sábado, 29 de dezembro de 2018


29 DE DEZEMBRO DE 2018
ANA CARDOSO

Não vou sentir falta de 2018

Tenho uma teoria que depois dos 35 a gente não separa mais os anos em ruins ou bons. Que a impressão geral sobre o que vivemos se aplica a períodos maiores, de cinco ou até mesmo 10 anos. Se, quando adolescente, eu amei 1997 e odiei 1998, hoje penso que o ciclo mais recente da minha vida tem sido bem feliz. Mas é preciso fazer uma ressalva aqui - em 2018 - com o limão que recebi do universo, só consegui fazer uma limonada bem chinfrim, bem amarga. Não foi um ano fácil.

Entre as coisas boas, estão os amigos novos, as idas a Portugal, a energia do deserto do Atacama e a breve e curiosa viagem aos Estados Unidos, na qual pudemos observar como nossos hábitos alimentares são diferentes e desconstruir o fascínio das meninas por cereais matinais, balas e outros produtos tão nocivos quanto atraentes.

Também não pretendo me esquecer jamais dos bons momentos com o marido, as conversas com a mãe, as risadas com a sogra, os lançamentos de livros com amigos, as histórias que me contaram nos eventos de que participei, os livros lidos, filmes assistidos e algumas séries que acompanhei.

Há um espaço "premium" na minha memória para as caminhadas até a escola com as meninas, os dentes que caíram da Aurora, os desenhos lindos da Anita e para uma cena que se repete, em algumas noites, e me enche de alegria: todos deitados, cada um com seu livro na mão, lendo sozinhos.

Algumas coisas simplesmente passaram batido. Não sei se o inverno foi frio ou quente. Ignoro meu peso. Da Copa, já não me lembro mais nem do desempenho do Brasil, nem de quem ganhou o torneio. Se dormi bem ou mal. Se espirrei muito quando a primavera chegou. Ou se alguém aqui em casa teve que tomar antibiótico nesse inverno. Sobre esses assuntos não tenho qualquer registro.

Mas, no geral, eu não quero mesmo lembrar de muita coisa. Da greve dos caminhoneiros, das chuvaradas, das casas destelhadas, dos temporais, das ocupações incendiadas por policiais, do assassinato da Marielle, da não solução do assassinato da Marielle, das notícias falsas, dos vídeos mentirosos e das brigas nas redes sociais.

Se 2019 vai ser um ano bom, eu realmente não sei. Mas é certo que já comprei açúcar e vodka, para fazer, ao menos, uma caipirinha com os limões do futuro. Eles prometem ser azeeedos.

ANA CARDOSO


29 DE DEZEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

A UM PASSO

"Muita vida te aguarda, muita vida te procura." São versos do poeta português Joaquim Pessoa, que fazem parte do poema A um Passo do Amor. Escolhi começar assim a última crônica do ano, pois a ideia de que muita vida nos aguarda faz bem para o espírito. O futuro às vezes é associado ao fim, e não a mais vida.

É bem verdade que este início de ano nos pega com os dentes trincados: o primeiro dia de janeiro inaugurará um novo estilo de governo e seja o que Deus quiser - mesmo, já que Deus estará sendo representado no primeiro escalão. Que não se faça muita bobagem em nome Dele.

Mas não terei o mau gosto de falar de política neste fim de semana. Realidade demais cansa, e estamos exaustos deste 2018 esgotante. Pausa. Trégua. Hora de embarcar na poesia dos fogos de artifício e dos abraços à meia-noite, confiando no conceito de renovação: 2019 há de ser o ano em que viveremos tudo - exceto as mesmas coisas de sempre, combinado?

Que a gente valorize os relacionamentos acima de outros interesses, principalmente dos interesses de Mark Zuckerberg. Que a gente aprenda a ouvir, a escutar profundamente, considerando as necessidades de quem nos cerca. Que a gente sirva a quem tem menos do que nós: nossos sofrimentos diminuem quando damos atenção à dor alheia.

Que tenhamos um ano mais light, sem tanto bate-boca virtual, sem patrulha, sem grosserias generalizadas. Reatemos os laços. Que nossas irritações momentâneas não reduzam nosso plantel de afetos.

