome a racionalidade e a humanidade: duas ou mais pessoas ao redor de uma mesa, todas fixadas em uma tela ignorando os que estão ali. É uma patologia, de verdade, um desvio, um vício terrível que esvazia o encontro.

Não foi apenas o livro Manual dos Pecados Digitais que me trouxe à tona a reflexão sobre tais coisas. No final do ano, por imbecilidade absoluta minha, deixei o celular na poltrona do avião a caminho do Deserto do Atacama. Passei quase 10 dias sem o aparelho. Senti falta, sim. Fiz fotos com meu tablet, porém, reconheço, li mais e contemplei mais a paisagem do que faria normalmente. Acima de tudo, percebi que o impulso de mandar fotos bonitas de lugares que conheci para muitas pessoas era algo a ser muito reduzido. Observe que você envia mensagens para pessoas que nunca reenviam nenhuma. Pense! Todos que recebem o fazem com alegria e desprendimento? Quem nunca responde estaria irritado ou até invejoso das suas experiências? Nos dois casos, valeria a pena enviar para tal pessoa? Quem são, de verdade, as pessoas mais importantes que realmente se alegram com você? É pouco provável que sejam muitas.

No caso específico do celular, falta mãe na formação. Não é machismo: estou me referindo à figura materna, que pode ser exercida pela mãe, pelo pai, avós ou quaisquer responsáveis diretos na construção do aparelho psicológico de um indivíduo em seus anos formativos. Era essa "mãe" que insistia na duríssima tarefa de educar a criança: não fale de boca cheia, não use palito de dentes, diga obrigado... À custa de muitas repetições e reiterada insistência, muitas "mães" foram vitoriosas na sua resiliência incomparável. Depois, adultos, nosso superego interioriza essa voz "maternal", estabelece os limites. O celular parece ter ficado fora dessa lista de virtudes a serem estimuladas, desse estímulo formativo, pois contaminou as "mães" e os filhos ao mesmo tempo.

Ver mensagens a todo instante enquanto você está em um jantar com alguém é, sim, sempre, grosseria forte. Se você for um obstetra, isso será mais compreensível. Na maioria dos casos, é pura e absoluta falta de educação. Fazer o que todos fazem é repetir o senso comum e nunca ser original pela gentileza. Em um mundo onde a busca de um diferencial é algo importante, imagine o impacto em um jantar de negócios ou afetivo de plena atenção na parte envolvida.

De novo e mais uma vez: o mundo digital oferece muitos bons e úteis recursos para nossas vidas. Podemos aproveitar muitos. O resto é um vício, um engodo que provoca a falta de foco, um dos grandes entorpecentes da mente contemporânea. Celular virou um veneno de bolso, deteriorando de forma lenta as relações, nublando a imagem de uma pessoa objetiva e até matando de verdade quando usado no trânsito.

A pessoa com quem você está jantando não se importa? Minhas advertências são coisas de gente mais velha que ainda acha que comunicação deve ser olho no olho? Pode ser, mas resta minha pergunta curiosa. Se você não precisa estar com a pessoa que está sentada a sua frente, se fica com terceiros e quartos em mensagens e imagens e se dá ao aparelho a parte mais expressiva do seu tempo, por que sair? Por que estar com alguém que não está ali? Por que convidar alguém para torná-lo apenas testemunho silencioso da ação de polegares frenéticos? Por que estar com quem você, de fato, não estará?

A comunicação humana é complicada, e o convívio um grande desafio. Entendo quem prefira a solidão ou o isolamento. Mas, como placebo, o celular ainda fica devendo muitas coisas. Ou simplesmente envelheci e o placebo seriam as pessoas reais? Pode ser. Já vivi bastante: minhas melhores lembranças afetivas nunca estiveram em um grupo de WhatsApp. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


26 DE JANEIRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

SOLIDÃO UNIVERSAL

SELEÇÃO NATURAL, CATACLISMOS, MUTAÇÃO: MUITA COISA ACONTECEU PARA NOS DEIXAR ASSIM COMO SOMOS

Estamos sós no Universo. Ainda que exista vida num planeta distante, encontrarmos um ser semelhante a nós, com quem sejamos capazes de nos comunicar, é altamente improvável.

Os hominídeos que nasceram nas savanas da África, há 6 milhões de anos, foram frutos de adaptações a mudanças ambientais e eventos aleatórios que jamais se repetiriam em outro corpo celeste na ordem cronológica em que ocorreram aqui.

Para não recuarmos até as intempéries envolvidas nas origens da vida, há mais de 3 bilhões de anos, vamos partir de uma época muito mais recente, quando surgiram os mamíferos, conforme descreveram os paleontólogos Stephen Brusatte, da Universidade de Edimburgo, e Zhe-Xi Luo, da Universidade de Chicago, numa revisão para o Scientific American.

As primeiras criaturas semelhantes aos mamíferos não esperaram a extinção dos dinossauros para nascer (como se imaginava), surgiram há cerca de 210 milhões de anos, época em que os cinco continentes ainda estavam unidos, formando a Pangeia.

Algumas dezenas de milhões de anos antes, solavancos nas placas tectônicas tinham provocado erupções simultâneas de vulcões espalhados pela Pangeia. A poluição atmosférica resultante causou uma extinção em massa que quase acabou com a vida na Terra.

A seleção natural eliminou os anfíbios e répteis gigantes que dominavam o mundo. Tartarugas, sapos, crocodilos, dinossauros e os primeiros ancestrais dos mamíferos se aproveitaram do vazio deixado pelos antigos dominadores, para ocupar novos nichos ecológicos.

Esses mamíferos primordiais já apresentavam características que reconhecemos familiares: dentes de leite na infância, saliências e sulcos nos molares, pelos no corpo, musculatura mastigatória robusta e cérebros grandes.

Eram insignificantes comedores de insetos, pequenos como os ratos, que mantinham hábitos noturnos, cuidado providencial para escapar dos crocodilos e dinossauros que não paravam de aumentar de tamanho, na vizinhança.

Há 200 milhões de anos, um cataclismo monumental fraturou a Pangeia em diversas áreas. No final, os cinco continentes estavam separados.

