sábado, 28 de janeiro de 2023


28 DE JANEIRO DE 2023
PÓS-CREDITOS

A EXCELÊNCIA DO EXCESSO

Babilônia (Babylon, 2022), em cartaz nos cinemas de Porto Alegre, é um filme sobre excessos e um filme excessivo. Essa combinação mostrou-se repulsiva à maioria dos críticos e também ao público - apesar de trazer os nomes de Margot Robbie e Brad Pitt à frente do elenco, o título sobre a Hollywood das décadas de 1920 e 1930 escrito e dirigido por Damien Chazelle foi um fracasso comercial nos Estados Unidos: nas bilheterias, arrecadou menos de US$ 15 milhões, quantia que não paga nem 20% do orçamento.

Na temporada de premiações, faz um pouco mais de sucesso. No Globo de Ouro, ganhou em música original, composta por Justin Hurwitz, e disputou as categorias de melhor comédia ou musical (embora não seja nem uma coisa nem outra), atriz, ator (Diego Calva) e ator coadjuvante; no Critics? Choice, venceu em design de produção, assinado por Florence Martin e Anthony Carlino, e concorreu a outros oito troféus; compete como melhor elenco no SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA, e recebeu três indicações ao Bafta, da Academia Britânica: design de produção, figurino (Mary Zophres) e trilha sonora. São as mesmas categorias no Oscar, que não deu a onipresença merecida por Babilônia e nitidamente desejada por Chazelle.

Alçado à condição de jovem prodígio quando lançou, com 29 anos, Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014), pelo qual conquistou o Oscar de roteiro adaptado, o cineasta estadunidense já havia celebrado Hollywood em La La Land: Cantando Estações (2016). O musical estrelado por Ryan Gosling e Emma Stone igualou o recorde de indicações à estatueta dourada estabelecido por A Malvada (1950) e Titanic (1997). Das 14, venceu seis, incluindo melhor direção - Chazelle é o mais jovem ganhador da categoria (tinha 32 anos e 38 dias na data da premiação).

O espectador de Babilônia pode reconhecer características de La La Land, de Whiplash e também de O Primeiro Homem (2018), sobre o astronauta Neil Armstrong. Novamente, Chazelle conta uma história sobre dois jovens que perseguem o sucesso em Los Angeles - outra vez, temos uma aspirante a atriz, Nellie LaRoy, papel da australiana Margot Robbie, indicada ao Oscar de atriz por Eu, Tonya (2017) e ao de coadjuvante por O Escândalo (2019), e se não um pianista, temos um cara que carrega o piano, o faz-tudo Manny, interpretado pelo mexicano Diego Calva. Novamente, sonhos podem se tornar perigosas obsessões. Novamente, o cineasta busca sincronizar som e imagem, em uma simbiose alucinante orquestrada em parceria com seus colaboradores habituais: o editor Tom Cross e o compositor Hurwitz - autor de um tema absolutamente empolgante e totalmente contagiante, que parte da instrumentação de uma banda de jazz dos anos 1920 mas acrescenta toques de rock e música eletrônica.

O público também deve identificar semelhanças com o clássico Cantando na Chuva (1952) e o oscarizado O Artista (2011), afinal, esses três filmes abordam a complicada transição do cinema mudo para o cinema sonoro em Hollywood. A trama de Babilônia vai de 1926 a 1936, com um epílogo justamente em 1952. Para contextualizar a época, desenvolver os dramas dos personagens e reconstituir o impacto das transformações tecnológicas, Damien Chazelle adotou uma duração que uns encaram como exagerada - são três horas e nove minutos -, mas bem normal na comparação com outros filmes de destaque nas premiações e nas bilheterias: Avatar: O Caminho da Água tem 192 minutos; RRR, 187; Batman, 176; Pantera Negra: Wakanda para Sempre, 161; Elvis, 159; Tár, 158; Os Fabelmans, 151; Triângulo da Tristeza, 147; Nada de Novo no Front, 143; Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, 139; Top Gun: Maverick, 131.

Elefante

De qualquer forma, exagero é a palavra adequada tanto para definir Babilônia quanto a Hollywood daqueles tempos. Logo na primeira cena, o filme avisa sobre o que vem pela frente. No meio do deserto californiano, enquanto três homens tentam transportar um elefante em uma carreta, um deles acaba levando um banho de fezes do animal. Não haverá pudor em mostrar a orgia regada a álcool, cocaína e urina realizada na mansão do produtor cinematográfico Don Wallach, dono do fictício estúdio Kinoscope, festa em que o tal elefante é aguardado para ser uma surpresa literalmente de peso. Não haverá pudor nem limite: dezenas, talvez centenas de atores e figurantes participaram dos 10 dias de filmagens da festança. Chazelle demonstra ter absoluto controle sobre o caos, ora apostando em intrincados planos-sequência comandados pelo diretor de fotografia sueco Linus Sandgreen, para ilustrar a suntuosidade do ambiente, ora investindo em inúmeros cortes para traduzir a atmosfera febril.

Se as festas eram extravagantes, o trabalho era turbulento e arriscado. Antes de O Cantor de Jazz (1927), como o som ainda não importava, vários filmes podiam ser rodados ao mesmo tempo ocupando diferentes espaços do mesmo set: um faroeste aqui, um épico de capa e espada ali, um drama contemporâneo acolá. Outra vez, Chazelle consegue colocar o espectador dentro de um cenário confuso e nervoso sem jamais perder o foco, o objetivo.

O que não é exagerado em Babilônia é o número de personagens. Os principais são apenas três. Nellie e Manny compartilham a mesma ambição: querem estar em um set de filmagem - "o lugar mais mágico do mundo", como dirá alguém -, ela à frente das câmeras, ele, nos bastidores.

A suburbana Nellie atravessou o país (veio de New Jersey) a bordo de uma autoconfiança - "Ninguém se torna uma estrela. Ou é ou não é"- forjada por anos e anos de penúria e desprezo. De origem mexicana, Manny tem como trunfos um otimismo quase inabalável e sua capacidade de resolver as coisas. Por isso, acaba sendo empregado por Jack Conrad, um astro do cinema mudo inspirado em John Gilbert e Douglas Fairbanks, entre outros, e encarnado por Brad Pitt, vencedor do Oscar de coadjuvante por Era uma Vez em Hollywood (2019). Jack está sempre bebendo e trocando de esposa. Nos momentos de sobriedade, tece reflexões sobre o encantamento exercido pelas salas de cinema: "Filmes são mais importantes do que a vida. Filmes fazem você sentir. Filmes mostram que você não está sozinho!".

Ao redor desses três personagens, gravitam três coadjuvantes importantes. Lady Fay Zhu (Li Jun Li) é uma cantora andrógina. Sidney Palmer (Jovan Adepo) é um trompetista negro. Elinor St. John (Jean Smart, multipremiada pela série Hacks) é uma jornalista de fofocas. Somadas às histórias de ascensão e queda de Nellie, Manny e Jack, suas trajetórias ajudam a exemplificar a volatilidade de Hollywood e como o talento e o estrelato não protegem do moralismo e do racismo.

Pois é: apesar de se passar quase um século atrás, Babilônia não deixa de refletir sobre a Hollywood de hoje, igualmente pressionada a lidar com uma transformação de teores tecnológicos e mercadológicos - o avanço das plataformas de streaming, impulsionado durante os anos da pandemia de covid-19. E a descida ao inferno conduzida pelo assombroso personagem interpretado por Tobey Maguire parece apontar para o que seria o futuro, portanto, o presente da indústria cinematográfica: os tipos grotescos, a pirotecnia e a depravação daquele submundo de Los Angeles podem ser um espelho da hegemonia dos super-heróis, dos efeitos visuais e do apelo sexual das celebridades atuais.

Mas o desencanto convive com a esperança no filme. Por mais que haja tensão e tragédia, por mais que nos mostre como a glória e a destruição podem andar lado a lado, Damien Chazelle não deixa de declarar seu amor pelo ofício e de homenagear seus antecessores (fica o desafio: tente identificar todas as obras referenciadas no frenético e poético clipe de encerramento). Babilônia nos lembra do poder que o cinema tem de imortalizar os mortais - e algumas cenas hão de se tornar perenes na memória do espectador, vide a vibrante e emocionante sequência da estreia de Nellie LaRoy em um estúdio. É como a jornalista Elinor diz a certa altura para um certo ator: "O seu tempo acabou, mas você deve ser grato. Você passará a eternidade com anjos e fantasmas".

PÓS-CREDITOS



28 DE JANEIRO DE 2023
FÍNDI DO CLUBE DO ASSINANTE

Novo roteiro de enoturismo na Campanha Gaúcha

Conhecido polo vitivinícola do Rio Grande do Sul, a Campanha Gaúcha conta com um novo roteiro de enoturismo. Lançado pela Miolo em setembro do ano passado, o passeio pela Vinícola Almadén, em Santana do Livramento, leva os visitantes a um passeio pelo vinhedo e pela estrutura recém reformada, que inclui museu, deque panorâmico, passarelas e um free shop de vinhos. Ao fim da visita, é oferecida uma degustação.