Que resgatemos na memória os acontecimentos da nossa infância para compreender melhor o modo como nos comportamos hoje, que deixemos de lado as máscaras que escondem nossos sentimentos e sejamos mais francos, sem receio de expor nossas fragilidades.

Que tratemos bem de nós mesmos, mas sem deixar que a vaidade fique maior do que a lucidez. Que usemos mais cores, que pratiquemos muitos esportes e exercícios, mas sem esquecer de privilegiar o conhecimento e de defender a arte livre quando ela estiver sendo ameaçada.

Que a gente descanse. Durma mais. E ame, ame, ame sem receio de parecer um bobo. Que a gente atraia os outros com uma atmosfera mais pacífica, generosa, risonha. Que sejamos mais inventivos e originais, que sejamos eficientes por meio da criatividade, não por meio da força bruta, da energia mal canalizada. Que não façamos nada da marra, que não violemos nossa essência primária.

Sem querer ser retrô, mas já sendo: voltemos a valorizar o mundo artesanal.

Muita vida te aguarda, muita vida te procura, diz o poema. Confie nisso. Ao findar do último minuto de segunda-feira, diga adeus aos tutoriais (este, inclusive) e siga sua intuição, seu olfato, seu radar, até localizar pessoas de bem e as oportunidades surpreendentes que estão a um passo, esperando pelo seu sim.

MARTHA MEDEIROS


29 DE DEZEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Sem fogos de artifícios

Você sabe se a visita é de confiança pelo jeito que o seu cachorro reage. Mas também é possível saber como é o dono da casa pelo modo como trata o próprio cachorro.

Cachorro não é um objeto de decoração pela casa, para colocar no colo por alguns minutos e depois abandoná-lo ao choro e à saudade pelo resto do dia. Implica responsabilidade e disponibilidade. É um compromisso de vida e, ao mesmo tempo, exige tempo para passear e circular pela rua e praça.

Não adianta só viajar ou só trabalhar e transferir os encargos para os mais próximos. Não adianta banhar e tosar no pet shop se o carinho é inexistente na maior parte da rotina. É o clássico caso de alienação canina, ainda mais se mora em um apartamento.

Ter um cão é garantir o seu bem-estar. É levá-lo mensalmente ao veterinário, controlar as vacinas, mediar a alimentação de acordo com as necessidades de cada raça e antever adversidades. Por exemplo, no calorão do verão, não pode sair com o bichinho em horários de rush do sol. Se você mal consegue respirar, imagine ele revestido de pelo. Se você, com sapatos, não suporta as calçadas queimando, imagine ele com as patas expostas. É empurrar a sua cria para caminhar em brasas.

Amar um cachorro é se colocar no lugar dele.

Não vai querer mais soltar fogos de artifício na virada. Entenderá o poder empático do silêncio no último dia de dezembro. Não será mais inconsequente e egoísta.

Pois um cachorro escuta quatro vezes melhor do que uma pessoa. Assim escuta a oito metros o que o homem só escuta a dois metros. Ele detecta a origem do som com precisão, em apenas 0,06 segundo.

Você nem abriu a porta, e o cachorro já ouviu você chegando. Você mal acordou, pisou o pé para dentro do chinelo, e o cachorro já corre para a porta do seu quarto. Você vive querendo adivinhar o que ele está descobrindo - porque ele flagra os sons de insetos, da água correndo, do vento mudando a sua direção, dos subterrâneos, das paredes. Escuta o que até aquele instante parece invisível.

De repente a cabeça dele se inclina para um lado como se ele estivesse de pé, em vigília, por um novo movimento. É um profeta do que surgirá. Alcança uma frequência entre 10 a 40.000 Hz, inacessível para a escala humana, presa entre 16 e 20.000 Hz.

O cachorro prostra-se em sentinela e late para algo que não aconteceu. Só não aconteceu para você, para ele aconteceu.

Não são fantasmas, são ruídos vivos se formando em grandes distâncias.