A atividade vulcânica causou nova extinção em massa, oportunidade aproveitada pelos animais que souberam ocupar os espaços abandonados pelos que se foram; entre eles, os dinossauros e os mamíferos.

Cerca de 145 milhões de anos atrás, uma variação anatômica foi decisiva para a sobrevivência dos mamíferos: o encaixe dos dentes entre as arcadas superior e inferior, inovação que ampliou a possibilidade de alimentação mais variada.

Ao redor de 100 milhões a 120 milhões de anos, outra surpresa: apareceram as angiospermas, plantas que dão flores e frutos acessíveis a animais com a dentição apta para mastigá-los.

Apesar da performance ecológica razoável, esses pequenos mamíferos chegaram perto da extinção por culpa dos dinossauros, brutamontes insaciáveis, acostumados a devorar tudo o que viam pela frente.

Foi quando um asteroide de 180 quilômetros de comprimento cismou de cair no México, há 66 milhões de anos. O impacto foi tão brutal que abriu uma cratera de 1,5 quilômetro de profundidade.

O choque provocou terremotos, tsunamis com ondas de mais de cem metros e, como sempre, a erupção dos benditos vulcões. Digo benditos porque os dinossauros não resistiram, sobreviveram apenas os ancestrais que dariam origem às aves. Azar deles, sorte dos mamíferos que se espalharam e se diversificaram num mundo livre daqueles mastodontes.

No Estado norte-americano do Novo México, foi desenterrado o esqueleto de um mamífero que viveu há 63 milhões de anos. É provável que se trate do primata mais velho já descrito, ancestral longínquo dos que desceram das árvores nas savanas da África, há 6 milhões de anos, e começaram a andar em pé com a coluna ereta.

Imagine, você, que exista vida noutro planeta. Qual a probabilidade da repetição desses e de milhares de outros eventos ao acaso que eliminaram tantos competidores, para que nós estejamos aqui, hoje?

Vulcões em erupção, placas tectônicas que se chocam nas profundezas, continentes que se separam, árvores que dão frutos, um asteroide que provoca terremotos, tsunamis, incêndios e poluição ambiental astronômica. Faltasse um desses fenômenos, não haveria ninguém para contar essa história ou compor sinfonias.

São tantas e tão complexas as variáveis para explicar nossa existência que fica mais fácil atribuí-la a um ser poderoso que tudo criou num passe de mágica.

DRAUZIO VARELLA

26 DE JANEIRO DE 2019
J.J.CAMARGO

NÃO MORRER ANTES DE MORRER

Exceto naqueles momentos de grande introspecção em que consideramos que uma pausa no mundo é a melhor terapia, a solidão e seus silêncios simbolizam o isolamento involuntário, e amargura e ressentimento as suas crias obrigatórias.

Quando um jovem se confessa destruído por uma separação inesperada, e se imagina original no anúncio de que nunca mais amará ninguém, mesmo com as infinitas possibilidades de conquista, penso sempre em viuvez na velhice, quando não há mais ânimo, tempo, saúde ou charme para recomeçar o itinerário da sedução.

Só então se percebe que a nossa vida está presa por amarras muito frágeis. E, de tanto ouvir os idosos se lamentarem, entendi o quanto é verdadeira a sua súplica: "E Deus me ajude que eu morra antes da minha velhinha". A crescente e festejada longevidade tem produzido esses pares avulsos, em que um tem ao outro e a ninguém mais. Comove a percepção de que não importa quantos filhos tenham tido, quem se aventurar a viver demais descobrirá a altura do muro da autonomia, construído pelos tijolos da indiferença, e todos com vidas próprias terão suas justificativas sinceras, porque afinal nem todo dia é Natal.

Chega-se, então, ao ponto de buscar um lar onde os velhos descartados possam compartilhar suas mágoas e multiplicá-las com a repetição de suas histórias de abandono.

Atul Gawande, um cirurgião indiano que sempre viveu em New York e acompanhou com proximidade e afeto a dolorosa despedida do pai, narra no seu maravilhoso livro Os Mortais a saga dessa população, cada vez mais numerosa e exigente.

A proliferação dessas casas de repouso e a inevitável competição entre elas têm impulsionado a criação de modelos de convívio mais digno, evitando que se transformem em depósito de moribundos à espera da libertação. Replicar o ambiente doméstico com a instalação de uma coisa simples, como uma cozinha independente, já é capaz de restaurar o interesse pelo cuidado do seu próprio cantinho, e com isso dar algum sentido ao despertar pela manhã.

Outros diretores tiveram a ideia de levar alguns animais, cujos cuidados serviriam para mantê-los ocupados. Foi assim que pássaros, cães e gatos passaram a ter função numa grande clínica com dezenas de unidades espalhadas pelos EUA.

Um velhinho identificado como Mister L perdeu a esposa depois de 65 anos de casamento. A depressão que se seguiu era previsível, mas todos ficaram muito preocupados depois de um acidente bizarro em que ele desceu um barranco com a camionete. A polícia sugeriu a possibilidade de tentativa de suicídio, e a família, impossibilitada de vigiá-lo o tempo todo, decidiu interná-lo em um desses lares modernos. Os primeiros dias foram terríveis, porque ele não aceitava comida, nem banho, nem sair da cama. 

Parecia determinado a acelerar a chegada da morte. Então decidiram colocar uma gaiola com dois periquitos na mesinha de cabeceira. No dia seguinte, ele, que se mantivera virado para a parede durante uma semana, mudou de decúbito para ficar de frente para os passarinhos. Depois, passou a comentar com a enfermagem as peripécias dos animaizinhos e, na semana seguinte, quando já se sentara para comer, comentou que os pobres cães não podiam ficar encerrados em casa, e passear com eles no quintal era uma coisa que ele poderia fazer para ajudar.

Dois meses depois, estava apto a voltar para casa. A ideia da morte tinha sido transferida. Alguém lhe devolvera a única coisa realmente indispensável à sobrevivência de um solitário: a utilidade.

J.J.CAMARGO

26 DE JANEIRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Quando me aposentar

Quando me aposentar, lerei todos os livros que acumulei. Viajarei para inúmeros lugares. Aprenderei a tocar um instrumento. Estudarei uma língua nova. Vou me dedicar à família, aos amigos, a uma associação protetora de sei lá o quê.

