sábado, 31 de março de 2012

01 de abril de 2012 | N° 17026

MARTHA MEDEIROS

O macacão branco

Quem de nós pode vestir um modelo decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura?

Sejamos honestas, colegas de trabalho: quem de nós pode vestir um macacão branco decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura, uma sessão de bronzeamento e ficar duas semanas sem comer? Resposta no final dessa coluna.

Não teria adjetivos suficientes para comentar o show que Maria Rita fez no Anfiteatro Pôr do sol , semana passada, cantando músicas da sua mãe, Elis Regina. O espetáculo foi perfeito do início ao fim, e São Pedro ainda deu uma canja, oferecendo um entardecer de cinema, com direito a uma lasca de lua, céu estrelado e brisa suave. Se Elis não fosse gaúcha, teria se naturalizado naquele instante, em algum cartório no céu.

Mas voltemos a Maria Rita. Toda de branco, ela entrou no palco com uma túnica diáfana que ia até os pés: praticamente um anjo de bons modos. Até que, quatro ou cinco músicas depois do início do show, ela retirou a túnica e ficou só de macacão branco decotado, com as costas de fora, colado no corpo. Pensei: é peituda essa mulher.

Peituda porque, além de peito, Maria Rita tem coxa, tem bunda, tem barriguinha, tem sustância, tem o corpo da brasileira típica, que passa longe das esquálidas das revistas, das ossudas das passarelas. A numeração de Maria Rita não é 36, mas vestiu aquele macacão branco como se fosse.

Quaquaraquáquá, quem riu? Quaquaraquáquá, foi ela. Cantando Vou Deitar e Rolar e outros tantos hits da sua talentosa progenitora, Maria Rita rebolou, sambou, jogou charme, braço pra cima, braço pro lado, ajeitadinha no cabelo, caras e bocas, dona e senhora do pedaço e com o namorado bonitão (Davi Moraes, na guitarra) ali na retaguarda, babando – se não estava, deveria.

Porque Maria Rita, além de cantar divinamente, mostrava 100% seu lado fêmea, segura e incomparável. Que nem as modelos de revista? Quaquaraquaquá. Muito melhor.

Fiquei pensando depois: como mulher se preocupa com besteira. Usa roupa preta pra afinar, veste bermudas compressoras pra chapar a barriga, manga pra esconder os braços roliços, e mais isso, e aquilo, quando o maior segredo de beleza consta do seguinte: sinta-se num palco, mesmo que nunca tenha chegado perto de um.

Imagine-se com 60 mil pessoas te aplaudindo, te admirando pelo que você faz, pelo que você é, imagine-se com o público na mão, pois você é competente e tem uma elegância natural (tem, né?).

Conscientize-se de que sua inteligência é superior às suas medidas, que ser magrinha não atrai amor instantâneo, que sua personalidade é um cartão de visitas, que a felicidade é a melhor maquiagem, que ser leve é que emagrece.

E dá-se a mágica.

Quem de nós pode vestir um macacão branco decotado na frente e nas costas, colado ao corpo, sem antes passar por uma lipoescultura, uma sessão de bronzeamento e ficar duas semanas sem comer? Qualquer uma de nós, ora.

31 de março de 2012 | N° 17025
CLÁUDIA LAITANO

Famoso quem?

Quem é a pessoa mais famosa do mundo? Digite isso no Google, e as respostas serão tão insólitas quanto divertidas: “Jesus, Bento 16 e Britney Spears”, “Deus, Michael Jackson, Beatles e Madonna”, “Oprah, Obama e Lady Gaga”.

Famoso pra quem, cara-pálida?, seria a resposta mais adequada. A maior surpresa da cerimônia de entrega do Grammy, realizada em fevereiro, não foram os muitos prêmios de Adele (conhece?), mas a multidão de internautas que durante a festa perguntava nas redes sociais quem era, afinal, aquele coroa sorridente que estava sendo homenageado no palco.

Ter feito parte da maior banda de rock do mundo e estar na ativa há mais de 50 anos queria dizer abacate para os fãs de Rihanna e Lady Gaga: Paul McCartney levou um sonoro e virtual “famoso quem?”.

Esta semana, aconteceu um fenômeno parecido aqui no Brasil nas horas que se seguiram à morte de Millôr Fernandes. Enquanto boa parte dos adultos letrados lamentava a perda de um dos pensadores mais lúcidos do Brasil, uma multidão de inocentes perguntava-se quem, diabos, era aquele sujeito bom de trocadilhos que andavam citando tanto no Twitter.

A movimentação foi tamanha, que um gaiato decidiu criar o blog quememillorfernandes.tumblr.com, reunindo manifestações do tipo: “Vei... Eu nem sabia quem era Millôr Fernandes, daí essa pessoa morre e vira gênio do nada!”.

Nossa primeira reação diante da ignorância alheia (principalmente com relação aos nossos ídolos) é amaldiçoar a estupidez humana e a corrupção dos tempos. Menos. Atire a primeira lápide quem nunca foi surpreendido pela consternação em torno da morte de um “famoso quem?”.

Todo mundo tem buracos negros em sua cultura geral – e quem acha que não tem provavelmente está mal informado. (“Não é que com a idade você aprenda muitas coisas; mas você aprende a ocultar melhor o que ignora”, escreveu o próprio Millôr, mestre na arte de não se levar muito a sério.)

Diante de um fato que ilumina nossa vasta e espessa ignorância, temos duas atitudes possíveis: desprezar a nova informação (se eu não sei e os meus amigos não sabem, não faço muita questão de saber) ou procurar entender do que estão falando.

Na era da superabundância de informação, porém, eleger prioridades tem se tornado cada vez mais difícil: cultura pop e cultura erudita, diversão e notícias, presente e passado, muitas vozes disputam nosso tempo e nossa atenção.

O sujeito que se orgulha de nunca ter ouvido falar de Millôr ou Paul McCartney pode desprezar quem é leigo em Bruno Mars ou Angry Birds (“Em que mundo você vive, macróbio alienado?”).

Tanta informação disponível pode ser encarada com arrogância, por quem se convence de que já sabe tudo o que precisa saber, ou com angústia, por quem é permanentemente assolado pela sensação de que está perdendo alguma coisa.

Quem nunca ouviu falar de Millôr Fernandes pode ser digno tanto de pena quanto de inveja. Pena se perder a chance de dar-se ao trabalho (e ao prazer) de descobrir por que tanta gente gostava dele. Inveja porque só quem não o conhecia pode desfrutar o prazer irrepetível de ler Millôr pela primeira vez.

31 de março de 2012 | N° 17025
NILSON SOUZA

O cérebro e as pernas

Fila de autógrafos é melhor do que de INSS. A faixa etária costuma ser mais ou menos a mesma, mas as pessoas têm outro astral, não falam só dos seus achaques – falam também dos achaques do autor, que amanhã certamente terá que se virar com uma tendinite, mas está lá firme, tentando recordar o nome do portador daquele sorriso indecifrável que o saúda com intimidante intimidade.

Mas no meio da fila também podem ocorrer situações embaraçosas. Outro dia fui cumprimentar o Verissimo, que esperava pacientemente pela assinatura da Celia Ribeiro no seu O Jornalista Farroupilha, e o sujeito que estava na frente dele me fuzilou com um risinho inquiridor:

– Não estás te lembrando de mim, né?

Olhei para o Verissimo, pedindo socorro, mas ele fez cara de paisagem. Tive que encarar novamente o homem e dizer:

– Acho que me lembro, sim... Você trabalhava na...

O desconhecido interrompeu as minhas reticências:

– Não! Não! Não! Nunca trabalhei contigo. Eu jogava bola contigo.

Bah, faz tempo que não entro em campo. Dei uma rápida revisada na minha adolescência, mas não encontrei o sujeito lá. Então ele me atalhou novamente.

– Nós jogamos juntos no Banespa.

Antes que eu fizesse “ah”, ele voltou-se para o Verissimo, testemunha atônita daquele diálogo surrealista, e exagerou sobre minha performance em campo:

– Ele era bom de bola, todo mundo queria jogar com ele.

Meio constrangido, olhei para o Verissimo e balbuciei em tom de desculpa:

– Eu já enganava naquela época...

Num esforço para se mostrar interessado, nosso cronista maior questionou o homem da fila:

– Mas ele era cerebral ou esforçado?

O meu comentarista acidental não se fez de rogado. Respondeu de bate-pronto:

– Cerebral, cerebral. Mas era ligeiro, tinha as pernas grossas, bem diferente do que é agora...

E me olhou de cima abaixo, como se eu fosse um frangalho. Ainda tentei estufar o peito, mas percebi que o ambiente não era adequado para manifestações atléticas e acedi conformado:

– Por isso que agora só escrevo.

Meu ex-companheiro de peladas se deu conta de que o papo estava derivando para o lado dos achaques e se corrigiu em tempo, ainda bajulador:

– E escreve bem. Continua cerebral.

Logo diante do Verissimo, o mais cerebral dos nossos colegas de ofício. Vi o Walter Galvani um pouco à frente, abanei para ele e aproveitei a deixa para me retirar, pisando o mais firme que podia com as pernas que tenho hoje.

segunda-feira, 26 de março de 2012



Seu cão salva vidas?

A doação de sangue, simples e indolor, pode ser a fronteira
entre a vida e a morte


"Precisamos de sangue." A saga marcou minha semana, e a ideia de que ela vai se repetir inúmeras vezes já começa a me dar arrepios.

Primeiro, foi para Nina - uma pequena vira-lata de nove anos que chegou ao hospital às pressas. Com a cavidade nasal tomada por um tumor agressivo, ela mal conseguia respirar. A única alternativa seria tentar uma cirurgia de emergência.

O problema é que os exames indicavam uma anemia preocupante -muitos tumores são verdadeiros sequestradores de glóbulos vermelhos. E a cirurgia, portanto, dependeria de conseguirmos sangue para transfundir à paciente.

Já estávamos às voltas com Nina quando chegou Naomi, a rottweiler mais doce de que já tive notícia. Submetida à retirada do baço (também pela presença de um tumor), ela passou a apresentar níveis baixíssimos de plaquetas - as células que impedem que a gente sangre sem parar. Com risco de sofrer hemorragias, a adorável grandalhona também precisava de uma transfusão.

Para cães e gatos intoxicados, atropelados, com doenças renais crônicas ou câncer em estágio avançado, a transfusão de sangue é muitas vezes a diferença entre a vida e a morte. Mas só há transfusão se houver sangue. E só há sangue se houver doador. Eis, então, uma sucessão de gargalos.

No caso dos cães, os doadores devem ser animais dóceis, jovens (até 8 anos) e de grande porte (mais de 25 kg), o que exclui todos os pequenos poodles, lhasas e afins - cada vez mais comuns nas grandes cidades -, restringindo os candidatos.

O segundo entrave é o dono. Responda rápido: você se habilita a sair de casa com seu grandalhão, que está bem de saúde, para ir a um hospital veterinário pensando em algum cachorrinho desconhecido que precise de ajuda?