Antes do celular tocar, ele olha para o seu celular. Antes de algum objeto quebrar no chão, ele olha para os seus braços. Antes da campainha vibrar, ele olha para o interfone.

O cão tem uma hipersensibilidade auditiva. Um relâmpago é um terremoto para ele. Uma colisão de carros ao longe é uma choque de trens.

O cachorro escuta, inclusive, a sua lágrima antes de cair, o batimento do seu coração alterado, uma dor antes de ser palavra, e vem lamber o seu rosto e lhe oferecer conforto.

Fogos de artifício torturam os cães, esse seres mais afeitos à paz. É uma dor absurda que paralisa, traumatiza e dissemina medo e ganidos pela madrugada inteira.

Não comece 2019 espalhando sofrimento com a sua alegria.

CARPINEJAR

29 DE DEZEMBRO DE 2018
PIANGERS

Um incompetente em Réveillon

Você não quer passar um Réveillon do meu lado. Posso garantir que meus fins de ano são contagiantes fracassos. É realmente impressionante. Quando criança passávamos em Novo Hamburgo, na casa da vó Elza e do vô Hugo, mais nove primos correndo no pátio e pisando em todos os cocôs dos cachorros. Eram festas tocantemente simples, nenhuma extravagância de nenhuma parte; cansamos de brindar o ano com cidras baratas de maçã.

O calor era sempre infernal, e os fogos de artifício fraquíssimos; as pessoas realmente abastadas para adquirir foguetes tinham ido passar a virada em algum outro lugar, não em Novo Hamburgo. Estavam em Punta, Floripa, Rio de Janeiro. Nós, não. Perto da virada, ficávamos no meio da Rua Oswaldo Aranha, no bairro Pátria Nova, olhando para o céu e tentando enxergar alguma luz colorida. Eram sempre dois ou três fogos, todos muito espaçados, um pu-pum, esperávamos alguns minutos, pof, mais alguns minutos, plá-plá-plá, e íamos dormir com sensação de que aquela era nossa Copacabana.

Lembro de um ano em que meu tio propôs vermos este show de luzes em algum lugar mais alto, rodamos por alguns minutos e acabamos passando a virada no cemitério da cidade. Nas palavras do meu tio: "é o único lugar que não tem nenhum prédio pra atrapalhar!".

Depois de adulto continuei cometendo o mesmo erro de minha mãe. Mesmo morando em Florianópolis, onde pessoas do mundo todo pagam fortunas para virar o ano, eu juntava minhas filhas e esposa e dirigia mais de seis horas no contrafluxo dos gaúchos, para um dos menos excitantes Réveillons do planeta. Passávamos calor, tomávamos cervejas baratíssimas, montávamos uma piscina infantil na grama e entrávamos todos.

Quando meus avós morreram, ficamos sem saber o que fazer. O Réveillon perdeu um pouco de sentido. Pulamos de cidade em cidade, às vezes com minha mãe, às vezes com minha sogra, às vezes sem nenhuma das duas. Da única vez em que experimentamos fazer a virada em uma festa, o empreendimento foi desastroso: faltou comida, ventou demais, as meninas dormiram em um banco, não conseguimos carona pra voltar pra casa.

Desde então, assumimos nossa inaptidão para viradas de ano espetaculares. Nos últimos anos, passamos o dia 31 como se fosse qualquer outro: jantamos juntos, conversamos, lemos deitados na cama e dormimos todos antes da meia-noite. No ano seguinte tudo recomeça. Talvez esta seja nossa nova tradição.

PIANGERS

29 DE DEZEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

PROSOPAGNOSIA

Algumas pessoas não conseguem reconhecer amigos, pais ou filhos, mas memorizam seus nomes
É muito chato: você olha a cara da pessoa, sabe quem é, mas não lembra o nome de jeito nenhum. O constrangimento se deve ao fato de que a área cerebral envolvida no reconhecimento de faces é separada daquela responsável pelo arquivamento de nomes próprios.