Quantas vezes vocês já escutaram as frases do parágrafo acima, ditas por inúmeras pessoas? O espírito dessas falas é: o tempo livre da aposentadoria será a redenção da vida tediosa que levamos. O sacrifício é agora, mas lá na frente será minha vez.

Essas são as promessas, mas como é na prática? Vi muita gente conseguir inaugurar algo novo em sua vida na maturidade. Mas para cada um dos que se reinventaram, vejo 10 deprimidos na frente da TV, sem conseguir fazer nada do que prometeram a si mesmos. Como só sabem trabalhar no seu ofício, estão sem missão, vagam avulsos procurando um encaixe impossível. Como adquiriam significação apenas da identidade profissional, sentem-se esvaziados, já não sabem quem são.

Entre aqueles que alcançaram seu sonho e os que não, a diferença costuma ser simples: quem começou antes, quem se preparou para o porvir é que chega lá. Aqueles que acreditaram que o "paraíso" da aposentadoria era automático, bastava sair das obrigações e da rotina, se dão mal.

Vejamos os leitores do futuro. É óbvio que depois de anos afunilando o cérebro lendo Twitter e texto de Facebook, ninguém consegue ler um livro. Depois que o cano do entendimento estreitou, não passa nada complexo. Para suportar a arquitetura de um romance, de um ensaio, é preciso a musculação semiótica de toda uma vida. Não se aprende a ler de um dia para o outro, e se pode desaprender caso não haja treino.

O mesmo com as viagens, se você não sai de casa, perde o espírito de aventura, a curiosidade, a coragem. Viajar é uma ciência de difícil doma. Vamos nos desafiando cada vez mais, indo mais longe, suportando choques culturais maiores. Quem postergar as peripécias só conseguirá passear no óbvio, junto a pessoas ainda mais óbvias.

Quem deixar para cultivar amigos e aumentar o leque de vínculos quando tiver tempo dará com a cara no muro. A vida social não é fácil. É a arte de decifrar olhares, de perceber as mil sutilezas, de sacar os subentendidos, que aperfeiçoamos a cada dia, e mesmo assim damos mancadas. Imagina quem começar tarde, a inépcia sabotará todas as abordagens.

Caríssimos, se há algo que descobri nesta existência é que o futuro começa agora. Quando chegar esse momento de maior liberdade, é preciso estar treinado. Não jogue seus anseios para uma hipotética vida futura, construa esse amanhã desde já. Sonhos precisam de adubo, de cuidados. Nada florescerá se não for cotidianamente regado.

MÁRIO CORSO


26 DE JANEIRO DE 2019
DUAS VISÕES

SERIA COMO ENRIQUECER PERDENDO DINHEIRO

Falar em crescer preservando meio ambiente é o mesmo que dizer que vai enriquecer perdendo dinheiro.

A questão do crescimento tem sido amplamente debatida nos últimos 50 anos. Se crescer constantemente fosse bom, os gigantes teriam mais saúde do que os outros e não menos, como se observa na vida. Crescimento é um período importante no desenvolvimento de qualquer sistema. O mais importante, entretanto, é se desenvolver e para isso não é necessário crescer, e sim se transformar. A agricultura brasileira cresceu muito nesses últimos anos, mas pouco se desenvolveu. O faturamento com a exportação de soja aumentou, a área plantada aumentou, mas os produtores continuam endividados, e muitos, quebrados. 

Como isso é possível? Simples, produzir muito numa propriedade não significa estar lucrando, pode até estar perdendo dinheiro. Depende do custo de produção, que pode até ser maior que o faturamento. O que interessa é o lucro, que é o que sobra depois de descontar os custos. Eu posso até diminuir minha área de plantio e ainda assim aumentar meu lucro. É o que fazem os agroecologistas, que baixam seus custos, aumentam o valor de seu produto, preservam a natureza e ainda por cima melhoram sua terra, ao invés de destruí-la com o passar do tempo.

Crescer é um processo de economias subdesenvolvidas que sempre destroem o meio ambiente. Economias inteligentes aprimoram, agregam valor a seus produtos, se desenvolvem sem crescer e sempre preservando sua maior riqueza, o meio ambiente.

O trabalho técnico é possivelmente o mais importante para uma nação. Os técnicos aprendem suas habilidades e executam com precisão. Geralmente, o trabalho técnico é eficaz porque é focado e restrito a uma pequena área. Essas pessoas movem o mundo, mas nem por isso são capazes de planejar e interpretar o mundo. Falta a elas a visão do todo e das relações. Tendem a gostar de explicações fáceis, às vezes superficiais.

Desenvolvimento é uma questão complexa para a qual é necessária uma visão ampla da vida. Não é melhor que a visão restrita, é apenas diferente e necessária quando se lida com milhares de variáveis e não com meia dúzia. Todas as visões são importantes para a sociedade, cada uma no lugar correto.

Desenvolver é um processo de complexidade máxima que envolve educar de forma ampla e crítica, para produzir pessoas criativas e independentes. Também envolve sensibilidade social e cultural. O respeito à diversidade é essencial porque ela é nossa maior riqueza. Não só a biodiversidade, mas a diversidade de crenças, de línguas, de costumes, de visões de mundo. Essa é a principal riqueza dos países desenvolvidos.

Educar para o desenvolvimento sustentável é promover a diversidade, o respeito, a solidariedade e a paz. Pessoas educadas entendem a importância de respeitar todos os tipos de vida, ainda mais no país que tem a maior biodiversidade do mundo.

O novo presidente não parece ter essa visão ampla. Caso tivesse, diante da oportunidade ímpar de fazer uma palestra de abertura em Davos, sobre o que pretende fazer, não falaria menos de 10 minutos nem poria, nesta fala minúscula, coisas inconciliáveis como crescimento e preservação do meio ambiente.