E quando, felizmente, cães grandes pertencem a pessoas solidárias, o material coletado ainda passa por uma série de exames para garantir que a transfusão não prejudique ainda mais a saúde do receptor.

Por tudo isso, as reservas são normalmente escassas. E conseguir rapidamente as bolsas de sangue vira uma operação de guerra que envolve motoboys, táxi-dog, laboratórios e inúmeros telefonemas para os poucos serviços especializados, proprietários de animais de grande porte, outros hospitais e amigos.

E essa semana, cerca de três horas se passaram entre a internação de Nina e Naomi e o início da transfusão. Nunca achei que ficaria tão feliz ao ver um motoboy chegando com uma caixinha de isopor.

Cães têm 13 tipos de sangue (e gatos, três). Há risco de incompatibilidade, mas, em geral, ela só se manifesta em uma segunda transfusão.

Nina não resistiu à cirurgia. Naomi segue na luta. A doação -simples e indolor - foi, para a dócil rottweiler, a fronteira entre a vida e a morte. Nesse caso, deu tempo. O problema é que os pacientes nem sempre podem esperar.

domingo, 25 de março de 2012



Sob o domínio das horas

Os sete métodos mais populares de gerenciamento de tempo

GTD
"Getting Things Done", ou fazendo as coisas acontecerem, não se baseia no conceito de priorização, mas de identificação das etapas a serem cumpridas. E diz que toda nova tarefa que possa ser executada em menos de dois minutos deve ser realizada imediatamente
www.davidco.com

Mapa mental
É uma ferramenta para organizar seus pensamentos. Seja para listar tarefas ou para gerenciar um projeto maior, o mapa mental tem como objetivo fazer com que você planeje, liste, entenda e visualize as etapas considerando sempre o todo, o global.
www.mindmeister.com

Técnica do Post-it
Sua listas de tarefas são enormes? Então nem adianta começar porque você certamente vai procrastinar. Para o inglês Mark McGuiness, as atividades de um dia têm de caber em um bloco de papel de 7,6 cm x 7,6 cm. A ideia é lembrar que o dia, assim como o quadrado de papel, é limitado

Neotriad
Baseia-se em um tripé que classifica as tarefas como importantes, urgentes e circunstanciais. A proposta é reduzir o tempo gasto com urgências e obrigações para investir nas importantes. O software do método ajuda a pôr em prática
www.neotriad.com

Zen Habits
A técnica defende que é preciso desacelerar para acelerar. Diminuir o estresse para conseguir focar no que realmente é importante. É um blog cujo criador dá dicas de bem-estar e de organização para aumentar a produtividade
www.timemanagementninja.com

POSEC
Sigla em inglês para priorizar, organizar, racionalizar, economizar e contribuir. O método defende que seus usuários agrupem as tarefas em blocos curtos e elenquem os objetivos por ordem de importância, obedecendo aos cinco critérios descritos acima

Pomodoro
É a técnica do tomate ("pomodoro" em italiano). O profissional deve fracionar seu dia concentrando-se em uma única atividade por 25 minutos, com uma pausa de 5 minutos. A segunda pausa será de 10 minutos, e a terceira, de 15
www.pomodorotechnique.com
Empresa cria programa para que seus funcionários emagreçam

Companhias privadas, hospitais e prefeituras têm mecanismos internos para perda de peso

Metodologia inclui reuniões em grupo com especialistas, apoio psicológico e aulas de ginástica em academias

Edson Silva/Folhapress



Funcionárias públicas de Franca, interior de São Paulo, fazem hidroginástica; prefeitura tem projeto para emagrecer servidores com sobrepeso
JULIANA COISSI - DE RIBEIRÃO PRETO

Cada reunião na sala da diretoria significava praticamente o início de uma maratona para o gerente de assistência técnica e serviços Marcel Teixeira da Rocha, 52.

"Como trabalho na fábrica, até alcançar o prédio administrativo eu chegava cansado, bufando", disse Rocha, que pesava 97 kg em fevereiro, o que configuraria obesidade por sua altura -1,67 m.

Foi a abordagem da direção da metalúrgica Renk Zanini, em Sertãozinho (a 333 km de São Paulo), para que perdesse peso que o fez passar por exames e engatar na academia. Hoje, com 90 kg, quer se livrar de mais dez.

Empresas privadas, hospitais e prefeituras estão criando programas próprios ou com assessoria para "emagrecer" seus funcionários obesos ou acima do peso.

Desde fevereiro, a Prefeitura de Franca, também no interior, criou grupos com servidores acima do peso.

O convite foi feito aos funcionários em uma revista interna no mês passado. A procura surpreendeu: hoje há dois grupos, de 20 pessoas cada, e 136 na fila de espera -praticamente só mulheres.

FISCALIZAÇÃO

Os funcionários participam de reuniões semanais com apoio de psicólogo, médico e educador físico. Além de aulas de ginástica, eles usam a piscina municipal para natação e pagam hidroginástica.

E os próprios colegas de trabalho são os fiscais de quem tenta emagrecer, disse a ajudante-geral Gislaine Cristina Salles, 37. "Uma anima a outra, diz que não pode comer dois pães no café."

Há também empresas que fazem parceria com grupos como o Vigilante do Peso. Há 15 anos, a organização criou programa para montar grupos dentro de companhias como Itaú-Unibanco e Vale.

Na CPFL Energia, a parceria funciona desde 2007. Há incentivo financeiro: para quem perde de 3 kg a 5 kg, a empresa paga 60% do valor. Acima de 5 kg, o subsídio sobe para 80%. A concessionária também oferece academia em algumas das unidades.

O casal Marcelo de Moraes, 46, e Cláudia Coimbra, 47, funcionários da empresa, participaram juntos do grupo, no ano passado. Cada um perdeu 7 kg, mas, como recuperaram outros três no fim do ano, voltaram para as reuniões do Vigilantes.

Também em 2011, no Santander, 176 funcionários perderam, juntos, 550 kg.

FERREIRA GULLAR

Da fala ao grunhido

De que adianta escrever o que escrevo aqui se a televisão continuará a difundir a fala errada?

DESCONFIO QUE, depois de desfrutar durante quase toda a vida da fama de rebelde, estou sendo tido, por certa gente, como conservador e reacionário. Não ligo para isso e até me divirto, lembrando a célebre frase de Millôr Fernandes, segundo o qual "todo mundo começa Rimbaud e acaba Olegário Mariano".

Divirto-me porque sei que a coisa é mais complicada do que parece e, fiel ao que sempre fui, não aceito nada sem antes pesar e examinar. Hoje é comum ser a favor de tudo o que, ontem, era contestado. Por exemplo, quando ser de esquerda dava cadeia, só alguns poucos assumiam essa posição; já agora, quando dá até emprego, todo mundo se diz de esquerda.

De minha parte, pouco se me dá se o que afirmo merece essa ou aquela qualificação, pois o que me importa é se é correto e verdadeiro. Posso estar errado ou certo, claro, mas não por conveniência. Está, portanto, implícito que não me considero dono da verdade, que nem sempre tenho razão porque há questões complexas demais para meu entendimento. Por isso, às vezes, se não concordo, fico em dúvida, a me perguntar se estou certo ou não.

Cito um exemplo. Outro dia, ouvi um professor de português afirmar que, em matéria de idioma, não existe certo nem errado, ou seja, tudo está certo. Tanto faz dizer "nós vamos" como "nós vai".

Ouço isso e penso: que sujeito bacana, tão modesto que é capaz de sugerir que seu saber de nada vale. Mas logo me indago: será que ele pensa isso mesmo ou está posando de bacana, de avançadinho?

E se faço essa pergunta é porque me parece incongruente alguém cuja profissão é ensinar o idioma afirmar que não há erros. Se está certo dizer "dois mais dois é cinco", então a regra gramatical, que determina a concordância do verbo com o sujeito, não vale. E, se não vale essa nem nenhuma outra -uma vez que tudo está certo-, não há por que ensinar a língua.

A conclusão inevitável é que o professor deveria mudar de profissão porque, se acredita que as regras não valem, não há o que ensinar.

Mas esse vale-tudo é só no campo do idioma, não se adota nos demais campos do conhecimento. Não vejo um professor de medicina afirmando que a tuberculose não é doença, mas um modo diferente de saúde, e que o melhor para o pulmão é fumar charutos.

É verdade que ninguém morre por falar errado, mas, certamente, dizendo "nós vai" e desconhecendo as normas da língua, nunca entrará para a universidade, como entrou o nosso professor.

Devo concluir que gente pobre tem mesmo que falar errado, não estudar, não conhecer ciência e literatura? Ou isso é uma espécie de democratismo que confunde opinião crítica com preconceito?

As minorias, que eram injustamente discriminadas no passado, agora estão acima do bem e do mal. Discordar disso é preconceituoso e reacionário.

E, assim como para essa gente avançada não existe certo nem errado, não posso estranhar que a locutora da televisão diga "as milhares de pessoas" ou "estudou sobre as questões" ou "debateu sobre as alternativas" em vez de "os milhares de pessoas", " estudou as questões" e "debateu as alternativas".

A palavra "sobre" virou uma mania dos locutores de televisão, que a usam como regência de todos os verbos e em todas as ocasiões imagináveis.

Sei muito bem que a língua muda com o passar do tempo e que, por isso mesmo, o português de hoje não é igual ao de Camões e nem mesmo ao de Machado de Assis, bem mais próximo de nós.

Uma coisa, porém, é usar certas palavras com significados diferentes, construir frases de outro modo ou mudar a regência de certos verbos. Coisa muito distinta é falar contra a lógica natural do idioma ou simplesmente cometer erros gramaticais primários.

Mas a impressão que tenho é de que estou malhando em ferro frio. De que adianta escrever essas coisas que escrevo aqui se a televisão continuará a difundir a fala errada cem vezes por hora para milhões de telespectadores?

Pode o leitor alegar que a época é outra, mais dinâmica, e que a globalização tende a misturar as línguas como nunca ocorreu antes. Isso de falar correto é coisa velha, e o que importa é que as pessoas se entendam, ainda que apenas grunhindo.

DANUZA LEÃO

Perigo anunciado

Se já tem tanta violência, imagine uma briga por um impedimento mal marcado, com os torcedores bebendo

AFINAL, OS torcedores vão poder beber sua cervejinha nos estádios durante a Copa, sim ou não?

O problema entre a base aliada e a oposição, Código Florestal etc., é uma coisa, mas vamos falar de outra: o compromisso que o governo assinou com a Fifa, liberando a venda de bebida alcoólica nos estádios durante a Copa.

Se já acontece tanta violência entre as torcidas em tempos normais, imagine uma briga por um impedimento mal marcado, com os torcedores bebendo. Mas os dirigentes da Fifa e da cervejaria patrocinadora não estão nem aí, é apenas um problema de $$$, e a responsabilidade sobre qualquer tumulto será totalmente do governo.

