sábado, 28 de dezembro de 2019



28 DE DEZEMBRO DE 2019
LYA LUFT

Boas festas

Infância: o jardim eram todos os segredos: as vozes murmuravam entre as folhas e sussurravam no vento. O horizonte eram morros azuis da tinta que um anjo distraído deixara cair do céu. Todos os mundos que criei, pessoas que inventei, músicas irreais que eu compus nasceram ali na infância: perderam-se mas persistem porque nada no caminho do tempo é fatal.

Autorretrato: do pai, a retidão e certa melancolia: o olhar sobre o que vem atrás das coisas. Da mãe, a alegria. Da remota linhagem, o novelo de fios que tramam alma e imagem, ninguém sabe quando e onde. Mais os trabalhos e a dor, a fantasia, a obstinada procura, alguma sorte, muita esperança na bagagem. (Dissabores fazem parte: maior foi a celebração da vida.) Entre o começo e a morte, mar e miragem: não há muito de mim na personagem que enxergam. Há que buscar o que ela esconde.

Poeminha: dormem os grandes navios do sonho, como num porto: boiam rostos ou espumas à flor de um espelho morto. Não tenho certeza de nada e mesmo assim me disponho: sou um reflexo no fundo de um corredor ou de um sonho? Deitada na grama, contemplo: no azul do céu ou das águas passam vultos como velas. (São miragens os navios ou as nuvens, caravelas?)

Busca: naquele tempo sem tempo, a verdade parecia estar nos livros: ali moravam as respostas e nasciam os nomes. Quanto mais procurei, mais me enredei na ramagem das indagações: as respostas não vinham, a verdade era miragem, a busca era melhor do que a descoberta - e nunca se chegava. (Viver era mesmo sentir aquela fome.)

Palavras: abro a gaveta, e salta uma palavra: dança sedutora sobre o meu cansaço, veste-se de indefinições, vagueia no labirinto das ambiguidades. Acha graça de mim, que espero à frente encontrar a solução dos meus enigmas. Tento uma geometria que a contenha no espaço entre dois silêncios quaisquer, mas ela decide meus passos: peso de fruta no sono da semente, assiste à minha luta quando a desejo aprisionar e, às vezes, até finge que sou eu a senhora, a domadora, a fonte. Palavras são livres e riem dos poetas: nós, mediação incompetente.

Condição: se me quiserem amar, terá de ser agora: depois estarei cansada. Minha vida foi feita de parceria com a morte: pertenço um pouco a cada uma, pra mim sobrou quase nada. Ponho a máscara do dia, um rosto cômodo e simples, e assim garanto a minha sobrevida. Se me quiserem amar, terá de ser hoje: amanhã estarei mudada.

Esperança: os deuses estavam de bom humor: abriram as mãos e deixaram cair no mundo os oceanos e as montanhas, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes, as manadas, as revoadas - e, para atrapalhar, as pessoas. Todas correndo atrás de mil coisas ou de coisa nenhuma: tudo menos parar, pensar, contemplar. Enquanto isso, a Morte revira seus grandes olhos de gato, termina de palitar os dentes e prepara o bote.

Mas a gente sempre aposta na vida.

LYA LUFT

28 DE DEZEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Os filhos do mundo


Foi aparecer Greta Thunberg e achei que mataríamos saudade do consenso - lembra consenso? Difícil imaginar divergência de opiniões a respeito de uma adolescente que um dia saiu de casa com um cartaz nas mãos e se plantou na frente do Parlamento sueco pra protestar contra o pouco caso com o meio ambiente. O que pode ser mais inofensivo e bem-intencionado? 

Ela poderia estar num shopping consumindo hambúrgueres e sapatos, poderia estar grudada num smartphone baixando aplicativos bobinhos, poderia estar acampando na frente de um estádio para assistir a algum ídolo teen, e nunca teríamos ouvido falar dela, assim como o mundo nunca ouviu falar de nossos filhos. Mas fez barulho e foi eleita a Personalidade do Ano. Não é bacana?


Defender o meio ambiente não é uma atitude de esquerda ou de direita. Envolve todos os seres humanos, incluindo os tios fascistas, as primas comunistas, os bichos, as plantas - o planeta inteiro se beneficiaria caso os grandes líderes mundiais parassem de pensar só em lucro e tomassem medidas preventivas para deter o aquecimento global e suas consequências. Separar o lixo seco do lixo orgânico é importante, mas não basta. Deixar o carro na garagem e caminhar cinco quarteirões? Ajuda, mas o que ajuda mesmo é não pegar no pé de quem está fazendo muito mais do que nós.


Dizem que Greta é chata. Não sei, nunca escutei a menina por mais de um minuto, quem assistiu aos seus discursos completos é que pode dizer. Mas, ainda assim, creio que chato é ficar ilhado sobre um bloco de gelo derretendo, ursos polares que o digam. Ou ter a casa invadida por enchentes. Ou ter que sair à rua usando uma máscara tapando nariz e boca. Devo estar sendo chata também, desculpe aí.


Enfim, não entra na minha cabeça a razão de Greta ser ofendida. Que ela incomode alguns industriais e políticos, é compreensível, já que reivindica medidas que envolvem dinheiro e poder, mas por que haveríamos de ficar contra ela, se ela age por nós? Não age? Tem "alguém" por trás? O Soros, o Papa, o Lula, a Damares, o pessoal do Porta dos Fundos? E daí? 


A causa é boa. E mesmo que não se acredite em aquecimento global, mesmo que se pense que é paranoia e que o mundo está em perfeitas condições de uso, mal não faz uma garota gastar seu tempo e sua juventude em algo que acredita. Não foi a primeira nem será a última a se sobressair clamando por conscientização - se ela está certa ou errada, o tempo dirá. Esse mesmo tempo que nos levará à extinção em breve, mas que poderia ser mais seguro para nossos descendentes, pelos quais temos alguma responsabilidade. Portanto, se não existe mais consenso sobre nada, que ao menos escolhamos melhor nossos inimigos em 2020. Greta, obrigada.

MARTHA MEDEIROS


28 DE DEZEMBRO DE 2019
CLAUDIA TAJES

Retrospectiva introspectiva

Terminando o ano com muito menos livros na conta do que deveria ter lido, ainda assim deixo aqui a minha retrospectiva de releituras, descobertas e lançamentos - que também vale por sugestões para quem não tem nenhuma dúvida de que só abastecidos de boas histórias e de boas ideias a gente fica mais forte para enfrentar o que vier. Um superfeliz 2020 para todos nós.

O livro mais lindo que eu li, com certeza absoluta e com o devido respeito a todos os demais livros lindos do ano, foi o romance da polonesa e prêmio Nobel Olga Tokarczuk, Sobre os Ossos dos Mortos. O amor da personagem pelos animais, a forma toda particular como ela se refere às pessoas, a trama toda e sua solução. Que livro, senhoras e senhores. A autora de 57 anos, que eu nem conhecia, agora é um dos meus amores.

Brasil, Construtor de Ruínas, da Eliane Brum, que saiu pela Arquipélago Editorial, vai fundo nas nossas feridas. Não é uma leitura otimista, mas fica a sensação de que há, sim, alguns jeitos para sair do buraco. Alguém aí falou em pensamento e educação? Antes Não Era Tarde: impossível não curtir as crônicas de Pedro Gonzaga.

De Toni Morrison, que morreu em agosto deste ano e já está fazendo falta para entender melhor os dilemas desse nosso mundo tão cheio de preconceitos, A Origem dos Outros.

A Queda do Céu - Palavras de um Xamã Yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Já passou da hora da gente conhecer o que os povos indígenas têm a nos dizer.

Enterre Seus Mortos, da bicampeã do prêmio São Paulo, Ana Paula Maia. Os dois livros da Manuela d?Ávila, Revolução Laura e Por que Lutamos?

Dentro do Nevoeiro, de Guilherme Wisnik, um livro de não ficção que relaciona arquitetura, arte e tecnologia em vários ensaios sobre a transformação das cidades e a história - com o que ela tem de melhor e pior.

Da minha quase xará Claudia Lage, a novela O Corpo Interminável.

Essa Gente, do prêmio Camões Chico Buarque. Um escritor perturbado e decadente em um Rio de Janeiro não menos. Só podia dar certo.

Textos Contraculturais, Crônicas Anacrônicas & Outras Viagens, de Eduardo Bueno, o estilo Peninha que nunca cansa o leitor.