Dos 1,2 mil hectares da vinícola, fundada em 1973 pela Almadén da Califórnia, 450 têm vinhedos próprios em espaldeira com 25 castas, que dão origem a diversos vinhos (tintos, brancos e rosés). No total, a marca Almadén conta com 18 rótulos.

Da recepção o turista é encaminhado para o Museu Semente, que reúne, em cem metros quadrados, um acervo de fotos e objetos sobre a trajetória da marca.

Levado à área externa, o visitante caminha por um deque sobre os vinhedos. Uma passarela leva até a cantina, e, depois, o roteiro termina nas salas de degustação. No local, são oferecidos quatro produtos, selecionados de acordo com a estação.

No final, o já mencionado free shop de vinhos vende 120 rótulos da Miolo. Por ficarem isentas de impostos, as bebidas custam até 30% menos.

Passeio

A visitação custa R$ 30, incluindo uma taça personalizada, e ocorre diariamente, às 9h30min, 11h, 12h30min, 14h e 15h30min. As reservas podem ser feitas pelos telefones (55) 99687-2978 e (55) 99708-2461 ou pelo e-mail visitaalmaden@miolo.com.br.

Sócios do Clube do Assinante têm um benefício a mais: ganham R$ 10 de desconto no passeio.


28 DE JANEIRO DE 2023
LEANDRO KARNAL

Vejo pessoas tomadas de fúria. Observo outros humanos atacados de ciúmes doentios ou inveja corrosiva. A luxúria consome meus conhecidos e induz cada um deles a atos torpes. Por todo lado, o humano, demasiado humano domina. Egoístas sempre, altruístas de quando em vez. E eu? Sinto-me igual (ou pior) a todos os que perambulam neste umbral chamado vida.

Ressalto: minha estrutura iguala-me a toda a mesquinhez do mundo. Minha vaidade é tão imensa que tenho vergonha de demonstrar a fraqueza em público. Como funciona? Alguém me diz algo desagradável na rua. Fico perturbado, sempre, mas... teria muita vergonha de reagir com raiva desmedida, demonstrando que o agressor acertou o alvo; eu acuso o golpe, sentindo afluir o sangue da "vendetta". Prefiro fingir indiferença disfarçada por certo estoicismo de "minha paz me pertence". Olhando de longe, pareço sábio; de perto, sou uma besta-fera amordaçada.

Tenho ciúmes vários, mas nada digo. Parece que seria uma humilhação pedir que evite encontrar alguém. É algo similar a "como o meu concorrente pode ser melhor do que eu, prefiro que você não o encontre". Passar atestado de fraqueza, de medo e berrar ao mundo que não sou bom o suficiente? Minha máscara é a superioridade ocultando meu medo trêmulo: "Pode ir, amor... você quem sabe".

Em meu favor, o fino verniz consegue ter efeito denso. Tive um colega invejoso que me atacava na universidade. Num dia, em meio a uma chuva de críticas gratuitas em almoço coletivo, respondi com calma, trocando o nome dele por um similar. Vi como ficou perturbado. O ódio é um pedido de atenção, entretanto fingi, com sucesso, que ignorava a ação e o ser atrás de tal ação. Foi devastador, e ele perdeu o controle. Eu pisquei por último no fogo-fátuo das vaidades acadêmicas.

Sou vaidoso a ponto de controlar minha raiva. Meu orgulho é tão grande que gosto de emular a sabedoria. Insisto pouco se alguém não quer sair comigo. Disfarço e domestico, parcialmente, minha ira.

Uma pessoa sábia não pode ser atingida por ataques. Sua tranquilidade é profunda; sua paz é um lago sereno ao redor da consciência. O equilibrado de verdade é um monumento de granito que fica indiferente às ondas que se abatem. Não sou assim.

O segundo tipo é o ser impulsivo que enfrenta tudo e todos. Cada palavra seca é respondida com agressão verbal ou física. O raivoso imaturo deixa ao mundo a decisão sobre ter ou não equilíbrio. Basta um gesto e... lá vem a pororoca reativa. Essas pessoas são folhas frágeis que oscilam de acordo com o desejo do vento externo, carregadas para lá e para cá. Barulhentos, porém vítreos; brigões, todavia dependentes. Causam mais incômodo e pena do que medo. Também não sou assim.

Sou um mestiço estranho entre os dois tipos anteriores. Nunca fui o perfeito equilibrado em um mar de dificuldades. Melhorei, porém estou longe do modelo do filósofo Epicteto. Da mesma forma, não encarno o segundo modelo. O impulso não é soberano sobre meu mundo. Minha raiva existe e é controlada, como disse, pela vaidade. O zelo pela minha imagem me domina mais do que ter feito psicanálise ou ter lido tanta filosofia. Não me sinto guiado pela virtude. Meu freio está na fragilidade do meu ego, que finge, pretende, encena e age com serenidade, na maioria das vezes.

De alguma forma, existe uma secreta admiração pela sinceridade transparente de alguém que muda física e psiquicamente, porque outra pessoa deu uma buzinada indevida. É como se essa pessoa não tivesse vergonha de ser visceral e gritasse ao mundo: emita um som, e o meu mundo desmorona como Jericó diante das trombetas dos hebreus. Um perturbado é uma espécie de criança que fica emburrada diante da atenção dada ao irmão na festa de aniversário. 

Como os pequenos, alguns adultos parecem achar que mostrar carência e fraqueza em público é... legal. Eu morro de vergonha de berrar para todos que sou uma carne viva, sem pele, e um vento frio pode me fazer sentir dor. Há uma parte minha que admira a sinceridade na fraqueza de quem tem acesso de ciúme, em público, sem culpa de reconhecer que não se considera com atrativos suficientes para enfrentar a concorrência.

Volto ao tema: sou igual (ou pior) a todos os motoristas do mundo, a todos os maridos ou a qualquer outro profissional inseguro. Sou raivoso e cheio de complexos. Tenho medo e acho sempre que me abandonarão. Porém, no naufrágio do Titanic da espécie humana, eu me agarro à boia da minha vaidade, minha companheira fiel, vasta e segura. Fico à deriva sim, temo a água fria, a morte e... não grito para não atestar que sou feito do mesmo lodo de todos os fracos e pusilânimes.

Reconhecer-se igual a todos é quase humildade. Saber-se pior é próprio da consciência dos santos. Minha vaidade é tão enorme que, freando minhas raivas e acessos, ainda me fornece uma narrativa de superioridade: "Viu? Não sou como esses que se descontrolam". Assim, afundo, no mar gelado e patético da humanidade, como todo náufrago, mas... sem gritar. Diferente dos ruidosos, sou um imbecil silencioso e altaneiro. Afundo com total dignidade e estudada cenografia. Tenho esperança de, num dia, ficar sábio. O tempo está diminuindo...

LEANDRO KARNAL

28 DE JANEIRO DE 2023
J.J. CAMARGO

ESCOLHA O QUE, DE FATO, VOCÊ QUER SER

Na saída tumultuada de um cursinho pré-vestibular, um diálogo desconcertante. Uma jovem confessou à amiga: "Tenho que tentar medicina, mas como tu, eu gosto mesmo é de jornalismo".

Mas em nome do quê alguém tem que tentar algo que certamente não lhe dará prazer? O primeiro desafio na busca da realização individual é a escolha da trilha de acesso, porque, ainda que existam muitas vias oferecidas, no fim do labirinto de alternativas só têm duas saídas para a completude pessoal: o amor e o trabalho.

Se não bastasse a escassez de alternativas e a dificuldade de mudar de rumo diante da percepção do equívoco na escolha inicial, pois raros têm a coragem de chutar o balde e começar de novo, ainda há sobressaltos pelo caminho exigentes de coragem, determinação, persistência, um certa dose de teimosia e, como em tudo, uma pitada de sorte.

O trabalho deixou de ser uma penitência por algum pecado cometido, o que teria se iniciado com Adão expulso do Paraíso, porque o desocupado resolveu comer o raio da maçã (com tanta coisa disponível) que nem precisava mastigar. A partir daí, sem a bolsa celestial, ter que trabalhar para ganhar o alimento com o próprio suor foi um duro castigo, felizmente atenuado pela obrigação de carregar consigo a maravilhosa cúmplice, e ao vê-la desfilar na saída do Éden, linda e seminua, ninguém imaginaria o quanto ela se interessaria no futuro por um desfile de moda.

Mesmo que ela tenha demorado milênios para compartilhar o ganha-pão, tê-la por perto para ouvir, de olhos fechados, a Aracy Balabanian lendo uma crônica da Clarice Lispector, ou sacudir a cabeça afirmativamente quando você diz o que pensa do governo, sem risco de ser denunciado, já valeu muito a pena.