O Brasil tem que honrar o compromisso que assinou? Tem. Mas foi certo ter concordado com a liberação da bebida? No meu entender, não. E por que então assinou? Porque a Fifa quis, porque a cervejaria que patrocina quis, e as autoridades brasileiras não tiveram coragem de dizer não. O Brasil quis posar de bacana, sediar a Copa e a Olimpíada mostraria ao mundo como somos importantes etc. etc. Que herança, hein, presidente Dilma?

Os que são a favor da medida argumentam dizendo que até o Qatar, país onde é proibida a bebida alcoólica e que será sede da Copa de 2022 -a escolha aconteceu em meio a escândalos de suborno, propinas etc.-, aceitou que o álcool role durante os jogos; pois fez muito mal o Qatar.

Por duas vezes a Fifa foi deselegante com o Brasil -para não dizer moleque. A primeira quando Valcke, seu secretário-geral, disse que o Brasil precisava levar um chute no traseiro para agilizar as obras e garantir a aprovação da Lei Geral da Copa; ele até tem razão, mas escolheu mal as palavras. Dilma não gostou, o ministro Aldo Rebelo declarou que não aceitaria mais Valcke como interlocutor e até pediu que ele fosse trocado. Valcke se defendeu dizendo que foi erro de tradução.

A segunda foi quando, dias depois de ter sido recebido por Dilma, Blatter confirmou que Valcke continua não só como secretário-geral do evento, mas como responsável pela organização da Copa -é o homem forte do Mundial.

Aguarda-se agora a próxima visita de Valcke ao Brasil, considerado persona non grata pelo ministro do Esporte, Aldo Rebelo.

No nosso país a corrupção nas licitações é normal; quando uma obra atrasa -e as obras da Copa estão atrasadíssimas-, tem que ser feita em caráter emergencial, e esse é o caminho mais curto para roubalheiras escandalosas, o que saberemos pela imprensa, claro.

Vamos nos preparar para ouvir que nunca se roubou tanto nesse país, e só quero ver o que vão achar os torcedores quando souberem o quanto vão ter que pagar para verem um jogo em outra cidade; a passagem aérea no Brasil é a mais cara do mundo, uma Rio/SP/Rio custa em volta de R$ 1.000.

Torcida de futebol com álcool liberado é uma dobradinha que não pode dar certo. Não ter enfrentado a Fifa e dizer um solene NÃO, quanto à liberação das bebidas, foi fruto de nosso complexo de vira-lata. E ninguém sabe o que mais foi combinado -e assinado- entre o Brasil e a Fifa, que se acha a dona do mundo.

O Carnaval hoje é totalmente dominado pelas cervejarias; agora elas começam a mandar também no futebol.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 24 de março de 2012



25 de março de 2012 | N° 17019
MARTHA MEDEIROS


Órfãos adultos

Era uma senhora alegre, faceira. Mas morreu, como acontece com todos. Sem salamaleques, sem longas internações. Morreu rápido, como muitos desejam, e viveu demoradamente, como se deseja também: tinha 99 anos.

Deixou três filhos, todos na faixa dos 70, pois na época em que essa senhora era jovem casava-se cedo. E foi então que, conversando com uma das filhas, de 75 anos, me deparei com uma questão sobre a qual eu nunca tinha pensado. Disse-me ela que estava muito magoada com a reação das pessoas: todos vinham abraçá-la, no enterro, como se ela estivesse de aniversário, como se fosse uma boda, uma promoção, um réveillon.

“Minha mãe, apesar da idade que tinha, não dava trabalho à família, era independente e gozou de boa saúde até o final. Porém, mesmo que tivesse dado trabalho, mesmo que eu e meus irmãos estivéssemos reféns de uma condição desfavorável, ora, perdi minha mãe. Por que isso seria menos doloroso a essa altura? Só porque também sou velha?”

Calei. Ela tinha total razão. É muito comum encararmos a morte de alguém bastante idoso como um alívio para a família – estivesse o defunto já doente ou não. Da mesma forma como nos chocamos quando alguém parte cedo, nos insensibilizamos diante dos que partem aos 95 anos, aos 99, aos 103 anos de idade. É como se estivéssemos aguardando a notícia do óbito para qualquer momento, e quando a notícia chega, tudo certo, cumpriu-se a ordem natural das coisas, é preciso morrer e, que dádiva, ao menos este viveu bastante.

Tudo certo quando se trata dos pais dos outros.

O que essa senhora de 75 me esclareceu é que ela tem, também, o direito de sentir-se órfã. É um engano achar que a orfandade é um sentimento exclusivo dos jovens. Ela tinha vontade de dizer, a todos aqueles que foram ao enterro apenas para cumprir uma formalidade social, sorridentes como quem vai a um shopping, que a sua capacidade de sentir dor não havia sido diluída pelos seus 75 anos, e que ela sentia falta daquela mãe tanto quanto a sua filha de 50 sentiria a sua, e tanto quanto a sua neta de 25 sentiria da mãe dela.

Essa história aconteceu alguns anos atrás, mas me veio à memória com clareza e força ao ler recentemente o livro Filosofia Emocional, do professor Frédéric Schiffter, que entre diversos assuntos aborda exatamente isso: a tristeza não é uma doença, muito menos uma doença exclusivamente infantil.

O fato de sermos experientes, vividos, maduros e bem resolvidos não cria em nós uma blindagem contra os sentimentos. Ao menos, não diante de perdas tão significativas.

E se por um acaso for uma doença infantil, que respeite-se. Perder a mãe nos leva, a todos, de volta aos 10 anos de idade.

RUTH DE AQUINO

Thor

Na mitologia, Thor é o deus do trovão, mestre das tempestades. Na vida como ela é, Thor é filho do homem mais rico do Brasil e de uma de nossas musas de Carnaval. Ele tem 20 anos. Na semana passada, deve ter envelhecido. Thor matou na estrada um ciclista, Wanderson Pereira dos Santos, ajudante de caminhoneiro, de 30 anos.

O filho de Eike e Luma foi acusado de homicídio culposo, sem intenção de matar. Dirigia um Mercedes SLR McLaren, placa EIK-0063, um dos carros do pai, que pode chegar a 334 quilômetros por hora. O carro, de R$ 2,3 milhões, é considerado o nono mais veloz do mundo.

Thor jura inocência. Afirma que a bicicleta de Wanderson surgiu do nada e cruzou “inadvertidamente” a BR-040, estrada entre o Rio de Janeiro e Juiz de Fora. Era noite. Diz que dirigia o Mercedes dentro da velocidade permitida naquele trecho, 110 quilômetros por hora. A versão dos advogados da vítima é diferente: Thor vinha em alta velocidade e atropelou o ciclista no acostamento.

Eike correu para o Twitter para defender o filho, que se comportou “como um cidadão honrado” e “poderia ter morrido pela imprudência” da vítima. Sem Twitter, a mãe de Wanderson também defendeu o filho. Disse que Wanderson fazia esse trajeto sempre e jamais colocaria sua própria vida e a de outros em risco.

Thor de fato agiu direito – não como os playboys já citados nesta coluna. Procurou a Polícia Rodoviária Federal. Soprou no bafômetro, não havia nenhum traço de álcool. Socorreu a vítima, em vez de fugir. Passou mal ao ver o corpo de Wanderson, com uma perna e um braço amputados. Deu assistência à família da vítima. E não se furtou a depor na delegacia. Estava acompanhado de cinco seguranças e três advogados.

Não é o primeiro contratempo na vida de Thor. Em maio do ano passado, atropelou, com um Audi, um senhor de 86 anos na Barra da Tijuca, que também estava numa bicicleta mas sobreviveu. A história foi revelada na sexta-feira, pelo colunista do Globo Ancelmo Gois. Esse senhor, cujo nome não foi divulgado, fraturou a bacia, colocou duas placas e cinco parafusos, fez fisioterapia, hidroterapia. Thor pagou todas as despesas.

No mesmo maio de 2011, a revista Quem publicou entrevista com Thor. Ele foi até seu carro estacionado em frente à casa, um BMW de R$ 770 mil. Deu a partida, pisou no acelerador e convidou a repórter a experimentar: “Está ouvindo o motor? Pisa no pedal”.

Thor acabara de comprar um Aston Martin DBS, conhecido como o carro do agente 007, avaliado em R$ 1,3 milhão, pagos de seu bolso com aplicações na Bolsa de Valores. “Trouxe de São Paulo e cheguei a 280 quilômetros na Dutra (rodovia que liga Rio e São Paulo). Gosto de sentir o carro. Não compro para ostentar a marca, mas porque sei dar valor à máquina que está ali.”

Não consigo entender por que pais ricos incentivam filhos jovens e inexperientes a dirigir máquinas incompatíveis com nossas estradas. Não estamos na Alemanha. Não temos autobahns. Nossas rodovias estão longe da segurança e excelência germânicas. Velhos, crianças, bicicletas, animais atravessam as pistas.

O asfalto é ruim, há buracos e cruzamentos perigosos. Dividimos estradas mal conservadas com carros e caminhões velhos, caindo aos pedaços, que deveriam ser apreendidos. É a nossa realidade. Na estrada em que Wanderson morreu, houve 488 atropelamentos em cinco anos.

Sem condenar ou inocentar Thor antes do tempo, sem aderir à grita geral da luta de classes no trânsito, pode-se dizer sem erro que essa tragédia foi uma crônica anunciada, como tantas. Ainda não sabemos o que aconteceu, mas o banco dos réus está lotado.

No Brasil, os pais são condescendentes demais com as infrações dos filhos. Eike disse: “Atire a primeira pedra o motorista que nunca tomou uma multa por excesso de velocidade”. Ora, Thor já tem 40 pontos na carteira. E 11 pontos de outras infrações devem bater em breve. O advogado alega que Thor não sabia e que “outros podem ter cometido as infrações no lugar dele”. Difícil engolir.

Se o Detran leva séculos para suspender um motorista, os pais não deveriam deixar o filho dirigir até regularizar sua situação. Alguém faz isso? Eu faço com meu filho. Enquanto o Detran não cassar sua carteira e obrigá-lo a passar por uma reciclagem, ele não vai dirigir – pelo menos com meu consentimento.

Há outros réus no banco. Governos contribuem com o mau estado e a má sinalização das rodovias. E com a falta de passarelas para pedestres e ciclistas. Motoristas, motociclistas e ciclistas colaboram com a irresponsabilidade. E a Justiça arremata com a impunidade. Ninguém fica preso no Brasil por matar em atropelamento. Ninguém, rico ou pobre. Em nenhuma circunstância.


24 de março de 2012 | N° 17018
CLÁUDIA LAITANO


Dois rapazes e suas circunstâncias

Thor – Eis um desafio que a maioria de nós nunca vai ter que enfrentar: educar um menino que nasceu bilionário para tornar-se um adulto responsável e decente. Como se cria um bilionário? Como ajudamos alguém que sabe que não vai precisar trabalhar para viver a ser um sujeito com sonhos e ambições próprios?

Como fazê-lo respeitar as regras que valem para todos se sua vida é tão diferente das outras? Como ensiná-lo a enfrentar os olhares de inveja e interesse despertados pela condição, alheia a sua vontade, de ter nascido tão rico em um país tão desigual?

