sábado, 29 de março de 2014


30 de março de 2014 | N° 17748
FABRÍCIO CARPINEJAR

Chore por mim Argentina!

Tinha esquecido o que é pisar em cocô de cachorro até visitar Buenos Aires.

Era atalhar a praça: pisava na m. Era descer do carro: pisava na m. Era atravessar a rua: pisava na m.

Quando vi placa de não pise na grama entendi como ironia. Não pise no cocô da grama. A grama é a última visita dos meus calçados.

Passei noites escovando meus tênis em baldes, enfrentando a repulsa de tirar a porcaria dos frisos.

Ninguém merece lavar as solas no tanque. Uma escovinha jamais resolve, é preciso partir um prendedor e cavar os resquícios em linhas horizontais e verticais. Serve faquinha velha, desde que não reponha na gaveta.

É o equivalente a jogar um cubo mágico com a nojeira. Mexer o quadrado de um lado e de outro. O nariz desaparece para não influenciar a boca.

Fui figura desagradável em vários momentos portenhos. Entrava em espaços fechados (teatro, livraria e cinema) e alguém gentilmente me informava que não cheirava bem.

Abortei sessões pela metade, frustrei passeios, incomodei a família com desengonçado tango.

Estava desacostumado. Foi quando percebi o quanto Porto Alegre evoluiu nos hábitos.

Recebi aquela saudade boa, que vem do orgulho.

Eu não mais atolo meu pé em nenhum cocô de cachorro na minha cidade. Faz muito tempo. Quase uma eternidade.

Na minha infância, ir para a escola consistia num caminho com obstáculos. Não havia chance aos distraídos. Observava a lua se despedindo do céu e já pagava o pedágio do chão.

Derrapava em dois cocôs por semana. No mínimo. E muitas vezes de chinelo, com a matéria gosmenta e viscosa atingindo os pés. Outras vezes, encardia o cadarço, spaghetti al sugo.

Nada disso mais acontece. Os donos dos cães porto-alegrenses modificaram radicalmente sua conduta. Civilizaram as calçadas. Recolhem as necessidades de seus cachorros no ato. Todos passeiam com uma sacolinha plástica. Quem esquece é malvisto pelo bairro, banido moralmente das redondezas. Existe uma fiscalização sutil, uma educação de respeitar o próximo, de poder sonhar livremente com poemas e suspiros sem se importar em tropeçar nos contratempos mundanos.


Minha mãe sempre me consolava dizendo que pisar em cocô de cachorro significava sorte. Prefiro ser azarado a ser argentino.

30 de março de 2014 | N° 17748
MARTHA MEDEIROS

Mulheres cabeludas

Deixe os pelos do corpo crescerem e aparecerem, e ao inferno com o que os outros pensam. Esse é o slogan do movimento Hairy Awarey, que aqui no Brasil ganhou o nome de Peludas Conscientes. Mulheres no mundo todo estão lutando pelo direito de deixarem as axilas cabeludas, assim como as pernas e provavelmente o bigode, por que não? Madonna semana passada postou numa rede social uma foto com o braço levantado mostrando que é adepta.

“Lutar pelo direito” é força de expressão, pois esse direito existe, ninguém vai presa por não se depilar. Mas lá se vai uma das poucas diferenças que ainda tínhamos com os homens.

Eu sei, eu sei que depilação com cera é uma tortura. Mas se a mulher não tem tempo, dinheiro ou vontade de ir a um salão periodicamente para se submeter ao procedimento, então que use uma lâmina de barbear durante o banho e zás! Elimine os pelinhos das pernocas e das axilas. Todo dia, da mesma forma que usamos xampu e sabonete. Depois é só enxugar, passar um hidratante e fim de drama. Ou então busque outra solução: há tantos cremes depilatórios vendidos em farmácias e supermercados. Sem falar na revolucionária pinça.

Eu sei, eu sei que a mídia é a culpada de tudo que nos acontece. É culpada de não mergulharmos num tonel de chocolate como gostaríamos, é culpada de fazer a gente acordar cedo para praticar exercícios, é culpada das centenas de escovas para alisamento, é culpada até de termos nascido, se bobear. Mas devagar com a carruagem, princesas.

Se por um lado é realmente esquizofrênica essa busca pelo padrão de beleza photoshop, há que se concordar que o estímulo à vaidade nem sempre é predador. Buscar a feminilidade não nos torna submissas, escravas, reféns, nem nada que faça retroceder as conquistas estimuladas por Simone de Beauvoir e turma. Ser feminina é um prazer. Não precisamos nos igualar aos homens em todos os quesitos. Ando por aqui com essa história de igualdade, igualdade, igualdade. Quando começa a virar fanatismo, boa coisa não vem.