Ao longo dos séculos, o significado do trabalho foi se modificando, desde a abominável escravidão que misturava na mesma criatura a humilhante sujeição silenciosa com o ódio sem tréguas a quem a impunha, revelando-se uma incomparável trituradora da autoestima da sua vítima, e se arrastou até o sonho de liberdade que chegou com a Revolução Francesa, quebrando conceitos antigos e abrindo caminho para uma nova sociedade. Esta transformação foi sacramentada pela Revolução Industrial, que é a fase em que nasce, mesmo que de maneira tímida, o direito do trabalho.

A busca de melhores condições profissionais teve desde sempre a preocupação de conjugar a necessidade de trabalhar para sobreviver com a preservação da dignidade, idealmente garantido pela autonomia de escolher onde o trabalho lhe desse o prazer básico no fomento da felicidade, essa que muita gente nem imagina que exista, mas que dá ao felizardo a rara alegria de sentir-se em férias trabalhando.

O mais poderoso determinante da infelicidade é que muita gente não gosta do trabalho que escolheu ou lhe foi imposto por circunstâncias. Seja pelo tipo de tarefa ou pela necessidade de interagir com tipos desagradáveis (na dificuldade de visualizar este modelo, imagine o agente penitenciário), ou alguma outra forma de corruptela comportamental, como, por exemplo, parecer sempre animado para aparentar boa vontade. Neste caso, meu modelo é o funcionário da empresa aérea que trabalha no setor de bagagens extraviadas, onde nunca ninguém entra para agradecer.

Fiquei com vontade de convidar a moça do início desta crônica para um café. Ela certamente não tem a menor ideia de como a medicina é exigente. Se ela tivesse tempo de ouvir, eu diria do quanto é difícil conviver com a frustração de expectativas, a transferência da culpa de familiares relapsos, a sensação de impotência diante da saúde pública excludente e cruel, a desigualdade social, a falsidade dos discursos oficiais e a implacabilidade da morte. Se ela fantasiasse que essa escolha lhe abriria a porta para uma profissão charmosa e lucrativa, recomendaria que fosse fazer outra coisa. Qualquer coisa, para fugir da frustração de se transformar, na velhice, numa colecionadora de ressentimentos.

Mas insistiria que "se você é do tipo que se encanta em ajudar os outros, e fica feliz quando pode dar a uma pessoa que lhe procure em busca ajuda uma alegria que ela não conheceria se você não existisse, bem-vinda ao barco, este lugar foi feito para você. E com uma oferta adicional: por esse caminho encantado, é possível que, ao longo da vida, você acabe acumulando, sem perceber, uma coleção de histórias que encantarão às suas amigas jornalistas".

J.J. CAMARGO

QUAL O FUTURO DO JORNAL IMPRESSO?

Muito se discute o futuro do formato impresso do jornal, esse produto como hoje o conhecemos e que o leitor e a leitora têm em mãos, ou em papel e tinta ou na edição digital de celular ou tablet. O assunto é debatido nas empresas de mídia e nas salas de aula dos cursos de comunicação - não só de jornalismo, mas também de marketing e publicidade, áreas interessadas na reflexão. O formato editado sobrevive, ancorado num hábito que acompanha boa parte do público. O número total de exemplares se mantém estável, com as edições digitais compensando quedas do papel - e até cresce em algumas regiões.

O rótulo formato editado não é por acaso. É uma oferta editorial que contém um ingrediente fundamental do jornalismo profissional, a edição. Aí reside a maior preocupação: mais do que a sobrevivência de um tipo de produto, é imperativo preservar o processo que o sustenta, importante não só para quem lê, mas também para quem faz.

Editar é avaliar o noticiário previamente checado, estabelecer pesos relativos, hierarquizar e organizar conteúdos, dando nitidez à distinção entre informação, análise e opinião. (Cá entre nós, é basicamente o que as redes sociais em geral não têm; e sejamos justos, é muito visível que as marcas do jornalismo profissional têm transposto ao ambiente digital, seus sites e suas redes, os valores da edição).

Para quem lê, é prática diária de educação midiática. Informar-se pelos sites e pelas redes das marcas jornalísticas é e será cada vez mais importante - e aqui estamos falando de audiências que só crescem. Mas o formato editado, pela sua finitude, nos dá a dimensão e a importância relativa de cada bloco, nos treina o olhar. Por entendermos cada peça, compreendemos muito melhor o quebra-cabeça como um todo. Edição educa.

E para nós, jornalistas? Nossa rotina já é há muito tempo voltada à prestação imediata de serviços informativos. As redações operam em tempo real. Mas o fato de que, em paralelo ao turbilhão do breaking news, a redação tenha que se ocupar do processo que leva ao formato editado, preserva nas equipes o exercício da organização e da hierarquização no espaço finito. Mesmo que sejam equipes separadas, a cultura sobrevive no geral. Veteranos transmitem a técnica aos mais jovens. E o mesmo acontece na TV e no rádio, onde o espaço finito é o tempo.

Portanto, vida longa ao formato editado, em papel e tinta ou no digital, na TV e no rádio. E, com ele, os valores e os princípios da edição.

rICARDO GANDOUR 

28 DE JANEIRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

RELATIVIZANDO A DEMOCRACIA

Ainda que tenha sido exitosa nos seus propósitos de reafirmar a liderança política do Brasil na América Latina e de reforçar a integração regional, a recente visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Argentina e ao Uruguai, especialmente sua participação na reunião de cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), deixou a desejar como defesa da democracia no continente.

Eleito para o seu terceiro mandato no comando do país mais influente da região graças à frente democrática que rejeitou o viés golpista de seu antecessor, Lula bem poderia ter aproveitado o momento de visibilidade internacional para ao menos manifestar discordância com as violações de direitos humanos, as perseguições políticas e a supressão de liberdades em países da órbita latino-americana, como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Mas, sob o pretexto de respeitar à soberania das referidas nações, preferiu silenciar para não desagradar à esquerda mais radical. Ora, não há soberania quando governantes tentam se perpetuar no poder, cerceiam a liberdade de expressão, perseguem opositores e promovem o êxodo de seus povos.

Se realmente pretende exercer influência e liderança no continente, o presidente brasileiro não pode deixar a democracia em segundo plano em momento algum, especialmente quando se relaciona com seus congêneres continentais. Ao legitimar ditadores, inclusive com a promessa de apoio político e ajuda financeira, Lula frustra a maioria democrata da população brasileira e desconsidera parcela expressiva de eleitores que votaram nele apenas por rejeição à truculência de seu oponente.

Outro aspecto preocupante da recente excursão do presidente brasileiro aos países vizinhos foi o seu discurso de mecenas continental. Lula ofereceu BNDES para financiar obras na Argentina e no Uruguai, ressuscitando temores de que o banco público brasileiro volte a servir de instrumento para negociatas políticas e para a corrupção, como ocorreu em passado não muito distante com o metrô de Caracas, o porto de Havana, com o aeroporto de Moçambique e com hidrelétricas no Equador e na Nicarágua. Foram parcerias desastradas que resultaram nas suspeitas que abalaram anteriores administrações petistas.

Depois de tudo o que passou por conta da Operação Lava-Jato, era de se esperar que o mandatário brasileiro pensasse melhor antes de assumir tais compromissos, até mesmo para manter o BNDES focado nas demandas nacionais. O banco público, vale lembrar, tem sido alvo de sucessivas investigações em decorrência de créditos concedidos a estrangeiros sem a observância de critérios de prevenção de riscos e sem a fiscalização devida. São erros que o terceiro governo de Lula não pode repetir.

Com sua imensa bagagem política, sua habilidade de negociador e o respaldo momentâneo da maioria do eleitorado brasileiro, Lula tem todas as condições de impor sua liderança no continente sem esbanjar recursos que fazem falta ao nosso país. Também não precisa - e nem deve - mostrar tanta condescendência com ditadores, independentemente da ideologia que professem. Pelas circunstâncias de sua reabilitação política e pelo novo voto de confiança que a maioria da população lhe está dando, é ao Brasil democrático que ele deve fidelidade e respeito. 

sábado, 21 de janeiro de 2023


21 DE JANEIRO DE 2023
PÓS-CREDITOS

AS MELHORES SÉRIES PARA VER NAS FÉRIAS

Para muita gente (como eu), janeiro coincide com as férias. Surge um tempo livre para colocar em dia o hábito de ver séries.

Mas não muito longas nem com várias temporadas, afinal, o período é propício para curtir o mar, a piscina, quem sabe até um friozinho na Serra ou no Exterior, e descansar o corpo e também a cabeça.

Por isso, fiz uma lista com algumas das melhores minisséries disponíveis em sete plataformas de streaming: Amazon Prime Video, Apple TV+, Disney+, Globoplay, HBO Max, Netflix e Star+. Dá para assistir uma a cada dia. A seleção completa, você pode ler em gzh.rs/30sériesférias.