Aos 20 anos, Thor não é apenas o filho mais velho do bilionário com a beldade: ele é um experimento pedagógico ambulante. Se Eike e Luma conseguiram educá-lo para ser um homem digno da fortuna que herdará, renova-se a nossa fé na capacidade dos homens de superarem e transcenderem suas circunstâncias – na fartura e na miséria, a pé ou de Mercedes.

Meu juízo classe média me assopra que meninos de 20 anos e seus hormônios traiçoeiros não deveriam lidar com carros mais potentes do que a sua capacidade de discernimento e autocontrole. Mas, apesar do carro importado, dos advogados caros, do pai falastrão e das falhas da Justiça, que nem sempre trata ricos e pobres do mesmo jeito, Thor não merece ser julgado e condenado apenas pelas aparências.

Nem ele nem os meninos magrelas e pardos, sem nomes de deuses nórdicos ou pinta de galã, que precisam conquistar todos os dias o direito de contrariar os estereótipos.

O menino de Santo Ângelo – Nas reportagens, seu rosto e seu nome não aparecem, mas sua história anônima é parecida com a de muitos outros meninos de 15 anos – pelo menos 10% da população, segundo as estatísticas. Diferentemente da maioria, porém, esse menino não se escondeu.

Meu juízo classe média teria aconselhado o guri a ficar na dele, discreto, evitando chamar atenção para si ou para o fato de ter descoberto, já aos 13 anos, que gostava de meninos. Mas ele fez tudo ao contrário: contou para os pais logo que pôde e aos colegas de escola na primeira oportunidade.

As consequências foram as previsíveis: isolamento, gozação e depois violência física. Foi demais para ele – garotos de 15 anos tendem a superestimar sua capacidade de enfrentar adversidades. E o menino pensou em se matar.

O fato de ter pais amorosos e esclarecidos deve ter pesado para que ele desse mais valor à própria vida. Em vez de punir a si mesmo, botou a boca no trombone, reclamou, pediu ajuda, se expôs.

O filho de Eike, o menino de Santo Ângelo e todos nós somos produtos das nossas escolhas e das nossas circunstâncias. No caso do garoto gaúcho, sua coragem e seu pedido de ajuda podem ter servido para que outros garotos percebam que não estão sozinhos e que não devem desistir de denunciar a violência e a intolerância – mesmo que demore um pouco até serem ouvidos.

Contrariando o bom senso, ele tornou-se um pequeno herói da resistência. Thor, por sua vez, vai ter que provar que, diante da primeira grande adversidade da sua vida, também saberá transcender suas circunstâncias – agindo como homem, e não como herdeiro.


24 de março de 2012 | N° 17018
NILSON SOUZA


Como nossas mães

Elis vive e volta a cantar em Porto Alegre hoje, reencarnada em sua filha. Maria Rita é Maria Rita, tem ideias próprias, voz própria, talento próprio. Mas é também Elis, porque, querendo ou não, somos como nossos pais.

Nem é preciso fechar os olhos para ouvir Elis na voz de Maria Rita, pois seus trejeitos, seu sorriso de arcada superior, seu olhar amendoado e levemente estrábico, seu temperamento forte, tudo lembra a mãe, que ela fez questão de não imitar ao longo da ainda breve e bem-sucedida carreira.

Trinta anos depois da morte da maior cantora que este país já conheceu, Maria Rita supera a barreira emocional e faz a mais bela homenagem que uma filha poderia fazer à mãe: assume a sua identidade. Inspirado nas letras das músicas cantadas por Elis, que marcaram a minha juventude e a de tantas gerações de brasileiros, associo-me à homenagem nesta despretensiosa mistura de versos celebrizados pela Pimentinha do IAPI.

Canta, Maria Rita, que a vida passa. Mais do que nunca, é preciso cantar o que é nosso. Como você bem sabe, qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa. Essa menina, essa mulher, essa senhora, em que esbarras toda hora no espelho casual, é feita de sombra e tanta luz, de tanta lama e tanta cruz, que acha tudo natural.

Maria, Maria, cantar é um dom, uma certa magia. É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca mistura a dor e a alegria. Sabemos que carregas, feito tatuagem, corações de mãe, arpões, sereias e serpentes, que te rabiscam o corpo, mas não sentes. Forte és, mas não tem jeito. Hoje terás que chorar.

Chora, Maria Rita. No solo do Brasil, choram Marias e Clarisses. O mar é uma gota, comparado ao pranto das mães e filhas. Tristeza não tem fim. Felicidade, sim. Nosso mais-que-perfeito está desfeito. A vida é como uma escola e a morte é o vestibular. Na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais.

Mas uma dor assim pungente não há de ser inutilmente. Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida. E a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar. Vou voltar, sei que ainda vou voltar, para o meu lugar.

Obrigado, Maria Rita, por cantar neste porto dos casais. Você que é feita de azul, você que é bonita demais, se você tiver que apagar a luz, se você tiver que calar a voz, se você quiser encontrar a paz, tenha somente a certeza dos amigos do peito e nada mais.


24 de março de 2012 | N° 17018
CAPA - Shows de aniversário


Minifestival com Hermes Aquino marca comemorações dos 240 anos da Capital do RS

Música, teatro, exposições e debates abrem neste final de semana as comemorações dos 240 anos de Porto Alegre.

A festa de aniversário terá como pontos altos, hoje, as apresentações de Maria Rita, no Anfiteatro Pôr do Sol, e um minifestival no Teatro Renascença reunindo Hermes Aquino, Jorge Mautner, Tonho Crocco e Júpiter Maçã.

Amanhã, as festividades continuam com Arthur Moreira Lima no espelho d’água Redenção, às 10h, e Shana Muller e Delicatessen na Praça da Alfândega, a partir das 17h. Um pouco depois, às 17h30min, o Monumento ao Expedicionário recebe apresentações de Banda Municipal, Buenas e M’Espalho e Apanhador Só.

Hoje, no Teatro Renascença, os espetáculos começam às 21h, com mais um show do retorno de Hermes Aquino. Desde o relançamento de seus discos, no final do ano passado, o músico engatou uma série de concertos em Porto Alegre, ancorados em grande parte na nostalgia pelo hit Nuvem Passageira.

Na segunda metade dos anos 1970, não havia festa que não ecoasse a canção que Aquino compôs para o disco Desencontro de Primavera (1976) e que virou mania nacional após entrar na trilha da novela O Casarão, exibida na Globo.

A apresentação deverá relembrar este e outros sucessos do compositor, que pouco depois de lançar seu segundo disco, Santa Maria (1978), desapareceu dos holofotes. Nos últimos anos, Aquino afirma ter se dedicado a estudar os meandros das novas tecnologias de gravação. Mas se mantém cético quando o assunto é um disco de inéditas.

– Por enquanto, eu estou mais voltado para o palco, sentindo o feedback do público – explica.

O show desta noite é também uma vitória sobre a ânsia pela perfeição que Aquino desenvolveu. Agora, garante estar mais relaxado e seguro para encarar o palco.

– Cheguei à conclusão de que show muito ensaiado enfeita os olhos, mas não tem grande vida. E a vida é agora – conclui o músico.

sexta-feira, 23 de março de 2012



23 de março de 2012 | N° 17017
ARTIGOS - Flavio José Kanter*


Velhos podem trabalhar?

Li a história do senhor Ron Akana, que tem 83 anos de idade. Parece ser o comissário de bordo em atividade há mais tempo nos Estados Unidos, 63 anos na United. Há um outro com 87 trabalhando na Delta, mas começou dois anos depois de Akana. E sua antecessora na mesma companhia deixou de trabalhar há cinco anos, aos 85.

Ele já voou uns 20 milhões de milhas, algo como fazer 800 voltas à Terra ou ir e voltar à Lua 40 vezes. Quer saber se ele está cansado? Diz que não. O fato de ser o mais antigo lhe permite escolher antes a escala de trabalho.

O que escolhe? Rotas longas, como seus pares mais antigos nas companhias aéreas, para atingir rapidamente a quota de horas requeridas no mês. Muitos comissários trabalham até idade avançada porque precisam do salário.

Não é o caso deste senhor. Ele ganhava mais de US$ 100 mil anuais aos 70 anos. Diz que trabalha porque não se imagina longe dos colegas e dos passageiros que encontra a cada novo voo. Gosta do que faz, até de preparar a mala e o uniforme de trabalho nas noites antes de voar. Brinca que o que ganha trabalhando é para as férias...

Há o que refletir nessa história. A pirâmide populacional vem se modificando, com menores taxas de nascimento e aumento na longevidade. Muitos países já avançaram, e o Brasil entrou nessas mudanças.

Isso traz implicações, pois diminuem contribuintes e as aposentadorias tornam-se cada vez mais longas. Gastos com saúde e doença de pessoas que vivem mais tornam-se maiores. São necessários mais leitos hospitalares, vagas em emergências.

A presença dos velhos por mais tempo no mercado de trabalho também se torna real. Tudo indica que os que gostam do que fazem trabalham bem, são apreciados, utilizam a experiência acumulada e são bons no que fazem. A satisfação por se envolver com algo prazeroso faz com que o trabalho seja uma alegria renovada, não um fardo.

Isso é construído ao longo da vida. Ron Akana trabalha desde os 20 anos, época em que se voava impecavelmente trajado, eram servidos coquetéis de frutos do mar e se atendiam passageiros que se reuniam em torno do bar do avião para uma bebida.

Nos tempos cinzentos da aviação atual, ele trabalha com a mesma satisfação: soube entender e se ajustar às mudanças que ocorreram nessas décadas.

A tendência é de se viver mais. É bom nos prepararmos para uma velhice boa.

*Médico

quarta-feira, 21 de março de 2012



21 de março de 2012 | N° 17015
MARTHA MEDEIROS


Burrocracia

Recebi convite para participar de um evento literário em João Pessoa. Já quase não viajo a trabalho, preciso ficar mais tempo no meu escritório, mas respondi que, dependendo da data, talvez conseguisse ir. Foi então que me chegou uma lista de documentos que eu deveria providenciar para viabilizar minha participação.

Não acreditei. Nem para um ex-presidiário acusado de desfalque do Banco Central exigiriam tamanha quantidade de certificados de idoneidade moral e financeira. Eu teria que passar uma semana percorrendo cartórios e contratar um ou dois advogados. Muito grata, mas fica pra próxima.

Nunca vi um país se entravar tanto. Nada avança em ritmo razoável. As incensadas obras prometidas para a Copa do Mundo são apenas um exemplo. Afora maledicências, pilantragens e disputas de poder, ainda temos a questão da papelada: é 1 milhão de pareceres, assinaturas, carimbos e rubricas que impedem o andar da carruagem. Pois é, ainda estamos nos tempos da carruagem, trotando.