FRANCISCO MILANEZ Arquiteto e biólogo, presidente da Agapan 

26 DE JANEIRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

TRAGÉDIA ANUNCIADA


O rompimento de uma nova barragem deixa evidente que o país precisa agir com mais rigor de forma preventiva, sem se limitar apenas a reparar danos de fatos previsíveis

O rompimento de uma nova barragem de rejeitos industriais, desta vez em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, é a confirmação de uma tragédia anunciada. Pouco mais de três anos depois do desastre de proporções inéditas registrado em Mariana, também em Minas Gerais, a repetição do fenômeno numa estrutura de menores proporções, mas preocupante desde o início pelo elevado número de desaparecidos, reafirma o quanto o país continua vulnerável sob o ponto de vista ambiental. Não é admissível que se resolva esperar pela repetição de fatos semelhantes para, só então, começar a agir preventivamente.

Desde o registro do maior desastre ambiental da história brasileira, não faltam alertas sobre a possibilidade de novos casos. De maneira geral, porém, quem tem algum poder para evitar esse tipo de dano prefere correr o risco de acidentes a agir preventivamente. A própria Vale do Rio Doce, responsável pelo mais recente vazamento, é uma das controladoras da Samarco, que, em novembro de 2015, foi responsabilizada pelo vazamento no qual 19 pessoas morreram sob milhões de metros cúbicos de lama. Na época, milhares de moradores ficaram sem suas casas e houve prejuízos ambientais irreparáveis, no solo e em rios da região, incluindo o Doce.

Desde Mariana, cujos danos ainda não foram devidamente ressarcidos, não faltam alertas sobre o risco de novas ocorrências. Um levantamento recente da Agência Nacional de Águas (ANA) já advertia que dezenas de barragens no Brasil estão vulneráveis e podem apresentar riscos de rompimento. A ameaça se mantém justamente pelo fato de, normalmente, problemas como rachaduras e infiltrações serem minimizados. Os responsáveis por esses complexos querem despender o mínimo de recursos e os organismos de fiscalização, por razões nem sempre devidamente esclarecidas, não exercem o seu papel com o rigor necessário.

O presidente Jair Bolsonaro demonstrou consciência da repercussão do fato ao determinar, de imediato, a instalação de um gabinete de crise no Palácio do Planalto e no Ministério do Meio Ambiente para acompanhar a situação. O rompimento de uma nova barragem deixa evidente que o país precisa agir com mais rigor de forma preventiva, sem se limitar apenas a reparar danos de fatos previsíveis. Os brasileiros não podem se conformar mais com sinais tão expressivos de imprevidência em relação às pessoas e ao meio ambiente.


26 DE JANEIRO DE 2019
INFORME ESPECIAL

OS RECADOS DA GM

O comunicado fixado no quadro de avisos das fábricas da GM, alertando que a operação atingiu "um momento crítico que exige sacrifícios de todos", não tinha apenas os funcionários como destinatários. A mensagem assinada pelo presidente da General Motors (GM) Mercosul, Carlos Zarlenga, também era um recado para Donald Trump e Jair Bolsonaro.

Nos Estados Unidos, a montadora tem sido alvo constante de críticas. Ameaçando aumentar impostos de importação, Trump joga duro e tenta forçar as empresas automobilísticas com fábricas no Exterior a voltarem a produzir no país. O corte de 8 mil funcionários no fim do ano não ajudou a melhorar a relação com o governo. Ao anunciar agora que pode rever sua posição na América do Sul, a companhia faz um aceno discreto pela paz.

No Brasil, a montadora sinaliza que vai atrás de apoio do novo governo e incentivos fiscais para impulsionar os lucros. Representantes da montadora foram vistos circulando pelo gabinete de transição instalado no CCBB, em Brasília. Pelo desenrolar dos fatos, é fácil concluir que não conseguiram o que queriam. Em São Paulo, Zarlenga avança agora para conseguir redução de impostos.

Das cinco unidades no Brasil, a fábrica de Gravataí é considerada a mais protegida contra eventuais turbulências. É da linha de produção gaúcha que sai o modelo Onix, atualmente o carro mais vendido no país. Com 389,5 mil veículos comercializados em 2018, uma fatia de mercado que gira em torno de 15%, a montadora é líder nacional há pelo três anos.

Mas, sem dúvida, uma eventual saída do Brasil seria traumática para Gravataí. Além de gerar em torno de 6 mil empregos diretos e indiretos, a companhia é o motor da economia na região. No ano passado, 40% de todo o retorno de ICMS que a prefeitura recebeu estava diretamente ligado à produção da GM e de seus sistemistas, algo equivalente a R$ 70 milhões.

A repercussão financeira, claro, é muito maior do que esse valor. Levando em consideração o efeito dos salários na economia local e a geração de serviços na cidade, como hospedagem e alimentação, a cifra se multiplica. A estimativa da Secretaria da Fazenda de Gravataí é de que o valor gerado pela presença da GM no município tenha sido de R$ 2,5 bilhões em 2018.

Um resultado tímido se comparado a 2014, antes da crise, quando chegou a R$ 4,1 bilhões, mas, mesmo assim, indispensável. A segunda maior empresa instalada na cidade, por exemplo, não gera nem 15% desse valor. (Cadu Caldas)

TULIO MILMAN

domingo, 20 de janeiro de 2019



19 DE JANEIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Desculpe por chorar

Era janeiro e fazia muito calor. O Instituto Ling recém havia sido inaugurado, e eu estava excitada para conhecer um dos pontos culturais mais bacanas de Porto Alegre. Então, fui até lá para assistir a Ayres Potthoff (flauta), Daniel Wolff (violão) e Rodrigo Alquatti (cello) no show Beatles em Concerto, num fim de tarde sofisticado, divertido e musicalmente impecável. Tudo sob a chancela do Porto Verão Alegre, esse mesmo que segue firme e forte.

Pois bem. Durante o espetáculo, um dos integrantes pediu licença para abrir um parêntese na playlist de sucessos da banda inglesa. Ele queria tocar uma música que seu pai, recentemente falecido, havia composto. Diante do consentimento da plateia, pediu: "Vou tentar tocá-la até o fim, mas me perdoem caso eu me emocione". E tocou belamente, com a emoção controlada, ainda que visível.