Aproveitando a deixa: meninos, vocês sim, mantenham-se peludos, por favor. Nadadores se depilam porque precisam eliminar décimos de segundos de seus recordes, mas vocês não irão competir por uma medalha de ouro nas próximas Olimpíadas, até onde sei. Então sosseguem. Esse sofrimento é nosso, vocês têm o de vocês: queda de cabelo, exame de próstata, expectativa de vida menor. Cada um com a sua dor.


Eu sei, eu sei que a liberdade da mulher é um valor a ser defendido com unhas e dentes. Mas com unhas feitas e dentes escovados, de preferência, e sem pelos distribuídos pelo corpo. Ninguém disse que para sermos livres teríamos que voltar para a selva.

quarta-feira, 26 de março de 2014


26 de março de 2014 | N° 17744
MARTHA MEDEIROS

Um palco para todos

Viajar para o Exterior deixou de ser um acontecimento incomum. Na época em que ainda era, lembro que nós, turistas tupiniquins, ficávamos encantados com a quantidade de músicos tocando dentro das estações de metrô, de mímicos atuando em praças públicas, de pintores expondo seu trabalho a céu aberto. Era uma amostra viva do que chamávamos Primeiro Mundo.

A tendência se alastrou, globalizou – hoje acontece em toda parte, inclusive aqui. Mas ainda havia entraves para essas manifestações artísticas se darem de forma plena, por isso é de se comemorar a lei sancionada pela prefeitura que, a partir de agora, dispensa qualquer burocracia para que os sem gravadora, sem editora, sem marchand, sem patrocínio, enfim, os sem contrato possam expor seu talento nas ruas, parques e largos da cidade, afinando a relação da população com sua “casa”.

Infelizmente, quase já não saímos a pé. Os deslocamentos são feitos de carro, ônibus ou táxi, numa ligeireza que limita nossa comunhão com as alamedas, esquinas e recantos do nosso bairro. Focamos no endereço a se direcionar (o restaurante combinado com as amigas, a clínica médica onde temos consulta, o local de uma reunião de trabalho), porém mal observamos o que existe no percurso entre cá e lá. Pressa, medo de assalto, sedentarismo, costume – fatores não faltam para justificar a razão de cruzarmos avenidas sem olhar para os lados, sem considerarmos a cidade como uma área pulsante e que é atrativa por si só, por sua atmosfera, por seu espírito.

Porto Alegre tem poucas atrações turísticas se comparada com outras metrópoles. Não temos cartões-postais significativos, de reconhecimento nacional. É uma cidade básica, com uma festividade acanhada – onde a celebramos? No Brique da Redenção, certamente, que não deixa de ser uma manifestação de rua à sua maneira, assim como as feiras livres. Afora isso, ainda somos muito parcimoniosos.

Por isso, a convocação: poetas, equilibristas, sapateadores, guitarristas, fandangueiros, estátuas vivas, retratistas, declamadores, gaiteiros, violinistas, mágicos, cantores, malabaristas, tradicionalistas, humoristas, percursionistas, invadam esse palco chamado cidade (assim como fizeram os estudantes de artes cênicas que sexta passada realizaram uma performance numa das pontes da Avenida Ipiranga, aliando arte e conscientização ecológica).

A cidade também é uma rede social e interativa. Quanto a nós, que estejamos preparados para retribuir. Como? Parando para assistir, aplaudindo, incentivando, mantendo os vidros dos carros abertos – e a mão aberta também. Sejamos uma plateia atenciosa. Façamos essa troca em prol de uma cidade mais moderna e mais alegre não só no nome, mas de fato.


terça-feira, 25 de março de 2014


25 de março de 2014 | N° 17743 
FABRÍCIO CARPINEJAR

Alfaiate injusto

O trabalho é insaciável. Todo emprego. Não terá trégua, folga, desconto.

Desde que comecei a trabalhar, aos 15 anos, não obtive nenhuma moleza. Nenhuma compreensão.

Apesar do excelente desempenho, é faltar por atestado médico, é se atrasar por engarrafamento ou greve de transporte, que estarei enforcado.

No trabalho, corda no pescoço é colar.

Não aceitamos desculpas e justificativas, a única coisa que vale é baixar a cabeça e se puxar.