12 JURADOS (2019)

Falada em holandês, a minissérie belga gira em torno de Frie Palmers (Maaike Cafmeyer), mulher acusada de ter assassinado sua melhor amiga, em 2000, e sua própria filha, 16 anos depois. É uma série de tribunal, mas esse não é o único cenário da trama criada por Sanne Nuyens e Bert Van Dael. E 12 Jurados não se concentra apenas na investigação sobre os crimes: há múltiplos personagens e múltiplos enigmas. Enquanto depoimentos no julgamento e flashbacks reconstituem as circunstâncias das mortes de Brechtje Vindevogel, a melhor amiga, e Roos, a filha, descobrimos o passado de Frie e o papel desempenhado por seu ex-marido e pelo pai da primeira vítima, um ambientalista rico e famoso, somos apresentados aos dramas particulares de uma meia dúzia de jurados. (10 episódios, Netflix)

AREIA MOVEDIÇA (2019)

Tem alguma semelhança com 12 Jurados. Também foca um julgamento de um crime chocante: a protagonista, Maja (pronuncia-se Maia), uma estudante do Ensino Médio, é acusada de participar de uma chacina em uma escola bacana de Estocolmo, na Suécia, onde, entre outras vítimas, foram mortos o namorado e a melhor amiga dela. Como na minissérie belga, a sueca alterna a narrativa entre o presente e o passado - quando surgem indícios tanto a favor quanto contra a personagem principal. Em meio a temas como bullying, xenofobia e relacionamentos abusivos, a trajetória de Maja é recuperada desde a aproximação com Sebastian, um garoto negligenciado pelo pai rico. Eis o pano de fundo, ou quem sabe a verdadeira questão de Areia Movediça: o que os adolescentes fazem longe do olhar de pais que não querem vê-los. (6 episódios, Netflix)

BAND OF BROTHERS (2001)

A minissérie se baseia no livro homônimo de Stephen E. Ambrose e tem entre os produtores Steven Spielberg e Tom Hanks (que dirigiu o quinto capítulo). É uma dramatização da história da Companhia Easy, desde o seu treinamento nos Estados Unidos para a invasão da Normandia até a capitulação da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Vencedora de seis Emmys, Band of Brothers encontra o equilíbrio entre a grande História e as pequenas vidas de um grupo de soldados. O herói é o tenente Winters (personagem de Damian Lewis), que enfrenta o horror e faz o que é preciso fazer sem perder a sua noção do que seja humano ou correto. (10 episódios, HBO Max)

BANDIDOS NA TV (2019)

Esta minissérie documental faz valer o dito do escritor Mark Twain (1835-1910): a verdade é mais estranha do que a ficção. O diretor britânico-paraguaio Daniel Bogado conta a história do apresentador de TV Wallace Souza, que se elegeu três vezes deputado estadual no Amazonas, em 1998, em 2002 e em 2006, graças a sua suposta luta contra o tráfico de drogas, mote de um programa sensacionalista e sangrento, o Canal Livre. Suposta porque, segundo um delator, Wallace comandava uma organização criminosa - a suspeita é de que ele próprio planejava os homicídios que alavancavam a audiência do programa. Bandidos na TV mostra a comoção causada junto à mídia e à opinião pública (dividida quanto à culpabilidade dos acusados), a sucessão de viradas na trama, as desconcertantes contradições dos principais personagens e as ramificações que acabam por pintar um retrato do país. (7 episódios, Netflix)

BLACK BIRD (2022)

O protagonista desta minissérie baseada em uma história real é Taron Egerton, ator indicado ao Globo de Ouro por Rocketman, a cinebiografia do cantor Elton John. Ele interpreta James Keene, o Jimmy, um filho de policial (o último papel de Ray Liotta) e um promissor jogador de futebol americano que enveredou para o tráfico de drogas. Dono de um pequeno império em Chicago, ele acaba preso em uma operação do FBI. Enquanto isso, vemos o surgimento dos outros dois personagens importantes. Um é o detetive vivido por Greg Kinnear, que investiga o desaparecimento - e provável assassinato - de jovens mulheres. O outro é o principal suspeito, Larry Hall, um tipo excêntrico que adora participar de reencenações da Guerra Civil e é encarnado por Paul Walter Hauser (de Eu, Tonya e O Caso Richard Jewell). (6 episódios, Apple TV+)

CHERNOBYL (2019)

Criada por Craig Mazin, apresenta uma versão ficcional do pior acidente nuclear da história, o da usina de Chernobyl, ocorrido entre 25 e 26 de abril de 1986 perto da cidade de Pripyat, na Ucrânia. Ao reconstituir suas consequências imediatas e as primeiras ações tomadas pelo governo soviético, a obra ganhou assustadora atualidade durante a pandemia: cenas e falas parecem refletir o que vimos e ouvimos desde o surgimento do coronavírus. Chernobyl arrebatou 10 prêmios Emmy, incluindo melhor minissérie, e concorria a outros nove, entre eles ator (Jared Harris, no papel do renomado químico Valery Legasov), atriz coadjuvante (Emily Watson, como a fictícia cientista Ulana Khomyuk) e ator coadjuvante (Stellan Skarsgård, que interpretou Boris Shcherbina, vice-presidente do Conselho de Ministros da URSS de 1984 a 1989, designado para supervisionar a gestão da crise). (5 episódios, HBO Max)

A CIDADE É NOSSA (2022)

Não chega a ser uma continuação de The Wire (2002-2008), ou A Escuta, recentemente eleita a melhor série do século 21 segundo 206 críticos, acadêmicos e profissionais de TV ouvidos pela BBC. Mas esta minissérie também foi criada pelo ex-repórter policial David Simon (aqui, na companhia do escritor George Pelecanos); também se passa em Baltimore, cidade no Estado de Maryland que é, estatisticamente, uma das mais violentas no mundo; e também retrata a atuação da polícia local. Enquanto alguns tentam fazer alguma coisa contra o narcotráfico e o crime organizado, mesmo sabendo que suas chances estão entre mínimas e nenhuma, outros apostam na truculência e/ou enveredam para a corrupção. Dirigida por Reinaldo Marcus Green, do filme King Richard (2021), A Cidade É Nossa tem uma estrutura narrativa que requer atenção, com vários núcleos de personagens e alternâncias não muito claras entre o passado e o presente. Mas a recompensa é alta. (6 episódios, HBO Max)

DOPESICK (2021)

Com idas e vindas no tempo, mostra como a Purdue Pharma promoveu de forma agressiva e mentirosa o OxyContin, analgésico considerado responsável pela crise de opioides que provocou 500 mil mortes nos EUA a partir de 1999. Há cinco núcleos narrativos em Dopesick. O principal é o de Finch Creek, uma fictícia cidade onde moram o médico Samuel Finnix (Michael Keaton, premiado no Emmy, pelo Sindicato dos Atores dos EUA e no Globo de Ouro) e a jovem Betsy Mallum (Kaitlyn Dever), operária em uma mina de carvão. Em outras duas pontas, estão personagens reais. Dona da farmacêutica, a família Sackler vive em meio a intrigas e disputas por conta da ambição de Richard Sackler (Michael Stuhlbarg). E Rick Mountcastle (Peter Sarsgaard) e Randy Ramseyer são dois promotores públicos que querem investigar e levar a empresa ao tribunal. (8 episódios, Star+)

THE DROPOUT (2022)

Forma com Inventando Anna (Netflix) uma espécie de díptico: ambas são mais ou menos contemporâneas; as duas protagonistas são mulheres brancas com autoconfiança, energia e talento para a mentira, trinômio que abriu portas no mundo dos negócios e na alta sociedade; ambas cultivam excentricidades - a jovem golpista Anna Sorokin (Julia Garner) tem um sotaque indetectável, Elizabeth Holmes (Amanda Seyfried, ganhadora do Emmy) emprega uma voz grave e baixa quando quer proferir uma frase de efeito; e as duas obras mostram como seus castelos de areia desmoronaram. Mas Inventando Anna é longa e enrolada demais, parecendo mais interessada na lenda do que na pessoa. The Dropout, embora recorra a flashbacks, vai direto ao ponto. (8 episódios, Star+)

FELIZES PARA SEMPRE? (2015)

É uma releitura da minissérie Quem Ama Não Mata (1982), pelo mesmo autor, Euclydes Marinho. O cineasta Fernando Meirelles dirige a trama, agora ambientada em Brasília para mostrar as relações entre sexo e poder. Em foco, os dilemas de cinco casais de uma mesma família. Entre os personagens da minissérie, está a restauradora de arte Marília (Maria Fernanda Cândido), que vive um casamento socialmente perfeito com Cláudio (Enrique Díaz) - em casa, eles mal se falam. A crise conjugal vai acabar por levá-los ao encontro da prostituta de luxo Denise (Paolla Oliveira), a Danny Bond, que é bissexual. (10 episódios, Globoplay)