O Que Acontece no Escuro, de Davi Koteck, contos sobre pequenas simplicidades das mais profundas. Luanda, Lisboa, Paraíso, da vencedora do prêmio Oceanos Djaimilia Pereira de Almeida.

Em 2020 e sempre, leia mulheres. Assim, de cabeça: Clarice Lispector, Simone de Beauvoir, Virginia Woolf, Djamila Ribeiro, Cíntia Moscovich, Martha Medeiros, Paula Taitelbaum, Ana Mariano, Clara Corleone, Lya Luft, Leticia Wierzchowski, Valesca de Assis, Jane Tutikian, Maria Carpi, Tatiana Salem Levy, Patrícia Melo, Adriana Lisboa e mais uma lista sem fim que merece lugar na sua estante. E compre das pequenas e charmosas livrarias: PocketStore, Baleia, Taverna, Bamboletras, Erico Verissimo e todas as valentes que não se entregam nunca. Não parecem a gente?

CLAUDIA TAJES


28 DE DEZEMBRO DE 2019
CARPINEJAR

Veteranos

Há outdoors dizendo que você envelheceu: quando a filha menstrua ou quando o filho aparece com barba de bode, ou quando eles voltam das festas no meio da manhã, ou quando decidem morar sozinhos ou quando casam ou quando entram na universidade. São letras garrafais de uma verdade: suas crianças não são mais crianças, não dependem mais de você como antigamente, o convívio será semanal, talvez mensal.

Mas também existem pequenos cartazes da rotina apontando para a sua maturidade indisfarçável.

Um deles é a pelada com os amigos. Eu jogo futebol na segunda-feira em uma quadra do colégio Bom Conselho. São sete anos de ritual, sempre às 20h. Lá encontrarei Dal Molin, Valdemar, meu irmão Rodrigo, Dirceu, Fernando, Frodo, Daniel, Adriano, Horácio, Cristiano, Luciano, Zé Leão, Luis e Glauber, entre os decanos fundadores.

Quando faltava jogador para completar os 12 apóstolos, convocávamos marmanjos de contato superficial. Era uma busca desesperada por alguém com a mínima noção, mesmo que seja para atuar no gol. Em vacas magras no calendário, como dezembro, época de festas para todos e férias para alguns, já chegamos a improvisar quatro de cada lado e mentíamos nas mensagens do grupo que havia sido um enfrentamento memorável.

Agora, os peladeiros, diante da ausência de quórum, não sofrem mais com expedição pela agenda do WhatsApp, pois deram para chamar os seus filhos. Os recursos humanos partem da própria casa.

Filhos? Antes eram bebês de colo, mascotes de nossos confrontos, que mal tinham força nas pernas. Hoje são adolescentes. Ninguém percebeu como cresceram tão rápido.

São fortalezas de vigor e vontade, com o dobro de nossa altura. Virou atração de circo: os anões e os gigantes.

É engraçada a disparidade em campo. Eu jogava contra gente de minha idade, na faixa dos 40 a 50 anos, até me sentia poderoso e artilheiro. Podia sair de uma noite com cinco gols no bolso.

Com as crias dos comparsas, se estufo as redes, é por acidente. A bola bateu em mim, não fui eu que a chutei.

Vem ocorrendo a infiltração de categorias de base na disputa dos veteranos. É difícil acompanhar o ritmo. Não ganharei uma bola no fundo da quadra pela imposição física, nem usando os cotovelos.

Pouco a pouco, há mais jovens do que velhos, a partida é mais deles do que nossa. Com a mistura, passamos a nos lesionar com frequência (oferecendo além de nossas possibilidades) e eles vão preenchendo as suplências com os seus amigos da mesma idade.

Logo nem saberemos os nomes dos atletas, seremos penetras em nossa confraternização, obrigados a nos apresentar e explicar de onde viemos e de quem somos os pais.

O envelhecimento bate à porta antes dos grandes eventos de transição de nossos rebentos, nós é que não atendemos.

CARPINEJAR


28 DE DEZEMBRO DE 2019
COM A PALAVRA

O ALVO DA VIDA NÃO É SER FELIZ. É APRENDER A VIVER.

VIVIANE MOSÉ, psicanalista e filósofa, 55 anos. Especialista em políticas públicas, tem obra consistente como poeta e ensaísta. É palestrante e já teve um quadro no programa "Fantástico", da TV Globo

Uma das figuras que têm aproximado a filosofia de uma linguagem cotidiana e atraído mais pessoas para pensar sobre a realidade, Viviane Mosé mescla um tom de desesperança a uma inveterada busca pela alegria em suas opiniões. Ao fazer um balanço de 2019, analisando o "estado de espírito" com que chegamos ao final de um ano difícil, a filósofa - e psicóloga, e psicanalista, e escritora, e poeta - alia o desamparo ao otimismo: foram meses difíceis, o dia a dia tem sido complicado para todos, mas não é lamentando que vamos chegar a algum lugar. Ela propõe que a população celebre, viva, reafirme a sua alegria, a sua arte.

Capixaba de Vitória, autora de livros como Nietzsche Hoje e A Espécie que Sabe, ambos versando sobre a vida contemporânea e discutindo os desafios globais, "tentando facilitar a compreensão desse abismo em que entramos", como define, ela concedeu a seguinte entrevista, por telefone, a Zero Hora.

ESTE FOI UM ANO DIFÍCIL NO BRASIL: HOUVE A TRAGÉDIA EM BRUMADINHO, O INCÊNDIO NO ALOJAMENTO DOS JOGADORES DA CATEGORIA DE BASE DO FLAMENGO, O MASSACRE EM SUZANO, O VAZAMENTO DE PETRÓLEO NAS PRAIAS DO NORDESTE, OS INCÊNDIOS NA AMAZÔNIA... DEPOIS DE PASSAR POR TUDO ISSO, EM QUE ESTADO DE ESPÍRITO NOS ENCONTRAMOS AO FINAL DE 2019? COMO SE RECUPERAR? COM QUE PERSPECTIVAS CHEGAMOS A 2020?

É um final de ano muito tenso com tudo o que a gente viveu, que você com toda a razão descreve como difícil em todas as áreas: ambientais, humanas, sociais, no que diz respeito a direitos humanos, à educação. Houve grandes retrocessos sociais e políticos. O Brasil entrou, em 2019, em um barco desgovernado. A gente não teve uma direção. Tivemos desgoverno em todas as áreas. Pessoas incapazes de ocupar os cargos que ocupam. 

E isso é muito ruim em um país tão grande quanto o Brasil. O Brasil é uma potência mundial. E não pode uma potência mundial, com grandes conquistas como a gente teve nos últimos 30, 40, 50 anos - temos mais ou menos 50 anos de cidadania, se a gente pensar bem -, de respeito humano, e não só isso, de economia, de estabilidade política, estabilidade financeira, um Brasil visto como grande no mundo inteiro, com a diminuição da desigualdade, de repente se ver em um barco desgovernado.

DE QUE MANEIRA TODOS ESSES FATOS INFLUENCIAM NA FORMA COMO CHEGAMOS A ESTE FINAL DE ANO? O QUANTO ISSO AFETA NOSSO DIA A DIA?

Imagina um transatlântico - porque não somos um barco, nós, o Brasil, somos um transatlântico enorme - absolutamente desgovernado. É a sensação de todo o brasileiro. É como estamos nos sentindo enquanto coletividade. Quando os direitos humanos, por exemplo, são suspendidos, ou pelo menos quando a gente não se sente mais garantido por direitos humanos mínimos, prepondera a violência. Porque o ser humano não nasce humanizado. Ele se humaniza no grupo. No Brasil, nós vivemos um 2019 de desrespeito aos direitos humanos, de desrespeito ao meio ambiente. Quando as leis são desrespeitadas, todas as pessoas se sentem desprotegidas. Um parte se sente desprotegida. E a outra, exatamente a que está sendo desrespeitada nos direitos humanos, por exemplo, ela pode se sentir disposta a tudo. Se não respeitam os direitos mínimos de sobrevivência seus, das pessoas da sua família, das pessoas do seu entorno, do seu bairro, se você se vê atacado por balas, por agressões verbais, por qualquer coisa, por falta de saneamento, por uma animalidade, aí entende-se que algo primitivo acaba aparecendo.