O currículo só conta para contratação, depois o passado é abolido. A desmemória é valorizada. Render o máximo possível sempre, até quebrar. Se quebrar, não era tão bom assim.

E todos quebram. E todos cansam. E todos pedem um colo e um corrimão das escadas.

Não receberá intervalo para se restabelecer, período para se recuperar. É quebrar e suportar a troca imediata.

Ter feito milagres antes não é recomendação. Somos amplamente descartáveis.

Carreiras são jogadas fora num piscar de olhos, trajetórias consolidadas são dissolvidas num rearranjo de forças.

Pode ser um super-herói, um mago, um santo, um Hércules, um samurai, e não encontrará imunidade.

Demoramos um tempo imenso para adquirir credibilidade e facilmente extraviamos a confiança.

O trabalho é implacável. Não queira ser reconhecido, o reconhecimento dura 24 horas. A prática é se desconhecer ininterruptamente e recomeçar.

Você poderá ser o melhor vendedor de uma loja por seis meses consecutivos, mas é arcar com um dia ruim, somente um dia ruim, e será cobrado. Você pode ser o melhor corretor de imóveis, acumular vendas irreais, mas é enfrentar uma semana de deserto, que será criticado. Você poderá ser o melhor negociador agropecuário, mas é assistir a um mês de vacas magras, que perderá seu chão.

O trabalho é voraz, o que explica o quanto somos substituíveis.

Saudade não existe no mundo corporativo. Saudade é um sentimento proibido. Saudade é um luxo.

O trabalho não respeita ausência. Ausência é vaga. Ausência é lugar a ser preenchido, é alegria dos outros.

Quem já saiu de um emprego e jurou que nada mais funcionaria e se frustrou porque tudo continuou igual? Quem já largou um emprego de décadas, onde construiu a maior parte de suas amizades, organizou surpresas e amigo-secreto, e acreditou que ganharia um abaixo-assinado dos colegas para sua volta e não obteve um e-mail sequer de solidariedade? Quem já foi o primeiro a entrar e o último a sair no negócio e sua disciplina não rendeu ponto extra e bonificação na crise?

O trabalho é um alfaiate ao contrário. Um alfaiate ao avesso.

Não é a roupa que deve ser ajustada ao nosso corpo, é o corpo que deve ser ajustado para a roupa.

Não é o caso de cortar o tecido ou fazer bainha, nós é que temos que cortar mãos e pés e emagrecer e nos adaptarmos de qualquer jeito.

Não existe justiça no trabalho, talvez nem mais na família.

Nossa esperança agora é não ser demitido dentro de casa.

sábado, 22 de março de 2014


23 de março de 2014 | N° 17741 
MARTHA MEDEIROS

A fita crepe

Sempre fiquei intrigada com mulheres que posam para fotos virando-se de costas, dando apenas uma espiadinha para a câmera por cima do ombro. Que as Mulheres Melões e Melancias façam isso, é compreensível: estão oferecendo às lentes o produto que as tornou famosas. Porém, no sofisticado tapete vermelho, acontece o mesmo. Divas em seus vestidos longos de grife oferecem ao mundo uma visão frente e verso, e não só a bem torneada Jennifer Lopez, mas também sílfides como Anne Hathaway, Cate Blanchett e Naomi Watts. 

Provavelmente para mostrarem suas escápulas em um exclusivo decote Dior, para exibirem o colar da Tiffany que pende pelas costas, para que reparem no corte de cabelo batidinho na nuca, ou em alguma tatuagem, vá saber. Mas gosto de pensar que elas dão essa viradinha por um motivo mais divertido: para provar que não há fita crepe ajustando a roupa ao corpo.

Nem sempre as roupas que a gente vê nas revistas caem feito uma luva no corpo das modelos. Aliás, quase nunca. Metros e metros de fita crepe ajustam camisas, grudam vestidos na cintura, afunilam a perna da calça – quando não esticam o pescoço da criatura ou puxam sua barriga, numa espécie de cirurgia plástica instantânea. Acontece não só dentro dos estúdios. Já escutei casos hilários de mulheres que foram flagradas em festas com uma fita crepe escondida atrás da orelha, a fim de estender uma pelezinha saliente que não deu tempo de remover com bisturi.

Estou exagerando, claro, mas nem tanto. Há uma frase célebre de bastidor: não haveria cinema sem a fita crepe. E também não haveria a fotografia, a televisão, as mostras de decoração e arquitetura. Todos os expositores sabem que sem fita crepe não é possível construir uma ilusão.