Na hora, pensei: por que raios a gente pede desculpas por se comover? Lembrei de algumas pessoas que já caíram em prantos na minha frente escondendo o rosto, envergonhadas, e as compreendo, pois também tenho vontade de sumir quando choro diante dos outros. Os psicanalistas, acostumados a debulhações diárias em seus consultórios, poderiam responder: quando acontecem, seus pacientes costumam se desculpar?

Ninguém tem culpa alguma de sofrer, ninguém tem culpa por se sentir frustrado, ninguém tem culpa por sentir saudade, ninguém tem culpa por não conseguir reagir a seco às suas desordens internas. Deveríamos, sim, é nos sentir orgulhosos por não frear nem disfarçar nossas emoções, por permitir que elas extravasem, autorizando os outros a testemunharem esse momento em que estamos tão desprendidos, sendo tão humanos.

Curiosamente, o contrário não envergonha. Mais do que nunca, as pessoas têm sido grosseiras, estúpidas, deselegantes no trato, e não lhes bate um pingo de remorso, nenhuma inibição. Pedir desculpas, nem pensar.

Então por que pedir perdão por algo tão bonito, que é estar emocionado?

Acho que a pessoa emocionada se desculpa pelo constrangimento involuntário que causa aos outros. Sabe que a plateia, seja ela formada por várias pessoas ou por uma só, se sente fragilizada diante de uma pessoa comovida. Ao testemunharmos alguém em situação tão delicada, não sabemos como agir, o que dizer. Quando alguém chora à minha frente, pareço uma pateta, não sei se abraço, se finjo que não está acontecendo nada, se começo a chorar também. Quase sempre começo a chorar também.

É por isso que certas pessoas pedem desculpas pela própria comoção. Sabem que a emoção exposta não deixa ninguém indiferente, exige uma reação, e eles não querem dar trabalho. Pois é, os sentimentais têm dessas nobrezas.

MARTHA MEDEIROS


19 DE JANEIRO DE 2019
CARPINEJAR

Farofada digital

Você passa uma semana de folga na praia e nem aproveita o mar, nem se doura ao sol, nem joga frescobol, nem conversa com ninguém, nem caminha na areia fofa, nem relaxa nos quiosques.

Identifica nas breves férias uma grande e econômica chance de abastecer as imagens de um ano inteiro das redes sociais. Transforma o lazer em trabalho. Escapa do trabalho presencial para profissionalizar a virtualidade.

É como se estivesse em um estúdio a céu aberto. Só quer tirar selfie, selfie, selfie, em ritmo frenético de seita inventando o fim do mundo.

Faz foto bebendo caipirinha enquanto ela esquenta. Faz foto ciscando camarão enquanto ele esfria. Faz foto debaixo das ondas enquanto o céu nubla. Faz foto nas paisagens pedregosas e verdes enquanto o tempo passa. Faz foto em monumentos e pontes enquanto poderia namorar de mãos dadas e beijos salgados. Faz fotos no alto dos morros enquanto dá as costas para a esquadrilha das águias se apresentando de graça.

Tem sete dias para curtir e se desestressar, mas prefere se preocupar com o futuro dos likes e comentários. Não largou a preocupação com a aparência, mesmo consciente de que apenas desfrutará de um outro tempo de descanso no próximo semestre.

Empreende milhares de registros de uma única pose, do lado direito, do lado esquerdo, de cima, de baixo, até encontrar a silhueta perfeita. Dificilmente uma top model aguentaria de pé igual insalubridade de exposição. Raramente um ator ou atriz suportaria excessiva maratona de gravação.

A única ilha que conhecerá em seu repouso é a da edição. Além de demorar para definir uma postagem, ainda tem que depois editar, apagar as falhas, controlar a luminosidade e escolher o filtro adequado.

O esforço traz uma efêmera recompensa. Quem acompanha seu Instagram ou seu Facebook ficará intrigado que você tira férias infinitamente. Sempre aparecendo de roupas de banho. Sempre no mar. Concluirá que tem uma vida frouxa, folgada, abastada. Pois, sucessivamente, em um TBT enrustido, publicará um post sorrindo e se divertindo em um lugar paradisíaco.

Criará inveja por alguns momentos. A impressão de luxo e conforto irá se diluir aos poucos. Para o seu azar.

O crime de ostentação seria perfeito se não fosse um detalhe: está com as mesmas peças de figurino em todas as cenas. Os seguidores não poupam ninguém.

CARPINEJAR


19 DE JANEIRO DE 2019
ANA CARDOSO

Férias de sexo

Calor, praia, verão. Se você tem crianças pequenas e viaja em família, é melhor que pouca roupa, filmes picantes e drinks afrodisíacos não a deixem com vontade de fornicar. Férias são férias de sexo também.

Estamos há algumas semanas na casa da minha sogra, curtindo pernoites gratuitos em Floripa. Como bons turistas precarizados, dormimos todos no mesmo quarto. Ao contrário do que você pode pensar, existe, sim, um quarto para crianças, mas lá o ar-condicionado faz barulho, a cama range, entre outras queixas infantis.

No nosso, que já foi da sogra, da cunhada e hoje abriga os Cardoso-Piangers, o ar e o ventilador de teto funcionam. Resultado: eu nem lembro a última vez que vi o pingolim do meu marido.

Dormir em quatro numa cama para dois é jogar fora o investimento de pilates e yoga de um ano inteiro. Não tem uma noite em que eu não acorde com os braços amortecidos ou chutes infantis na cara. A gente evitava os colchões no chão. Achava tão excursão de adolescentes, 10 numa casa que era pra quatro. Colchões empilhados, gente acordando com outro pisando no seu travesseiro e a sensação crocante de areia nos dentes. Não éramos essas pessoas. Mas viramos!

Há dias, instalamos dois colchões nas laterais da nossa cama, o cafofo 1 e o cafofo 2, cada qual com a sua peculiaridade. Não sobrou muito espaço no chão do quarto, mas é o preço que pagamos por essa expansão na capacidade dos leitos.

O cafofo 1 fica à esquerda da cama, encostado na parede da janela. Tem privacidade, pode ficar no celular ou se mexer bastante que não atrapalha ninguém. O cafofo 2 é um luxo: o ar e o ventilador pegam direto nele. Uma delícia. A localização privilegiada, no entanto, cobra seu preço: próximo à porta e a uma parede interna da casa, capta cada sonzinho de fora. Ruídos do banheiro ou de louça na cozinha são amplificados no travesseiro.