Somos bons reconhecedores de fisionomias porque essa habilidade foi essencial à sobrevivência. Das cavernas aos dias nas ruas de São Paulo, perceber se quem vem em nossa direção é amigo ou inimigo valeu muito mais do que saber seu nome. Essa necessidade foi tão premente que, na seleção natural de nossos ancestrais, levaram vantagem aqueles com uma área do cérebro especializada no reconhecimento de faces: o giro fusiforme.

No início dos anos 2000, o grupo de Kalanit Gril-Spector, da Universidade Stanford, observou que diversas partes do córtex visual (região responsável pelo controle da visão) das crianças se modificavam com a idade. Entre elas, estava o giro fusiforme.

O desenvolvimento recente dos aparelhos de obtenção de imagens por ressonância magnética quantitativa (qMRI) tornou possível estimar o volume que as células ocupam em determinado tecido. Por meio dessa tecnologia, o grupo de Stanford avaliou os volumes do giro fusiforme e de uma área situada a 2cm de distância: o sulco colateral, envolvido na identificação de lugares e localizações.

Foram incluídos no estudo 22 crianças de cinco a 12 anos e 25 adultos com 22 a 28 anos. O experimento consistiu em colocar os participantes para observar separadamente imagens de faces e de lugares, enquanto a ressonância calculava o volume de neurônios existentes em ambos os sulcos.

Não houve diferenças no volume de tecido existente no sulco colateral de crianças ou adultos, enquanto se detinham nas imagens de lugares. Ao contrário, ao olhar para as faces, a ressonância mostrou que os adultos tinham sulcos fusiformes com volume 12% maior do que as crianças, em média.

Para confirmar se o aumento de volume do sulco fusiforme nos adultos estaria associado à maior facilidade para identificar fisionomias, os participantes foram postos diante da tela de um computador que exibia fotografias de rostos em três ângulos diferentes. Em seguida, precisavam reconhecê-los num painel que mostrava rostos parecidos. Aqueles com sulcos fusiformes mais volumosos eram mais eficientes no reconhecimento, de fato.

Como o número de neurônios pouco varia do nascimento à morte, a explicação para esse aumento de volume do sulco fusiforme estaria relacionada com o aumento do número das conexões através da quais os neurônios enviam sinais uns para os outros (sinapses). Na analogia dos autores: o número de árvores na floresta permaneceria o mesmo, mas os galhos se tornariam mais densos e complexos.

Recém-publicados na revista Science, esses achados surpreendem porque demonstram que essa região do cérebro continua a se desenvolver da infância à vida adulta, enquanto a apenas 2cm de distância a área encarregada de identificar lugares permanece inalterada.

O reconhecimento imediato de rostos e expressões faciais permitiu que nossos ancestrais decidissem num relance se deviam correr, lutar ou aproximar-se, discernimento crucial à vida em comunidades sociais com maior número de indivíduos. Na infância, temos poucas fisionomias a conhecer, as pessoas que nos cercam são nossos pais, parentes e vizinhos. À medida que nos tornamos adultos, no entanto, o contato com gente estranha cresce exponencialmente, e exige circuitos mais complexos de neurônios.

Comparado a outros tipos de informação visual, o reconhecimento de faces requer processamento mais elaborado, uma vez que elas, muitas vezes, diferem umas das outras em apenas alguns traços.

Decifrar os segredos das conexões no sulco fusiforme permitirá entender os casos de prosopagnosia congênita ou causada por pequenos derrames cerebrais que lesam os neurônios do sulco fusiformes. Essas pessoas são incapazes de reconhecer parcial ou totalmente o rosto dos amigos, dos pais ou dos próprios filhos, mas mantêm preservada a capacidade de memorizar seus nomes e demais características individuais. Cerca de 2% da população sofrem desse transtorno em algum grau.

DRAUZIO VARELLA

29 DE DEZEMBRO DE 2018
J.J.CAMARGO

O NOVO SEMPRE VEM

Passada aquela fase da vida em que não temos ideia do que queremos ser e, com romantismo exagerado, anunciamos o sonho de sermos bombeiros, astronautas ou jogadores de futebol, começa a temporada da incerteza, com períodos sombrios, em que sentimos vontade de confessar a angústia de admitir que não gostamos de coisa nenhuma, pelo menos não dessas que estão por aí.