Durante a enxurrada que desabou sobre Porto Alegre, semana passada, tivemos mais do mesmo: ruas alagadas nos pontos de sempre. Ok, o asfalto não absorve a água, o lixo é jogado em locais impróprios e choveu o esperado para o mês inteiro. Mas não há pessoas dentro das secretarias de governo sendo pagas para resolver os problemas da cidade?

Vai chover de novo, e forte. E os carros ficarão boiando, poucos conseguirão chegar ao trabalho, o comércio terá que fechar, moradores perderão seus móveis, grávidas terão que ser retiradas de barco de dentro de suas casas. É um déjà vu recorrente.

Como não imagino que haja almas satânicas por trás da nossa administração, só posso pensar que a burocracia tem algo a ver com isso. Quantos estudos, laudos, aprovações, orçamentos, prazos remarcados, projetos refeitos serão necessários para resolver nossas pendências? É o país da novela, de fato.

Fizemos progresso na emissão de documentos pessoais – hoje se pode tirar uma certidão de nascimento ou uma carteira de identidade sem trâmites e demoras, mas ainda falta, como falta, para a gente ser uma nação que flui. A expressão “é pra ontem”, que configura a pressa, passou a ser literal. Não conseguimos sair do ontem e entrar no amanhã.

Os reféns da burocracia se defendem dizendo que não é culpa deles, exige-se o cumprimento da lei, e estão certos, senão vira bagunça. Mas alguém lá em cima, com a caneta na mão, tem o dever de promover mais agilidade nesse Brasil que só é rápido na informalidade. Há que se encontrar um meio de trabalhar de forma legal e ao mesmo tempo atender as demandas em prazo de país desenvolvido, que é o que almejamos ser.

O que é preciso para promover a desburocratização? Claro, uns 3.479 estudos de viabilidade. Pocotó, pocotó.


21 de março de 2012 | N° 17015
JOSÉ PEDRO GOULART


Bafo. Da rua

Sinal. Fechado. Calor. Carro. Condicionado. Sujeito aparece. Velho. Desdentado. Remela. Olho. Mão estendida. Artelhos destroçados. Humilhação. Pausa. Suspiro. E a moeda? Cadê? Cinzeiro. Pega. Nota de vinte. Não. Moeda. Abre vidro. Bafo. Da rua. Da boca. Dos dentes. Do podre. Do pobre. Mão estendida. Moeda. Sorriso. Moeda. Toma. Suborno. É suborno. Pega. Some. Cai fora. Sai. Da minha visão. Da minha consciência. Deus. Abençoe. Vidro fecha. Ar frio. Ainda bem.

Cidades. Cruzamentos. Infinitos. Semáforos. Azar. Azar. Repetido. Rapaz. Gasolina. Engole. Cospe. Fogo. E ela. Lá vem ela. A mão. A esmola . O imposto. Arte. Rua. Couvert. Protesto. Desilusão. Jovem. Emprego. Empregue-se. Desdém. O jovem desdenha. E pensa. (Mas não diz). Empregue-se? Ou revolte-se? Imagina. Enlouquece. Gasolina. Cospe. Fogo. Sinal. Aberto. Fuga. Sem moeda, sobrou a mão, vazia. A cabeça, cheia.

Na esquina. A pé. Moça. Fotografa. Procura. Direciona. Respira. Inspira. Se inspira. Escolhe. Aponta. Estátua viva. Pessoa. Pintada. Imóvel. (Porém, agora, só agora, nesse momento, a estátua não quer ser estátua). Descanso. O corpo encolhe.

E, agachado, medita. Rodin? Não. Anjo. Branco. Prata. Cintilante. Poros cobertos. Tinta barata. Cena inusitada. Oportunidade. Moça. Iphone. Foto. Instagram. Facebook. Likes. A estátua reclama. A rua é de todos. O anjo pragueja. Quer descanso. Sombra. Água. (Foto. Esmola. Agora. Não.)

A cidade. Asfalto. Ponte. Viaduto. Esgoto. (Os ratos engolem os espinhos e vomitam as flores. Do mal.) Loucura. Cresce. Distância. Vida. Infinito. Morte. Vidros. Grades. Cercas. Polícia. Bandido. Medo. Nojo. Repulsa. Culpa. A cidade. Nociva. Abrasiva. Cega. Dissimulada. Fingida. Banal. Imoral. A cidade. Crua. Cruel. Indiferente. Indiferente. Autoindulgente. Pouco. Importa. Ser. Diferente.

Semáforo. Guri. Olhos. Vivos. Trepado. Ombros. Malabarismos. Brincadeira? Não. Trabalho. Tarefa. Obrigação. Dinheiro. O pai exige. A mãe obriga. A família precisa. E tem a cola. Benzina. Loló. Sonho. Fantasia. Prazer. Anestesia. Ressaca. Pensamento. Triste. Olhos. Vivos. (Tão vivos). Logo. Logo. Apagarão.

domingo, 18 de março de 2012


DANUZA LEÃO

O mais importante

Uma boa informação tem de vir de quem está por dentro da intimidade dos negócios, da amizade com políticos

A informação é hoje um bem precioso, e milhares de pessoas se matam para obter uma, por pequena que seja, não importa sobre o quê.

É preciso ser bem informado, e para isso é preciso uma especial competência: um homem bem informado é um homem poderoso, pois com boas informações se consegue qualquer coisa.

Se for sobre o mercado de capitais, alguns podem ficar ricos ou, para usar uma expressão mais moderna, dar uma tacada que vai garantir toda a sua descendência.

Uma boa informação tem de vir de alguém que está "por dentro" da intimidade dos negócios, da amizade com políticos; pode também vir da amiga da mulher do governador ou da manicure da mulher do juiz, pois quem souber da novidade antes de ela se tornar pública vai poder ligar para dez amigos importantes e contar, para que eles saibam que você já sabia.

Para isso talvez seja preciso ser amigo também do segurança do Congresso, e com tantas e tão ecléticas amizades, não vai ter tempo, jamais, para ir a um cinema ou namorar. E daí?

Pense um pouco: algum poderoso vai contar a você, que não é ninguém, se a taxa de juros vai subir ou descer? Pois é exatamente aí que entram eles, os que têm a capacidade de captar os sinais da mensagem, como se fosse um código.

Para obter a informação, é preciso dar algo em troca, seja lá o que for. É um negócio -como quase tudo na vida.

Para um político tímido e solitário, pode ser companhia; para quem quer ascender socialmente, conhecer as pessoas certas; para certos homens, ser apresentado às gatas. Não, nada de prostituição: bem pior. É, por exemplo, apresentar jovens aspirantes a modelo e, num clima de muito charme, levantar a bola do amigo, levar para jantar, dar muita risada. Isso hoje em dia é profissão.

Cada vez se entende menos o mundo. Houve um tempo em que trabalho era trabalho. Havia hora para começar, para terminar, e todo mundo sabia o que estava fazendo. O carpinteiro tinha seu martelo, seu serrote, seus pregos, quando o serviço estava pronto, entregava e recebia seu dinheiro. Ou era sapateiro, ou costureira, ou médico, ou tinha uma loja.

Era fácil de entender. Hoje, é nos jantares e nas grandes festas que são feitos os negócios.

Mas às vezes é preciso tirar férias de tanta modernidade e ir para um lugar onde a informação não chegue ou, se chegar, não faça quase nenhum sentido.

Um lugar onde não haja carros, nem televisão, onde não existam cinemas, os jornais não cheguem nem existam celulares, nem internet.

Se quiser radicalizar, vá para uma casa no mato, sem conforto, eletricidade, ar-condicionado; um lugar onde as informações cheguem por um vizinho que apareça de manhã, sente na varanda, tome um café - talvez uma cachacinha-, olhe para o céu e diga que acha que vai chover; não soube pelo serviço de meteorologia, mas porque as galinhas acordaram alvoroçadas e o vento está abafado. Dizem que isso ainda existe.

Mas um dia pode dar vontade de voltar, e aí o problema vai ser se inserir de novo no mundo e ver o quanto é importante saber, em primeira mão, se a atriz da novela está ou não grávida.

Em primeira mão significa 30 minutos antes dos outros -e talvez não mais do que 15 depois dela.

O mundo anda mesmo estranho.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 17 de março de 2012



18 de março de 2012
Martha Medeiros


Inimigos de Classe

Quando vai chegando a data do aniversário de Porto Alegre (26 de março próximo), começam as enquetes: o que há de bom na nossa cidade, o que temos que as outras não têm? Respondo: Luciano Alabarse.

Afora seu mérito como organizador de um dos maiores festivais de teatro do país, o Em Cena, que traz anualmente grandes nomes internacionais para os palcos gaúchos, além de uma seleção caprichada do que de melhor se faz na dramaturgia nacional e local, Luciano é, em essência, um senhor diretor.

E mais uma vez prova isso com seu recente espetáculo, Inimigos de Classe, que esteve em cartaz no Theatro São Pedro e que merece longa temporada. A peça, escrita pelo dramaturgo inglês William Nigel, e que estreou em 1978, traz uma temática que, aparentemente, é rançosa (a delinquência nas escolas), mas que segue atual, basta lermos os jornais.

No caso da peça, Inimigos de classe seis alunos da periferia de uma grande cidade acabaram de expulsar uma professora da sala e aguardam um substituto que tenha peito para enfrentá-los. Enquanto esse professor não chega, resolvem eles próprios dar aula uns para os outros.

É nesses momentos performáticos, quando se transmutam em “mestres”, que revelam sua violência e fragilidade simultâneas, além de dar as pistas para que entendamos que eles não tiveram muitas opções, a não ser se refugiar na marginalidade. O que diferencia essa peça de filmes clássicos como Ao Mestre com Carinho e menos clássicos como Mentes Perigosas é que não há figura do herói, o professor que resgatará a garotada e os conduzirá a um final feliz.

Os seis alunos não possuem essa boia salva-vidas. Eles precisam buscar em si mesmos os recursos para escapar da desesperança. Ninguém vai me conhecer, mínguem vai me conhecer!”, grita em surto, o personagem principal, Ferro, o mais destemido de todos, dando bandeira da dor e do medo que sente em sua solidão existencial. Ele e os demais colegas são frutos de lares desestruturados e problemáticos.

Só atingem um simulacro de segurança quando exacerbam uma virilidade patética e ao mesmo tempo brutal. Claro, ninguém pode conhecer seus gostos, suas carências, seu desespero íntimo: seria a revelação de uma fraqueza e de uma humanidade que eles na permitem eu venha à tona.

Mas que cedo ou tarde virá. Luciano Alabarse é o maestro dessa orquestra. Em quase duas horas de encenação, rege uma coreografia fascinante no palco, que é valorizada pelo cenário, pelo figurino, pela luz e pela espetacular trilha sonora que resgata TomWaits em seu auge. E os seis atores em cena não devem nada a medalhões – entregam o prometido:almas inquietas vivendo nas frestas.

Peças de entretenimento possuem seu espaço e são bem-vindas, mas dramaturgia é outra coisa. É sangue, suor, estupor, desconforto. Dessa matéria, Inimigos de Classe entende tudo.