Sem desprestígio aos alfinetes, às joaninhas, aos pregadores de roupa, aos clipes e demais acessórios de primeiros socorros de uma produção, mas é inegável que fita crepe é o quebra-galho soberano: funciona para tudo. Prende, cola, ajeita, segura, amarra. É o salvador dos cenários, o braço direito dos iluminadores, e, como já se disse, a melhor amiga dos figurinistas. Você não precisa ser atriz de Hollywood para testar: basta conferir o efeito de uma camiseta exposta no manequim da vitrine de uma loja e depois experimentar o efeito vestindo-a em você mesma, dentro do provador. Pois é, alguns vitrinistas também recorrem a essa espécie de “photoshop” artesanal.

Não pretendo ser estraga-prazer, ao contrário, espero estar salvando seu dia: quando você for às compras e a roupa não cair tão bem no seu corpo como cai no da Alessandra Ambrósio, não excomungue os deuses nem a si mesma. Até as mais perfeitas das beldades, aquelas que ganham milhões de dólares para fotografar com lingeries divinas, já contaram com a ajuda bem terrena de uma fita crepe que custa menos de 10 reais.

quarta-feira, 19 de março de 2014


19 de março de 2014 | N° 17737
MARTHA MEDEIROS

Meu ladrão era um amor

Ela contou a história com os olhos brilhando. Tinha acontecido o seguinte: era início de tarde quando ela embicou o carro em frente à garagem, estava voltando para casa com a filha de 10 anos no banco traseiro. Ela não sabe de onde ele surgiu: o homem simplesmente se materializou ao lado da sua janela portando um revólver. Mandou que ela saísse do veículo e que deixasse a chave na ignição. A primeira coisa em que ela pensou foi na filha, claro, que estava sentada atrás do banco do passageiro. Ordenou à menina com autoridade de mãe: “Sai do carro agora, Valéria”. A menina não se mexeu, estava em estado de choque.

“Sai, Valéria. Agora!”. A menina, que tinha total capacidade de se movimentar sozinha, não moveu um músculo. Minha amiga não quis sair do carro e deixar a menina ali atrás, não confiava que o ladrão fosse esperar ela caminhar em volta do carro para ajudar a retirar a filha. Ao mesmo tempo, temia que o gesto brusco de virar todo o corpo para trás a fim de puxar Valéria para si fosse considerado por ele alguma espécie de reação, e ele atirasse.

Ela tinha um milésimo de segundo para decidir, mas ele decidiu por ela: “Eu espero”. O quê? “Vai tirar tua guria do carro, eu espero”. E abriu a porta para ela sair, como se fosse um manobrista, um príncipe encantado. Ela pediu permissão para puxar a menina para o banco da frente, ele autorizou. Resgatada, a menina se grudou no pescoço da mãe e saíram as duas pela porta do motorista, ele aguardando calmamente a operação com a mão no trinco. Com o carro desocupado, foi a vez de ele entrar e ir embora – “sem cantar pneu”, lembra ela. “Meu ladrão era um amor.”

“Meu ladrão”. Hoje, cada um de nós tem o seu. Algumas pessoas, até mais de um. O ladrão da minha amiga era um amor porque, segundo ela, não parecia drogado e tinha compaixão (o que ela chama de compaixão talvez fosse apenas o bom senso de não levar uma criança com ele no próximo assalto que iria fazer, mas, vá lá, pode ter sido compaixão). O cara não a agrediu, não deu coronhada, não a chamou de vagabunda, não a torturou psicologicamente com frases como: “Ou a guria sai agora, ou levo junto!”, “Ou ela cai fora, ou leva chumbo!”. Será que o ladrão dela sabia rimar? Talvez. Era um amor.

Minha professora de pilates é um amor, minha astróloga é um amor, minha florista é um amor: são gentis, sorridentes, tornam a minha vida melhor. Já ladrão é aquele sujeito que, prevalecendo-se do semiaberto, ameaça outras pessoas na rua levando embora seus bens e sua confiança, que jamais serão recuperados.

Mas não levando nossa vida, são uns amores mesmo.


Bom Dia!


A vida sabe ser surpreendente…
Muitos sonhos começam a ser realizados em silêncio, sutilmente, e desabrocham quando menos esperamos. A qualquer momento pode acontecer aquele sonho…
Aquele que faz tudo mudar…”

Ana Jácomo

terça-feira, 18 de março de 2014


18 de março de 2014 | N° 17736
FABRÍCIO CARPINEJAR

Pimenta nos olhos do outro é colírio

Não era um simples colírio, mas gotas de ouro.