Os pais de um ou de muitos filhos sabem da aflição do tempo passar, encerrando a inconsequência abençoada da infância, e entrando na interminável adolescência, com nenhuma vocação no horizonte, ainda que o rebento esteja sempre olhando pra lá.

É tão crítica esta ansiedade que, passado um tempo, os pais já admitem que os projetos sonhados para sua prole eram mesmo utópicos, e de bom grado aceitariam alternativas funcionais, quaisquer delas, desde que despertassem paixão nos olhos das suas crias.

A nossa maturidade se anuncia com a percepção de que pessoas diferentes não conseguem se alimentar de sonhos idênticos, e, finalmente, o entendimento de que projetos capazes de acelerar os corações de uns provocam bocejos em outros. E, então, só falta admitirmos que estamos sendo irracionais quando interferimos nas escolhas dos nossos filhos e que temos de parar de pensar por eles com nossas cabeças antiquadas e dar espaço ao novo, porque, como cantou Belchior, "o novo sempre vem", e quase sempre vence.

Não bastasse a agonia de reconhecer que paternidade rima com, mas não é sinônimo de, propriedade, outras surpresas nos aguardam: uma pena que lá atrás ninguém nos tenha avisado que essa aflição nunca termina e que, definida a profissão, a expectativa recomeça com novos alvos e diferentes trilhas de conquistas, sucesso e frustração. Só então começamos a entender que ser pai é simples. É só estar disponível o tempo todo e sempre.

Mais adiante, com os filhos já encaminhados, é razoável festejar a pausa da acomodação, da qual estão naturalmente excluídos os pais indecisos, esses que tiveram filhos distanciados no tempo, fazendo a preocupação com o destino dos herdeiros retardatários se sobrepor à educação dos netos, que ninguém imaginava, chegam com a insuspeitada função de manter os avós vigilantes com as ameaças novas que, para desespero de todos os responsáveis, não causam nenhum temor nos ameaçados.

Na serenidade da velhice, percebemos que tudo o que vivemos só tinha a missão de completar o ciclo, para no fim nos parecermos tanto com os nossos pais.

J.J.CAMARGO


29 DE DEZEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Nós somos superiores

Um professor de Harvard recomendou que os restaurantes servissem porções de batatas fritas com apenas seis batatinhas. Os Estados Unidos reagiram como se ele fosse o Bin Laden ressuscitado. Foi uma insurgência nacional. As redes sociais vilipendiaram o assustado professor, que ganiu:

- Eu não sou nenhum monstro!

Para os americanos, é. Batata frita, nos Estados Unidos, chama-se "french fries". Ou seja: "fritas francesas". Mas deveria ser "american fries", porque nunca vi gostar tanto de batata frita. Tudo o que você pede em um bar ou restaurante, aqui, vem com batata frita.

Sempre achei estranha a combinação inglesa clássica, o "fish and chips", que, em sua apresentação ortodoxa, vinha em um cone feito com uma folha de jornal. "Ai, que nojo", você, que é tão sensível, diria. Acontece que o papel-jornal tem maior poder de absorção da gordura, e o peixe e as batatas desse tradicional prato britânico são mergulhados em muito azeite. Além disso, os ingleses são os maiores admiradores da imprensa livre, entre os povos europeus. Então, você matava a fome e se informava. Todos esses méritos, porém, não tornam harmônico o casamento entre o peixe e a batata frita. Peixe, se tiver de vir acompanhado de batata, terá de ser a sauté, levemente besuntada de manteiga e polvilhada com salsinha fresca.

Os americanos herdaram esse gosto enviesado de seus antepassados ingleses. Servem peixe com batatas fritas, como se faz na velha Álbion, servem filé com batatas fritas, como se faz do outro lado do Canal da Mancha, nas irmãs França e Bélgica, servem até sopa com batatas fritas.

O costume de comer hambúrguer com fritas, hoje disseminado no Brasil, é totalmente americano. O nosso velho xis nunca apareceu com essa companhia nas boas mesas.