A PAIXÃO COM QUE ESTAMOS LIDANDO COM OS FATOS POLÍTICOS E COM CADA MUDANÇA ECONÔMICA É BENÉFICA PARA A NOSSA SAÚDE MENTAL, PARA O NOSSO BEM-ESTAR? E, POR OUTRO LADO, ESTÁ CERTO QUEM PREFERE FICAR DE FORA DE TODA ESSA DISCUSSÃO, AGINDO DE MODO MAIS NEUTRO? HÁ UM MELHOR CAMINHO?

Não dá para ignorar o que acontece na coletividade em que estamos inseridos. Não dá para ignorar o preço da carne. Não dá para ignorar tudo o que a gente vive hoje. "Ah, não vou me informar." Mas é impossível não se informar. Mesmo porque vivemos na sociedade da informação. Quando você abre a sua rede social, não é amizade que se troca ali, não. Ali se troca a venda de produtos, se troca política. Nossa vida é a rede social. É impossível estar na rede social sem estar contaminado com tudo o que está acontecendo. E o que está acontecendo é que estamos em um momento extremamente difícil. O que eu espero para o Brasil sair disso, neste ano que vai se iniciar, é transparência. Justiça é o que o Brasil merece em 2020. Que o Poder Judiciário tenha coragem de enfrentar o abismo que ele precisa enfrentar neste país. Que não vai ser fácil. O Poder Legislativo já teve a sua crise. O Poder Executivo teve, tivemos um impeachment. É preciso que o Poder Judiciário restabeleça no Brasil o que é justiça. Que restabeleça parâmetros mínimos para julgar as pessoas. A gente não pode simplesmente olhar o Brasil, como a gente está olhando, vendo o país cair nesse abismo, e dizer: "Não, não tem jeito". Quem vai fazer alguma coisa? É preciso que aconteça alguma coisa. A única coisa que o Brasil merece em 2020 é rumo. Seja qual for, sabe? Que alguém dê um rumo. Porque não dá mais para a gente manter essa destruição das instituições, das relações humanas, políticas, sociais. Não tem como não se envolver com isso. É impossível.

VOLTANDO UM POUCO À METÁFORA DO TRANSATLÂNTICO BRASILEIRO: OS TRIPULANTES, A SOCIEDADE, CONSEGUIRIAM DAR UM RUMO PARA ISSO? OU NÃO TEMOS ESSE PODER DE REALMENTE COLOCAR A EMBARCAÇÃO NO CAMINHO?

Diante de grandes crises, nós não devemos trabalhar com a reatividade, e nem com a resistência. Não é hora de resistir ao que está acontecendo. É hora de afirmar algo novo. É hora de dizer "sim". Sim, nós somos um grande país. Sim, não nos identificamos com o discurso fascista que cresceu em nossa sociedade. Não é isso que é o Brasil. Tem isso no Brasil, mas nós não precisamos nos identificar com isso. Sim, eu gosto da vida, eu gosto do mundo, eu gosto da praia, eu gosto do Carnaval, eu gosto do jazz, eu gosto da bossa nova. Eu gosto da alegria. Eu gosto da vida. É isso que o Brasil tem que fazer neste final de ano.

COMO?

Nós precisamos voltar a viver. Reafirmar o corpo e a alegria. Olhar adiante pensando, com clareza e certeza: isso vai passar. O Brasil continuará. Esse momento ficará apenas como uma mancha na nossa história. Isso que está acontecendo não vai destruir o Brasil. De jeito nenhum, de nenhuma forma. O Brasil é muito maior do que essa marola, que no momento parece um tsunami. É uma marola. Esse momento ruim que a gente está vivendo, um momento de desgoverno, com pessoas incapazes ocupando altíssimos cargos na hierarquia, esse momento tão ruim que a gente está vivendo vai passar. Porque não é isso que nos caracteriza. 

A gente vai ganhar rumo de novo. E a gente vai passar por isso e ainda rir muito de tudo o que aconteceu. Apesar de todo o sofrimento que estamos tendo hoje... Defendo que a gente festeje. Que a gente faça um Réveillon lindo, cheio de corpo, de arte, de vida. Porque as pessoas estão deprimidas. Elas estão sofrendo com tudo isso. Mas isso vai passar. Então é hora de a gente afirmar a vida. Afirmar o corpo, afirmar a arte. Isso é uma coisa que o Brasil sabe e pode ensinar para o mundo todo.

POR QUE A ARTE, QUE TEM SIDO MUITO ATACADA, É TÃO IMPORTANTE NESSE MOMENTO?

A arte é o impulso dos corpos. Se você perde alguém que ama por abandono ou por morte, é uma dor insuportável. Muito insuportável. Mas, no momento de luto, de maior sofrimento, a gente precisa expressar o que sente. E, na hora em que você consegue expressar o que você sente por meio da música, por exemplo, que é algo muito marcante - ou de qualquer outra arte, do poema... -, quando você consegue expressar seu sentimento, você continua sofrendo, mas ganha um extra de vida e alegria, que é a capacidade de expressar. Nós nascemos para nos expressarmos. Quando a gente expressa o que sente com muita potência, a gente ganha força, ganha alegria. A dor da perda não diminui, mas ela se equilibra. Então a nossa perda está lá. 

A nossa dor, todo o nosso sofrimento com esse ano tão ruim, não apenas com política, mas com tudo isso que você citou, com Brumadinho, que foi uma coisa horrorosa, o Ninho do Urubu (centro de treinamento do Flamengo), com tudo o que a gente passou neste ano, com toda a dor humana, existencial que a gente tem nesse momento, a gente precisa exatamente de uma alegria extra, sabe? E é por isso que existe a arte. Para que a vida seja possível para o ser humano. Porque, se a gente tivesse consciência, e não tivesse arte, a vida seria horrível. Então vamos resgatar a arte. Por isso que ela está sendo atacada. Ninguém manipula um povo forte. E a arte nos dá força.

E COMO ENCONTRAR A FELICIDADE NESSE CONTEXTO? DEVEMOS BUSCÁ-LA SOZINHOS OU É PRECISO ALGO MAIS AMPLO, UM ESTADO DE BEM-ESTAR GERAL QUE NOS TORNE MAIS ALEGRES COMO UM TODO?

É que não existe felicidade. A ideia de felicidade é inventada pelo consumo. Não tem felicidade. Felicidade é aquilo que você vê quando compra uma roupa na loja. Parece que aquilo vai te trazer alguma coisa, mas não vai trazer nada. Aquilo é só consumo. O que existe é a alegria. E alegria é boa compartilhada. Ninguém quer ser alegre sozinho. Promova a sua alegria. Quando você estiver muito alegre, vai ver que a primeira coisa que vai querer é dividi-la. É triste ser alegre sozinho. E a gente precisa produzir alegria a partir do indivíduo mesmo. Eu sinto alegria cuidando das minhas plantas. Eu tenho animais que amo. Amo a natureza. Costumo dizer que, para ganhar alegria, você tem que amar alguém ou algo que não vá embora, que não te abandone. 

Se você ama o mar, ele vai estar sempre lá, te dando um banho legal. Então produza a alegria, a sua primeiro, pessoal, individual, única, que te alegra. Quando você estiver se sentindo alegre, você vai ver que você vai ter vontade de estar com as pessoas, vai dividir isso com os outros. É isso que a gente tem. Trocar essa alegria. Especialmente das coisas simples. Agora, não busque a felicidade, por favor. O que é a felicidade? É um ideal. É um ideal eterno. Se você pensar bem, sempre tem consumo nesse ideal. Ouvi uma música esses tempos, da Ludmilla, que fala: "Uma taça de Chandon/ Um calor no edredom". Podia ter só o edredom. Não precisa o Chandon ali. Já tem o edredom, tem o batom... A consciência da alegria nas coisas simples nos faz viver melhor. Não precisa mais e mais.

E CONSEGUIMOS DIFERENCIAR UMA ALEGRIA VERDADEIRA DAQUELA FELICIDADE FABRICADA? QUER DIZER, NÃO BASTA SAIR DE FÉRIAS PARA ESTAR FELIZ, NÃO É PASSEANDO PELA EUROPA QUE TODOS ESTARÃO VERDADEIRAMENTE ALEGRES...