Toda essa explicação é um prólogo para tratar do assunto principal: a falta de sexo. Minha geração - nós, bananas, que deixamos os filhos dormirem no nosso quarto - será responsável pela extinção dos librianos. Não se produzem mais filhos em janeiro para nascer em outubro. Comentei sobre o assunto com uma amiga que tem dois hóspedes permanentes no seu quarto - outrora uma masmorra da luxúria. 

Ela me contava sobre um casal de amigos superfogosos que adotaram duas crianças no ano passado quando minha filha maior apareceu e interrompeu o papo. Sexo na praia? Só serve mesmo pra nome de drink (Sex on the Beach). Se a gente não consegue nem falar sobre, que dirá fazer!

P.S.: este texto não é 100% verdadeiro e contém ironia.

ANA CARDOSO


19 DE JANEIRO DE 2019

LEANDRO KARNAL


O valor da vigilância


Os acontecimentos que irei descrever são verdadeiros, ainda que nem todos tenham ocorrido com os nomes e locais descritos adiante. Tendo em vista minha segurança individual e eventuais problemas jurídicos, fui aconselhado a mudar detalhes.

Todos entenderão o cuidado e o pudor. Os fatos são terríveis e eu próprio duvidei muito da propriedade de narrá-los aqui em espaço tão importante. Finalmente, entendi que era meu imperioso dever de colunista e homem público. Vamos às tragédias que vão eriçar todos os seus pelos e corar as faces mais incautas!

Vou começar narrando o recente caso de uma detenção no aeroporto de Guarulhos. Vindo da Dinamarca, um rapaz alto e loiro foi encaminhado pela Polícia Federal a um demorado interrogatório. Seu nome? Pouco importa, todavia muita gente o conhece como "o Príncipe da Bela Adormecida". O jovem está preso. Acusação? Assédio!

Todos sabem do caso. O nobre encontrou uma jovem dormindo. Tarado de quatro costados, aproveitou-se da situação da donzela drogada, tascou-lhe um beijo. À queima-roupa! Sem consentimento! Sem uma conversa antes. Considerando que a bela princesa tinha uns 118 anos mais do que ele, além do assédio é destruição da dignidade de uma idosa. Mais, antes de encontrar a senhora catalética, ainda matou a madrasta dizendo se tratar de um dragão (apenas uma sogra, no fundo). A opinião pública ficará ao lado do Brasil que cumpre mandato da zelosa Interpol.

Aguardando julgamento, o fauno de sangue azul encontrou um colega na prisão: o Príncipe da Branca de Neve. A acusação foi piorada pelo fato de que, estando em um caixão, a princesa era considerada morta pelos seus sete tutores legais. Assim, some-se a tara do meliante com hedionda necrofilia. Não respeitam vivos ou mortos! Todas as pessoas esperam que os sedutores apodreçam na cela mais funda e úmida da masmorra mais medonha. Nunca se deve descuidar do mal em suas múltiplas possibilidades. De todos os lados se erguem inimigos da moral e dos bons costumes.

Tranquilizem-se, queridas leitoras e estimados leitores. Há notícias de que o sistema jurídico fez uma limpeza mais profunda. Foi identificado um grupo que cantava, animado, em plena área de embarque do aeroporto, texto profano e agressivo que reproduzo a contragosto: "Atirei o pau no gato tô, mas o gato tô não morreu reu reu". Violência explícita contra os animais! Autoridades detiveram os cantantes, encaminhando-os ao órgão competente do Ibama! O peso da lei já cai também contra caçadores do lobo mau que estavam de olho no dote de uma menor de chapéu vermelho.

Pasmem: não chegamos ao fundo do poço. Um julgamento envolve toda uma família. Dois pais abandonaram os menores João e Maria na mata para morrerem! Sim, morreriam de fome, frio ou sob ataque de borrachudos canibais. Abandono de incapaz, premeditado e reincidente, pois voltaram a repetir o crime infame no dia seguinte. Os dois jovens, até aqui vítimas, invadiram uma propriedade e destruíram uma casa de doces de uma senhora excêntrica na Serra do Mar.

Depois, não bastasse todo o narrado, o menor meliante João empurrou a idosa (aos gritos agressivos de "bruxa") para um forno ardente. Queimaram viva a proprietária, roubaram seus bens obtidos em empréstimo consignado da aposentadoria e, triunfantes, voltaram aos pais relapsos! Quatro assassinos morando na mesma casa sob expensas da boa senhora. Desejamos que os quatro aproveitem as longas férias no xilindró.

O preço da nossa liberdade é a eterna vigilância. Pior, não bastassem os crimes imensos, as pessoas queriam narrá-los a crianças nas escolas. Já imaginaram a perversão que os fatos provocariam, mormente se destacados como histórias infantis leves e educativas. Assédio sexual, cenas de quase estupro, violação de propriedade, indivíduos queimados vivos, animais caçados ou abatidos a pauladas, pais abandonando menores e tudo isso seria usado como material educativo e lúdico! Já imaginaram a falta de limites dessa gente?

Foi necessária a intervenção de agentes preclaros para que todos aqui pudéssemos entender os riscos das narrativas lascivas que se apresentavam como ingênuas. Uma leitora enviou-nos o relato que mostra como devemos estar atentos a tudo. Ela estava na sua residência, tranquila e feliz. Em uma tarde quente de sábado, a laboriosa senhora ouviu um barulho junto ao rio próximo. Percebeu que eram jovens nus tomando banho, alegres e impudicos. Horrorizada, a reclamante foi ao delegado e exigiu providências.

A autoridade cumpriu o seu papel e mandou os nudistas para longe. Assustados pelas ameaças do encarregado da ordem pública, os rapazes passaram a se banhar bem abaixo, sem saber que, do terraço superior, a senhora ainda podia avistá-los. Nova intervenção da lei e os exibicionistas foram instados a irem muito, muito mais baixo no mesmo curso d?água, sob penas terríveis.