Então, os americanos passam o dia comendo batata frita. A batata frita é o verdadeiro prato nacional dos Estados Unidos. Logo, eles jamais aceitariam essa recomendação do professor de Harvard. Vão continuar comendo batatas fritas obstinadamente.

A rigor, os Estados Unidos não têm uma comida típica. Há alguns pratos regionais, é verdade. Aqui, na Nova Inglaterra, eles fazem a "clam chowder". A tradução seria "sopa de mexilhões". É um creme branco que, às vezes, eles servem dentro de um pão de alentado tamanho. É bom. Mas não se pode dizer que seja o centro de uma refeição. É mais um consomê.

Você sabe o que isso significa? Uma superioridade nossa, brasileiros, em relação eles. Os americanos gostam de comida, sobretudo de comida em abundância, muita quantidade, muitas calorias, muita batata frita. Mas eles não sabem comer. Nós, sim. Nossos hábitos alimentares ancestrais são perfeitos. De manhã, café com leite, pão com manteiga, no máximo uma lâmina de queijo e outra de presunto sobre a fatia de pão. Ou, quem sabe, rodelas finas de salamito. Se você tiver tempo, um ovo duro. Ao meio-dia, você fará o que um americano nunca faz: você vai parar tudo a fim de desfrutar o almoço. Ah, é por isso que as empresas têm de permitir duas horas de pausa, a partir do meio-dia: para que o brasileiro se acomode à mesa e veja aterrissar a sua frente aquele prato fragrante e colorido com o negro do feijão e o branco do arroz, o bife dourado, o amarelo da gema do ovo que já se derrama e, tudo bem, batatas fritas. Ao lado, numa delicada tigela, repousa a salada de alface, tomates e cebola fatiada e escaldada, que a cebola deve ser escaldada na água fervente e depois resfriada na água gelada e em seguida escaldada de novo e resfriada mais uma vez, para que perca a acidez e se torne quase doce, como beijo de irmã.

Essa pausa para o almoço não serve apenas para a alimentação; serve para a meditação. É o momento em que o brasileiro se recolhe para estar consigo mesmo ou para com os seus. Um almoço de duas horas de duração é uma das vitórias da civilização. E mais civilizado será o homem se, às 17h, ele fizer outra interrupção nas atividades do dia para tomar um café da tarde. Aí, sim, estaremos diante de alguém que sabe viver. Ele sai do escritório ombreado por dois amigos, senta-se ao balcão da lancheria mais próxima e pede uma batida de banana com pão feito em casa, untado por uma generosa dose de manteiga.

Depois disso, já em casa, em meio ao Jornal Nacional, ele senta-se novamente à mesa, sorri para os filhos e janta talvez uma massa à bolonhesa, talvez um singelo arroz com camarão, ou até uma sopinha frugal. Seja. Mas haverá um cálice de tinto para acompanhar e a conversa amena e sorrisos suaves, que só fazem bem à digestão e à arte de viver.

Nós éramos assim. Tínhamos de ser sempre assim. Tínhamos de exercer nossa superioridade sobre esse mundo veloz, superficial, rasteiro e rude, que acredita que hambúrguer com fritas seja comida.

DAVID COIMBRA


29 DE DEZEMBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

Utopia mínima

Sempre tive um pé atrás com utopias. Elas trazem em si uma ideia bacana de reformar a humanidade, mas que sempre dá no seu oposto: o sonho vira pesadelo. Eu acredito que o homem é aprimorável, que outros mundos são possíveis, mas não dessa forma. Correr atrás de miragens não traz nada de bom.

Como estamos na época das utopias mínimas - as promessas de fim de ano -, vamos a uma reflexão sobre elas. 2019 está à porta, ganharemos um ano novinho em folha e não queremos estragá-lo de entrada. Então, o que fazer com as inevitáveis promessas que fazemos?

Minha sugestão: sigam sonhando. Mas tendo em mente que existe um imposto sobre o sonho: cada promessa se transforma em cobrança. Mesmos as internas, aquelas juras que fazemos apenas a nós próprios sem comunicar a ninguém. Uma vez não alcançadas, resultam em uma sensação amarga. Caímos de nível aos nossos próprios olhos, gerando um desgaste na autoimagem. Algumas depressões são sonhos abortados, fracassos oriundos de metas exageradas.