17 de março de 2012 | N° 17011
CLÁUDIA LAITANO


Comédias do amor

Uma boa história de amor é sempre uma história de antagonismo: dos personagens entre si, dos personagens e suas circunstâncias, do amor vivido com o amor imaginado. Amores improváveis, tempestuosos ou mesmo impossíveis são os únicos que valem a pena ser contados – os outros podem até fazer um certo sucesso na vida real, mas em geral rendem péssima ficção.

Se as histórias de amor são menos sobre o apaixonamento em si, que não comporta tantas variações assim, do que sobre aquilo que se coloca entre os amantes e a felicidade futura, as histórias românticas são tão sedutoras e envolventes quanto são complexos os motivos que tornam esses amores complicados: famílias rivais (Romeu e Julieta), compromissos de honra (Tristão e Isolda) ou mesmo a morte (Dante e Beatriz).

O amor de um herói por sua musa pode não ter mudado tanto assim desde que Ulisses percebeu que as distrações do caminho não eram tão interessantes quanto a sua amada Penélope, mas as circunstâncias de cada época costumam desempenhar um papel decisivo no tipo de obstáculos que se interpõem entre os amantes. Um grande amor é sempre particular e histórico ao mesmo tempo.

Quem analisar a evolução dos enredos das comédias românticas no cinema, do clássico Aconteceu Naquela Noite (1934) às obras completas de Jennifer Aniston, vai descobrir como essas histórias despretensiosas são testemunhos relativamente confiáveis não apenas da moral e dos costumes de uma época, mas também sobre tudo aquilo que ainda está instável e não completamente assimilado pela classe média que vai ao cinema no sábado à noite.

Mulheres saindo de casa para trabalhar, casais de classes sociais diferentes, sexo antes do casamento, tudo isso foi retratado (e exorcizado) nas comédias românticas, até o momento em que as novidades foram devidamente assimiladas e incorporadas (ou não) ao novo código de comportamento vigente.

Houve um tempo em que as comédias românticas tiravam sua graça de diálogos de duplo sentido em que o sexo era não mais do que uma sugestão apimentada. Em Aconteceu Naquela Noite, nada realmente acontece, mas a cena em que Clark Gable e Claudette Colbert dividem um quarto separados apenas por um lençol carrega uma enorme carga de erotismo sugerido.

Nos últimos anos, a ginástica sexual quase explícita tornou-se banal no cinema, enquanto o amor romântico e exclusivo foi sendo empurrado para arena dos desejos quase impossíveis – algo como morar de frente para o Central Park ou receber uma herança de uma tia rica. Nesse mundo em que o amor ficou mais complicado (e raro) do que o sexo, um dos temas recorrentes das comédias românticas tem sido a possibilidade de viver as experiências do amor tradicional sem o correspondente investimento afetivo.

Filmes como Amizade Colorida (Friends with Benefits) e Sexo sem Compromisso (No Strings Attached) falam de parceiros que dividem a cama, mas não as complicações e as DRs. Outros como Coincidências do Amor (The Switch) e Solteiras com Filhos (Friends With Kids) mostram amigos que procriam juntos, evitando o casamento, mas não a experiência de ter filhos.

A comédia romântica tradicional, do tipo casal se encontra e inventa um sonho de futuro, anda cada vez mais próxima da ficção científica – ou do filme de época.


17 de março de 2012 | N° 17011
NILSON SOUZA


Condenado à fama

Joseph Kony é um bandido da pior espécie. Ele sequestra crianças para utilizar os meninos como soldados e as meninas como escravas sexuais. Líder de uma organização rebelde que opera em Uganda e em outros países africanos, o Exército de Resistência do Senhor, ele está indiciado pelo Tribunal Penal Internacional por 33 crimes de guerra e por outros crimes contra a humanidade.

Uma de suas conhecidas atrocidades, segundo as investigações, é exigir que os jovens aliciados matem os próprios pais como parte do treinamento militar. Pois este homem sanguinário acaba de ser condenado a ficar famoso.

Isso mesmo, seu reinado de crimes parece estar próximo do fim exatamente porque gente da paz, como este escriba que vos atormenta o sábado com um tema tão amargo, resolveu falar nele. Tudo por conta da fórmula mágica encontrada pela organização norte-americana Crianças Invisíveis para levar o criminoso à prisão. Como ele age na África pobre e ninguém olha para o que está acontecendo lá, a ONG resolveu lançar uma campanha para dar visibilidade ao guerrilheiro.

Produziu um vídeo impressionante, que em uma semana já tinha 75 milhões de acessos no YouTube (o viral de maior sucesso da história da internet), e promoveu uma campanha de divulgação tão bem-sucedida, que envolveu personalidades do cinema e da música, além de políticos importantes e do próprio presidente Obama, que chegou a mandar instrutores militares americanos para ajudar o exército de Uganda a pegar o líder rebelde.

O objetivo de transformar o criminoso em celebridade foi plenamente alcançado, mas também está provocando reações contrárias. Vítimas de Kony, que foram mutiladas ou perderam parentes, dizem que a campanha chegou tarde demais, pois o bandido já fugiu do país. Críticos da ONG americana alegam que ela arrecadou muito dinheiro e mandou pouco para os ugandenses.

E há também os adeptos de sempre da teoria da conspiração, que atribuem a iniciativa da organização humanitária a uma suposta intenção dos Estados Unidos de invadir o país africano para ficar com o seu petróleo. Os norte-americanos, pelo seu histórico de conflitos e pela truculência de sua política externa, também estão condenados à desconfiança eterna.

Ainda que possa haver segundas intenções por trás da campanha, a verdade é que ela foi feita com inteligência e certamente ajudará a manter o bandido acuado, até que ele seja efetivamente preso e julgado por seus crimes. E todos nós, ao ler, comentar e escrever sobre o assunto, estamos ajudando a eliminar uma barbárie. Admirável e assustador mundo novo esse da comunicação instantânea!

sexta-feira, 16 de março de 2012



O Sarah

O resultado é uma visão ampla das enfermidades, anseios, carências, dores e prazeres do paciente. Domingos Oliveira, que diz ter testemunhado o fim do comunismo, do casamento, da psicanálise e do humanismo, acompanha agora o enterro de mais uma utopia. Ouvi da boca de economistas: o capitalismo fez a passagem.

A competição desenfreada levou a humanidade para a zona de risco até irmos todos à bancarrota. O Estado pagou a conta, como na velha tradição soviética. Não adianta controlar demais, e nem de menos.

Em 1960, o ortopedista Aloysio Campos da Paz deixou a família com larga tradição na medicina do Rio de Janeiro para se aventurar na implantação de Brasília. Seu primeiro emprego foi em um hospital de campanha, atendendo os candangos acidentados do gigantesco parque de obras.

Uma década depois, chamado pelos generais, assumiu o hospital Sarah Kubitschek, um centro de reabilitação motora fundado pela ex-primeira dama. Lúcia Willadino Braga veio com os parentes do Sul e foi aluna de Paz. Nas poucas escolas da capital do futuro, todas públicas, estudavam o filho do ministro e o do porteiro. "Havia um sentido de comunidade. Éramos poucos e todos se conheciam."

A agudeza da estudante de 17 anos levou Paz a dar sinal verde para que Lúcia iniciasse a sua pesquisa de recuperação por meio da arte. "Se um médico não leu 'Moby Dick', como ele pode ser médico?", ela costuma dizer. A parceria dura até hoje.

O Sarah foi fundado em um gabinete. O primeiro hospital modelo foi inaugurado em 1980. Em 1991, com aprovação por voto no Senado e na Câmara, a verba da instituição passou a sair diretamente da União para a conta da sociedade de direito privado, sem fins lucrativos. Com essa independência, a rede foi ampliada.

A cada novo presidente, e foram muitos, o arranjo é questionado. Por que proteger alguns dos interesses partidários que disputam o orçamento ministerial enquanto os outros guerreiam nas emergências do SUS? Uma breve rodada pela internet já denuncia a agressiva divisão de opiniões. A única justificativa para a sobrevida do Sarah é a excelência do seu serviço.

A criadora do "Braga's Method" é uma assalariada, deve ganhar menos do que um profissional da sua altura em um consultório particular, mas conta com uma rede hospitalar de vanguarda que ajudou a criar. Os equipamentos são projetados por eles, e os médicos não têm outro emprego.

No Rio, um passeio pelo complexo arquitetônico verde de João Figueira Lima, o Lelé, atravessa sessões de dança de salão, pintura, piscinas com esteiras submersas e auditório futurista. É um mundo que repete a Brasília da menina Lúcia, onde o engenheiro, o cientista e o peão conviviam próximos, cercados pela audácia estética de Niemeyer.

"O pessoal da limpeza olha no microscópio para entender o porquê da faxina", explica Lúcia.

Ali, a corrupção não devora recursos, não há trocas políticas e nem mercantis. "Se sou patrocinada por uma empresa farmacêutica, terei que usar esse ou aquele medicamento. Na medicina pública, escolhe-se o melhor." Parece delírio, mas não é. A rede atende a 2 milhões de pessoas democrática e gratuitamente, exporta descobertas e presta contas.

Não falo com isenção. A mistura de alto conhecimento científico com prescrições singelas, e igualmente importantes, como um passeio à beira-mar, salvou meu pai do labirinto de fármacos dos especialistas.

O Sarah não opera intestino e nem enfrenta doenças infectocontagiosas. Focado na ortopedia e na neurologia, sua ciência estuda a relação entre o corpo e a mente, a carne e o espírito.

O resultado é uma visão ampla das enfermidades, anseios, carências, dores e prazeres do paciente; palavra que Lúcia detesta.

A história do Sarah se baseia na persistência de um grupo de profissionais capacitados, que encontraram brechas para crescer com audácia em sociedade com o governo. É uma experiência que extrapola o setor de saúde e ensina a respeito de uma possível terceira via entre o totalitarismo de Estado e a voracidade do livre mercado.

O trabalho de Paz e Braga também recupera valores humanos como a ética, a família, a arte e a filosofia. É um hospital modelo para muitas de nossas mazelas.

quarta-feira, 14 de março de 2012



14 de março de 2012 | N° 17008
MARTHA MEDEIROS


Felizes por nada

Quando me perguntam a que atribuo o fato de minha última coletânea de crônicas estar há 32 semanas na lista dos mais vendidos, não me ocorre outra resposta: só pode ser por causa do título, já que o conteúdo é semelhante às coletâneas anteriores.

No entanto, nenhuma teve uma receptividade tão calorosa quanto Feliz por Nada, um livro que traz textos sobre as triviais situações do cotidiano, e não sobre a “Felicidade” aquela, com maiúscula e traje de gala. Como se explica?

Surgiu uma pista: foi divulgado, semana passada, o resultado de uma pesquisa que revela que o Brasil é o campeão mundial de felicidade. Mundial! As entrevistas devem ter sido feitas numa época do ano diferente da que estamos, pois quem consegue ser tão feliz prestes a entregar a declaração do imposto de renda?

Pagamos os tubos para o governo, que gentilmente retribui nos dando uma banana. Os que buscam saúde de qualidade, educação de qualidade e segurança de qualidade têm que pagar por fora.