WANDAVISION (2021)

Diante da minissérie criada por Jac Schaeffer, precisamos conhecer o passado cinematográfico dos personagens para compreender que há algo de muito estranho acontecendo, e precisamos conhecer o passado da TV dos EUA para compreender as referências, que não têm nada de gratuitas: acrescentam camadas, criam expectativas, intensificam o suspense. No primeiro episódio, Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), a Feiticeira Escarlate, e o androide Visão (Paul Bettany) são apresentados como um típico casal dos subúrbios estadunidenses. No caso, Westview, onde os demais 3 mil e poucos moradores desconhecem os superpoderes dos vizinhos. (9 episódios, Disney+)

O HOMEM DAS CASTANHAS (2021)

Não se deixe enganar pelo nome simpático: a minisssérie dinamarquesa baseada no romance homônimo de Soren Sveistrup (também autor das histórias da série The Killing e do filme Boneco de Neve) é um típico exemplar do noir nórdico, cru e violento quando necessário. Em Copenhague, nos dias atuais, uma jovem mãe é brutalmente assassinada. Seu corpo é encontrado em um parque, sem uma das mãos. Próximo do corpo há um pequeno boneco feito de castanhas. Essa é a principal pista para a investigadora Naia Thulin (Danica Curcic), uma mãe solteira que agora conta com um novo parceiro policial, o instável Mark Hess (Mikkel Boe Folsgaard). Paralelamente, acompanhamos o difícil recomeço da ministra Rosa Hartung (Iben Dorner) - um ano antes, sua filha adolescente desapareceu. (6 episódios, Netflix)

I MAY DESTROY YOU (2020)

A atriz e roteirista inglesa de pais ganeses Michaela Coel transforma-se em Arabella nesta autoficção que, apesar de lidar com um assunto doloroso, encontra espaço para o humor, o afeto e a diversão. Escritora de um livro de sucesso, ela corre contra o prazo e contra uma crise criativa para entregar o segundo romance a uma grande editora de Londres. Para espairecer, resolve sair para a balada com uns amigos. No dia seguinte, já de volta ao trabalho, Arabella vê sua memória assaltada por imagens de um estupro praticado por um homem desconhecido. A partir daí, I May Destroy You mostra como a violência sexual pode paralisar o presente, alterar o futuro e ressignificar o passado das vítimas. (12 episódios, HBO Max)

O INOCENTE (2021)

Oriol Paulo e Pablo Vallejo adaptaram para a Espanha um romance do escritor estadunidense Harlan Coben. Mario Casas interpreta Mateo Vidal, o Mat, estudante de Direito que, em uma briga de bar, mata acidentalmente um rapaz. Após quatro anos na prisão, ele reconstrói sua vida e reencontra a mulher que conhecera na festa após ser libertado, Olivia (Aura Garrido). Os dois se casam e estão para se tornarem pais, mas um belo dia ele recebe uma mensagem perturbadora enviada pelo celular dela. O que consta na mensagem? Qual é a relação entre Mat e uma freira que se suicidou em pleno orfanato? Por que o corpo dessa religiosa atrai a atenção da polícia federal? O que Olivia esconde quando se tranca no banheiro? Quem é Anibal? As tramas que correm em paralelo em O Inocente vão preenchendo o quebra-cabeças e reprisando os temas de Coben: o peso do passado e o preço dos segredos. (8 episódios, Netflix)

THE UNDERGROUND RAILROAD (2021)

Concebida por Barry Jenkins, diretor e roteirista de Moonlight, vencedor do Oscar de melhor filme em 2017, é a adaptação do romance homônimo escrito por Colson Whitehead e ganhador, também em 2017, do prêmio Pulitzer. A trama se passa na metade do século 19, antes da Guerra Civil nos EUA (1861-1865), que tinha como principal causa a escravização da população negra. Sua protagonista é Cora (interpretada pela sul-africana Thuso Mbedu, do filme A Mulher Rei), uma jovem escrava que, após relutar, tenta fugir de uma fazenda na Geórgia na companhia do íntegro Caesar (Aaron Pierre). Os dois buscam a Underground Railroad do título, uma rota de fuga que de fato existiu, mas não da maneira que é apresentada na minissérie. (10 episódios, Amazon Prime Video)

MARE OF EASTTOWN (2021)

Fascinada com o "quem foi" da minissérie criada por Brad Inglesby, Kate Winslet ressaltou que embarcou no projeto porque "não é só a história de um crime". De fato, o crime descoberto no primeiro capítulo é chocante e misterioso, mas serve sobretudo como catalisador dos dramas pessoais e familiares em cidadezinha dos EUA. A morte traz à tona relações e segredos guardados em vida, imagem reforçada pela ambientação numa estação fria, que obriga os personagens a se esconderem atrás de casacos, mantas e gorros. E - até o final - todos têm o que ocultar ou algo do que não gostam de falar. Praticamente perfeita, Mare of Easttown venceu os Emmys de atriz (Winslet, também premiada no Globo de Ouro), ator coadjuvante (Evan Peters), atriz coadjuvante (Julianne Nicholson) e design de produção. (7 episódios, HBO Max)

THE NIGHT OF (2016)

Filho de imigrantes paquistaneses em Nova York, o jovem universitário Nasir Khan, o Naz (Riz Ahmed), pega "emprestado" do pai o táxi para ir a uma festa. No meio do caminho, em duas ocasiões pessoas tentam embarcar no carro como passageiro. Mais tarde, uma infração de trânsito, um objeto levado da cena de um crime e uma testemunha ocular vão tornar Naz o suspeito número 1. É esse o resumo do primeiro e fabuloso episódio da minissérie criada pelo escritor Richard Price e pelo cineasta Steven Zaillian. Trata-se de um retrato muito humano das delegacias de polícia, do sistema judicial e dos presídios estadunidenses. À trama de suspense - a certa altura não saberemos se Naz é uma ovelha ou um lobo -, adiciona conotações que refletem o estado de ânimo nova-iorquino para com os muçulmanos pós-11 de Setembro e mostrando penitenciárias como fábricas de bandidos. (8 episódios, HBO Max)

THE WHITE LOTUS 2 (2022)

Por coincidência, ficou para o final aquela que talvez seja a melhor série para as suas férias: a segunda temporada da premiada The White Lotus. O cenário é a Sicília, na Itália, onde também há um resort de luxo da fictícia rede The White Lotus. Como na temporada inicial da obra criada e dirigida por Mike White, tudo começa com um cadáver não identificado - eis um dos charmes da porção policial: o espectador é instigado a descobrir não apenas quem matou, mas também quem morreu (e desta vez parece haver mais candidatos a vítima). Se na primeira história havia um caixão sendo transportado de avião, agora surge um corpo boiando na praia. Como na temporada original, a trama volta uma semana no tempo para acompanhar a chegada de turistas ao hotel que tem como gerente Valentina (Sabrina Impacciatore). (7 episódios, HBO Max)

PÓS-CREDITOS


21 DE JANEIRO DE 2023

LIVRO

A OBRA

Charles Cross é um biógrafo raro, daqueles que fazem descobertas jornalísticas durante as apurações, analisam as pistas e não se contentam com os dogmas da oralidade. Sua biografia mais recente, Jimi Hendrix Uma Sala Cheia de Espelhos, comprova tudo isso. Depois de escrever obras como Backstreets: Springsteen, the Man and his Music (1989), Led Zeppelin: Heaven and Hell (1991), Mais Pesado que o Céu: Uma Biografia de Kurt Cobain (2002) e Here We Are Now: The Lasting Impact of Kurt Cobain (2014), esse ex-editor da revista The Rocket que vive próximo a Seattle, nos EUA, volta à história de Hendrix no ano em que o guitarrista faria 80 anos de vida.

Uma pesquisa movida pela inquietude o levou a descobrir onde estava o túmulo da mãe de Hendrix, Lucille. "Foi o momento mais impressionante dos quatro anos que levei para escrever", ele comenta, na abertura do livro. Inconformado com a administração do cemitério Greenwood Memorial Park, que não sabia informar onde estava a sepultura de Lucile, Cross insistiu tanto que foi autorizado a vasculhar a terra de um local próximo com uma pá, ao lado de um coveiro. "Todos os biógrafos que escolhem personagens mortos são, de certa forma, coveiros, com uma pitada de Dr. Frankenstein", prossegue.

Outros pontos, como passagens sobre a tão falada saída de Hendrix do serviço militar, a apresentação no icônico Woodstock, de 1969, e suas relações afetivas, ganharam investigações atentas.

Há um bom tempo dedicado à infância e à adolescência de Hendrix em Seattle, mas isso não torna enfadonha a narrativa do livro. Aos 14 anos, dois acontecimentos definem a vida do guitarrista. Ele assiste a um show de Elvis Presley e vê o pastor Little Richard fazer uma pregação. Sem dinheiro para ver Elvis, o menino assiste ao show do alto de uma colina. O ingresso custava US$ 1,50. Isso em 1957, um ano antes de se dar a história com Richard.