Para você ter uma ideia, o retorno das férias é o momento de mais busca por psicólogos, terapeutas. As férias são a pior época. As pessoas piram, se separam. A maioria das pessoas se separa em uma viagem para a Europa. Sonha com a viagem, mas volta de lá separado. Porque não é felicidade que a gente procura. A gente tem que entender que a vida é algo difícil. Mas também tem muita alegria. Então a vida é feita de ganhos e perdas. O alvo não é ser feliz, o alvo é aprender a viver. E tirar da vida mais proveito. Tira proveito da vida quem conhece a vida. Quem é um sábio. E não é preciso dinheiro para ter sabedoria. Agora, a civilização te promete felicidade. Ela diz assim: "Não se relacione com a vida. Não perca tempo. A vida é muito difícil. Não precisa sentir dor, não. Para quê? Toma uma medicaçãozinha e dorme, não tem insônia. Toma uma medicação de manhã e você vai se sentir melhor". A gente tem que aprender que os sofrimentos e as perdas são algo que nos impulsiona adiante. Que fazem a gente crescer. O que é crescer? Não é ser maior para os outros. É ser maior para você. E o seu contorno psíquico será mais amplo. Um contorno, uma alma mais ampla é uma alma que se relaciona melhor com a exterioridade. Com o mundo, com a vida. A gente tem que buscar isto: grandiosidade de alma. E não ganhar do outro nos produtos, o que é muito baixo.

TEMOS VISTO UM APARECIMENTO MAIOR DA FILOSOFIA NO NOSSO DIA A DIA. MUITA GENTE, NÃO SÓ NO BRASIL, ESTÁ FICANDO CONHECIDA POR ESSA ÁREA DO PENSAMENTO. ESSA POPULARIDADE CHEGA A JÁ CONFIGURAR UMA FILOSOFIA BRASILEIRA?

Espero que (a filosofia brasileira) não seja a do Pondé (Luiz Felipe Pondé, filósofo conservador). Qualquer outra, estou achando linda. Mas eu vou responder a sua pergunta. Sim, o Brasil tem desenvolvido, cada vez mais, o interesse pela filosofia, pelo debate, pelo pensamento. Os pensadores mais conhecidos levam multidões para um teatro. Na maioria das vezes, esse pensamento que tem sido levado é um pensamento superficial, mas é necessário que ele exista, porque para educar a grande massa da população é preciso que esse pensamento seja muito simples inicialmente. Mas é um pensamento que fisga as pessoas para outros livros. 

Então eu acho que está tudo correto. Acho muito bacana. Todos os pensadores mais conhecidos, que utilizam a filosofia, ou sociologia, antropologia, arte, que trazem esse debate e que têm uma multidão de seguidores, fazem um grande trabalho. Porque eles exatamente mostram às pessoas que o conhecimento é algo necessário. E dali em diante elas vão buscar livros mais elaborados. Tudo lindo. Agora, eu só não posso considerar nessa lista o Olavo de Carvalho e o Pondé. Eu não considero que esses pensadores tragam mais do que preconceito e desserviço intelectual.

MUITOS FILÓSOFOS DA ATUALIDADE TAMBÉM SÃO PSICANALISTAS. VOCÊ IDENTIFICA QUE ESTÁ SE FORMANDO UM NOVO CAMPO DE ESTUDO QUE CONVERGE ESSAS DUAS ÁREAS DE CONHECIMENTO?

É que a psicanálise vive uma crise severa. Precisa rever todos os seus conceitos. A psicanálise não morreu. Não é isso o que estou dizendo. A psicanálise é um corpo teórico altamente sustentável no sentido de partir de um trabalho muito consistente feito por Freud e por seus seguidores. Isso não é desfeito. Mas Freud só pôde ser capaz de ler o seu tempo. Até uma certa hora, uma certa medida. Ele traz algo que é universal, mas a partir de um certo momento do seu trabalho, ele é limitado pelo seu tempo. Que, hoje, é passado. Nós vivemos uma crise do humano. Nós vivemos a exaustão humana neste momento. Não temos mais a neurose como base da sociedade. Nós temos a perversão. Nós temos o ódio que reina neste momento. 

Na época do Freud, o ser humano era estável e neurótico. Então o sofrimento dele era não ter acesso à sua sexualidade. Porque vivia um período de repressão. Hoje, é exatamente o contrário. A nossa animalidade está aflorando. Nós estamos perdendo qualquer tipo de contorno. Então, a psicanálise necessita da filosofia. Porque a filosofia não é clínica - quer dizer, pode ser, em um caso específico, mas a filosofia pura que eu estou falando -, a filosofia em si, por ser uma sofisticação do pensamento, é mais aberta à inovação. Ela não tem um compromisso com o paciente, por exemplo. Ela tem mais liberdade. Então a psicanálise precisa da liberdade da filosofia para ousar no pensamento e reconstruir os seus modelos.

GUILHERME JUSTINO



28 DE DEZEMBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

DONA FELIPA

Dona Felipa era casada com seu Antônio Bombeiro. Moravam no primeiro quarto de um cortiço da Rua Henrique Dias, no Brás, em São Paulo, em que viviam uma família de imigrantes italianos com a criançada e duas de portugueses como ela e o marido.

Lembro dele no armazém da esquina, encostado no balcão de mármore, ao lado dos sacos de arroz, feijão e batatas, barricas com azeitonas e pilhas de bacalhau seco, comida de operários naquele tempo. Sobre o balcão, o copo de pinga ao lado de outro com água.

Não havia sido bombeiro; trabalhara numa oficina no Canindé até a aposentadoria precoce causada por uma hérnia, segundo diziam. A alcunha viera do hábito de alternar cada gole de cachaça com outro de água, para cortar o efeito, conforme justificava. A estratégia nem sempre lhe assegurava a volta para casa com os passos em linha reta.

Bem mais jovem, dona Felipa andaria pelos 30 e tantos anos. Chamava a atenção quando passava na calçada do bar da outra esquina, de saia e blusa, com o xale preto nos dias frios, discrição que convinha a mulheres casadas daquela idade. Eu ficava incomodado com a malícia dos olhares e os cochichos dos homens. Sentia ciúmes dela.

Talvez porque viesse da mesma aldeia que minha avó materna, ou porque não tinha filhos e eu fosse órfão de mãe, ela me tratava com carinho. Ao cruzarmos na rua, sorria, pedia um beijo e me passava a mão na cabeça. Toda vez que fazia doce de abóbora, saía na porta e gritava meu nome. A cozinha era impecável, o cheiro, delicioso, o doce, mais ainda. Quando ralei o joelho no futebol em frente à fábrica, na rua de casa, ela me fez entrar, lavou a ferida com água morna e o sabonete "Vale Quanto Pesa", passou mercurocromo, cobriu com gaze e me beijou na testa.

Uma tarde, a ambulância do Samu estacionou na porta do cortiço. Paramos o futebol. Seu Antônio saiu amparado por um enfermeiro de branco e seu Augusto, um cunhado que morava na rua de trás. Estava pálido, com os olhos amarelados e o abdômen inchado.

Passou quase um mês na Santa Casa. Quando voltou, tinha o rosto encovado, os braços finos e o olhar mortiço. Nas poucas vezes em que andava até a esquina, vinha com a camisa do pijama, apoiado no ombro do cunhado.

Meu tio era médico recém-formado. Aos domingos, depois do café da manhã, eu defendia os pênaltis que ele cobrava no corredor da casa de minha avó paterna, em que a porta da sala fazia as vezes das traves. Pegava quase todos, sem desconfiar da condescendência do tio querido. Num domingo, quando acordei, encontrei-o com a maleta de médico, de saída para atender seu Antônio, que passava mal. Insisti tanto que fui junto.

O doente estava deitado. Era um fiapo de homem atrás da barriga que transbordava para além dos limites do corpo. Numa cadeira no canto, seu Augusto. Dona Felipa ajeitou o cobertor, desabotoou o pijama listado e expôs o abdômen do marido.

Meu tio abriu a maleta, encaixou uma agulha enorme num equipo de soro, esfregou um algodão com álcool na pele ressecada do abdômen e ajoelhou no chão, ao lado. Não pude ver o que mais desejava, porque dona Felipa me abraçou por trás e me tapou os olhos.

Assim que me soltou, vi a agulha espetada da qual saía um líquido amarelo que corria pelo fio de plástico, para desaguar na bacia colocada sobre um tapetinho, junto à cama. Por duas vezes, o tio dobrou o fio para interromper a drenagem, enquanto o cunhado esvaziava a bacia no vaso sanitário, do banheiro coletivo.

Num sábado, a janela da casa amanheceu aberta. Do parapeito, pendia um manto de veludo preto com uma cruz de ouro bordada no centro. As mulheres estavam em volta do caixão sobre a mesa do quarto, iluminado pelos castiçais; os homens conversavam em voz baixa no corredor.

O caixão foi trazido para o carro fúnebre por homens de terno escuro. Na alça da frente, seu Augusto, com os olhos vermelhos e uma braçadeira preta no paletó.