Os pedágios seguem altos. Tudo é caro: roupa, alimento, remédio, transporte. Aeroportos não dão conta do movimento, criminosos são soltos por falta de espaço nas prisões, o trânsito nas grandes cidades está estrangulado, o tráfico de drogas acontece a céu aberto.

Nem precisamos perguntar para onde vão os bilhões que o governo arrecada e que deveriam ser reinvestidos no país. Vão para o mesmo lugar aonde vai nosso voto: para o bolso dos sem-escrúpulos.

Logo, somos realmente felizes por nada. Se não temos a bravura de nos mobilizarmos, ao menos nos sobra capacidade de extrairmos alegria de todo o resto: desde os gols do Neymar até uma receita nova de panqueca.

Não deixa de ser um estágio existencial avançado – em vez de um povo frustrado por não ter a casa própria, o vestido de grife ou o iPad recém-lançado, as pessoas curtem a floreira embaixo da sua janela, o café da manhã com o namorado, o último capítulo da novela, o primeiro desenho que o filho fez na escola.

A notícia é boa, mas também é ruim: tudo indica que estamos valorizando as pequenas delicadezas que a rotina oferece com fartura, o que explica não nos importarmos tanto por sermos roubados e por vivermos sitiados dentro de edifícios gradeados.

Faço parte do time que acredita que ficar em casa lendo um livro ou se reunir com amigos para tomar um vinho equivale a uma festa a rigor (na verdade, considero melhor que uma festa a rigor).

Individualmente, a simplicidade é uma forma saudável de levar a vida, é o que defendo. Mas quando uma nação inteira se revela satisfeita com merrecas, sem ter o básico garantido, alto lá. Consagrar o Brasil como campeão mundial de felicidade é passar atestado da nossa alienação e do nosso desinteresse pelo futuro. Seria mais decente nos emburrarmos um pouco.

domingo, 11 de março de 2012


Danuza Leão

Os arrependimentos

Mas o tempo passou, então fico pensando em como seria minha vida se tivesse feito tudo como deveria

Se pudesse voltar no tempo, você faria tudo igual? Eu não.

Me arrependo de tantas coisas que fiz, tantas que deveria ter feito, que, se pudesse reescrever minha vida, mudaria um monte de coisas: as que me fizeram sofrer e também outras, em que fiz outras pessoas sofrerem.

Se eu fosse de chorar, era a hora; mas o tempo passou, não há nada a fazer, então fico pensando em como seria minha vida, hoje, se tivesse feito tudo como deveria. Se tivesse tido uma vida equilibrada, se nunca tivesse pisado na bola -em quantas eu pisei-, se nunca tivesse falado o que não devia, se não tivesse engolido sapos, se tivesse tido a coragem de largar aquele homem logo que ele começou a me fazer sofrer, se tivesse tido mais paciência e ficado com aquele em que comecei a ver só os defeitos e que, pensando hoje, me fazia tão feliz.

E continuo pensando, mas dessa vez, tudo ao contrário. Se hoje, passando minha vida a limpo, tivesse feito tudo como mandam alguns figurinos, estaria muito, mas muito arrependida.

Olho para trás e me divirto com as loucuras que fiz, sendo que algumas me deixaram literalmente de cama, tão grande foram os vexames, tais as vergonhas que senti na manhã seguinte.

O tempo que perdi ouvindo a mesma música -de Chico, claro- esperando um telefonema que nunca veio, e sofrendo. Hoje, quando me lembro, dou risada, mas naquele momento pensei que minha vida estava acabada.

E as confusões que aprontei, marcando dois encontros para a mesma noite, saindo de um bar à 1h da manhã porque tinha marcado com outro, e o primeiro percebeu, e coisas no gênero.

Mas continuo pensando -hoje é o dia. E se não tivesse feito nada disso; como estaria hoje, se minha vida tivesse sido certinha? Se tivesse casado com o terceiro namorado, tivéssemos tido um casal de filhos, ele fosse um bom marido, claro, e eu uma boa esposa, claro também. Que poderíamos estar casados até hoje, sem que eu nunca tivesse olhado -desejado, nem pensar- para um outro homem, e que a vida tivesse sido o que se chama uma vida boa. O que estaria pensando?

Acho que eu estaria morta de arrependimento de não ter feito não uma, mas várias, todas (quase) as loucuras, de não ter chutado o pau da barraca muitas vezes, de não ter desobedecido ao que mandam a família, a tradição e a propriedade.

E no lugar de estar hoje dando risada, estaria chorando por todas as insanidades que deixei de fazer.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 10 de março de 2012



11 de março de 2012 | N° 17005
Martha Medeiros


Fidelidade feminina

Peguei a conversa pela metade, mas não pude deixar de acompanhar até o final. Ninguém resiste a escutar uma mulher confidenciando um segredo a outra.

– Desde quando isso está acontecendo? – Ainda não está acontecendo, mas vai acontecer em breve.

É horrível ter que traí-lo, nunca me imaginei nessa situação. A gente sempre se deu tão bem. Mas sinto que chegou a hora do meu turning point. – Você conheceu outro?

– Uma colega me apresentou. Fiquei fascinada. Tão solto, tão moderno.

– Procura resistir, Marília ! Afinal, você construiu uma relação sólida de.. quanto tempo mesmo? ]

– Dezessete anos, acredita? E nunca olhei para o lado, sempre com ele, fiel como uma labradora.

Hoje é meu melhor amigo. Muito além do que qualquer outra coisa.

– E você vai arriscar perder essa cumplicidade por causa de uma tentação?

– Rê, chega uma hora em que é preciso mudar. Eu vou fazer 50 anos. Olho todos os dias para o espelho e enxergo a mesma cara, a mesma falta de brilho.

Estou envelhecendo sem arriscar nada, sem experimentar algo diferente, nunca. Me diz a verdade: você acha que ele irá suportar?

– Tá brincando! Você pretende contar a ele??? – Ele vai reparar, né? Lógico.

– Não precisa falar nada, mulher! Se você for discreta, ele não vai descobrir.

– Só se eu trocasse de cidade, Rê. Ele vai ficar sabendo no mesmo dia. Você sabe como as fofocas voam.

- Se você pretende fazer essa besteira mesmo, melhor pensar nas consequências. A não ser que ele seja muito bem resolvido.

- Quem é bem resolvido numa hora dessas? Ele vai querer me matar. Vai me chamar de traíra pra baixo. Vai se sentir um lixo de homem.

- ai Marília. Pra que inventar moda a essa altura do campeonato? Claro que às vezes também fico a fim de experimentar uma novidade, quem não fica? Mas, por outro lado, é tão bom não precisar mentir, não ter que criar desculpas...

Uma amiga minha fez essa bobagem e conseguiu ser perdoada porque garantiu que tinha acontecido uma vez só, e em Nova York! O cara engoliu, mas a relação está estremecida até hoje, nunca mais foi a mesma.

- eu sei, eu ei só que não aguento mais usar o mesmo corte há 17 anos. Estou decidida, Rê. Vou trocar de cabeleireiro. Se me arrepender, assumo as consequências. Não suporto mais ficar refém de uma situação que é cômoda, mas que não me revitaliza.

- Então só posso te desejar boa sorte, amiga. Voou te confessar uma coisa, mas não espalha: eu adoraria trocar minha manicure por outra novinha que recém entrou no salão. Me diz se tem cabimento isso. Já troquei de marido três vezes, e não tenho coragem de deixar a Suely.

RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA

Cartão amarelo para os manos

O secretário-geral da Fifa deu um carrinho por trás – mas... vamos mesmo conseguir sediar a Copa?

Nada como um carrinho por trás para criar confusão dentro e fora de campo. A julgar pelo desfecho, a falta aconteceu em boa hora. A jogada desleal foi aplicada pelo francês Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, conhecido pelo estilo traiçoeiro. Em inglês, ele disse que o Brasil precisaria de “um pontapé no traseiro” se quisesse sediar direito a Copa do Mundo em 2014. Contundido moralmente, o Brasil peitou a Fifa e exigiu a expulsão de Valcke do gramado.

A turma do deixa-disso entrou na área. Valcke chamou o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, de “infantil”, depois amarelou e pediu desculpas à torcida verde-amarela. O Brasil aceitou e resolveu mexer – se não no time, pelo menos na velocidade e na precisão dos passes. Os manos aparentemente se reconciliaram, mas... vamos mesmo cumprir a tempo todas as obras na infraestrutura e fazer uma boa exibição em 2014?

Valcke expressou em linhas tortas o que temos falado na rua, no botequim, na praia, no trabalho: está difícil acreditar. Nem digo mais na Seleção, mas na agilidade (!!!) do Congresso, que vive adiando a votação da Lei Geral da Copa. Está difícil acreditar nos prazos e excelência dos estádios, nos serviços de hotelaria, transporte, aeroportos. Está difícil acreditar na honestidade no Brasil. Ou somos injustos?

Ao rolar e espernear, o Brasil exagerou. Simulou. A falta de Valcke não foi tão grave assim – embora tenha sido mal-educado e inconveniente. Deveria ser parceiro, e não adversário. Sua chinelada verbal pode ter um mérito: virar o jogo a favor da Copa brasileira, ao mexer com os brios de uma equipe burocrática, comandada pelo sonolento Rebelo.

É importante saber exatamente o que Valcke disse. O francês culpou os tradutores. Alegou que queria apenas sugerir ao Brasil: “Acelere o ritmo”. Sua declaração, literal, foi: “Lamento, mas as coisas não estão funcionando no Brasil. A gente espera mais apoio – há essas discussões infindáveis sobre a Lei Geral da Copa. Deveríamos ter recebido esses documentos assinados em 2007 e estamos em 2012. A gente tem de acelerar, dar um chute no traseiro e realizar esta Copa do Mundo, e é isso o que nós faremos”.

O secretário-geral da Fifa deu um carrinho por trás – mas... vamos mesmo conseguir sediar a Copa?

Cinco dias após o chute no bumbum sugerido pelo secretário-geral da Fifa, a comissão especial da Câmara aprovou o projeto de lei da Copa, assegurando a venda de bebida alcoólica nos jogos do Mundial em 2014. O texto ainda precisa ser votado no plenário da Câmara, depois no Senado. Alguém, sóbrio ou bêbado, acha o Congresso brasileiro ágil nas votações que interessam à população e não ao bolso dos congressistas?

Fora o trecho polêmico, o restante da declaração de Valcke me pareceu um alerta bem mais importante. Ele confirmou que não há “plano B” para o país anfitrião da Copa e que o torneio se realizará no Brasil. Mas advertiu que “os torcedores vão sofrer”. Bem, nós temos medo de sofrer também, não?

“Não há hotéis suficientes em todos os Estados. Há, sim, mais que o suficiente em São Paulo e no Rio de Janeiro (ele foi gentil), mas, se pensarmos em Manaus, é preciso mais. Digamos que, em Salvador, a Inglaterra jogue com a Holanda e que haja no estádio 12% de torcedores ingleses e 12% de holandeses. Isso representa cerca de 15 mil torcedores.