Numa época em que o pianista havia renunciado ao rock?n?roll para devotar-se ao evangelismo, Hendrix o viu saindo de uma limusine para fazer uma pregação em uma igreja. Vestiu a melhor roupa que tinha, mas sentiu os olhares de reprovação aos seus sapatos velhos. Ele diria, mais tarde, que havia sido "chutado" da igreja, algo que a biografia de Cross diz nunca ter ocorrido. Depois do show, esperou até o fim para tocar em Little Richard, como se estivesse tocando em um santo.

Anos mais tarde, Hendrix não só tocaria na banda de apoio de Richard como teria sérios problemas com o velho ídolo. Ao perceber que sua luz poderia ser ofuscada pelo garoto de Seattle, Richard o proibiu de tocar o instrumento com os dentes, colocá-lo atrás da cabeça e, de preferência, não fazer sexo com a guitarra. Hendrix era multado por isso, mas seguia na banda, até o dia em que a situação ficou insustentável.

Robert Penniman, irmão de Richard, era o empresário da turnê. Ao contrário da versão de Hendrix, que dizia ter pedido as contas, ele afirma que demitiu o guitarrista por falta de responsabilidade: "Ele estava sempre atrasado para pegar o ônibus e vivia flertando com as garotas", conta, no livro.

São saborosas histórias sobre os bastidores da feitura de Eletric Ladyland, o álbum duplo, seu último, lançado em 1968 com músicas como Crosstown Traffic, Voodoo Chile, uma versão demolidora de All Along the Watchtower, de Bob Dylan, e Little Miss Strange. Hendrix queria que a capa tivesse fotos feitas pela profissional Linda Eastman, que pouco depois se casaria com Paul McCartney, e escreveu um longo texto para o encarte. Só que nada disso foi aproveitado pela gravadora.

Há mais detalhes também sobre a capa proibida desse disco, com uma foto mostrando 21 mulheres nuas. Uma versão diz que tal imagem seria por causa do termo "eletric ladys", usado por Hendrix para definir as groupies, as fãs que seguiam a banda. A capa, que não agradou nem a Hendrix nem às mulheres fotografadas, acabou sendo vetada.

Sobre a morte de Hendrix, algum mistério continua. Com todo o poder de apuração, Cross não destrincha outras possíveis causas, porque talvez não tenha muito mais a ser destrinchado, mas elucida equívocos. Algumas fake news são historicamente conhecidas por causa dos depoimentos de Monika Dannemann, ex-namorada de Hendrix. Segundo Cross, ela contou várias versões estranhas sobre o que aconteceu naquele 18 de setembro de 1970, quando viu Hendrix morto. Decerto foi mesmo overdose e sufocamento no vômito. A vida do maior guitarrista da história terminou de forma estúpida.

 JÚLIO MARIA


21 DE JANEIRO DE 2023
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

Com uma trajetória profissional que envolve atuações como professora universitária, pesquisadora, deputada federal, conselheira e secretária em dois Estados brasileiros, Raquel Teixeira levou 30 anos para conhecer a realidade do Ensino Básico. Desde então, se apaixonou - diz que o comando da pasta de Educação, para o qual foi reconduzida no dia 1º de janeiro no Rio Grande do Sul, é seu cargo preferido na vida. Para os próximos quatro anos, a goiana promete priorizar a alfabetização e a ampliação do Ensino Médio em tempo integral durante sua gestão. Nesta entrevista, concedida em seu gabinete na secretaria, defende como principal bandeira a redução da desigualdade entre alunos de escolas públicas e privadas, por meio da formação de professores e de uma aprendizagem personalizada.

A SENHORA FEZ QUASE TODA A SUA CARREIRA, COMO EDUCADORA E, DEPOIS, COMO GESTORA PÚBLICA, EM GOIÁS. POR QUE ACEITOU VIR PARA O RIO GRANDE DO SUL? COMO TEM SIDO ESSA EXPERIÊNCIA?

Comecei a minha carreira profissional na universidade. Aos 21 anos, fui aprovada em um concurso e me tornei a professora mais jovem da Universidade de Brasília (UnB). Lá, fui professora por 10 anos e fiz o meu primeiro mestrado. Depois, fiz um segundo na Universidade da Califórnia (EUA), onde fiquei cinco anos, e também, anos depois, fiz um PhD. Em 1999, fui candidata a reitora na Universidade Federal de Goiás e perdi a eleição. Ao perder, fui convidada a ser secretária da Educação. Então, isso começou muito tarde na minha vida: só depois de mais de 30 anos na universidade, conheci a rede da Educação Básica. E aí fiz um mea-culpa. 

Como eu fico esse tempo todo na universidade e não conheço a rede de Educação Básica? E resolvi me dedicar a essa rede. Fui secretária de Educação duas vezes em Goiás, depois secretária de Ciência e Tecnologia, deputada federal, com atuação na Comissão de Educação, integrante do Conselho Nacional de Educação. Isso me permitiu passagens por vários aspectos da educação. Mas, de tudo o que fui na vida, o que me dá prazer é ser secretária de Educação. Tenho um compromisso que fiz comigo mesma, quase uma missão. Vim pela educação pública básica, que é o único caminho para transformar este país. Acredito firmemente nisso e provavelmente vou estar com cem anos de idade e trabalhando com crianças de escola pública.

QUAIS AS DIFERENÇAS NAS REDES DE GOIÁS E RIO GRANDE DO SUL?

A primeira coisa que estranhei foi uma desigualdade entre as redes privada e pública. Em Goiás, as redes são mais próximas, em termos de desempenho dos alunos. Aqui, temos uma desigualdade muito grande dentro da própria rede estadual. Por exemplo, se você vai a uma escola do bairro Moinhos de Vento e a outra do Partenon. No Moinhos, os pais têm 16 salários mínimos, em média, e só há 0,3% de pessoas analfabetas. No Partenon, a renda média dos responsáveis pelos domicílios é de três salários mínimos e há quase 4% de analfabetismo. Essa diferença tem reflexo direto no desempenho dos alunos, que você vê nos resultados do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). 

A literatura internacional fala que o aspecto mais importante para o resultado da aprendizagem do aluno é o nível socioeconômico da família e, principalmente, o nível de escolaridade da mãe. Meu grande desafio é não permitir que um aluno que nasça no Moinhos de Vento tenha uma escola melhor do que aquele que nasce no Partenon. O foco, a partir deste ano, é o combate à desigualdade. É a equidade. Equidade é isso: você conseguir ter resultados iguais com públicos diferentes, porque o que interessa é a aprendizagem. Potencial de aprendizagem toda a criança tem. Mas não é culpa do professor, porque não existe culpa isolada. Eu me responsabilizo por isso. O sistema educacional, enquanto sistema, foi incapaz de dar às crianças as condições que ela têm de aprender.

COMO DAR ESSAS CONDIÇÕES?

Há um conjunto de fatores que fazem com que uma criança aprenda, e todos nós temos responsabilidade. Não é só o professor, o diretor, o pai, a mãe, o coordenador regional. Desde que cheguei aqui, a gente trabalhou muito essa ideia da coesão sistêmica. Meu mantra é aquele ali (aponta para um quadro na parede): "Nenhum de nós é tão bom quanto todos nós juntos". Não adianta uma escola ser boa: todas têm que ser boas. Agora, a gente está entrando no nível de individualização, personalização, e nós temos dados para isso. 

As avaliações (diagnósticas) que fizemos permitem uma devolutiva em que cada professor, hoje, tem os dados de desempenho de todos os seus alunos nominalmente. Uma coisa que nós trabalhamos muito no ano passado é um sentimento de valorização da avaliação da aprendizagem como parte da rotina escolar. Avaliação não é um episódio em que a secretária manda aplicar uma prova um dia e acabou. Avaliação é um ciclo. Envolve um processo de mensuração, que é a aplicação da prova, depois exploração, compreensão e análise de todos os dados, e, após isso, há ainda um período de ação, com a intervenção pedagógica que faremos na sala de aula com cada aluno a partir dos resultados da avaliação dele.

QUAL O OBJETIVO DESSE INVESTIMENTO EM AVALIAÇÕES?

Um sistema robusto de avaliação funciona como um Waze: onde eu estou? Sem saber de onde parto no início de cada ano, não tenho como chegar nos objetivos, mesmo que saiba onde quero chegar. A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) é isso. Ela diz: o aluno de segundo ano, em língua portuguesa, ao final do ano tem que ter determinadas habilidades e competências. Ao saber onde estou, tenho a oportunidade de discutir como chego lá. Por isso estamos discutindo a formação dos professores, que é definir, a partir dos dados da avaliação, qual o melhor caminho e quais as metodologias que permitirão chegar lá, porque claramente aquela metodologia tradicional da aula expositiva já era. Está provado: em uma aula expositiva, em que o professor aparece como o dono do conhecimento e, de forma autoritária, hierárquica, passa a aula para o aluno, menos de 10% aprendem. 