Muitos anos mais tarde, no Hospital do Câncer, recebi um menino de 10 anos com o diagnóstico de um tumor maligno, que julguei equivocado. Pedi a revisão das lâminas preparadas por ocasião da biópsia.

Ao saber que se tratava de uma lesão benigna, os pais abraçaram o filho num choro silencioso. Precisei me conter para não me juntar a eles. Na semana seguinte, voltaram com um presente. A mãe do menino disse que tínhamos um passado em comum:

- Sou filha da dona Felipa e do seu Augusto, vizinhos da sua família na Henrique Dias.

DRAUZIO VARELLA


28 DE DEZEMBRO DE 2019
COMPORTAMENTO

ADIAR PARA NÃO SE PRECIPITAR

A PROXIMIDADE DO RÉVEILLON COSTUMA MOBILIZAR AS PESSOAS PARA AS RESOLUÇÕES DE ANO-NOVO. MAS É BOM TER CALMA E NÃO FICAR OBCECADO POR TOMAR CERTAS DECISÕES, ADVERTEM ESPECIALISTAS OUVIDOS POR ZH

Eis uma boa notícia: contrariando a ideia que muitos têm de que em três dias o mundo se vai pelos ares e que é preciso resolver e decidir a vida antes de 31 de dezembro, a virada do ano só traz uma mudança de calendário e, comumente, tudo permanece igual. Nós continuamos os mesmos e, salvo alguma exceção, tudo ao nosso redor segue inalterado. Então, por que temos essa urgência de tomar tantas decisões nos últimos dias do ano?

Lá em 2015, em entrevista a Zero Hora, o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker recomendou:

- Tome suas decisões em janeiro. Nunca tome uma decisão entre o Natal e o Ano-Novo.

Por trás do conselho, está o cenário no qual acabamos imersos durante esse período: estresse elevado e sobrecarga de atividades, o que nos impede, muitas vezes, de fazer uma análise profunda do que realmente queremos. Na reta final de 2019, ZH conversou novamente com Dunker e também com outros especialistas para saber se realmente existem decisões que devam ser proteladas e quais são elas.

PRIMEIRA DICA: EVITE AS DECISÕES DRAMÁTICAS

Para a psicóloga e diretora da Clínica de Stress e Biofeedback Ana Maria Rossi, por ser um período sensível, no qual estamos com o nível de estresse maior, o ideal é fugir das decisões radicais e que tenham grande reflexo tanto na sua vida quanto na de quem o cerca. Como um divórcio ou mesmo uma mudança de endereço abrupta.

- Infelizmente, nesse ímpeto de uma mudança radical no modo de viver, as pessoas já terminam o ano tomando decisões a respeito daquilo que as afeta. São decisões pensadas, mas tornadas públicas em um momento inoportuno. Que diferença vai fazer se eu não fizer no dia 31, mas no dia 2? Há esse simbolismo de "à 0h01min vou começar com um novo sentido na minha vida". O melhor é não tomar decisões dramáticas nos últimos dias do ano, quando todo o nível de emoção vai estar aflorado. A recomendação é avaliar o impacto que isso vai ter em todas as pessoas da família e o custo-benefício de começar à 0h01min - diz Ana Maria.

O cuidado especial deve ser tomado, principalmente, quando falamos em separações de casais com filhos pequenos ou adolescentes.

Christian Dunker defende que não é o ato de decidir ou não que conta, mas sim a avaliação que foi feita antes de tomá-la.

- Não é que não tomem decisões. É que decisões para valer convocam na gente a relação de consequencialidade. Decisões tomadas de um balanço mal feito e promessas de Ano-Novo baseadas na reforma (pessoal) e em sonhos gloriosos de que tudo vai se resolver "porque vou perder três quilos" são feitas em um espaço de tempo de 15 dias. É uma situação em que se olha para vida de binóculo, de muito longe - critica o psicanalista.

Dunker vai além:

- Tem quem pense: "O que está errado é a paisagem, vou mudar para a Austrália". É o tipo de decisão baseada no fato de que o outro está impedindo você de ser feliz. Esse é o tipo de decisão prêt-à-porter, que sai do armário nessas ocasiões. A recomendação é: olhe para si antes de diagnosticar o mundo. Um bom processo decisório tem essa ponderação. Mudanças importantes que fazemos na vida precisam de espaço e tempo.

Mais do que espaço e tempo, decisões cruciais devem ser feitas em um período de tranquilidade, não em meio a um turbilhão de emoções e atividades, como acontece em dezembro.

Fernando Gomes, neurocirurgião do Hospital de Clínicas de São Paulo, lembra que, quando estamos descansados, com o sono e a alimentação em dia, tendemos a ter mais tranquilidade no processo decisório:

- Decisões que necessitem de maior clareza de pensamento, se puderem ser adiadas, melhor, para que não se tenha influência negativa de distratores de atenção que impactem na sua escolha do que fazer.

SEGUNDA DICA: ENTENDER O QUE TORNA UMA DECISÃO URGENTE

Refutando a ideia coletiva de que o novo ano é um livro em branco prontinho para ser escrito como a gente bem entender, o jornalista e psicanalista Paulo Gleich acredita que as resoluções devam ser desenhadas com calma e levando em consideração a importância delas: qual a sua relação com a decisão? Quais são seus obstáculos e por que você não conseguiu fazer até agora? Responder essas questões é um bom ponto de partida para esboçar o que está por vir.

- As resoluções têm essa ideia da ilusão que se ganha uma página em branco na qual se pode escrever o que quiser do jeito que quiser, mas na verdade não mudou nada. O calendário é novo, mas a gente é a mesma pessoa do dia anterior. Mais do que fazer uma lista de resoluções, talvez seja importante perguntar sobre aquilo que tanto se diz querer e não se consegue fazer. Pensar e entender um pouco melhor - afirma Gleich.


Pesquisas apontam que a maioria das resoluções de virada do ano duram o tempo de pular as sete ondas. Tárcio Soares, psicólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), diz que 90% dessas promessas não são cumpridas, pois não há trabalho de pensar sobre elas. Ele afirma que fazer metas é saudável, contudo, elas são apenas caminhos para chegar onde se quer:

- Ter a intenção não significa que ela vai virar comportamento.

Para se criar bons objetivos para o ano que se aproxima, é fundamental esmiuçar ao máximo seus desejos. Por exemplo: não planeje apenas fazer exercício físico. Pense onde vai fazer, quantas vezes por semana e em qual horário. Trace também os possíveis obstáculos a essa meta.

- Muita gente tem como meta economizar. Mas isso é muito genérico. Precisa definir: vou guardar R$ 100 por mês, por exemplo. Pense também em quais são os obstáculos para isso e como superá-los: "Bom, estou pedindo muita comida de telentrega, porque chego em casa cansado do trabalho" - ensina Soares.
O neurologista Gomes também sugere que se anotem essas metas no papel e que, periodicamente, se revise essa lista.
- Coloque seu cérebro trabalhando a seu favor na organização e no planejamento futuro - indica.


TERCEIRA DICA: LEMBRE DE DECISÕES DOS ANOS ANTERIORES


Se você chegou aos últimos dias de 2019 com a sensação de que não fez tudo aquilo que prometeu lá em 2018, respire fundo. A frustração faz parte do processo e pode ajudar a construir aquilo que se almeja verdadeiramente. Mas, para isso, é preciso não mergulhar em um sentimento de culpa. Não é se martirizando que você vai conseguir avançar. Também entenda onde você falhou, assuma os erros e se perdoe, sugere o professor da PUCRS Tárcio Soares.

Paulo Gleich provoca:

- Se você fica muito frustrado e isso se repete, cabe uma reflexão para entender por que você precisa repetir a experiência de frustração com frequência. Por que não consegue ir além dela?
CAMILA KOSACHENCO


28 DE DEZEMBRO DE 2019
J. J. CAMARGO

ATÉ O AFETO É UMA SURPRESA PREVISÍVEL

OS TRÊS TIPOS DE AMIGOS COM OS QUAIS A GENTE TROCA MENSAGENS DE WHATSAPP NAS FESTAS DE FIM DE ANO

Existem formas de seleção de criatividade, reconhecidas e louvadas em todo o mundo. Uma delas é a invejável capacidade de recriar festas diferentes sobre temas tradicionais, tornando-as inesquecíveis. Como as festas se repetem, e as preocupações da vida real não deixam tempo de sobra para as celebrações, mesmo que quiséssemos não conseguimos ser criativos todos os dias, o que de certa forma explica aquela nostalgia do fim da comemoração de Natal, uma espécie de ressaca da alegria mais prometida do que entregue.

Como o abraço vem sendo progressivamente substituído pelo WhatsApp, na segunda metade da festa, quando todos já se convenceram que de abraços era o que tínhamos, entra em cena a caçada afetiva, com cada um iluminado pelo visor do smartphone, à cata das mensagens que espera-se justifiquem a euforia que começou lá atrás, quando se descobriu que o Natal, além do mais, seria um maravilhoso feriadão.

O passeio virtual então revela os três tipos de conhecidos, com graus completamente diferentes de amizade. E é bom ter cuidado com essa palavra, porque só uns raros felizardos têm mais amigos do que as estações do ano. Ainda que os critérios de seleção sejam aleatórios, a espontaneidade das mensagens deve ser um deles, falível talvez, mas que pela frequência com que se repete, precisa ser, ao menos, considerado.

No primeiro grupo estão aqueles poucos queridões, que tomam a iniciativa e adoçam nosso ego com as declarações de amor que sempre quisemos verdadeiras, e que quando estamos deprimidos ou solitários, pouco importa-nos que pareçam exageradas. Afinal, é pela afirmação desses afagos que sobrevivemos ano pós ano, e entendemos essas festas como oásis de afeto no grande deserto da reciprocidade neste moderno império da individualidade.

No segundo grupo, bem mais numeroso, mas menos constante, estão aqueles parceiros que se mantiveram em silêncio até que uma chamada nossa os despertou, e então foram capazes de mensagens muito generosas e, às vezes, tão intensas que, se tivessem sido espontâneas, multiplicariam a contagem dos amigos, equiparando-os, quem sabe, aos meses de cada ano. De qualquer maneira, é recomendável cultivar esta turma, como uma espécie de reserva técnica, até porque não sabemos quanto tempo viverão os amigos da primeira hora, e ninguém quererá descobrir, no último dia, que foi escalado para apagar a luz, fechar a porta e colocar a chave embaixo do tapete.

O terceiro grupo é formado por todos os outros conhecidos que recebemos da vida, como promessas não alcançadas ou, desde logo, como certeza de frustração. Depois do tempo desperdiçado em conquistá-los, foi um alívio descobrir que era impossível, lembra? Então sossegue, a qualidade das relações amorosas é mais importante do que o número. E não se esqueça de que, na escala afetiva, o falso estará sempre abaixo do zero.

Então, enquanto espera a próxima festa, confiando que estará aqui para repeti-la, com alegria ou enfaro, abrace os amigos verdadeiros e repita o quanto você precisa deles, até que acreditem. Chame para mais perto os do segundo grupo e dê a eles o crédito de que, talvez, se tivessem sido mais valorizados, ascenderiam na escala do carinho recíproco.

E esqueça os do terceiro grupo, eles não são confiáveis e não há nada que possa ser feito para mudar a opinião que têm ao seu respeito. Mas não se deprima, em todo este tempo que se mantiveram distantes eles não sentiram a sua falta, mas você teve o mesmo tempo para descobrir que eles não são imprescindíveis. Então Feliz próximo Natal, para eles também!

J. J. CAMARGO


28 DE DEZEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Ao Quintão! Ao Quintão!

O nome dela era Sândi. Outra namoradinha que tive. Ela também ia para a praia no verão, como a Alice, sobre quem escrevi na sexta-feira, só que para um lugar mais acessível: o Quintão. Nessa época, em que nós pegávamos carona para ir a Tramandaí, eu e Sândi já não namorávamos mais. Mesmo assim, sempre havia certa tensão sensual entre nós, uma troca de olhares mais longa, uma insinuação de promessas.

Pois foi exatamente isso, uma insinuação de promessas de Sândi, que me fez ter aquela ideia que julguei genial, num fim de semana árido em Tramandaí, um daqueles finais de semana em que nós pensávamos que as festas sempre aconteciam onde não estávamos. É que eu a encontrara dias antes na calçada da Coorigha, na baixada da Plínio Brasil Milano. Era um fim de tarde e Sândi era loirinha e ela me mandou um olhar verde-azulado e miou:

- Neste fim de semana, vou estar com um monte de amigas em minha casa no Quintão. Se tu e os guris quiserem ir pra lá?

Depois de contar sobre esse convite, pus o dedo em riste e convoquei os guerreiros:

- Ao Quintão!

E eles, em uníssono:

- Ao Quintão! Ao Quintão!

- Cara? as amigas da Sândi! - o Plisnou esfregou as mãos, antecipando as festas inenarráveis que faríamos.

- Gol do Brasil! - comemorou o Fernando.

E todos juntos:

- Ao Quintão! Ao Quintão!

Sim! Finalmente estaríamos onde estariam as festas!

Mas como chegaríamos ao paraíso, se não tínhamos carro nem dinheiro para o ônibus?

- Usem a lógica! - disse o Barnabé: - Quintão é praia, praia fica no Litoral, o Litoral é a faixa de areia. Vamos pela areia!

- Boa ideia! - festejou o Sérgio Baixinho.

- Não é longe? - perguntou o Fernando. - Eu tenho que carregar essa barraca?

O Fernando era o encarregado de levar a barraca naquele fim de semana.

- Deve ser uns quatro ou cinco quilômetros - arriscou o Jorge.

- No máximo, seis ou sete - completou o Plisnou.

- Então, vamos! - animou-se o Baixinho.

- Ao Quintão! Ao Quintão!

E lá fomos nós, para a areia, todos com mochilas nos ombros, e o Fernando com a mochila e a barraca. Saímos caminhando à margem do oceano.

- Vocês têm certeza de que Quintão é nessa direção? - perguntei.

- Ei! - gritou o Barnabé para um senhor gordinho de calção vermelho. - Quintão é nessa direção?

- É! - respondeu o homem.

Agradecemos e fomos. E fomos e fomos e fomos. Avançávamos contentes, imaginando como seria a integração com as amigas da Sândi.

- Vamos fazer um luau! - propôs o Plisnou.

- Boa! - concordou o Fernando, arfando debaixo da barraca. - E, à meia-noite, vamos convidar as gurias pra tomar banho de mar!

- Todos pelados! - acrescentou o Barnabé.

- Ninguém é de ninguém! - gritou o Baixinho.

- Ao Quintão! Ao Quintão!

Fazia um sol forte, fortíssimo. Depois de alguns minutos, a quantidade de pessoas na areia começou a diminuir. Foi diminuindo, até que restávamos só nós e o mar.

- Acho que eu e Sândi podíamos retomar o namoro? - falei.

E passei a planejar mentalmente o meu novo romance com Sândi. Ah, o verão! "Summer loving had me a blast", como diria o Travolta.

- Vai ser uma loucura! - gritou o Plisnou.

- Será que falta muito? - gemeu o Fernando, debaixo do saco em que estava a barraca.

Olhamos para frente. Areia e areia e areia, como se estivéssemos no Saara. Nem uma sombrinha à vista. Caminhamos por, sei lá, duas horas mais, que pareciam dois dias.

- Tenho de descansar - avisou o Fernando, atirando a barraca no chão. - Não aguento mais.

- Frouxo - disse o Barnabé.

Sentamos na areia. Estávamos todos exaustos, essa era a verdade. Sentíamos sede também. E fome. E alguns já se queixavam de queimaduras do sol.

- Vamos todos ter insolação - uivou o Fernando.

Passados alguns minutos, dei um salto:

- Temos que ir ao Quintão!

- Ao Quintão, ao Quintão? - eles repetiram, mas sem o entusiasmo de antes.

Nos levantamos. Seguimos em frente. O Fernando resmungava o tempo todo. O Barnabé brigava com ele. Então, um senhor de cabelos brancos e pele curtida do sol, com um caniço na mão, surgiu detrás de um cômoro.

- Com licença? - pedi. - Ainda falta muito para o Quintão?

Ele arregalou os olhos.

- Nossa! Faltam uns 50 quilômetros! E é para o outro lado! - apontou para o ponto de onde tínhamos vindo. - Meu Deus! E onde nós estamos? - Presidente!

Presidente? Que lugar era aquele, Presidente? Não sabíamos. Só sabíamos que não era o Quintão. O gordinho de calção vermelho havia nos enganado. Bem, ficamos em Presidente. Sem dinheiro, sem comida, sem bebida, sem mulheres. Passamos a noite imaginando que, no Quintão, havia uma casa cheia de garotas que se perguntavam:

- Onde estarão eles? Onde estarão? Era assim mesmo, já estávamos acostumados: no verão, a festa sempre acontecia em outro lugar.