Derradeira reclamação da boa cidadã: nossa leitora informou que, subindo no telhado do sobrado e munida de poderoso binóculo, ela ainda conseguia ver os rapazes pelados. Viram? Nunca se pode descansar em busca da defesa da moralidade. A senhora já encomendou um telescópio porque ouviu falar que, em rio de outras regiões, havia mais rapazes despudorados exibindo suas vergonhas. Até onde teremos de esticar nossa visão impoluta para encontrar o mal? Sempre alerta! Sempre alerta! Eia, sus, à luta! É preciso ter esperança!

LEANDRO KARNAL


19 DE JANEIRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

ABUSO DE ÁLCOOL E DEMÊNCIA

As demências afetam 5% a 7% da população com mais de 60 anos. São síndromes resultantes de degenerações cerebrais, caracterizadas por deterioração progressiva das habilidades cognitivas, da independência e da capacidade de executar tarefas diárias.

Embora haja certa discordância na literatura médica a respeito do uso moderado de álcool, parece que até dois drinques por dia para homens e um para as mulheres trazem mais benefícios do que agravos à saúde (exceto um pequeno aumento na incidência de câncer de mama, mesmo nas mulheres que bebem essa quantidade).

Os estudiosos, no entanto, são unânimes em apontar os malefícios causados pelo consumo excessivo: quatro ou mais drinques diários para homens, dois ou mais para as mulheres. Vale lembrar que consideramos um drinque a quantidade aproximada de álcool existente numa latinha de cerveja, numa taça de 150ml de vinho ou numa dose de 40ml de destilado.

Em março de 2018, foi publicado um estudo na revista The Lancet Public Health sobre a relação entre abuso de álcool e a prevalência de quadros demenciais, na França. Os autores analisaram os prontuários de todos os adultos com mais de 20 anos internados nos hospitais metropolitanos do país, entre 2008 e 2013, em busca de dados sobre a exposição ao álcool e a outros fatores de risco que aumentam a incidência de demências.

Dos 31,6 milhões de adultos que receberam alta nesse período, 1,1 milhão foram enquadrados no diagnóstico de demência. O uso abusivo de álcool mais do que triplicou o risco de demências em mulheres e homens (3,34 vezes e 3,36 vezes, respectivamente).

Transtornos provocados pelo consumo excessivo de álcool aumentaram a prevalência de outros fatores de risco para demências: fumo, sedentarismo, hipertensão arterial, diabetes, hipotireoidismo, surdez, nível educacional baixo, traumatismos cranianos, etc.

Em todos os tipos de demências, o uso abusivo foi fator de risco isolado, independente dos demais. Como explicar?

1) O etanol e seu metabólito, acetaldeído, têm efeito neurotóxico por ação direta, capaz de causar danos estruturais e funcionais permanentes nos tecidos do cérebro.

2) O uso abusivo pode levar à deficiência de tiamina (vitamina do complexo B), que é a causa de distúrbios neurológicos bem conhecidos, como a síndrome de Wernick-Korsakoff.

3) O consumo excessivo aumenta a probabilidade de surgirem outras condições tóxicas para o cérebro: traumatismos de crânio, epilepsia, encefalopatia hepática, cirrose.

4) O uso abusivo está relacionado com a demência vascular, porque aumenta o risco de hipertensão arterial, acidentes vasculares cerebrais hemorrágicos, fibrilação atrial e insuficiência cardíaca. Além de tudo, ele está ligado ao fumo, à depressão e ao nível de escolaridade mais baixo, fatores que aumentam a probabilidade de demências.

Prezadíssimo leitor, se tiver pretensão de chegar aos cem anos sem confundir o filho mais velho com o cachorro da casa, é melhor pegar leve.

DRAUZIO VARELLA
19 DE JANEIRO DE 2019
JJ CAMARGO

O QUE FAZER COM UMA AMIZADE VIRTUAL?

Há uma incontrolável ânsia de usar todos os instrumentos de aproximação virtual para conectar pessoas que foram convivas em épocas tão remotas que o tempo se encarregou de borrar-lhes a lembrança.

O convite para que participasse de um grupo de WhatsApp que devia reunir todos os sobreviventes de um tempo de colégio me pareceu desde logo assustador. Não conseguia imaginar como recuperar uma intimidade necessária para justificar a reaproximação depois de, sei lá, 55 anos, só porque esta prática virou uma febre (passageira?) na internet. O desespero aumentou quando fomos comunicados de que todos os abaixo listados estavam automaticamente incluídos no grupo, e eu só lembrava bem de uns cinco de uma turma de 50.

O mal-estar se ampliou com a certeza de que aquele clique bendito, que resultaria no "saiu do grupo", e que seria a prova de que Deus existe para nos socorrer, provocaria uma reação de antipatia instantânea, seguramente enriquecida pela frase mais previsível: "Esse sempre se achou muito!".

E então, ainda meio atazanado, assisti pipocarem incríveis fotos com caras sempre sorridentes, aparentemente conservadas no formol da memória por algum colecionador de saudade, mostrando um bando de queridões que a vida dispersara, talvez com a intenção de mostrar que poderíamos sobreviver sem eles. O que, afinal, tínhamos conseguido.

A presença de fotos daquela época produziu uma sensação de nostalgia com algum desalento pelo confronto do que fomos e o que sobrou de nós, que invariavelmente foi menos do que gostaríamos. E algumas vezes tão menos que não conseguimos disfarçar o constrangimento de nem nos reconhecermos nas fotos desbotadas, por décadas de gavetas mofadas. Logo depois, um entusiasta aposentado sugeriu que a confraternização se materializasse num encontro formal, um desses em que as pessoas falam olhando no olho, e se tocam e, quando felizes, se abraçam, mas não deu certo.

Acabaram reunidos menos de 10% dos animados debatedores do WhatsApp, e não por acaso eram apenas aqueles que nunca desconectaram e que, por razões de proximidade e afeto, se encontram regularmente, à moda antiga.

Para mim, este movimento de fraternidade virtual tem sido um laboratório afetivo extremamente rico, deixando claro que temos muito a aprender com essas amizades que se anunciam eternas mas que soam surreais, sempre que a distância geográfica impedir a dependência afetiva, que só se preserva com o selo generoso de um abraço.