É assim que minha mulher apelidou o conta-gotas para aliviar a irritação dos olhos.

Seus olhos não estão mais irritados, a irritação passou para seus bolsos.

O oftalmologista receitou um medicamento de apenas 5ml que custa R$ 87.

Ela não acreditou quando foi adquiri-lo na farmácia. Continua não acreditando.

Teve que parcelar o produto. Em três vezes sem juros.

Nunca imaginou que iria parcelar um colírio. É o cúmulo da pobreza.

Você não tem noção do desespero quando ela precisa dele. Da concentração que desenvolve para umedecer suas pupilas.

Não posso falar com ela, não posso distraí-la, a casa depende de um estado de suspensão meditativo.

Katy deita no sofá. Respira fundo. Mira o alvo com todo o cuidado. Conta até três.

Um, dois e... pensa direito. E reinicia a contagem.

Não é um ato corriqueiro. Virou perícia, injeção. Requer a precisão de anestesista.

Nem pede ajuda para mim – a falha é pessoal e intransferível.

Porque quando ela erra a gota, perde quase R$ 10. É a lágrima mais cara de sua vida.

Se ela não está chorando, o desperdício atiça as glândulas lacrimais.

Ela não comprou um colírio, mas uma TPM a mais.

Ela não comprou um colírio, mas uma enxaqueca.

Ela não comprou um colírio, mas um dilema.

Ela não comprou um colírio, mas um diamante líquido.

Um transplante de córneas seria mais barato.

Nunca é a hora fatídica de colocá-lo. Adia o quanto pode.

Só vai botá-lo em caso de olho morto. Já fica tensa no instante de definir o uso, é seu momento Hamlet. Anda com o colírio na mão de um lado para o outro da casa:

– Será que devo ou não devo, eis a questão?

Qualquer sugestão de minha parte é irrelevante. Ela entra em transe intelectual, investigação existencial.

Quando estou em desvantagem numa discussão de relacionamento (o que é bem comum), pego o colírio do armário do banheiro e ameaço pingar gotas no chão.

Ela logo para, levanta as mãos para o alto e pede para me acalmar.

É uma tática que sempre funciona.


O oftalmologista dela é um excelente terapeuta de casal.

sábado, 15 de março de 2014



16 de março de 2014 | N° 17734 
MARTHA MEDEIROS

A arte de perder

Quando algo é subtraído da minha vida, logo lembro o poema de Elizabeth Bishop, A Arte de Perder, em que ela diz que perder não é nenhum mistério. Só perdi bobagens na minha infância e puberdade, nada que fizesse falta a ponto de me doer até hoje. Depois, adulta, perdi alguns afetos importantes (“tantas coisas contém em si o acidente”), e agora dei para perder itens materiais que desaparecem de uma hora para outra. Começou com minha carteira recheada de documentos e cartões, sumida num passe de mágica, nunca mais a vi.

Dia desses, bobeei de novo. Das primeiras horas da manhã até o início da noite, revirei a casa atrás do meu smartphone (“perca um pouquinho a cada dia”), e acabei encontrando-o muito tempo depois em cima da máquina de lavar, no modo silencioso, entre uma pilha de jornais – esquecido em algum momento em que fui dar de comer para o gato na área de serviço.

Comentei recentemente que estou entrando na fase de não juntar lé com cré (“depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subsequente”), as palavras evaporam da lembrança – isso durante conversas fiadas. Textos por escrito se salvam porque podem ser pensados e repensados antes de irem para o jornal.

Não perco a fé, pois um lampejo de crença é preciso ter para levantarmos da cama todas as manhãs, mas cada vez que assisto aos telejornais e suas más notícias, a esperança desaparece como uma carteira, um celular. Não sei se voltará.

“Aceite, austero. A chave perdida, a hora gasta bestamente”.

Perder chave não é problema, sempre há uma sobressalente, e a hora gasta bestamente é perda divertida, saudável, moleca, venero as horas gastas bestamente. Sou pontual não só por educação, mas para me sobrar tempo para o nada.

Mas andei perdendo meus óculos de grau. E isso mudou tudo, cara Elizabeth Bishop.

Encomendei um novo que levou 10 dias úteis para ficar pronto, 10 dias que para mim foram de imagens turvas, nebulosas. Não enxergava as mensagens que chegavam pelo celular (aquele que perdi e recuperei), nem os sensacionais contos de Nu, de Botas, do Antonio Prata (sobre a infância que perdemos e que no livro ele recupera), nem o aviso na parede do prédio sobre a próxima reunião de condomínio, que sempre perco e desse mal não me recupero. Meus óculos de grau, onde ficaram?

Perdi na beira de uma praia de Santa Catarina, ali, na areia, lugar da adolescência que perdi, mas também recuperei – a maturidade tem dessas proezas.

“É evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério”.

Escrevo. Meio cega às vezes, com menos poesia do que gostaria, aturdida com minhas distrações, mas ainda escrevo – para não me perder.

15 de março de 2014 | N° 17733
NÍLSON SOUZA

Estranhos beijos

Faz sucesso na internet, com mais de 25 milhões de visualizações quando comecei a escrever este texto, um vídeo chamado First Kiss (Primeiro Beijo), com cenas de 20 casais se beijando. O inédito do filme assinado pela cineasta Tatia Pilieva, a pedido de uma grife de roupas, é que as pessoas escolhidas para as cenas não se conheciam, nunca haviam se visto antes.

São estranhos colocados frente à frente com o desafio de se beijar na boca – uma gesto historicamente reservado à intimidade, embora tenha se tornado corriqueiro nesta era de exibicionismo explícito que estamos vivendo. Adolescentes festeiros, especialmente, passaram a incluir beijos fortuitos nos seus rituais de passagem, na maioria dos casos apenas para contar aos amigos e para autopromoção nas redes sociais.

Mas beijo é beijo – a maior expressão de ternura humana, sempre que consensual, evidentemente. É exatamente isso que mostra o vídeo. As pessoas submetidas à experiência aproximam-se constrangidas, trocam cumprimentos tímidos, fazem gracinhas, riem amarelo, baixam a cabeça, tocam-se com cuidado, até que rola o encontro de lábios. Então, tudo se transfigura. O que era estranho e pouco natural transforma-se magicamente em proximidade, carinho, confiança mútua e entrega. Depois do primeiro toque, não há mais estranhamento. Siameses momentâneos, homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, todos suspendem suas individualidades por incontáveis segundos e passam a respirar o mesmo ar de cumplicidade.

Comovem aqueles estranhos beijoqueiros. A sucessão de encontros habilmente editada me fez lembrar a cena final de Cinema Paradiso, uma inesquecível sequência de beijos censurados pelo padre da cidade, que o operador cortou de filmes célebres e transformou numa espécie de documentário amoroso da história do cinema. Difícil não chorar.

Alguém já disse que o beijo é a única linguagem verdadeira no mundo. Mesmo quando as pessoas não se conhecem, como mostra o curioso vídeo, o entendimento é praticamente instantâneo, dispensa palavras. Não há momento de silêncio mais revelador, como bem flagrou o poeta chileno Pablo Neruda: “Num único beijo saberás tudo aquilo que tenho calado”.

Beijos são marcas indeléveis na trajetória humana. Tanto que já inventaram até um Dia Mundial do Beijo, que algumas pessoas celebram em abril, outras em junho.


Na dúvida, celebre-o hoje mesmo.

sábado, 8 de março de 2014


08 de março de 2014 | N° 17726
NÍLSON SOUZA

Elas por elas

Sobre mulheres, jamais vou escrever algo tão bonito que Cora Coralina já não tenha escrito: “Que pretendes, mulher? Independência, igualdade de condições... Empregos fora do lar? És superior àqueles que procuras imitar. Tens o dom divino de ser mãe. Em ti está presente a humanidade”.

Sobre mulheres, não poderia ser tão autêntico e verdadeiro quanto Martha Medeiros: “A todos trato muito bem/ sou cordial, educada, quase sensata,/ mas nada me dá mais prazer/ do que ser persona non grata/ expulsa do paraíso/ uma mulher sem juízo, que não se comove/ com nada/ cruel e refinada/ que não merece ir pro céu, uma vilã de novela/ mas bela, e até mesmo culta/ estranha, com tantos amigos/ e amada, bem vestida e respeitada/ aqui entre nós/ melhor que ser boazinha é não poder ser imitada”.

Sobre mulheres, poderia até dizer que prezam a própria autonomia, mas não com a legitimidade de Bruna Lombardi: “Tenho os caprichos inerentes à natureza da mulher/ abro a caixa de pandora que eu quiser/ e lanço mão de todo mal e todo bem/ avanço a passos largos/ alcanço o ponto extremo e vou além”.

Sobre mulheres, sei que carregam mistérios na alma, mas sabe-o muito melhor Clarice Lispector: “Sou como você me vê,/ posso ser leve como uma brisa,/ ou forte como uma ventania, / depende de quando,/ e como você me vê passar”.

Sobre mulheres, só mesmo a irreverência de uma Adélia Prado para desafiar Drummond: “Vai ser coxo na vida é maldição pra homem./ Mulher é desdobrável./ Eu sou”.

Sobre mulheres, poderia arriscar-me a falar de inconstância, mas prefiro dar a palavra a Cecília Meireles: “Tenho fases, como a lua/ Fases de andar escondida,/ fases de vir para a rua.../ Perdição da minha vida!/ Perdição da vida minha!/ Tenho fases de ser tua,/ tenho outras de ser sozinha”.

Sobre mulheres, poderia defini-las, mas não com a convicção de Raquel de Queiroz: “Nós, mulheres, herdamos muito da personalidade de Eva: todas as vezes que nos encontramos na santa paz do Paraíso, ficamos ansiosas por morder uma maçã e cairmos fora de lá!...”.


Sobre mulheres, permito-me saudá-las muito mais pela sensibilidade e pelo talento do que propriamente pelo dia de hoje.

08 de março de 2014 | N° 17726
ARTIGOS - Newton Fabrício*

Mulheres

Elas nos trouxeram ao mundo.

Elas nos deram carinho, amor e proteção – e, talvez, tenham nos livrado de alguma merecida palmada, nos tempos de piá.

Nos deram conselhos, exemplos e nos ensinaram a estudar.

Mas nós crescemos – e as deixamos meio de lado.

E vieram outras.

As que aquecem a nossa cama, a nossa alma, a nossa vida.

As que nos deram filhos.

As que nos amam e nos perdoam (e que, às vezes, também nos atazanam: quando dirigimos, por exemplo. Mas tudo bem: afinal, se elas querem um mundo sempre em ordem, como poderiam se manter em paz no caos do trânsito?).

As que abrandam os nossos rústicos sentimentos e incendeiam as nossas paixões.

As que um dia nós fizemos chorar.

As que, com uma única lágrima, torturaram o nosso coração e a nossa alma de puro remorso e arrependimento.

As que nos fazem, enfim, felizes e plenos de vida.

Mas outras virão, ainda.

As que um dia nos darão netos e bisnetos, na vida que se renova, porque assim é e será.

E todas elas, que nos acompanham na trajetória da vida, um dia chorarão quando, bem velhinhos, partirmos para outra caminhada.

E vão rezar por nós.

Como a primeira da nossa vida nos ensinou a orar e a acreditar que existe um Deus.

A todas elas, o nosso respeito, o nosso reconhecimento, a nossa (e)terna gratidão por nos ensinar a amar – com um grande e forte abraço e com o afetuoso agradecimento que todas merecem.


*DESEMBARGADOR

sábado, 1 de março de 2014

CRIME PERFEITO JOÃO NETO E FREDERICO (CLIPE OFICIAL - COMPARTILHE)

SILVIO BRITO - UMA HISTÓRIA BONITA E FELIZ DE UMA TERRA TÃO LINDA!

A PROCURA - SILVIO BRITO - mensagem maravilho

A NATUREZA ESTA PEDINDO AMOR - SILVIO BRITO


SALVEM A TERRA - SILVIO BRITO

02 de março de 2014 | N° 17720
MARTHA MEDEIROS

Samba e pagode

Não gosto de pagode. Acho uma música pobre, repetitiva, enfadonha e sem classe. Reconheço que o mesmo se poderia dizer do rock, só que de rock eu gosto, então não leve esta crônica tão a sério.

Pois, numa noite de sábado, me encontrava no Rio de Janeiro, mais precisamente na Lapa, e de última hora soube que haveria ali mesmo, a poucos metros de onde eu estava, um show do Zeca Pagodinho, e ainda havia ingressos. Se eu imaginei um dia assistir a um show do Zeca Pagodinho, seria apenas numa circunstância como esta: sendo pega de surpresa no habitat dele, em plena boemia carioca. Fui. Afinal, sempre se pode mudar de ideia. Se tanta gente gosta de pagode, talvez fosse o momento de descobrir a razão.

Lugar lotado, tribo eclética, gente de todas as idades, uma alegria contagiante. Cheguei quando iniciava o show de abertura de um grupo que não conhecia: Casuarina. Cinco garotos tocando samba. Excelentes instrumentistas. E o repertório era de lavar a alma. Baden Powell, Vinicius de Moraes, Jackson do Pandeiro, Paulinho da Viola, Dorival Caymmi, Chico Buarque. Eu, que admito ser ruim da cabeça e doente do pé, me senti honrada por estar escutando aqueles sambas históricos, enquanto que, ao mesmo tempo, começava a compreender o porquê da minha resistência ao pagode.

Quando Zeca Pagodinho entrou no palco, eu já estava mais do que satisfeita, poderia ter ido para casa dormir. Mas fiquei. Ele cantou uma, cantou duas, cantou três... Tudo igual. Gostoso para quem gosta, dançante para quem curte, música popular bem popular, nada de errado com isso. Só que era gritante a diferença de qualidade do que havia sido exibido antes por aqueles cinco garotos menos conhecidos. Fiquei matutando: o cara tem carisma, suingue, o que é que falta? Para os fãs, falta nada. Para mim, falta literatura no pagode.

Não estou reivindicando letras herméticas, nada contra a simplicidade, pelo contrário. Mas literatura faz falta em tudo: na música, no teatro, no cinema, na arquitetura, na culinária, no amor. Um mínimo de poesia, sutileza, refinamento: sem isso, a vida fica rasteira. Sem a literatura como base, não se consegue dar nem mesmo uma opinião, quanto mais criar algo que esteja dois degraus acima da mediocridade.

E literatura, aqui, não significa a leitura de uma biblioteca inteira, mas ter uma alma ilustrada. Me acusarão de elitista, mas o assunto não tem nada a ver com elitismo: qualquer um pode ser sofisticado sem perder a autenticidade e a popularidade. Sofisticação, nesse caso, é ter um olhar levemente mais aguçado, uma percepção um pouquinho mais abrangente, uma ousadia mais intelectual do que verbal. Estou sendo elitista? Então estou.


Mesmo sabendo que serei atacada, queria falar sobre isso, sobre como podemos descobrir nossos gostos através daquilo que não gostamos tanto. O que me valeu do show do Zeca Pagodinho foi ter descoberto que eu, roqueira de carteirinha, admiro o samba muito mais do que podia imaginar.

02 de março de 2014 | N° 17720
FABRÍCIO CARPINEJAR

Águas passadas não movem casamentos

Todo casamento é a soma de experiências únicas e intransferíveis.

O casal são sempre três pessoas: o que ele é, o que ela é, o que um é com o outro.

Ele pode ser algo fora dali, ela pode ser algo fora dali, e os dois podem se mostrar totalmente diferentes do que são quando combinados.

A intimidade não muda as pessoas, a intimidade é o resultado da química entre as duas pessoas.

A intimidade é o entrosamento secreto do casal, o que não é acessado por nenhum fofoqueiro ou paparazzi.

A intimidade é como um filho espiritual, uma personalidade distinta formada a partir da união de dois temperamentos.

Assim o legado de um relacionamento não tem como ser usado - eis a complicação amorosa, o xeque-mate do destino.

Ninguém aprende com os erros de um casamento. O casamento é uma caixa-preta, que só serve para resolver um único e solitário desastre.

Quando alguém diz que agora não vai mais errar e sabe o que falhou na convivência passada está se enganando.

As relações não são estáticas e repetíveis.

Você pode não ter tido paciência com uma mulher e ter o dobro de atenção com quem agora vive e não surtir nenhum efeito. Você pode não mais ser ansioso e apressado em seu romance atual, pois foram os sintomas mais criticados em sua história anterior, e não surtir nenhum efeito. Você pode não trair e ser leal como um escoteiro, suas maiores falhas no histórico afetivo, e não surtir nenhum efeito.

Arcará com consequências inéditas de uma intimidade também inédita. Consertar uma esposa com a seguinte é criar um Frankenstein. Ela não tem nada a ver com o que aconteceu anteriormente.

Nem você é o mesmo, não se deixa levar pela miragem de que não saiu influenciado e alterado por tudo o que viveu. As transformações são silenciosas e sutis dentro dos hábitos, e não pensa igual e da mesma forma. A dor e o luto entraram em seu sangue e já determinam suas decisões futuras. Sua cabeça não é igual como no início de um conflito pregresso, muito menos seu coração.


Os erros de um casamento apenas podem ajudar na reconciliação, é uma errata de um livro já escrito. Jamais poderá corrigir um livro antigo com o próximo, com novos personagens e novos enredos.