DAVID COIMBRA

28 DE DEZEMBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Fotografe menos

Quantas fotos você já tirou hoje? Qualquer banalidade torna-se foto. Não tirávamos tantas fotos porque não era acessível. A tecnologia brindou-nos com uma possibilidade antes não disponível. Concordo, mas acredito que existe outro motivo: fotografamos para nos defender da experiência.

A ideia que nos contamos é ir além do presente, registrar a experiência para saborear depois. É aqui que discordo, uma vivência é tanto mais rica quanto menos precisa de fotos. O exercício de parar para fazer o registro picota a experiência e a enfraquece. Até porque certas coisas têm um fim em si. Por exemplo, um prato culinário foi feito para comer, não para o futuro. Um encontro feliz com um amigo carrega uma magia que uma foto não capta.

Entendo a vontade de congelar o presente, mas você o esvazia se parar o que está fruindo para o pretenso desfrute posterior. O registro não guarda a aura do momento. Ele é pálido frente ao que realmente aconteceu. E quando saímos de cena para fotografar, saímos da cena da experiência.

É como se não acreditássemos no presente, na força do melhor que pode acontecer, realmente viver algo. Tentando editar nosso diário existencial com fotos, nos perdemos do melhor da vida. Deixamos de lado um gole gelado de chope para encontrá-lo choco depois.

O melhor testemunho de um fato é tê-lo desfrutado, não a foto. Se estivermos lá com intensidade não vamos esquecer, e se não lembrarmos tanto faz, pois o que mais nos transforma é a experiência por inteira. A lembrança é um brinde opcional posterior.

A foto se direciona ao outro, para que ele nos veja fazendo algo. Que alguém testemunhe que estivemos aqui e acolá, que somos bacanas por estar ao lado de X ou Y. Mas o que é mais importante: ter vivido ou mostrar que vivemos algo?

Observo turistas fotografando freneticamente o que estiver pela frente. Em vez de serem tocados pela beleza, pelo misticismo de um lugar, pela densidade histórica que encerra, postam-se atrás de uma câmera que os afasta do fruir. Inundados pela experiência, sacam a foto como anteparo que barra o vivido.

Talvez não sem razão. Existe uma quadro que se chama de Síndrome de Stendhal, ou hiperculturemia. São sintomas transitórios, geralmente desmaio, confusão mental, aceleração cardíaca e vertigem, que acometem quando alguém é confrontado a obras de arte extraordinárias. Indicio, portanto, que nos defendemos frente à beleza extrema, quando esta realça nossa insignificância.

Dizem que o celular é o novo cigarro. No sentido de que permite uma pausa, que faz intervalos e distanciamentos entre o que vivemos. Correto, e a câmera é a essência desse mecanismo.

Poucas fotos realmente captam o bom momento e merecem ser guardadas. Seja parcimonioso, fotografe menos e viva mais. Fume menos o seu celular.

MÁRIO CORSO

28 DE DEZEMBRO DE 2019
ARTIGOS

2020: O QUE ESPERAR?

O que podemos esperar de 2020? Essa é a pergunta dos brasileiros no fim de ano, particularmente ao final do primeiro ano de governo. Não tivemos anos fáceis ultimamente, nem aqui, nem lá fora.

Acontecimentos avassaladores espraiaram medo e insegurança pelo mundo. Migrações descontroladas, a ascensão da China e a ressurgência da Rússia, entre outros, alimentam intolerância, ameaçam empregos e introduzem formas de guerra que invadem nossas telas. Vivemos o refluxo da globalização em um cenário internacional de mais interdependência, porém surpreendentemente inseguro e imprevisível.

Internamente, estamos no sexto ano de vultosos déficits das contas do governo. A dívida pública é enorme, sem termos os bens e serviços pelos quais pagamos elevados impostos desperdiçados pela má gestão, incompetência e corrupção. Décadas de crescimento econômico pífio nos atolaram em um subdesenvolvimento excludente. O peso do Estado nas costas de quem investe e produz espantou investimentos, inibiu a inovação e diminuiu nossa produtividade. E a leniência das autoridades levou a violência no Brasil a níveis simplesmente incivilizados.

Diante desse quadro, o que tem a dizer o governo neste seu primeiro ano?

A bolsa de valores atingiu o recorde histórico de 117 mil pontos, impulsionada pelo capital produtivo nacional. O déficit projetado em R$ 139 bilhões para o próximo ano é agora estimado em cerca de R$ 80 bilhões. A menor taxa de juros de nossa história reduziu significativamente o pagamento anual da dívida pública. Em um ambiente econômico internacional de estagnação, o Brasil retomará o crescimento em ritmo maior do que o da América Latina. E, enquanto o número de mortes violentas diminui, o pacote anticrime do governo foi aprovado no Congresso, refletindo a repulsa da sociedade com a corrupção e a violência.

Os brasileiros podem, portanto, esperar em 2020 um país mais seguro, no qual a lei se aplique a todos. Um país menos desigual, onde as condições básicas de vida sejam progressivamente asseguradas a toda a população. Um país em que trabalho e investimento sejam cada vez mais valorizados, gerando riqueza, empregos e mais investimentos.

Mas, acima de tudo, podem confiar no Brasil que tem um enorme potencial para crescer e reiterar sua vocação de democracia, tolerância e prosperidade.

Vice-presidente da República - ANTONIO HAMILTON MARTINS MOURÃO


28 DE DEZEMBRO DE 2019
FLÁVIO TAVARES

O ANO OU UM ANÃO?

O fim de ano leva a indagar sobre o que fizemos ou deixamos de fazer nestes 12 meses. Mais do que um exame de consciência pessoal, recordamos, também, o que deixou de ser feito por aqueles que nosso voto empoleirou no poder. E aí, sem tocar nos desatinos e confusões na área federal, volto à denúncia sobre o maior assalto ao dinheiro público da história do Rio Grande do Sul, que se esconde (e se protege) nas gavetas do Judiciário.

O processo sobre o roubo perpetrado contra a CEEE em 1987-88, no governo Pedro Simon, se oculta desde fevereiro de 1996 na 2ª Vara da Fazenda Pública, "em segredo de Justiça", sem qualquer sentença. Em valores atuais, beira R$ 1 bilhão, mas ninguém pia em nenhuma área dos três poderes para que prossiga e haja sentença.

Um silêncio total envolve tudo. Desde então, nossa moeda mudou de nome e de valor cinco vezes - a cifra em dólares surgiu, ainda, do "cruzeiro". O contrato de US$ 146 milhões, firmado em ato solene no Piratini, presidido pelo governador, foi fantasiado de nossa "redenção energética", mesmo sendo, apenas, a construção de 11 subestações transmissoras de eletricidade. Quatro delas não tinham terreno, três não tinham sequer projeto. Mas tudo foi pago antecipadamente às 11 empresas contempladas, entre elas algumas que - décadas depois - participaram do assalto à Petrobras, desvendado na Lava-Jato.

Em 1º de junho de 2014, escrevi aqui sobre isto e, agora, volto ao horror para que não o esqueçamos. Um silêncio absoluto, porém, envolve tudo. Não há sequer um daqueles demagógicos discursos no Legislativo pedindo "urgentes providências" e lembrando que a Justiça deve julgar, nunca protelar e facilitar a prescrição. Fora disso, tudo tem o rosto de inexplicável conivência ou convivência, como se delito fosse normalidade.

Diferentes governantes passaram pelo Piratini desde o fato, descoberto em 1996 quando Dilma Rousseff era secretária de Energia do governador Collares. Um inquérito do Legislativo desvendou as minúcias do roubo e, logo, foi ajuizada a ação.

Os "leguleios", esses ardis "legais" que travam a Justiça, vêm evitando, desde então, que o processo avance. Aos políticos (a quem confiamos nosso voto para resolver os impasses) e a quem mais for, deixo aqui como saber daquilo que hoje se oculta nas gavetas como joia intocável: processo 10502694894, que, ao início, reunia 37 volumes e 80 anexos.

O escândalo da CEEE não é, porém, o único a ser lembrado neste exame da consciência coletiva a que o fim de ano nos obriga. É, porém, o mais evidente porque exala um odor putrefato de cadáver insepulto desde o milênio anterior. A cada um de nós cabe, agora, um exame sobre nosso comportamento. Só assim, saberemos se 2019 foi um grande ano ou, apenas, um anão.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


28 DE DEZEMBRO DE 2019
SCOLA ENTREVISTA

"Educação nunca foi prioridade para nenhum dos governos"

RONALD KRUMMENAUER, CEO do Transforma RS e ex-secretário de Educação do Rio Grande do Sul

Em 2006, um grupo de empresários gaúchos se reuniu para criar um movimento com o ambicioso objetivo de tornar o Rio Grande do Sul "o melhor Estado para se viver e trabalhar". Batizada de Agenda 2020, a iniciativa conseguiu chamar atenção para os problemas históricos dos gaúchos, apontou possíveis soluções e cobrou o compromisso dos governadores que se sucederam no poder. A agenda mirava o futuro, 2020. Pois bem, chegamos ao prazo e o Rio Grande do Sul está longe do ideal, patina em indicadores de educação, de desenvolvimento econômico e perde espaço para outros locais, como Paraná e Santa Catarina. Ronald Krummenauer ficou à frente da agenda por 11 anos, até 2017, quando assumiu a Secretaria de Educação. Agora, acerta os detalhes para um novo desafio estratégico para o Estado, o Transforma RS.

Em que pontos a Agenda 2020 conseguiu avançar?

Algumas coisas avançaram, outras nem tanto. Projetos estruturantes são importantes e vão estar sempre na pauta. Esse compromisso, de um movimento de sociedade, feito por voluntários, teve fóruns temáticos diversos: educação, infraestrutura, cidadania, todas as áreas importantes de desenvolvimento. Eu ressaltaria a atuação, em 2009, via Lei de Inovação e Tecnologia, a mais moderna do Brasil na época, com o secretário (de Ciência e Tecnologia) Arthur Lorentz, no governo Yeda Crusius, em que a Agenda 2020 foi determinante na costura da legislação. 

Isso possibilitou que muitos parques tecnológicos se consolidassem. Não os que a gente já conhecia, como o Tecnopuc e o Tecnosinos, mas nas universidades do Interior. Aliás, faltam pessoas para ocupar empregos em parques tecnológicos. No governo de (José Ivo) Sartori, houve projetos estruturantes, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, um avanço tremendo. Essa organização de 60% para o funcionalismo, 20% de outras despesas, 10% para investimentos e 10% para pagamentos de dívidas e negociação, é algo que o governo sempre tem de buscar.

A Agenda 2020 ajudou a derrubar o estigma que existia em torno das PPPs?

Acho que sim. Não só nesse aspecto. Não falávamos de Previdência ou de déficit da Previdência e a Agenda começou a trazer esses números. Entre 2006 e 2008, era em torno de R$ 2 bilhões o déficit da Previdência. Hoje, estamos em R$ 12 bilhões. Se tivéssemos feito só essa reforma há 12 anos, independentemente dos governos, hoje teríamos não só um superávit financeiro como capacidade de investimento, que não temos. Teríamos outro Estado. A Agenda foi sempre geradora de ideias, de proposições. O movimento criado por voluntários não é de governo, não é certo ou errado, não deu certo ou deu errado a partir do que um governo fez ou não. O que faz é ajudar o governo a clarear e a montar projetos que podem mudar a vida.

Sobre a reforma da Previdência: se o alerta foi feito, o que faltou?

Faltou a nós, como sociedade, darmos importância para esse tema que, agora, é recorrente. Depois, e aí faço autocrítica, a Agenda 2020 pecou na articulação política. Levamos um tempo até entender que não era só ter espaço de comunicação, ter propostas e voluntários com grande capacidade intelectual. Era preciso fazer a costura política. Isso começou recentemente e passou a dar mais resultado, principalmente nos últimos anos - alguns desses projetos a partir da Lei de Inovação e Tecnologia. Mas levamos um longo tempo para entender que precisava de articulação. A velocidade da política e da vida real não combinam. Talvez um dia a gente possa ter um encontro de tempos mais precisos, mas isso é da vida, temos de entender, porque graças a Deus vivemos em uma democracia.

Qual ideia emblemática da Agenda 2020 não foi colocada em execução?

Vou citar a educação, em que tive a oportunidade de exercer a função de secretário recentemente. Deixamos de estruturar as questões de educação. Deixamos o tempo passar. E não estou falando especificamente de plano de carreira. Estou falando de Lei de Diretrizes de Ensino, que a do Rio Grande do Sul é de 1969. Ainda há tempo se corrermos muito, preparando esse profissional para o século 21. E aí faço uma conexão entre o que precisamos estruturar como sociedade, tanto na política quanto na economia, no público e no privado, e a preparação desses profissionais.

Que tipo de estruturação é necessária?

É a estruturação do profissional, a educação como algo maior, que precisamos reinventar. Esse passado em que você poderia ficar 15, 20, 30 anos em uma profissão fazendo mais ou menos a mesma coisa, se aposentar e ser feliz, isso não faz mais parte do nosso mundo. E esse desafio está ligado à educação do século 21, à reestruturação do que está sendo feito e à necessidade de treinar esse novo profissional, ajudar esse aluno, esse jovem na escola a entender e a buscar isso. Aquilo que é repetitivo está sendo automatizado e vai ser substituído. 

Se um jovem que está ingressando no mercado de trabalho está fazendo algo que pode ser trocado por algum mecanismo, será substituído. Tem de buscar reformulação, e isso passa pela educação. Muito maior do que as discussões que estão acontecendo hoje, muito maior do que as discussões de qualquer tempo, de qualquer governo. De fato, educação nunca foi prioridade para nenhum dos governos. Nem de Estado, nem de município, nem federal. Isso é um pouco de frustração profissional versus sentimento. É emocional e técnico ao mesmo tempo. É o grande x da história da Agenda 2020, se fosse fazer checklist.

Em matéria de infraestrutura, o que faltou acontecer?

Muita coisa. O emblemático é ainda a discussão do aeroporto Salgado Filho, a extensão da pista. Se calcula mais de R$ 1 bilhão de negócios que deixam de ser gerados por ano ali. Se a gente coloca isso em 10 anos, é emprego dado em Viracopos, em Guarulhos, em São Paulo, em vez do Salgado Filho. No terminal de cargas, é imposto que deixa de ser gerado, são empresas que se inviabilizaram porque têm o aumento do custo de transporte, que tem de colocar (a carga) no caminhão e se deslocar para São Paulo em vez de colocar em um avião de carga no Salgado Filho. Às vezes, a gente não tem a dimensão de quanto isso pode representar em termos de economia mas quando a gente joga em uma década, tudo vira bilhões. É emblemático e importante. Dentro da infraestrutura, é o mais frustrante. Tomara que agora aconteça.

O que é o Transforma RS?

A gente tem trabalhado há alguns meses. Tanto a Polo RS, que tem história grande na atração de investimentos, está ajudando o governo do Estado na reestruturação desta área quanto a Agenda 2020, com projetos estruturantes. E há o PGQP (Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade), que trabalhou muito com processos. A união dessas questões todas estamos trabalhando em três eixos. Um de dia a dia, que tem muito a ver com processos e necessidades, desde a reforma de uma escola ao buraco em uma via, aquilo que é percebido pela sociedade. 

Há um eixo estruturante, que são os projetos da Agenda 2020, que o governo anterior trabalhou muito e o atual continua trabalhando. Parte disso são medidas que estão sob análise da Assembleia Legislativa. Também não podemos perder o foco de futuro, no que o RS pode ser competitivo ou já é nesse mundo novo? É no agronegócio? Que parte do agronegócio? É na TI, com parques tecnológicos? O que dentro disso? Então, é no que podemos nos diferenciar e na formação da educação. O equilíbrio destes eixos é o que estamos chamando de Transforma RS, que vai ter o trabalho iniciado em 2020.

Qual é a bola de ferro do RS?

Além da questão da educação, é a organização da gestão pública. Temos um poder público hoje que é completamente incompatível, temos impostos dos mais elevados do Brasil. Há algum tempo estive em Blumenau e paguei cerca de R$ 0,50 mais barato o litro da gasolina. Então, essa reorganização da gestão pública, que não é culpa do servidor ou de um governo específico, mas de uma história que nós, sociedade, deixamos ir piorando um pouco mais a cada ano e nunca demos um basta. A desorganização da gestão pública tenho certeza que é a bola de ferro do nosso desenvolvimento. Quebrar essa bola de ferro pode nos levar para outra situação.

DANIEL SCOLA