É por isso que hoje a gente fala nas metodologias ativas, em que o aluno se envolve mais. Se a mente do aluno não está ativamente envolvida no processo, ele não vai aprender. Mas tudo isso é muito novo, e os professores não aprenderam isso na faculdade. As formações iniciais, com raras exceções, continuam teóricas, acadêmicas, sem prática docente, então esse é um problema. Aí, na falta da formação inicial, sobre a qual não tenho ingerência, eu invisto na formação continuada. É um trabalho monstruoso, e os professores, às vezes, têm excesso de formação. Não é um momento fácil, porque estamos vivendo uma mudança profunda na legislação, que implica em mudanças metodológicas, tecnológicas, uma mudança profunda no jeito de estar no mundo.

QUAIS AS PRINCIPAIS MUDANÇAS QUANDO SE PENSA EM EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO 21?

A revolução tecnológica define novas competências e novas habilidades. O mundo mudou, e não adianta pensar que a escola não vai mudar, principalmente a escola, que forma a criança de hoje, que vai ser o futuro condutor do Estado e do país. Uma criança que tem cinco anos hoje e entra numa escola, quando tiver 20 terá sido exposta ao correspondente de informação nova que era gerado em 150 anos. O desafio da escola não é dar ensinamentos memorizados que vão se tornar obsoletos. A escola precisa ensinar não só fração, mas também a trabalhar em equipe, a ter criatividade, iniciativa, curiosidade, buscar soluções. Quando o aluno terminar o Ensino Médio e procurar um emprego, nenhum empregador vai dizer: "Resolve para mim aí a fórmula de Bhaskara". 

Ele vai dizer: "Eu tenho este problema na empresa, o que você sugere para resolvê-lo?". Essa capacidade de resolução de problemas complexos é o que a escola tem de fazer hoje, e isso é muito diferente de tudo o que a escola sempre fez. É claro que as mudanças não acontecem da noite para o dia. Nenhuma semente plantada hoje vira árvore amanhã. Tem um tempo de regar, de cuidar. Mas a gente está plantando as sementes e já cuidando, para que comecem a florescer. Acho que o governador Eduardo Leite teve muita coragem em dizer que a educação é uma prioridade, porque ele sabe que o benefício que ele conseguir em quatro anos provavelmente será colhido pelo próximo governador. E é por isso que a educação sempre foi discurso fácil. Em época de campanha, então, nem se fala: é "educação, educação". Mas na hora de implementar...

EM QUE ÁREA DA EDUCAÇÃO É MAIS IMPORTANTE INVESTIR?

A desigualdade educacional começa quando a criança é pequena. Com dois anos, meu filho estava numa creche e chegava em casa todo pintado, tinha massinha, passava por um desenvolvimento motor, se familiarizava com formas, cores, tinha interação com os colegas. Até cinco, seis anos, crianças mais ricas têm contato com um volume de palavras que é de 30 milhões a mais, na comparação com aquelas com nível socioeconômico menor. Uma criança de dois anos, sozinha em casa com o irmão mais velho, porque a mãe saiu para trabalhar e o pai nem existe, quando tem seis anos e vai ser alfabetizada, tem um repertório cognitivo, afetivo e emocional muito menor. 

Aí começa a desigualdade. Por isso é tão importante investir na Educação Infantil e, depois, na própria alfabetização. Por que estamos lançando um pacto pela alfabetização, em regime de colaboração com os municípios? Porque na pandemia foi a faixa etária mais prejudicada. Nenhuma criança de sete anos sozinha em casa, com um celular na mão, vai se alfabetizar. Essa é uma das nossas ações prioritárias, um programa que a gente chama de Alfabetiza Tchê, em que vamos trabalhar em parceria com os 497 municípios do Estado.

QUAIS OS PILARES DE UMA EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA?

Se você perguntar para 10 pessoas o que é educação de qualidade, provavelmente vai ter 10 respostas diferentes. Uns vão dizer que é um salário bom para o professor, outros, que é o resultado da aprendizagem do aluno, outros, que é uma escola feliz. Se você pega aquela mandala ali (aponta para um quadro na parede), aquele é o nosso planejamento estratégico. Lá está a nossa missão como Secretaria de Educação: "Garantir a aprendizagem de qualidade, de forma equitativa e inclusiva". Por que "garantir a aprendizagem", e não "oferecer educação"? Já é algo diferente. Antigamente, quando a educação tradicional era focada no ensino e no professor, eu mesma ouvia professores falarem: "Eu ensinei, o aluno não aprendeu porque não quis". Ou seja, ele não ensinou. E tem "de forma equitativa e inclusiva", que não é a mesma coisa do que "garantir". Inclusão está ligada ao conceito de inclusão social. Equitativa é algo mais técnico: é você trabalhar em cima das diferenças evitáveis num mesmo grupo de pessoas. É falta de equidade que um menino do Moinhos de Vento e um do Partenon não tenham o mesmo nível de aprendizagem, porque são desigualdades evitáveis, por meio da qualidade de aprendizagem que devemos garantir a eles. Para garantir uma educação inclusiva e equitativa, uma criança indígena tem de ser tratada diferente de uma não indígena. Uma criança negra que sofre com racismo estrutural e uma criança branca que não sofre: tem de ter um olhar distinto. Uma criança com necessidade especial tem de ter um olhar especial. Então, vamos começar a aprofundar essas especificidades, até porque a educação, daqui para a frente, tende a ser cada vez mais personalizada.

DEPENDE DO QUÊ?

De acréscimo de tecnologia, de formação de professores, uma série de coisas. É claro que toda mudança gera insegurança. Tem uns que falam: "Na minha época, a escola pública era de qualidade". Esse é um pensamento equivocado. Esses dias, eu estava conversando com um senhor super-respeitado e muito querido, que falou "ah, porque na minha época...". Eu disse: "O senhor já parou para pensar que na sua época 10% da população chegava ao Ensino Médio?". 

Hoje, 100% das crianças chegam, vindas de estruturas familiares completamente diferentes, o que é muito desafiador para o professor. Mas os professores são muito receptivos, apesar de alguns terem medo da mudança e até um pouco de acomodação. Mudar é complicado. Se você perguntar "quem quer mudança?", todo mundo vai levantar a mão. Se você perguntar "quem quer mudar?", poucos vão levantar. Eu quero mudança, mas quero que o outro mude, não eu. Só que não adianta: quem não perceber a mudança de mundo vai ser atropelado. Claro que você não vai adotar qualquer mudança, mas tem que ter um senso crítico do rumo que o mundo está seguindo. Em 2002 ou 2003, fui ao aniversário de 970 anos da Universidade de Bologna, na Itália. 

A fala do reitor me marcou para o resto da vida e é meu direcionador até hoje. Ele disse: "A universidade é uma das instituições mais antigas do mundo. Só o exército e a igreja são mais antigos. Só que muitas universidades desapareceram. Por que nós chegamos aos 970 anos? Porque tivemos a capacidade de antecipar as mudanças e nos prepararmos para elas". É isso que deve direcionar qualquer instituição de ensino, não só a universidade, mas qualquer escola básica: antecipar o futuro. O nosso papel como educador é preparar o jovem para o futuro.

PREPARAR PARA O FUTURO, MAS SEM ESQUECER DO PASSADO.

A escola tem dois aspectos muito fortes e importantes. Ela é, por natureza, conservadora, e tem que ser, porque o papel da escola é sistematizar todo o conhecimento acumulado na história da humanidade e passar aquilo para os alunos. Nisso ela tem responsabilidade, porque a formação geral básica de línguas, matemática, ciências, tem um lado conservador essencial. É organizar, sistematizar e fornecer aquilo para o aluno. Por outro lado, tem de preparar o aluno para o futuro, e aí tem de perceber as demandas do futuro. Costumo usar a imagem do espadachim chinês, que tem duas espadas. Com uma, a gente tem de resgatar tudo o que deixou para trás e, com a outra, abrir fronteiras para avançar no conhecimento. É muito desafiador. Por isso, talvez, o governador tenha dito, no meu evento de recondução, que todas as secretarias têm de ser da Educação. É isto: a educação perpassa todas as áreas da plenitude do ser humano.

QUAIS PAUTAS DE EDUCAÇÃO GANHAM FORÇA E QUAIS PERDEM COM A MUDANÇA NO GOVERNO FEDERAL?