Voltando à pergunta inicial: se a lembrança da amizade virtual é confortável, deixe-a quieta. Materializá-la em muito se parecerá com o esforço pouco inteligente de reativar um amor antigo, o que inexoravelmente implicará em duas mortes. A da fantasia, alimentada durante o intervalo de solidão, e a da saudade. Dois sentimentos lindos demais para serem atropelados pela aspereza da realidade.

JJ CAMARGO



19 DE JANEIRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Por que os ETs não nos visitam?

A chance de vida extraterrestre é numericamente enorme, mas então: onde estão? Por que não nos visitam? Chama-se Paradoxo de Fermi - em homenagem ao famoso físico italiano - a aparente contradição entre o extraordinário número de planetas habitáveis da vastidão do universo, portanto altíssimas chances de existirem lugares com vida inteligente, e a falta de evidências de tal possibilidade.

Um amigo, que sabe tudo sobre ETs, deu a melhor explicação sobre por que eles não dão as caras por aqui. É simples, ele diz: "Você visitaria aqueles parentes atrapalhados que vivem te achacando, que têm mãe no hospital, filho na cadeia e tudo é precário na vida deles? Claro que não. Eles vão pedir dinheiro emprestado mais uma vez...".

Em resumo, a tese do meu amigo é de que eles não querem treta com gentinha. Não teríamos nada a oferecer e iríamos pedir muito. Temos que encarar que, entre os povos das galáxias, talvez tenhamos péssima reputação.

Ele acrescenta: imagine quando surgir o "leve-nos ao seu líder", que é a primeira coisa que os ETs fazem quando chegam a um planeta. Eles teriam que, depois de dirigirem por zilhões de léguas cósmicas evitando asteroides, desviando de buracos negros, sem parada em lanchonete, sem nenhum restaurante decente no caminho, ter que aguentar o Trump, o Xi Jinping ou o Putin. Sinceramente, nenhum ET merece, nem mesmo um Vogon...

Eu discordo do meu amigo. Acho que poderíamos explorar nosso potencial para turismo cômico. Os ETs poderiam pagar para vir nos conhecer melhor e dar boas risadas.

Como? Simples, ministrando-lhes aulas. Para os humanos, não existe nenhuma ideia, mesmo que escandalosamente idiota, que não possa angariar seguidores. Escolhemos algumas delas e chamamos seus defensores para ensiná-las aos ETs.

Acho que a melhor introdução seria o Terraplanismo. Risos espasmódicos na certa. Ou, nas variações recentes, aqueles que dizem não haver provas de que a Terra gira ao redor do Sol. No campo da saúde, traríamos gente para explicar-lhes que cigarro faz bem e vacina faz mal.

Acho que uma das boas histórias seria explicarmos o nosso Deus. Ele é todo- poderoso, onisciente, onipotente, mas por estranhas razões - embora assexuado - teria a mesma obsessão por sexo que nós, suas criaturas. O Criador de tudo, segundo alguns, ficaria imensamente ofendido se não fizéssemos sexo de acordo com suas regras.

E já que estamos no campo do divino: imagine explicar para os ETs que esse mesmo Deus teria nos feito a sua imagem e semelhança. Mas, sei lá, vai que acordou preguiçoso naquele fatídico dia, tanto que usou o mesmo material genético de um projeto anterior. Por isso temos um DNA quase idêntico ao dos grandes primatas, mas não seríamos parentes. Dá para entender?

Então, caríssimo leitor, consegues imaginar uma inteligência superior nos levando a sério?

MÁRIO CORSO


19 DE JANEIRO DE 2019
ARTIGO

O LIQUIDIFICADOR

O liquidificador revolucionou a cozinha, humanizou as cozinheiras e se igualou às grandes inovações do século 20, como a penicilina, a bomba atômica e a ida à Lua. Agora, no novo século, o governo Bolsonaro o regulamentou e incentivou por decreto.

Quem tenha mais de 25 anos e bons antecedentes pode ter até quatro liquidificadores e, assim, moer e cortar em mil pedacinhos até o mais duro osso de roer. Ainda não podemos levá-los à cintura pelas ruas ou no "shopping", mas esse tempo virá?

Sim, pois - como disse o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni - "arma é como liquidificador", coisa inocente que não pode ser culpada se cortar o dedo da criança que ali enfiar a mão.

Toda simplificação é um perigo e a comparação ou metáfora do ministro é um meta fora total. Liquidificador não tem bala nem mata. Se moer um dedo, é acidente, pois outra é sua função. Arma, porém, é instrumento de matar. Quem atira quer eliminar, até para não ser eliminado.

O decreto liberando a posse de armas foi escolha da ampla maioria que elegeu Jair Bolsonaro. Mas "as maiorias" também erram. Em 1933, a maioria levou o odioso Hitler ao poder, sem perceber que destruiria a Alemanha. Na Rússia de 1917, a violenta maioria "bolchevique" venceu os cultos "mencheviques" minoritários, e a utopia comunista virou sangue e horror.

Entre nós, será difícil ter o revólver como relíquia num cofre. Tê-lo à mão nos protege do ladrão ou assassino, mas leva, também, a disparar até na irritação das rusgas de casal. E a ideia de que cada qual deve atacar ou se defender dos violentos será uma caótica guerra civil oculta, mostrando a falência do poder do Estado, da Justiça e da polícia.

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Deter a violência à bala é como apagar incêndio tapando o fogo com palha seca, sem ir às causas.

Além da droga e dos "bandidos", hoje tudo induz à violência e à disputa, nunca à cordura e ao amor. A "nova música" é desbocada batucada. Os filmes-desenhos infantis não têm 10 segundos sem gritos, estrondos, empurrões e tiros. No final, "os bons" vencem, mas triunfam também pela violência. Que adultos surgem daí, dessa inconsciente fábrica de estultos?

Educa-se para o crime, mas ninguém vê.

Na última ceia, antevendo o fim, Cristo instituiu o novo mandamento: "Amai-vos uns aos outros, assim como vos amei". Agora, invocando "Deus acima de tudo", irão agregar um "r" e nos mistificar com o "armai-vos uns aos outros"?

Não se põe a História num liquidificador, menos ainda a História Sagrada.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES