sábado, 24 de fevereiro de 2018



24 DE FEVEREIRO DE 2018
LYA LUFT


Somos fênix

A estranha ave lendária que se imolava no fogo e dele renascia é muito usada como metáfora de nosso próprio renascimento de horas ou fases muito difíceis.

Ninguém, eu acho, olhando sua vida, pode dizer que jamais teve esta sensação: "Agora, acabou; nada faz sentido". Ou: "Não vou aguentar". Ou: "Isso eu não vou poder suportar". Coisas desse gênero.

No entanto, me ensinou a vida, mesmo quando estamos numa UTI emocional, como a perda de alguém muito amado, esperando ou até desejando o fim e a paz, um dia conseguimos levantar, somos liberados dos aparelhos que nos mantinham vivos, chegamos até a porta... somos transferidos para um quarto mais promissor.

Dali, podemos espiar o corredor, andar por ele quem sabe apoiados em alguém ou de bengala, e finalmente conseguimos respirar. "Estou respirando livremente. A pedra pesada e escura no meu peito aliviou. Um pouco. Mais um pouco. Talvez eu nunca me livre dela inteiramente, mas estou aprendendo a lidar com ela. Tenho para isso o resto da minha vida." 

Tenho agora a força do pensamento de que o ser amado que se foi está em outra dimensão, outro registro, mas presente, gostaria que eu saísse da sombra da dor e voltasse a viver: em sua homenagem também, porque a vida deve ser vivida, merece ser vivida. Pessoas queridas nos ajudaram, confortaram, ou simplesmente foram uma presença bondosa e quieta. A gente sabia sem grande escarcéu: ele, ela, está ali para mim.

Estamos vivos. Saímos das próprias cinzas. Existe o mundo com suas belezas e crueldades, existem as pessoas com seus amores ou maldades, existem a loucura, a neurose, o rancor inexplicado, a violência e a guerra, mas também existe vida. Esse primeiro movimento para alguma claridade é como comprar uma flor e botar no vaso à nossa frente quando pouca coisa parece sobrar. E depois, a janela aberta sobre a floresta, ou o mar, ou o belo parque, a porta aberta para algumas pessoas especiais, porque multidão ainda não aguentamos. Essas que, longe ou perto, estiveram ao nosso lado ao redor da fogueira sabendo, torcendo para que a gente pudesse renascer do montinho de cinza em que tínhamos nos transformado.

Descobrimos ou redescobrimos o valor dos afetos, das coisas simples, daquela voz no telefone, aquele e-mail ou Whats, daquele passo no corredor, aquele gesto afetuoso ou um simples olhar de cumplicidade - pois nem todos sabem, ou conseguem, grandes abraços e palavras, mas estão ali conosco. E tudo isso nos fez de novo viver.

A fênix incansável volta a andar, a abrir as asas, a tentar seu voo: isso somos, até que um vendaval mais forte nos carregue também. Em paz.

LYA LUFT


24 DE FEVEREIRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

As minúcias


Todos sabem: chato é aquele que, ao ser perguntado se está tudo bem, não consegue responder simplesmente que está. Ele acha que a pergunta foi pra valer, então ele discorre sobre tudo o que tem passado e sobre como anda sem esperança na humanidade. Como avisá-lo, sem que ele se sinta ainda mais deprimido, que foi apenas um cumprimento e nada mais?

Minúcias a gente guarda para o nosso advogado. Ele certamente vai precisar delas para nos inocentar.

Minúcias podem ser reservadas também para a família, já que nossos pais e filhos adoram saber o que já aprontamos, aqueles segredos que só podemos contar depois que o crime prescreveu e tudo vira piada.

Por fim, minúcias são bem-vindas em livros, na defesa de teses e em consultas médicas. Em nenhuma outra situação que eu me lembre. Nem mesmo (e principalmente) em conversa ao pé do ouvido com seu amor. Não quebre o clima levando a conversa para muito longe de onde vocês estão.

Ao telefone, evite. Seu neto se machucou na escola? Tadinho. Pule rápido para a parte em que ele se recuperou e ficou tudo bem. Adote a presteza do WhatsApp. O quê? Você discursa pelo WhatsApp? Chegou de que planeta?

Minúcias em festas, nem pensar. Alugar um convidado com uma história comprida é uma inconveniência. As pessoas querem circular, dançar, e não saber detalhes da sua operação no joelho. Você não operou o joelho? Sério, acabou de fazer o caminho de Santiago de Compostela? Ótimo, condense a odisseia em seis minutos. Sete, se foi tão fantástico assim. E troque para outro assunto, a não ser que seu ouvinte pegue você pelo braço, leve-o até um canto e implore pelos pormenores.

Quando estamos falando sobre nós mesmos, é quase incontrolável fazer uma retrospectiva detalhada das nossas experiências, mas lembre-se que a maioria das pessoas prefere o compacto dos melhores momentos. É mais que suficiente.

Entendi, você não está falando sobre si mesmo, e sim sobre seu primo que foi casado com não-sei-quem, que ele conheceu numas férias não-sei-onde. Você está falando do seu professor de matemática da quarta série que tinha propensão a ter acne. Você está falando da sua tia-avó falecida que fazia ótimos bolinhos de chuva. Você está falando de pessoas que não tivemos a honra de conhecer - e falando por horas, sem que a história empolgue. Não se magoe, mas tente lembrar se você não teve um primo que ficou preso no elevador com a Madonna, uma tia-avó que traficava maconha dentro dos bolinhos de chuva, um professor que foi preso político. Se não teve, invente.

Conversar é uma delícia: trocar confidências, falar de sentimentos, opinar sobre o mundo, dar dicas culturais, narrar aventuras, contar episódios divertidos - a tarde inteira, a noite inteira. Mas se o assunto for de uma banalidade extrema, não especifique demais. A gente ama você, mas ninguém está com tanto tempo sobrando.

MARTHA MEDEIROS

24 DE FEVEREIRO DE 2018
CARPINEJAR

Sonhadores vitalícios

"Posso fazer melhor" é uma frase com dois sentidos.


Se você diz "posso fazer melhor", quando erra e é criticado, representa culpa. Alguém apontou o vacilo e se viu questionado a se pronunciar. Não foi uma manifestação espontânea. Pretende apenas corrigir uma falha com a esperança, mas não significa que realmente queria ter feito melhor, é uma desculpa social, coletiva, para ser perdoado e seguir burocraticamente em frente. É um remorso por ser criticado pelos outros, uma vergonha engolida a seco, não traz revolução interior e impulso para se aperfeiçoar de verdade.

Se você diz "posso fazer melhor" quando acerta, daí é criatividade. Enxerga muito além do óbvio. Não houve pressão externa, e sim resolução de seus próprios pensamentos. Tem um nível de exigência e disciplina que não permite ser corrompido pelo elogio ou se facilitar pela bajulação. Sabe o que pode oferecer, é o quanto é acima ou abaixo de seu potencial. 

Alguns comentarão que está sendo perfeccionista, entretanto partilha uma noção de que acertar é estar em movimento, jamais comemorar uma vitória - as vitórias são momentâneas e parciais, à semelhança dos fiascos. Trata-se de um realista otimista, que vive se cobrando antes de ser cobrado. É filho da resiliência, de um rigoroso diagnóstico de suas vontades. Não se perturba com o não, e tampouco com um sim. O grande motivo de carreiras cortadas é a acomodação. Quando é dado só o que é solicitado, não mais, não o impossível.

Walt Disney, antes de fazer sucesso, faliu com o seu primeiro estúdio. Steve Jobs não completou a escola e foi expulso de sua própria empresa aos 30 anos. Michael Jordan terminou cortado da equipe de basquete de seu colégio por não corresponder às expectativas. Assim como Thomas Edison enfrentou a suposição de retardado.

Todos têm em comum a obstinação positiva. Não desanimaram com o julgamento exterior, já que se autoexaminavam com constância, e se dobraram em esforço para arcar com as suas ambições. Sussurravam para si "posso fazer melhor" mesmo quando atingiram a excelência depois. Não se acovardaram com as opiniões alheias. Não se intimidaram com os obstáculos e o medo externo da aprovação. Não engavetaram as suas ideias, pois se mantiveram fiéis às suas crenças e objetivos. Não mudaram de trajetória por quedas eventuais. Não recolheram os seus projetos e migraram para tarefas estáveis, seguras e menos pessoais.

"Posso fazer melhor" é sonhar. Quem fala isso para si mesmo, e nunca espera alguém de fora falar, jamais desiste.

CARPINEJAR


24 DE FEVEREIRO DE 2018
PIANGERS

Alguém tem que fazer

Desde garoto, minha mãe me ensinou a realizar atividades domésticas. Ensinou é um substituto elegante para obrigou. Louça, cama, chão, banheiro, lixo, almoço, cuidar da minha irmã. Não tínhamos empregada nem babá. Lembro de detestar tirar o pó da casa, o pano molhado ia ficando preto, uma desgraça. Minha mãe era linha dura, chegava do trabalho e estava tudo brilhando. Hoje em dia as crianças nos chamam depois de fazer cocô até os trinta anos. Paiê! Manhê!

Acabei desenvolvendo predileções. Atualmente, minhas atividades domésticas favoritas são lavar a louça, ferver água e distribuir entre as garrafas da geladeira, ir catando os sapatos e brinquedos espalhados pela casa e ir realocando para seus devidos aposentos e arrumar as camas. Nada mais bonito do que uma cama arrumada. Meus ofícios menos favoritos são tirar a roupa lavada da máquina e estender, recolher os lixos do banheiro e da cozinha (lixo seco sou de boa) e limpar o chão da cozinha.

Limpar o chão da cozinha é um negócio desmoralizante. Você passa a vassoura, depois pega um pano e fica de quatro, arrastando o pano de um lado pro outro, tentando tirar os farelos presos no chão esfregando com o polegar, joelhos no azulejo frio, o pano solta mais sujeira do que absorve. Existem aqueles esfregões modernos, mas me arrisco dizer que só uma boa esfregada de pano enrolado no polegar tira todos os farelos de comida grudados no chão. 

Tem aquela técnica também de ir com os dois pés em cima do pano, cheng chong cheng chong, os passos pequenos arrastando o pano pela cozinha, parece que você é um pinguim. Me recuso. Se for pra limpar o chão da cozinha eu me submeto, é um trabalho desmoralizante, mas alguém tem que fazer. Melhor eu que outra pessoa. Ainda mais se a outra pessoa faz o passo do pinguim.

O lixo dos banheiros tenho nojo. Recolho apenas quando a tampa já não fecha. Sou daqueles que tira a sacola de supermercado cheia de papel higiênico usado e mantêm longe do corpo, segurando na ponta dos dedos, dando o nozinho com os braços esticados. O lixo da cozinha é um terror, porque sempre que você vai tirar ele está todo arregaçado, boca de bêbado dormindo, uma parte do lixo está dentro do saco e a outra caiu pra dentro da lata. Tem que pegar com a mão aquelas cascas de banana, aquela gordura da picanha, aquela borda de pizza que sua filha não come, colocar tudo no saco bonitinho, dar o nozinho com os braços esticados, colocar os sacos no corredor, na frente da porta do apartamento. 

Que coisa infame colocar sacola de lixo na frente da porta pra descer depois. Mas eu faço. O pior é quando alguém come melancia, joga no lixo e forma uma aguinha no saco, quando você vai tirar o lixo sai pingando tudo pela casa. Se não percebe, forma uma poça na frente da porta do apartamento. Aí, então, você tem que pegar um pano molhado e ficar de quatro limpando bem aquela sujeira toda. Que seu filho não pode fazer porque está cansado de tanto ficar no celular.

PIANGERS


24 DE FEVEREIRO DE 2018
CLAUDIA LAITANO

mães e FILHAS


No início de Lady Bird, um dos filmes que disputam o Oscar no próximo final de semana, uma adolescente se atira de um carro em movimento para se livrar da voz (e da presença) da mãe, que está ao volante. Pode parecer exagerado, e é, mas não há filha ou mãe que não tenha sentido vontade, em algum momento, de encenar um gesto grandiloquente como esse - principalmente tendo a garantia de que ninguém, a não ser o bom senso, sairia ferido.

Exagerada tanto em amor quanto em cobranças e expectativas mútuas, a relação entre mães e filhas pode ser sublime e exasperante em igual medida. Duas mulheres espelhadas e diferentes, íntimas mas não necessariamente próximas. Duas pessoas que podem se amar incondicionalmente e ainda assim não se gostar muito - como sugere, aliás, um dos melhores diálogos do filme.

Em Três Anúncios para um Crime, outro concorrente ao Oscar deste ano, acompanhamos a jornada uma mãe em busca de uma solução para o assassinato da filha. À sua maneira, a personagem vivida por Frances McDormand age como as mães e avós da Praça de Maio e tantas outras mulheres da vida real que não se conformaram com a morte ou o desaparecimento dos filhos, lutando por justiça mesmo quando a própria vida estava em risco. A certa altura da história, ficamos sabendo que a relação desta mãe incansável com a filha nem sempre foi fácil - o que não chega a ser surpreendente, dado o temperamento da personagem. Amor materno às vezes é briguento, cricri, sem noção, mas não deixa de ser sublime mesmo quando é exasperante.

Minha mãe e eu sempre fomos muito diferentes. Em nossos universos separados, por temperamentos e ambições, encontramos uma área neutra onde o afeto era mais importante do que a afinidade. O fato de que muitas coisas que eu considero essenciais eram irrelevantes para ela, e vice-versa, deixou de ter qualquer importância depois que me tornei adulta.

Eu já tinha uma filha quando deixei de ser a filha de alguém com quem eu podia brigar e fazer as pazes logo em seguida. Assistir à morte da minha mãe, segurar sua mão até o fim, foi para mim uma experiência tão intensa e reveladora quanto dar à luz. Foi naquele momento de dor e perda que eu entendi a dimensão do vínculo que me une às duas mulheres mais importantes da minha vida. As duas pontas da minha história.

Na infância, sentimos como se a mãe fosse uma parte de nós. Mais tarde, é preciso cortar esse cordão, sair do ninho, marcar diferença, inventar um destino (ou um nome, como a jovem personagem de Lady Bird). Para algumas mulheres, entre as quais me incluo, a sensação de que somos atravessadas, de forma visceral, pela relação que tivemos com nossas mães se torna ainda mais evidente depois que temos filhas. Nossas mães são como uma figueira centenária plantada no centro da nossa vida, com raízes que se estendem muito além daquilo que é visível. Nossas filhas são os frutos que nos levam a voar pelo mundo - até onde a imaginação delas, e a nossa, for capaz de ir.

CLAUDIA LAITANO

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018



Veraneio 2018 


Pois é, nosso tradicional veraneio feito de oito fins de semana deste verão de 2018 não terminou. Falta um finde, graças a Deus. Tem esta saideira de sexta até domingo 25, e é bom demais lembrar que a Páscoa está logo ali, no final de março. Melhor deixar umas bebidas e comidas duráveis na geladeira da praia, pensar no feriadão do coelhinho e, que remédio, enfrentar, de novo, em turno integral e por toda a semana, a realidade urbana ou rural.

Entre uma viagem semanal e outra, a maioria ficou entre a praia e o asfalto. Para muitos, o melhor veraneio é em Porto Alegre ou nas cidades. Questão de gosto. Gostos, cores e amores não se discutem, dizia minha vó. É preciso ser forte e firme para enfrentar, como disse um amigo, a "depressão pós-verão" que atinge muitos viventes rio-grandenses, que passam o ano com saudade de nossas lindas praias, com seu mar azul turquês, suas areias finas e brancas e suas ricas fauna e flora.

Os gaúchos terão saudades dos engarrafamentos na freeway e da RS-040, dos pastéis e sonhos de beira de estrada, das chuvas e trovoadas e das guias gordas do IPTU dos imóveis das praias. Olhem, senhores prefeitos do Litoral, que os veranistas estão em campanha para transferência de seus títulos eleitorais para o Litoral, e aí o bicho pode pegar. Fiquem espertos.

O melhor do verão segue sendo a turma de amigos, os comes e bebes na beira da praia, da piscina ou mesmo na beira do tempo, em qualquer bar, restaurante, boteco ou coisa parecida que pinte. Aquelas horas, aqueles dias, sem muito celular, jornal, telejornal ou noticiários tenebrosos de rádio, ajudam a colocar nossos sonhos em dia e recarregam nossas pilhas para encarar este aninho de 2018, repleto de indignação contra a corrupção e ainda sem definições claras sobre as eleições presidenciais.

Melhor votar em gente nova, renovar o congresso, é o que ouço a toda hora. Tomara que os políticos ouçam esses gritos das ruas e aproveitem os últimos meses para fazer alguma coisa boa. A esperança é a última que morre. Muitos políticos vão morrer na praia, como certos times de futebol. Há quem fale mal dos condomínios horizontais do Litoral, que tem "town-houses" (casas de cidade), tipo os condomínios da Flórida, cuja maioria fica um pouco afastada da beira da praia.

Melhor é ter, nas casas de condomínio e nas outras, bananas, abacaxis, redes, artesanato local, puxa-puxa e outras essências de nossos veraneios antigos, quando a coisa era básica: areia, mar, sol, lua, estrelas, mordidas de siri, creme paraqueimol, pesca de sardinha na ponte Imbé-Tramandaí, chalé de madeira, e sonhos e cachaça em Santo Antônio da Patrulha. Ninguém esquece o primeiro Chica-Bom no braço morto, em Imbé, e os primeiros namoros, azarações e sanduíches sobaka no Boliche de Capão. Amigos, cuidado com os efeitos de overdose de crepes doces e salgados. Degustem os deliciosos crepes com moderação.

a propósito... 

Para variar, vou sugerir, de novo, que as férias de verão se prolonguem até 15 ou 20 de março. Março é o melhor mês. Muitas pessoas, especialmente as de menor renda, poderiam aproveitar casas, apartamentos, pousadas, hotéis, colônias de férias e campings. Seria bom para todos, moradores e veranistas. O mar claro, o tempo firme e as noites enluaradas de março sentem saudades dos veranistas. Todo ano repito isso.

Vou repetir por mais alguns. Sei que sou um sonhador, mas não sou o único. Junte-se a nós. Veranistas unidos jamais serão vencidos. Ontem sonhei, de novo, com o trem-bala Porto Alegre-Litoral. Ontem sonhei, de novo, com um grande e produtivo diálogo entre os moradores do Litoral e os veranistas. Vamos conversar, nos unir, temos muito em comum, é melhor para todos.

(Jaime Cimenti) - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2018/02/colunas/livros/612510-machado-de-assis-melhores-contos.html)


LIVROS 

Notícia da edição impressa de 23/02/2018. Alterada em 22/02 às 18h35min Machado de Assis, melhores contos Jaime Cimenti Cento e dez anos depois de sua morte na casa do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908, Machado de Assis segue como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, sempre muito editado, lido e estudado, no Brasil e em muitos países do exterior. 

Autor de poemas, contos, crônicas e romances, também crítico e teatrólogo, Machado foi alto funcionário do Ministério da Viação e fundador da Academia Brasileira de Letras. Melhores Contos - Machado de Assis (Global, 374 páginas), da coleção dirigida pela escritora e editora Edla van Steen, com apresentação reelaborada para esta 16ª edição e seleção do consagrado professor, crítico, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras Domício Proença Filho, é das melhores antologias de contos do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, se não for a melhor.

Depois de escrever sobre a permanência e atualidade da ficção machadiana, Proença explica, na introdução, os critérios utilizados para a seleção e o desafio que foi escolher 29 contos entre os 68 que Machado publicou em sete volumes de histórias curtas. 

A coletânea traz contos muito conhecidos e magistrais, como Teoria do Medalhão, Missa do Galo, Uns braços, A Igreja do Diabo, Conto de Escola, Cantiga de Esponsais, O caso da vara, Verba testamentária e o consagradíssimo O Alienista, que alguns consideram como sendo uma novela. 

O humor, a fina ironia, os estudos psicológicos requintados e a brasilidade dos textos são algumas marcas maiores da ficção do Bruxo do Cosme Velho, que foi romancista genial e não menos genial contista. Escreveu Domício Proença Filho: "Nos contos machadianos, o que importa é a atitude e o sentir dos personagens, mais do que as ações, a trama e o espaço. 

Com atenção especial ao modo de fazer o texto, à técnica de construção, caracterizada em frequentes exercícios de metalinguagem. A prosa machadiana continua viva e presente, e presente e viva permanecerá ainda por muito tempo, porque a mentira de sua arte é daquelas que conseguem revelar muito da verdade de nossa complicada condição humana". 

É isso. Na urdidura do relato, na transparência da escrita, na universalidade dos dramas, no olhar aprofundado e na análise das almas e sentimentos dos personagens, Machado mostra por que figura como um dos grandes escritores da literatura mundial e por que segue entre nós. lançamentos Música de montagem - A composição de música popular no pós-1967 (É Realizações Editora, 200 páginas, R$ 39,90), do compositor, professor e palestrante Sergio Molina, mostra a formalização de alterações que remodelaram o processo de confecção da canção brasileira e internacional no pós-1967. 

O autor analisa obras de Milton Nascimento, Beatles, Gilberto Gil, Stevie Wonder e muitos outros compositores. A obra enriquece nossa bibliografia sobre a canção popular. A Batalha dos Livros (Ateliê Editorial, 136 páginas), de Lincoln Secco, professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo, de modo criativo, profundo e embasado, traça a trajetória da história editorial das ideias de esquerda no Brasil, desde os primeiros escritos socialistas utópicos do Brasil do século XIX até títulos publicados até 2005. 

Secco coteja, com muita informação, a recepção e a difusão das ideias socialistas no Brasil. Operação Banda Oriental (Editora Catarse, 116 páginas), do escritor, cicloturista, hortelão, professor e jornalista Demétrio de Azeredo Soster, que também é estudante de shakunachi, fala de uma viagem de 1.130 quilômetros, de bicicleta, em 10 dias, de Santa Cruz do Sul a Buenos Aires, atravessando o Uruguai, a partir de Chuy até Colonia del Sacramento, às margens do Rio da Prata. Em 12 capítulos, o autor narra momentos significativos.

Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2018/02/colunas/livros/612510-machado-de-assis-melhores-contos.html)

23 DE FEVEREIRO DE 2018
+ ECONOMIA

ECONOMIA DO RS TEM ALTA DE 2%, MOSTRA BC


Depois de três anos de marcha a ré engatada, a economia gaúcha voltou a andar para frente. Em 2017, a alta no Estado chegou a 2,13%, mostram dados do Rio Grande do Sul no Índice de Atividade Econômica (IBC-Br), do Banco Central (BC). O crescimento no Rio Grande do Sul equivale ao dobro do avanço registrado pelo Brasil. No ano passado, o país teve elevação de 1,04%, conforme o BC.

O IBC-Br é considerado uma espécie de prévia dos resultados oficiais, expressados pelo Produto Interno Bruto (PIB), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A metodologia, no entanto, é diferente. O instituto apresentará o desempenho da economia brasileira em 2017 na próxima semana. No Rio Grande do Sul, é a Fundação de Economia e Estatística (FEE) que se encarrega da tarefa - o resultado será publicado no fim de março.

- A economia gaúcha melhorou no ano passado. Mas, em 2016, havia caído mais do que a brasileira. Com a base mais deprimida, é natural que o crescimento do Estado seja maior no momento de retomada - pondera a economista-chefe da Fecomércio-RS, Patrícia Palermo.

A "prévia do PIB" do país foi apresentada pelo BC no começo da semana. Já os dados do Boletim Regional, com os números detalhados do IBC-Br para todos os Estados, serão detalhados hoje, mas já estão disponíveis no site da instituição.

Para o restante do ano, Patrícia projeta que a retomada econômica persistirá tanto no país quanto no Estado. A reação nos próximos meses, afirma, terá o consumo como combustível.

- O cenário para o Estado e para o país é bem semelhante. A retomada no consumo tem relação com a melhora no mercado de trabalho, que ainda não é nada excepcional. Em 2018, não há dúvidas: haverá crescimento porque a economia está em ciclo de ascensão - menciona Patrícia.

Entre analistas, o que provoca inquietação em relação ao futuro da atividade no Brasil - e, consequentemente, no Estado - tem relação com as incertezas que rondam as eleições de outubro.

- Hoje, a economia apresenta certo descolamento da política nacional. Mas a grande dúvida é o que deverá acontecer depois das eleições, a partir de 2019 - argumenta Patrícia.

leonardo.vieceli@zerohora.com.br - LEONARDO VIECELI

sábado, 17 de fevereiro de 2018


17 DE FEVEREIRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Minimalismo

Tenho uma amiga que mora na Europa há anos. Vive com a filha num apartamento de frente para um parque, tem um carro, um emprego e um namorado. Em tese, ela não tem do que se queixar, mas conversávamos outro dia sobre o que significa estar tudo bem. Para ela, tudo bem é experimentar novas formas de existir. A gente assina um contrato de locação de um imóvel, se acostuma com a mercearia da esquina e quando vê está enraizado num estilo de vida que se repete dia após dia, sem testar nosso espanto, nossa coragem, nossa adaptação ao novo. Humm. O que você está inventando?, perguntei a ela.

- Vou morar num barco.

Ainda bem que eu estava sentada. Pensei: "Essa garota é maluca". E logo: "Que inveja".

Tenho zero vontade de morar num barco. Minha inveja foi do desapego e da facilidade com que ela escreve capítulos surpreendentes da sua biografia. "Tenho coisas demais, Martha. Livros demais, roupas demais, móveis demais. Está na hora de viver com menos para poder redefinir o significado de espaço, tempo, silêncio". O gatilho da nossa conversa foi o documentário Minimalism (disponível na Netflix), que escancara a estupidez do consumo compulsivo, como se ele pudesse preencher nosso vazio. Vazio se preenche com arte, amor, amigos e uma cabeça boa. Consumir feito loucos só produz dívidas e ansiedade.

Temos perdido tempo, nas redes sociais, criticando o bandido dos outros e defendendo o nosso, sem refletir que o caos político e social têm a mesma fonte: nossa relação doentia com o dinheiro. A ideia de "poder" deveria estar associada à gestão do ócio, às relações afetivas, ao contato com a natureza e à eficiência em manter um cotidiano íntegro, produtivo e confortável (nada contra o conforto), no entanto, "poder" hoje é sinônimo de hierarquia, acúmulo de bens, ostentação e lucratividade non-stop. É por isso que, para tantas pessoas, é natural incorporar benefícios imorais ao salário, ganhar agrados de empreiteiras e fazer alianças com pessoas sem afinidades, mas que um dia poderão vir a ser úteis.

A sociedade não se dá conta do grau de frustração que ela mesma produz e continua cedendo a impulsos. Uma vez, eu estava na National Portrait Gallery, em Londres, quando, na saída, passei pela loja do museu e percebi, ao lado do caixa, um aquário cheio de latinhas de metal à venda, pouco maiores que uma moeda. Era manteiga de cacau no sabor "chocolate & mint". 

Sem hesitar, comprei uma latinha e trouxe-a comigo para o Brasil: hoje ela reside na bancada do banheiro, intocada, para me lembrar de como se pode ser idiota - eu estava dentro de um dos maiores museus do mundo e mesmo assim fiquei tentada a comprar a primeira besteira que vi. O exemplo é bobo, mas ilustrativo de como certos gritos ecoam dentro de nós 24 horas: Compre! Leve! Aproveite! Você nunca mais será o mesmo depois de usar a triunfante manteiga de cacau da National Gallery!

O único excesso que preciso é de consciência para não me deixar abduzir por essa forma equivocada de dar sentido à vida.

/marthamattosmedeiros - MARTHA MEDEIROS


17 DE FEVEREIRO DE 2018
CARPINEJAR

A mesa de sinuca

Às vezes é melhor não ter. Eu alimentava uma inveja monstruosa do meu amigo Rodrigo. Ele ostenta uma mesa de sinuca no centro da sala. Em primeiro lugar, meu olho gordo se destinava ao poder de negociador dentro do casamento. Como ele conseguiu convencer a sua mulher a ter uma mesa de sinuca no meio da sala? A minha esposa jamais aceitaria. Ela era capaz de sentenciar: ou ela ou eu. Nem com todo o poder de sedução sequer traria uma mesa de Fla-Flu, o pônei da mesa acavalada de sinuca.

O ciúme crescia porque a mesa era vermelha, não verde, o que a diferenciava ainda mais dos lares de nós, mortais.

Eu babava de ódio. Durante os campeonatos, ainda sofria com os tacos novos, o giz recém comprado e um quadro para marcar a pontuação. O cara contava com um snooker bar em sua residência, com o bônus de não pagar qualquer consumação. As cervejas vinham geladas, a música ambiente estava na frequência exata do rock e havia independência para arrastar a conversa e as tacadas até de madrugada. Que vida perfeita, suspirava.

Mas, entre uma partida e outra, Rodrigo desabafou, para o meu completo espanto:

- A pior coisa que fiz foi ter comprado essa mesa de sinuca.

Não entendi. Achei que estivesse esnobando, sendo irônico, tirando vantagem. Só que não. Falava sério, condoído.

- Ela tem algum problema?

- Não, ela está ok. O problema é que ninguém valoriza as minhas vitórias. Tenho obrigação de ser invencível. Não há graça nenhuma.

Acabei aceitando os seus argumentos. Quando ele ganhava, o adversário virava as costas e fazia pouco caso de seu desempenho: você tem uma mesa para praticar todo o dia. Quando ele perdia, o adversário debochava de seu fracasso: mesmo com você praticando todo o dia, não me venceu, é muito ruim.

Eu cogitei pedir a mesa para mim e salvá-lo do martírio, acho que poderia convencer a esposa alegando loucamente que combinaria com os quadros do nosso apartamento, porém preferi continuar vencendo fora de casa, o gosto da vitória é dobrado. Não pude controlar: a inveja logo se transformou em arrogância.

/fabriciocarpinejar – CARPINEJAR



17 DE FEVEREIRO DE 2018
PIANGERS

Enquanto você sambava


Enquanto vocês se esbaldavam na avenida e nos bloquinhos de Carnaval, amassando-se uns nos outros com seus corpos bêbados e suados em calçadas sujas de xixi e vômito, reencontrando amores do passado e iniciando casos tórridos com desconhecidos, acordando às três da tarde e indo dormir com o céu claro de um sol escaldante, fantasiando-se de marinheiros e diabas, travestindo-se e experimentando mãos e coxas e bocas das mais variadas origens, 

Enquanto vocês se refestelavam ao som estridente dos hits do sucesso radiofônico e derramavam bebida alcoólica nos corpos uns dos outros, enquanto compravam cerveja barata de ambulantes carregando isopores cheios de gelo em meio à multidão e procuravam banheiros químicos em pleno meio-dia, enquanto vocês esqueciam-se de almoçar e jantar e tomar café da manhã e ignoravam orgulhosamente o conselho de suas mães de levarem um casaquinho e não pegarem chuva, enquanto dormiam na grama na frente da casa de praia dos amigos porque as camas e os quartos estavam todos ocupados por visitas inesperadas, 

Homens musculosos e meninas com tatuagens de golfinho no pé, enquanto os apartamentos do centro da cidade recebiam festas alternativas onde se usavam drogas ilícitas e o som alto não incomodava os vizinhos que estavam assistindo aos desfiles das escolas de samba no último volume enquanto tomavam licor de chocolate em copos de plásticos, enquanto vocês terminavam namoros incentivados por um impulso alcóolico e um desejo ardente de experimentar a vida acreditando que existe algo mais, 

Algo mais emocionante, mais excitante, um sentimento de alegria e satisfação plena que só pode ser conseguido com saltos no desconhecido, enquanto vocês choravam decepções amorosas em festas onde pagaram um salário mínimo no ingresso e eram incentivados pelos amigos a esquecerem aquele que parecia ser seu grande amor, enquanto conheciam salivas de Pernambuco, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, enquanto vocês bebiam vodka com energético para aguentarem a terceira noite seguida em claro e dirigiam em alta velocidade com a imprudência de quem está desesperado pra se sentir vivo 

E enquanto tinham seus celulares roubados no meio da rua por gangues que fazem isso há anos e nunca são pegas pela polícia e quando são apenas os celulares de modelos mais antigos são recuperados, enquanto você tentava um último convite para uma última festa onde aquela última pessoa também estaria, enquanto vocês tomavam banho acompanhados, entravam em piscinas de casas de desconhecidos, 

Vomitavam em táxis e ubers e ônibus e carros de amigos e enquanto rasgavam preservativos e certidões de casamento, enquanto pegavam doenças venéreas e questionavam-se sobre feridas que lhes apareciam nos lábios, enquanto vocês não percebiam mau hálito e cheiro de sovaco e ouviam música alta em caixas de som portáteis falsificadas e de formato cúbico, 

Enquanto namoros, casos e separações começavam eu estava em casa assistindo a episódios de seriados disponíveis em serviços de streamings e sorrindo, feliz por vocês e por mim.

piangers.com – PIANGERS



17 DE FEVEREIRO DE 2018
LYA LUFT

Gostar de Carnaval

Esta vai ser mais uma coluna sem grande aprovação: os apaixonados por Carnaval vão torcer o nariz e passar adiante.

Não desgosto de Carnaval. Quando mocinha, fui a bailes de clube e achava muito divertido, fantasia de holandesa, que combinava comigo, ou de odalisca, que não tinha naaaada a ver.

Éramos adolescentes meio inocentes do Interior, mas, estranhamente, todo mundo usava lança-perfume, hoje condenado. As mães só recomendavam para não aspirar direto nem cheirar lenço molhado com o produto, cujo cheiro aliás eu adorava, lembrava alegria e descontração.

Não havia quase Carnaval de rua, nada parecido com os blocos de hoje, as multidões suadas e não muito vestidas, num aperto meio indigno de não haver onde fazer xixi nem o resto, gente de porre vomitando é quase normal, peitos e bundas oferecidos com generosidade absoluta.

Acho que éramos cheios de manias naquele tempo. Carnaval era mais alegria do que deboche. Talvez ainda fôssemos moralistas ou bobos.

Hoje me entristece um pouco: não a alegria, a diversão, a catarse de um povo explorado e sofrido, mas a capacidade meio desesperada de por vários dias e noites esquecer a situação do país - que beira o dramático ou trágico - pulando, requebrando, chacoalhando numa felicidade ímpar.

Por um breve tempo de ilusão, esquecem-se as contas atrasadas, a comida cara, a condução desconfortável, o pagamento atrasado, o terror da violência tão habitual, o temor de adoecer e não ter hospital nem remédio.

Talvez esses dias de total alienação - estranha para quem não participa - sejam um intervalo necessário e misericordioso num país em tamanhas dificuldades. A imagem que fica é a de um povo rico, saudável, despreocupado, bem empregado e feliz, não dando a menor bola para os chatos que, como esta colunista, assistem com um vago espanto às sucessivas e intermináveis (e incansáveis) ondas de corpos suados, caras desfeitas, risos abertos e copos sempre cheios que por dias e dias e dias e dias enchem ruas e avenidas numa alegria atroz.

Quem sabe hoje escreve aqui uma bruxa nem tão boa, nem tão divertida, mas com certeza um bocado preocupada e atenta ao que fazem conosco e com este país que a gente ama.

LYA LUFT




17 DE FEVEREIRO DE 2018
J.J. CAMARGO

OS FRAGMENTOS ESCORREGADIOS DA MEMÓRIA

Sempre que se pretendeu recuperar dados da história pessoal de alguém a partir da própria fonte, ao contrário do que se previa, ficou evidente o quanto a nossa memória é falha ou, o que é muito frequente, tendenciosa e falsa. Em parte, porque negamos o que foi ruim e glamourizamos o que foi bom de tal maneira que, depois de muitas versões, nem um nem outro se parece com o que contamos que tenha sido.

Então se aprendeu que, se quisermos saber como de fato éramos, temos de registrar o que pensamos e sentimos em cada momento. Claro que, depois de um tempo, isso implicará surpresas e pasmos além da tentativa patética de negar o inegável. Como na história da moça que comparou um vestido antigo com o ex-namorado, reunindo-os no mesmo comentário: "Não acredito que, um dia, eu tive a coragem de sair com isto na rua!". Pois é, mas teve, e provavelmente se achando muito.

As pesquisas sobre qualidade de vida de uma determinada população consideram elementar a prática do registro temporal sistemático, considerando a tendência falsificadora de elementos subjetivos facilmente descartados da memória pelo saudável exercício da negação. Foi assim quando se documentou que a existência de relações humanas ricas e numerosas aos 50 anos tinha sido o fator determinante de vida saudável entre os afortunados octogenários. 

Sem o registro sistemático, talvez estivéssemos dando mais importância ao nível do colesterol ou ao perímetro abdominal. O mesmo ocorre quando garimpamos as nossas gavetas, onde as memórias arquivadas devem ser periodicamente sacudidas para revitalizar a alma e enternecer o coração. Ao preço de alguns espirros por mofo estocado, é comum que, ao encerrarmos a expedição, estejamos tão mais leves quanto mais tenhamos descoberto o número de vezes em que despertamos em alguém o doce sentimento da gratidão.

Durante um tempo, fui tentado a hierarquizar os registros, mas depois percebi que a importância que eu dava a cada história não era constante e que algumas citações que tinham liderado o ranking depois de alguns anos estavam ameaçadas de rebaixamento. E não por culpa delas, mas por conta de o quanto eu tinha mudado em sensibilidade, amadurecimento ou desânimo.

Na tarde de 16 de maio de 1989, o Vilamir, que tinha passado pela sofrida experiência de primeiro transplantado de pulmão do continente, sem ter a consoladora possibilidade de compartilhar com ninguém o medo colossal de sua experiência pioneira, despertou da anestesia, chorou, sorriu, chorou outra e outras vezes e, por fim, ainda intubado, pediu uma folha de papel para registrar com a letra trêmula de um pós-operatório imediato o mais denso desabafo que já presenciei nestes 45 anos de medicina de alta complexidade: "Eu não disse que esta porra ia dar certo?". Desde então, esse bilhete, como topo da lista, não tem sido ameaçado.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO

sábado, 10 de fevereiro de 2018



10 DE FEVEREIRO DE 2018
LYA LUFT

Rubicunda & outros


Palavras, sabe quem me lê, foram minha primeira paixão, um de meus primeiros encantamentos. Muito pequena, antes mesmo de saber ler, elas me fascinavam. Eu as repetia e remoía como caramelos translúcidos na minha boca.

Mas havia as feias, as medonhas, que eu detestava.

Quando comecei a ler, bem cedo, lembro de um dia encontrar num livro de histórias a expressão "boneca rubicunda". Perguntei à mãe, que, como quase sempre, disse: "Que palavra medonha, vai perguntar pro teu pai".

Ele achou graça, e explicou: "É boneca de bochechinhas vermelhas, como as tuas".

"Mas eu não sou rubicunda!", reclamei indignada com aquele feio insulto. Nem imagino quem escreveria ou traduziria, mesmo tantas décadas atrás, uma história infantil com boneca "rubicunda" em vez de "corada". Seja como for, essa palavra foi para a minha lista de malditas.

Mal aprendi a ler, divisava diariamente nas instalações amarelas do Daer, do outro lado da rua, um imenso letreiro: Almoxarifado. A estranhíssima palavra levou uns dias para ser pronunciada e, naturalmente, meu pai de novo explicou: era um depósito de materiais da empresa que cuidava das estradas. Mal sabia eu que um dia, bem lá no futuro, estaria casada com um engenheiro por algum tempo ligado ao Daer!!!

Minhas palavras bonitas eram coisas como "açucena": no livro da escola, primeiro ou segundo ano, falava-se em "gotas de orvalho tremelicando nas pétalas das açucenas". Quase delirei. Cheguei em casa suplicando à minha mãe que queria me chamar Açucena. "Mãe, que nome lindo! O meu é tão sem graça, tão pequeninho!"

A mãe botou as mãos na cabeça, como tantas vezes, essa menina tem cada ideia! Horrível!!!

Nomes de flores até hoje me deliciam: hortênsia, em inglês hydrangea. Quem não quereria hydrangeas no jardim? Ou as glicínias, que em português já são maravilhosas, o nome e a flor, e em inglês também: wisteria.

Havia também os nomes das rosas hieráticas num canteiro do jardim de minha mãe. Morning Glory, Black Swan e várias outras, belas como seu perfume que invadia a sala quando minha mãe, feliz da vida, as distribuía em seus vasos. Ou falava com irmãs e primas - no Interior, quantas primas e irmãs e amigas! - pronunciando com doçura aquelas palavras.

Seja como for, não fui rebatizada Açucena, nem Verônica, nem Margarida, nem qualquer outro belo nome. Continuei com o meu pobre, diminuto e sem graça, que tem como único ornamento os bracinhos desesperados do seu ipsilone. (E pelo menos não me chamo Rubicunda.)

Coluna já escrita, já enviada, vai-se Eva Sopher, a inigualável, cuidar do seu Theatro lá de cima com os anjos - seus amigos, como disse Renata. Uma vida plena, de realizações incríveis, amada, respeitada, exemplar (temida pelos relaxados e preguiçosos...) e, ainda por cima, com um finíssimo bom humor.

Felicidade a nossa, ela ter sido... nossa.

LYA LUFT


10 DE FEVEREIRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Me chame pelo seu nome

O cinema cumpre sua função quando nos deixa sem palavras, arrebatados. Porém, mesmo que as palavras pareçam insuficientes, tentarei contar um pouco do que senti quando eu estava no escuro da sala do cinema, de frente para Timothée Chalamet, que eu nunca tinha visto atuar (e nem sei se ele estava atuando, pois dizem que o verdadeiro ator não atua, ele é o personagem). Então, corrigindo: estava eu ali diante de Elio, um garoto de 17 anos passando um verão tedioso em uma vila italiana, matando o tempo ao piano, lendo um livro atrás do outro, tomando banho de rio e iniciando-se sexualmente com uma garota da idade dele, até que surge Oliver, 24 anos, um americano que passará seis semanas como hóspede na casa da família de Elio. E acontece o incontrolável: um sentimento.

O filme Me Chame pelo seu Nome mostra o nascimento de um amor livre de qualquer interesse, de qualquer vaidade, de qualquer carência. Não é o amor encomendado a que nos habituamos, aquele que chega e nos encontra predispostos a acomodá-lo numa idealização prévia, aquele que se apresenta e a gente o captura para que acalme nossa ansiedade. Não é o amor que vem com certificado de adequação e longevidade. O filme mostra o amor em seu estado mais puro e livre. O amor que não leva em conta idade, gênero, futuro. 

O amor que não cabe em um projeto de vida. Ele apenas é o que é. Um sentimento que sai pelos poros, embevece o olhar e transfere a nossa alma para o corpo do outro. Nenhum "eu te amo" é capaz de traduzir essa epifania. O casal do filme, Elio e Oliver, dizem "eu te amo" sem dizê-lo, dizem de outra forma, apenas trocando de nome, fundindo suas identidades. Elio chama Oliver de Elio. Oliver chama Elio de Oliver. O "você" desaparece para existir apenas um "eu" agigantado pela existência do outro. Não é isso que esperamos do amor? Que ele nos dilate, nos torne maior, melhor? O "dois em um" levado à última consequência. Você é eu, eu sou você. Me chame pelo seu nome.

Pode acontecer entre um homem e uma mulher, mas no filme acontece entre dois homens, o que é um convite para eliminarmos qualquer resquício de homofobia e entrarmos de verdade numa nova era, onde dois corações possam se conectar independentemente da anatomia dos corpos que os revestem.

O diálogo final entre Elio e seu pai é o ponto alto do filme e é de comover até um muro de pedras. É comum dizermos para nossos filhos, a título de consolo: não sofra. Nem reparamos que estamos induzindo a uma repressão. Que pai teria coragem de insuflar seu filho a usufruir plenamente de seu sentimento, de estimular a intensificação deste sentir, mesmo que seja algo doloroso?

Se o filme pudesse ser resumido numa frase, seria: "Sinta, pois nem todo mundo teve esta sorte".

Palavras, palavras, que importam? Sentir é o que basta.

/marthamattosmedeiros - MARTHA MEDEIROS


10 DE FEVEREIRO DE 2018
CARPINEJAR

A prova dos nove do Carnaval



O Carnaval é uma síntese das nossas contradições. Há a obrigação de ser feliz que deixará muita gente triste. Há o escândalo da euforia que pode gerar a ressaca da melancolia. Há a cidade emprestada aos turistas, as ruas interditadas, os caminhos sem volta. Não tem como seguir com a rotina, e ser normal. As farmácias viram supermercados, os supermercados viram farmácias.

Nem adianta procurar a posteridade - ela morre durante o período. É o efêmero que manda, é o provisório que dá as ordens.

Não tente em vão se casar. Os amores foliões desaparecerão nos dias úteis. É preciso entender que as pessoas se apaixonam pelo anonimato, não desejam relações sérias. As paixões também são fantasias.

Não vigorará herança de qualquer entrega, alguma recompensa, prêmio ao final. O Facebook se transformará num cemitério de acenos. Seu WhatsApp terá números sem nomes. Não receberá nenhum e-mail na semana, a não ser spams.

Existe uma descontinuidade entre o que acontece antes e depois. Pois a seriedade morre.

Há uma única forma de comunicação: o riso, a gargalhada, o grito - pensar e conversar se convertem em operações incomunicáveis. Ou você se mistura ao esquecimento dos refrões, ao abre-alas dos apressados, ou se reduzirá a um chato da realidade. Ou você deixa as contas de lado que vencerão dia 14 e gasta sem piedade do futuro ou cada lata de cerveja doerá para descer pela garganta. Ninguém economiza no carnaval, ninguém se economiza no carnaval, é um atentado à solidão e ao bom senso. Os adoradores de música clássica dançarão funk, os funkeiros dançarão marchinhas.

Você faz amigos e não irá mais reconhecê-los. Você empreende loucuras e não saberá como contar o seu cotidiano em ordem cronológica. Você é capaz de ser um pato no chafariz da praça, ou um Pokémon na janela de um museu.

Conhecerá a igualdade do remorso, a democracia da irreverência. Liberará as suas censuras e ficará envergonhado dos excessos. Se uma foto vazar, perderá o emprego. Rezará para que não tenha sido filmado e identificado. Mas, ao mesmo tempo, gostaria de ser lembrado pelos disfarces.

Nada acontece conforme deseja. O bloco certo que será um sucesso será um fracasso. O que acha que será um fracasso será um sucesso.

Testará a sua capacidade de improviso: levará horas para se arrumar e de repente choverá e todos se assemelharão molhados. Perderá a chance de chamar atenção. A maquiagem terminará borrada e a produção desmanchada pelo barro. Restará reencontrar no fundo de si o contentamento de infância do banho de chuva e não se incomodar com a possibilidade de gripe e resfriado do mundo adulto.

Buscará a multidão para não se sentir sozinho, mas reclamará quando não conseguir nem espaço para sambar.

Tudo o que é planejado não perdura, o acaso se arma de serpentina, confetes e espuma para pichar a sua fachada controlada.

O Carnaval é para os fortes. Uma amostra de como a vida não nos pertence.

/fabriciocarpinejar - CARPINEJAR

10 DE FEVEREIRO DE 2018
PIANGERS

Virei o que sempre condenei


Não vou dizer aqui que sempre fui o homem mais festeiro do Carnaval florianopolitano mas, vejam bem, eu tive os meus momentos. Já desfilei na avenida e me vesti de mulher em bloco sujo, com certo desconforto, é verdade, e sempre mais influenciado pelos amigos do que gostando exatamente do que estava acontecendo. Houve uma vez que eu até deixei, na sexta de Carnaval, um recado na mesa da cozinha dizendo apenas: Mãe, fugi e fui com três amigos para a praia em uma busca adolescente frustrada por encontros casuais com o sexo feminino e porres homéricos, falhando miseravelmente no primeiro e tendo algum sucesso no segundo.

Digo tudo isso para deixar claro que não é um sentimento que me acompanha desde sempre mas que agora, aparentemente, eu odeio o Carnaval. Só queria informar. Me tornei aquilo que sempre odiei, aqueles senhores que reclamam que o supermercado está cheio durante as festas de Carnaval, que as marchinhas são irritantes e o pessoal está se passando na bebida. Que acha um saco a sujeira na rua. Que olha os vídeos da multidão em Salvador e sente claustrofobia só de se supor lá, imagina se dá vontade de fazer xixi ali no meio. Que, quando ouve de amigos que estão indo para um Carnaval de rua, avisa pra não levar o celular. Que é muito perigoso. Me tornei minha mãe.

Ainda não sou aquele senhor assistindo aos desfiles pela televisão e acompanhando as notas na quarta-feira, mas também não julgo que um dia eu chego lá. Porque me encaminho pra isso, estou cada vez mais interessado em ficar na beira da praia com a família sem muita coisa pra fazer e, não vou negar, uma caipirinha sempre ajuda a deixar as coisas melhores. Só me falta uma casa de praia, que no momento afirmo que jamais terei, mas nunca se sabe e talvez eu vire um desses caras que pega estrada na sexta de manhã, junto com todos os outros seres humanos do mundo, e fique parado horas no trânsito. Talvez eu me torne um desses que tem o dinheiro do pedágio separadinho no carro. Que guarda o recibo.

Não vou dizer que sempre fui o mais festeiro da turma mas posso tranquilamente afirmar que, na atual conjuntura, estou mais pra ficar em casa dormindo e vendo Netflix do que pra encher a cara de cerveja barata. Celebro o feriadão na esperança de ver os filmes indicados ao Oscar. Fico avaliando a fotografia dos filmes indicados na categoria de melhor estrangeiro. Vejo documentários sobre corais e me emociono.

Meu deus. Virei meu vô!

piangers.com - PIANGERS

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018


07 DE FEVEREIRO DE 2018
LIVRO

Um poeta da Roma Antiga ensina a arte de bem falar mal



POEMAS DE MARCIAL, autor romano do primeiro século, ganham tradução em português
Ao contrário do que podem achar algumas sensibilidades conservadoras dispostas a fechar exposições obscenas por aí, a relação entre arte e sacanagem é tão antiga quanto frutífera. Um bom exemplo disso pode ser encontrado na recente edição em português dos Epigramas, composições breves do poeta Marco Valério Marcial (40 104), que viveu na Roma do primeiro século da Era Cristã e fez de seus versos navalhas certeiras dirigidas ao que considerava os vícios e hipocrisias do mundo em que vivia.

Epigramas foram uma forma de poesia breve muito difundida na antiguidade. Seu espírito direto e por vezes cortante servia tanto para breves elegias ou epitáfios quanto para ataques a desafetos e ditos humorísticos que poderiam muito bem ser enquadrados, hoje em dia, como "piadas bagaceiras" - Marcial e seu precursor Catulo (87?a.C. -57?a.C.) foram mestres tanto num caso como no outro.

Nascido em Bílbilis, no território em que hoje se localiza a região espanhola de Zaragoza, Marcial mudou-se, pouco depois de seus 20 anos, para Roma, o centro do Império, onde viveu por décadas, como era comum em sua época, apadrinhado por nobres ricos ou por figuras ligadas ao poder imperial. 

Seus poemas curtos, antecipadores de muitos "tuítes" de hoje em dia, atacavam o que considerava defeitos de seus contemporâneos, como o oportunismo, a desfaçatez dos jogos de interesses e até a cara de pau de outros poetas que roubavam a autoria de seus versos e passavam a lê-los nos saraus públicos como se de autoria própria. Ele também compôs tiradas maliciosas ou abertamente obscenas sobre os costumes sexuais de seu tempo (a seleção no quadro ao lado reúne alguns poucos mordazes mas ainda publicáveis).

- Marcial é impiedoso em seus versos. Em muitos instantes ele poderia ser considerado politicamente incorreto, mas é impossível aplicar à obra dele um contexto do século 21 que não existia em seu tempo. Os únicos que ele poupava eram seus patronos, porque aí ele adulava e puxava o saco mesmo - explica o tradutor paranaense Rodrigo Garcia Lopes.

Epigramas reúne 219 poemas de Marcial publicados ao longo de toda sua vida A versão em português vem acompanhada do original latino, e a edição tem o formato de um arquivo de capa dura em que 12 cadernos podem ser destacados e separados, e cada um deles corresponde a um dos 12 livros que o poeta de fato publicou em vida.

- Marcial costumava chamar cada livro que publicava de "libellus", ou seja, "livrinho", uma maneira ao mesmo tempo irônica, carinhosa e autodepreciativa de se referir ao próprio trabalho. Foi a partir dessa ideia que Gustavo Piqueira (designer responsável pelo projeto gráfico) teve a ideia de publicar a obra em forma de livros menores. Claro que também isso foi uma licença poética, já que, na época de Marcial, os livros eram em rolos - diz Lopes.

Jornalista, escritor, poeta e tradutor, Rodrigo Garcia Lopes tem uma história de três décadas com Marcial. Descobriu a poesia do romano enquanto fazia mestrado sobre William Burroughs no Arizona, em 1990, e foi traduzindo aos poucos os epigramas que chamavam a sua atenção.

- Em 2014, eu já tinha uns cem epigramas traduzidos e me dei conta de que precisava me dedicar àquilo. Mergulhei no conjunto e traduzi mais da metade do livro em uma imersão de dois anos. Selecionei um conjunto que apresentasse uma versão por inteiro de seu trabalho, porque ele podia, como poeta, ser terno, ser comovente, ser elegíaco e em outros momentos ser impiedoso. Mesmo proibido durante a Idade Média, ele é retomado por outros mais adiante como Bocage ou Quevedo.

carlos.moreira@zerohora.com.br - CARLOS ANDRÉ MOREIRA

07 DE FEVEREIRO DE 2018
DAVID COIMBRA


Pequenas diferenças

Por que, afinal de contas, o pessoal lá de Mianmar está matando o povo rohingya?

Meu filho veio me perguntar isso, esses dias, e não soube responder. Na escola, ele tem contato com colegas de vários países diferentes, e aí acaba se interessando por questões internacionais e eu é que sou obrigado a estudar, para não passar vergonha.

Povo rohingya. Confesso a você (não vá contar para o meu filho) que não sabia nada dessas pessoas, até que elas começaram a ser perseguidas em Mianmar, o que foi noticiado pelos jornais. De Mianmar, inclusive, pouco sei além de que o país antes se chamava Birmânia e era uma possessão inglesa e fica perto da Tailândia. Não é o suficiente para satisfazer a curiosidade de um menino de 10 anos.

Tem mais: essa história dos rohingyas fez com que ele se metesse YouTube adentro para se informar a respeito de povos perseguidos. Então, preciso discorrer sobre conflitos clássicos, como a secular luta entre sunitas e xiitas ou a dos tutsis contra os hutus, mas o que exatamente está acontecendo com os naxalitas da Índia e com os houthis do Iêmen? E as razões de todas essas disputas, como são difíceis de explicar!

Por que muçulmanos não gostam de judeus? Por que judeus e palestinos não podem viver juntos e em paz? Por que Trump teima em levantar um muro para apartar os americanos dos mexicanos?

Por que os sírios estão em debandada pela Terra?

Por que afegãos trocaram tiros com eritreus na França, enquanto aguardam para rumar para a Inglaterra, que não quer mais fazer parte da Europa, que enfrenta movimentos separatistas como o da Catalunha?

Por quê? Por quê?

A verdade é que sempre encontramos razões para brigar uns com os outros.

Pol Pot, ditador do Camboja, não gostava de intelectuais, embora ele próprio fosse um: havia estudado na França, onde entrara numa organização comunista, e voltara ao seu país para ser professor de história.

Mesmo assim, talvez em autocrítica subconsciente, ele decidiu eliminar todos os intelectuais quando assumiu o poder. Caçou professores, jornalistas, escritores e artistas e matou-os todos ou os atirou em campos de trabalhos forçados. Transformou cinemas, bibliotecas e teatros em chiqueiros. Para assegurar que não sobrasse ninguém vagamente relacionado a alguma atividade que não fosse braçal, mandou que seus esbirros prendessem... quem usava óculos!

Imagine: o sujeito podia ser o maior iletrado do Oriente, mas, se sofresse de miopia ou astigmatismo, seria preso e, provavelmente, morto. Então, usar óculos tornou-se maldição no Camboja, como é maldição ser tutsi em meio aos hutus ou sunita entre os xiitas. Mas o fato é que, se você estiver caminhando pela Rua da Praia e lá do outro lado vier um rohingya, você nem notará. Ele é apenas um ser humano como os milhares que o cercam. Da mesma forma, se ele for um judeu ou um muçulmano ou um zulu ou um xhosa. Somos todos Sapiens partilhando o mesmo planeta. Não temos de nos odiar por pequenas diferenças. Ou mesmo por grandes diferenças. Paz. Precisamos de paz. Pense nisso, nesta eleição de 2018.

DAVID COIMBRA

07 DE FEVEREIRO DE 2018

OPINIÃO DA RBS

O APEQUENAMENTO DA ASSEMBLEIA

Quando deputados abdicam de discutir um projeto e transferem seu voto para outra instância de poder, diminuem sua própria atividade e enviam ao eleitorado um recado sobre sua irrelevância

Élamentável que a Assembleia Legislativa tenha desperdiçado ontem a oportunidade de decidir sobre um tema tão relevante para o futuro do Estado como a adesão ao regime de recuperação fiscal. É certo que todo cidadão tem o direito de recorrer à Justiça. Ao buscar a tutela de outro poder para impedir a votação do projeto, porém, um grupo de deputados gaúchos está dizendo na prática que os mandatos recebidos dos eleitores e os de seus colegas são prescindíveis.

Impasses dessa natureza precisam ser enfrentados pelos próprios políticos, que foram eleitos para encontrar soluções quando a sociedade anseia por elas, particularmente num momento crítico para o Estado, como o atual. O Judiciário já está assoberbado demais com a solução de litígios e disputas de sua alçada para ser acionado por políticos para decidir sobre questões que são da competência do Legislativo.

Em Brasília, a sujeição voluntária do parlamento ao Poder Judiciário não é novidade. Deve-se também à constante judicialização da atividade parlamentar a criação da imagem de um Congresso tão caro quanto improdutivo, com escassa credibilidade entre os brasileiros. O mesmo desgaste corre o risco de se repetir no Rio Grande do Sul, onde a Assembleia, que historicamente sempre soube se mostrar à altura de seus desafios, vem optando por transferir muitas de suas decisões. Quando esse tipo de situação ocorre, perde a democracia, na qual os poderes devem levar mais em conta suas atribuições constitucionais de fiscalizar e corrigir eventuais desvios, sem dar margem a superposições.

Não importa qual seja o tema em discussão. Em qualquer instância da federação, o que se constata, cada vez mais, são legisladores temerosos de enfrentar questões polêmicas, sempre de olho nas próximas eleições. Embora se queixem, de maneira geral, do excesso de protagonismo do Judiciário, muitos políticos contribuem para reforçar a distorção ao acionar esse poder para decidir sobre questões da competência do Legislativo. Quando deputados abdicam de discutir um projeto e transferem seu voto para outra instância de poder, diminuem sua própria atividade e enviam ao eleitorado um recado sobre sua irrelevância.

No caso específico do regime de recuperação fiscal, e independentemente dos desdobramentos da questão, os deputados precisam cumprir a função para a qual foram eleitos. Caso contrário, será mais apropriado a Assembleia mudar seu slogan para a casa dos pequenos debates.