A cidade é bonita, mas é preciso melhorar o transporte para o estádio e a organização.” Não é verdade? Nosso Ronaldo, do Comitê Organizador Local da Copa, concordou com Valcke: “Ainda tem muita coisa atrasada”.

Como a decisão brasileira foi espalhar os jogos pelo país e não concentrá-los numa região, ao contrário do desejo inicial da Fifa, isso significa, disse Valcke, que, “se um torcedor quiser seguir seu time, terá de voar 8.000 quilômetros”. A Fifa apoiou a decisão, mas “é preciso assegurar que torcedores e jornalistas possam acompanhar sua seleção nacional”. Alguém discorda? Eu não. Na verdade, eu me preocupo muito, e não só com isso.

Eu me preocupo também com o “Grande Irmão”, o Mano, e sua capacidade de treinar uma Seleção que faça jus a nossa tradição e a nossos craques. Na semana passada, vimos o show do Messi. Também vimos o show do Neymar, 20 aninhos de muito talento, em busca de um técnico seguro e competente que saiba armar e inspirar um time campeão. Porque não podemos depender apenas de rompantes individuais de genialidade.

Como carioca, cresci indo ao Maracanã com meus pais aos domingos. É um descalabro imaginar que a Seleção possa nem chegar a jogar no estádio mais mítico do mundo na Copa de 2014 – caso não dispute a final. Vamos chutar, não no traseiro da Fifa, mas no gol, com brilho e decisão. Estamos na torcida. Temos futebol para isso. Acelera, Brasil.


10 de março de 2012 | N° 17004
NILSON SOUZA


Jonathan e Platero

Passou esta semana pelo Estado um homem que viaja a pé pelas três Américas, acompanhado de um burro. Poderiam ser personagens de um filme de aventura ou ficção, mas são criaturas reais e do nosso tempo. O humano, o norte-americano Jonathan Dunham, é bioquímico, tem 37 anos e já percorreu mais de 18 mil quilômetros de sua insólita jornada, que deverá acabar no ano que vem, no Chile.

Ele saiu de Oregon, nos Estados Unidos, aprendeu espanhol no México e está na estrada desde 2002. O muar, que o caminhante ganhou de presente durante a temporada mexicana, chama-se Judas – mas poderia chamar-se Platero, célebre criação do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez, Prêmio Nobel de Literatura em 1956.

Li Platero y Yo na década de 80, quando frequentava um curso de espanhol. Foi encanto à primeira vista com aquele poema em prosa escrito com extrema sensibilidade, tendo como pano de fundo o diálogo reflexivo entre o homem e seu burro.

É um diálogo em que só o homem fala, mas o seu relato indica que o animal não apenas ouve, como também entende o seu dono e compartilha sentimentos com ele. Claro que tudo sai da imaginação extraordinária de Jiménez. Observem só neste trecho do livro a força narrativa do escritor:

“Olha, Platero; hoje, o canário das crianças amanheceu morto em sua gaiola de prata.

É verdade que o coitado já estava muito velho... O último inverno, bem te lembras, ele passou silencioso, com a cabeça escondida sob as penas. E, ao começar esta primavera, quando o sol transformava em jardim a casa aberta e se abriram as melhores rosas do pátio, ele também quis engalanar a vida nova e cantou: mas sua voz era quebradiça e asmática, como a voz de uma flauta rachada.

O menino maior, que cuidava dele, ao vê-lo hirto no fundo da gaiola, apressou-se em dizer, choroso: ‘Pois não lhe faltou nada; nem comida nem água!’

Não, não lhe faltou nada, Platero. Morreu porque sim – diria Campoamor, outro canário velho...Platero, haverá um paraíso dos pássaros?”

Como o personagem de Jiménez, Jonathan também conversa com seu burrico e reconhece nele um instinto infalível para discernir entre pessoas confiáveis e inconfiáveis.

No seu blog de aventureiro moderno, o americano diz que caminha em busca de um sentido para a vida. Talvez já o tenha encontrado. Como diz outro poeta espanhol, caminante, no hay camino: se hace camino al andar.

quinta-feira, 8 de março de 2012


Edson Marques

Mulheres

Não me bastam os cinco sentidos para perceber-lhes toda a beleza. Não me bastam os cinco sentidos para viver com totalidade o mistério profundo que elas trazem consigo. Eu tenho é que tocá-las, cheirá-las, acariciá-las, penetrar-lhes o sorriso, sentir o seu perfume, beijar-lhes o céu da boca, ouvir suas histórias, transformá-las em deusas. Tenho que dar-lhes o amor que o meu corpo conduz e sustenta-me a alma.

O belo amor natural por todas as coisas do mundo. Como espelho de paixões em labareda, tenho que sentir nos seus olhos um raro brilho diamante.

Eu as respeito e as venero, com a graça de um cisne que dança num lago tranqüilo e a ousadia de um touro selvagem recém-despertado. Não lhes faço perguntas, não as pressiono por nada, não lhes tiro a liberdade, não quero mudá-las jamais. Sempre imagino o que estejam sonhando, e pulo de cabeça no sonho delas. Cavalgo o vento para visitar-lhes as razões, as emoções e as loucuras.

Como um deus escandaloso e surpreso por sua própria criatura, entro no coração de cada uma delas, deliciosamente, como se entrasse numa pulsante catedral. Mergulho na essência dos seus desejos e cada vez me espanto mais com tanta fantasia. Os cinco sentidos, por não serem precisos, ainda não bastam, e preciso mais do que isso para compreendê-las.

Toda mulher é silenciosa por dentro. A existência pura se manifesta em cada detalhe. Assim na terra como no céu, amar as mulheres é uma experiência religiosa. E eu as amo, fina substância, como deve amar quem ama de verdade — incondicionalmente.

Sem ciúmes. Eu amo as morenas, as loiras, as baixinhas, as altas, as lindas, as quase feias. Amo as virtuosas, as magras, as gordinhas, as diabólicas, as tímidas, e até as mentirosas. As iluminadas, as pecadoras, e as santíssimas.

Amo as virgens, as pobres, as ricas, as loucas, as muito vivas, as inocentes. As bronzeadas pelo sol, e as branquinhas. As inteligentes, e as nem tanto. Desde que sensíveis, eu amo as jovens, as velhas, as solteiras, as casadas, as separadas. As bem-amadas, e as abandonadas. As livres, e as indecisas. E se me dessem o poder, o tempo e, principalmente, a chance, eu a todas elas daria, todos os dias, um orgasmo cósmico, poético e sublime.

Apanharia flores silvestres, tomaria sol com todas elas. Andaríamos descalços na areia, contemplaríamos crepúsculos cor de abóbora, jantaríamos à luz de velas, dançaríamos, tomaríamos vinho branco, olharíamos as estrelas.

E eu lhes faria poesias de amor. Puro como um anjo, amaria cada uma delas eternamente — uma por vez. Com delicadeza, com doçura, com profundidade, com inocência. Entusiasmado, como se cada uma fosse a única. Como se no mundo inteiro não houvesse mais nada, nem ninguém.

Todas as noites, passaria cremes e encantos no seu corpo. Falaria sobre fábulas, contaria histórias românticas, as veria dormir. Ouvindo Beethoven, velaria por um tempo o sono delas, e de madrugada, antes do sol raiar, antes do primeiro pássaro cantar, as cobriria com o resto de luar que ainda houvesse, e sairia em silêncio. Como um felino lógico, sensual e saciado, deslizaria pelo cetim azul-celeste dos lençóis, saltaria por sobre todas as metáforas — e sorrindo iria embora.

Enfim, se por acaso fosse Deus, eu com certeza não mais ficaria cuidando do universo e dessas outras coisinhas banais. Não ficaria controlando o destino das pessoas, o tempo, os compromissos, a pressa, o caminho dos planetas, a economia, o cotidiano, o infinito, os genes, a Internet, a gravidade, a geografia... Não!

Eu somente iria amar as mulheres, como elas merecem. E como nunca foram amadas.
Só isso, definitivamente. Nada mais, nada mais!

Edson Marques


08 de março de 2012 | N° 17002
EDITORIAIS ZH


LUTA PELA IGUALDADE

O aspecto mais importante a considerar neste 8 de Março, quando é celebrado mais um Dia Internacional da Mulher, é que a luta por avanços sob o ponto de vista social, sexual, político e econômico deixa cada vez mais de ser apenas delas no mundo ocidental. A cada dia, um número crescente de homens vem superando barreiras impostas por uma cultura machista e alinhando-se à causa dos direitos iguais.

Ainda assim, a própria relevância atribuída à data e o fato de continuar havendo uma necessidade constante de mais e mais leis com o objetivo de assegurar direitos femininos, que, mesmo assim, não se confirmam na prática, mostram não haver motivos só para comemorações, mas também para a continuidade da busca de outras conquistas e de seu aperfeiçoamento.

Agora mesmo, em plena segunda década do século 21, a Comissão de Direitos Humanos do Senado avalizou projeto que, se transformado em lei, vai consagrar no papel a igualdade salarial entre os gêneros no exercício de idêntica função.

De certa forma, esse sonho, até hoje não concretizado, já movia algumas das precursoras da causa feminina ainda no século 19, primeiro pelo direito a voto, depois por causas múltiplas de interesse individual ou coletivo: o acesso à escola e a serviços públicos de saúde, a disputa pelo mercado de trabalho em condições mais equânimes, o ingresso nas Forças Armadas, a liberdade para disporem de seu corpo, a necessidade de deixarem de ser vistas de forma estigmatizada pela imposição de padrões conservadores.

Muitas destas bandeiras já perderam o sentido há algum tempo, mas outras ainda persistem de forma inadmissível. Uma das mais recentes conquistas nesse âmbito em anos recentes, a chamada Lei Maria da Penha reduziu significativamente a impunidade nos casos de agressões de parceiros contra as mulheres.

Mesmo com toda a estrutura de apoio montada a partir dela, porém, não foi capaz de pôr fim a esse tipo de abuso. A prostituição infantil, mais comum nos casos de meninas, o aliciamento de mulheres e o trabalho escravo são outras deformações que persistem.

De alguma forma, esse legado acaba se equivalendo às atrocidades impostas ao sexo feminino em um elevado número de países, por razões religiosas ou culturais. Nos últimos dias, por exemplo, universitárias têm ocupado banheiros masculinos em grandes cidades da China reivindicando a construção de locais públicos para as mulheres.

Mesmo no mundo ocidental, onde há um número cada vez maior de representantes do sexo feminino chegando até mesmo à presidência da República, o número de mulheres em postos-chave na política e nas corporações segue insignificante. No mundo ocidental e no oriental, há muito mais padrões de ordem física impostos às mulheres do que aos homens.

A causa feminina, portanto, acumula ganhos, ainda que num ritmo lento, mas, enquanto um dia especificamente dedicado à mulher continuar com a importância de hoje, será sinal de que nem todos os avanços possíveis foram assegurados.