Estou bastante otimista, porque, durante quatro anos, tivemos uma omissão total do Ministério da Educação (MEC). Por que a educação foi conduzida nos Estados e municípios nesse período? Porque existe uma organização dos secretários estaduais de Educação, que é o Consed, e uma de secretários municipais, que é a Undime, e esses dois órgãos trabalharam juntos. E também junto ao Conselho Nacional de Educação, que fez o papel do MEC, regulamentando tudo em comum acordo com o Consed e a Undime. Isso funcionou por quatro anos, mas não é sustentável, até porque o papel coordenador de tudo tem de ser do MEC, inclusive o papel de apoio técnico e financeiro. Se você prestar atenção ao discurso de posse do ministro da Educação, Camilo Santana, e também nos meus discursos, vai ver que há afinidade: as prioridades são a Educação Infantil, nosso caso com o Alfabetiza Tchê, e a expansão do Ensino Médio em tempo integral. 

Esses são os reais problemas do Brasil. Homeschooling, escola cívico-militar são marginais em termos do universo de demandas. Há mudanças muito profundas que ocorreram na legislação, e o MEC tem de apoiar na implementação delas. Estou bem confiante de que vai acontecer isso. Inclusive, a secretária-executiva de Educação, Izolda Cela, tem uma experiência enorme no Ceará que hoje é modelo, e a secretária de Educação Básica, Katia Schweickardt, que é ex-secretária de Manaus, fez um trabalho brilhante lá. O próprio secretário nacional de Articulação de Sistemas de Ensino, Maurício Holanda, já foi secretário de Educação. Acho que tem tudo para ter, pelo menos com o Consed e com a Undime, uma relação extremamente rica e produtiva.

EXISTE ALGUM PAÍS EM QUE A SENHORA SE INSPIRE NO MODELO DE EDUCAÇÃO?

Antigamente, a gente falava muito em Coreia do Sul e Finlândia. Continuam sendo inspirações, mas a gente não precisa mais desses exemplos internacionais. O Brasil tem dois exemplos com os quais a gente pode trabalhar: a alfabetização do Ceará e o Ensino Médio em tempo integral de Pernambuco. Ambos são inspirações muito mais próximas da nossa realidade e têm mais de 20 anos de continuidade, independentemente do governador, do partido, de quem entrou. 

Esses são exemplos que estamos seguindo, tanto que, para os próximos anos, vamos seguir em regime de colaboração no pacto pela alfabetização com a equipe do Ceará, e vamos trabalhar a expansão do Ensino Médio em tempo integral com a equipe de Pernambuco. Para que eu vou reinventar a roda, se há modelos que já deram certo aqui perto de nós? Claro que a gente não vai copiar de lá e implantar aqui. Para a alfabetização, quem vai elaborar o material didático são os nossos professores recrutados de escolas municipais e estaduais, até porque, depois que eu for embora, temos de ter gente local, professor efetivo da rede sabendo como fazer. É assim que se mantém uma política pública.

NO QUE A EDUCAÇÃO O RIO GRANDE DO SUL PODE SE TORNAR MODELO NACIONAL?

O Estado tem tudo para ser modelo em Educação Profissional, que, agora, entra como parte do Ensino Médio. Na reforma do Ensino Médio, temos quatro itinerários formativos: Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Ciências da Natureza. E tem o quinto, que é a Educação Profissional e Técnica. Ninguém no Brasil sabe fazer isso direito, nem nós, mas temos aqui uma Educação Profissional consolidada. Temos 157 escolas técnicas profissionais e um volume grande de cursos técnicos. 

Nós criamos uma ferramenta muito importante que dá aderência econômica e pedagógica para a abertura de novos cursos, estamos atualizando os currículos de todos esses cursos e temos uma possibilidade de trabalhar junto com o Ensino Médio, inclusive usando laboratórios do Sistema S, de universidades. Estamos mais avançados do que outros Estados do Brasil, no sentido de fazer uma proposta sobre como trabalhar o quinto itinerário no Ensino Médio. Temos um potencial grande aí.

ISABELA SANDER


REFLEXÕES TRANSGÊNICAS

Os alimentos transgênicos poderão representar, para a saúde pública dos próximos cem anos, avanço semelhante ao do saneamento básico no século 20. A descrição da molécula de DNA, nos anos 1950, rapidamente levou às conclusões que criaram as bases da transgenia:

1) Das bactérias ao Homo sapiens, os genes estão localizados entre as duas hélices da molécula de DNA;

2) Os genes de todos os seres vivos têm estruturas químicas semelhantes.

A constatação de que os genes possuem estruturas quimicamente idênticas em todos os seres criou a possibilidade de transplantá-los de uma espécie para outra, tecnologia batizada com o nome de DNA recombinante.

Já na década de 1980, essas descobertas levaram à produção de proteínas humanas em bactérias escravas: o gene do interferon humano, transplantado para Escherichia coli, permitiu que uma reles bactéria presente nas fezes produzisse interferon recombinante para tratamento de hepatites, câncer e outras doenças. Pela mesma tecnologia, hoje, são produzidas proteínas preciosas como a insulina, a interleucina 2 e muitas outras. Da mesma forma, as técnicas para introduzir genes humanos no gado leiteiro com a finalidade de obter proteínas de interesse médico, excretadas no leite, chegam à fase de implantação comercial.

Mas nenhuma aplicação da biotecnologia tem a abrangência da produção de alimentos transgênicos. Inserir genes novos nos vegetais cria possibilidades concretas de obter plantas resistentes às pragas e às intempéries da natureza, capazes de produzir com mais eficiência e de fabricar compostos de interesse médico, como vitaminas, proteínas ou vacinas contra várias enfermidades.

A produção de vacinas em vegetais poderá modificar a história da saúde pública. Por exemplo, introduzir nas bananeiras genes que codificam proteínas existentes na cápsula do vírus da hepatite B pode estimular a produção de anticorpos contra essa doença epidêmica em populações inteiras.

Alimentos transgênicos ricos em micronutrientes para combater deficiências nutricionais responsáveis por patologias graves como o câncer, assim como a possibilidade de vacinar grandes massas populacionais contra a maioria das doenças infecciosas através da ingestão de tomate, alface ou batatas transgênicas, tornam absurda a ideia de abrirmos mão do estudo e desenvolvimento de pesquisas com DNA recombinante.

Por que, então, tanta polêmica sobre os transgênicos? Por causa de duas preocupações totalmente justificadas:

1) Plantas transgênicas causarão transtornos ecológicos?

2) Alimentos transgênicos farão mal à saúde?

A primeira pergunta deve ser respondida objetivamente pelos estudos de impacto ambiental. É fundamental uma legislação que estabeleça com clareza o conjunto de testes necessários para avaliar o impacto a curto e médio prazos da introdução de um transgênico em um meio. Desastres ecológicos não interessam a ninguém, muito menos aos cientistas.

Quanto aos consumidores, não podemos esquecer que até hoje jamais foi descrito qualquer agravo à saúde provocado pela ingestão de transgênicos. E que, nos Estados Unidos, país de legislação bastante rigorosa, pelo menos 70% de todos os produtos alimentícios contêm algum ingrediente geneticamente modificado.

Quanto à exigência da prova de que eles não fazem mal à saúde, é preciso não esquecer que estudos positivos são fáceis de serem feitos, enquanto os negativos são difíceis de elaborar, excessivamente dispendiosos e demorados.

Explico melhor: provar que sardinha enlatada faz mal é fácil; basta saber se quem comeu ficou doente (estudo positivo). Agora, provar que não faz mal (estudo negativo) é outra história. Quantos precisarão comê-la? Milhares ou milhões? Deverão ser acompanhados por quantos anos para ficarmos tranquilos? Será seguro comê-las diariamente, ou apenas uma vez por semana, ou uma vez por mês? Quantas dúvidas persistirão no final de um estudo desses?

Só para dar uma ideia das dificuldades, tomemos o exemplo da carne vermelha. Os epidemiologistas da Universidade de Harvard estimam que um estudo programado para definir se a ingestão de carne vermelha aumenta a incidência de ataques cardíacos deveria envolver pelo menos 100 mil consumidores de carne e um número equivalente de abstinentes (grupo controle). Seria necessário acompanhá-los por pelo menos 20 anos, a um custo aproximado de US$ 1 bilhão.

Enquanto não surgirem voluntários para patrocinar uma pesquisa dessas, continuaremos sem saber se comer carne faz mal para o coração. E a carne é conhecida de nossa espécie há 5 milhões de anos!

Os que exigem estudos negativos, para demonstrar que os transgênicos não causarão problemas de saúde a longo prazo, desconhecem a complexidade do tema e ignoram a inexistência de provas semelhantes para a carne, para o arroz ou para a cenoura. Essa questão é muito relevante para ser decidida por políticos despreparados ou por militantes repetidores de slogans a favor ou contra. Em nossas universidades e, especialmente, na Embrapa há cientistas com conhecimento suficiente para que o Brasil ocupe posição de destaque nessa área; basta um mínimo de vontade política.

O benefício que os transgênicos poderão trazer à humanidade é de tal ordem que não admite discussões apaixonadas. O tema exige preparo intelectual e racionalidade nas decisões.

DRAUZIO VARELLA