Nós, humanos, somos esquisitos. Não basta sofrermos pelo que vivemos, sofremos pelo que não vivemos. Projetos que não aconteceram, se foram muito desejados e possíveis, nos assombram e os carregamos como um fardo de dúvida. Promessas funcionam nessa gramática do não vivido.

E, vocês sabem, a festa à que não fomos sempre é a que teria sido realmente boa. Com os desejos, isso se repete. Entramos no reino do "tivesse". Tivesse trocado de curso, tudo estaria diferente. Tivesse mudado de cidade, estaria melhor. Tivesse insistido mais na relação, ainda estaríamos juntos. Talvez sim, talvez não, mas a incerteza sobre a escolha nos consome.

O problema, portanto, não são as promessas, e sim pedir demasiado: "Neste ano, vou emagrecer 20 quilos". Não daria para prometer: neste ano vou mudar a minha alimentação e parar de engordar? É factível e, se você tem sobrepeso importante, será uma grande vitória e você estará pronto para outro passo. Até porque a maioria desses regimes rápidos nos devolve ao peso original em pouco tempo.

Se você é desses que dizem "comigo só funciona na radicalidade, ou tudo ou nada", sem problema, mas lembre-se de que a repercussão negativa também será "ambiciosa". Você pode ganhar uma ressaca na autoestima tão radical quanto a meta.

A questão é sonhar sem construir futuras derrotas. Quem consegue vibrar com as pequenas conquistas é que chega longe.

Lembre-se: nunca é tarde para quem tem perseverança. O esforço se mostra mais forte do que os arroubos de soluções rápidas. No fundo, voltamos à fábula da lebre e da tartaruga.

Aproveite o fim de ano para sonhar com o que você realmente pode fazer no ano que vem. Meus votos são de que tenha a tenacidade de perseguir suas metas, não importa quanto tempo leve para chegar lá. O segredo não é apostar alto, é não desistir.

MÁRIO CORSO


29 DE DEZEMBRO DE 2018
DUAS VISÕES

O BRASIL QUE EU SONHO

O início de um novo ano é motivo de alegria e expectativas. Novo significa inusitado, desconhecido, não ainda experimentado, algo a respeito do qual não se pode oferecer resposta segundo esquemas predeterminados.

A partir da compreensão da fé, na confiança de que Deus nos sustenta, acompanha e inspira, nos abrimos a um novo tempo que irrompe diante de nós, desejando que encontremos paz e prosperidade. Deus nos encoraja a sonhar.

Inauguramos o ano de 2019 desejando felicidades porque trazemos em nós, como promessa, a esperança do novo. Eu sonho que o Brasil supere os altos índices de miséria, ofereça à população condições dignas de vida, promova a justa distribuição da renda, conceda aos jovens formação e estudo de qualidade, ofereça a todos oportunidades de trabalho, cuide dos idosos, construa um projeto de nação que corresponda aos anseios, sobretudo, dos mais pobres e preserve os autênticos valores democráticos.

Eu sonho pela construção de uma agenda de futuro marcada pela inovação, capaz de promover e efetivar a superação de estruturas ultrapassadas, viciadas, ineficientes e corruptas. Isso exige ética, ousadia e determinação.

Eu sonho com o cultivo de atitudes novas e nobres, evitando toda forma de exploração e domínio. O ano vindouro será verdadeiramente novo se formos capazes de descobrir meios para promover e cuidar da vida nas suas diversas formas de manifestação, com- preender que um índice maior de civilidade depende do grau de engajamento e disposição comum gratuita para favorecer o bem comum, perceber que precisamos de mais poesia nas relações interpessoais e com o meio ambiente, resgatar aquela força originária (dynamis) que permite a poetas, artistas, pensadores e místicos contemplar tudo a partir do êxtase.

Eu sonho com uma sociedade que cresça em civilidade, adorando mais profundamente, venerando com maior intensidade, respeitando as diferenças, sendo mais sensível, grata e devota. Somos assim provocados a, durante o próximo ano, cultivar com mais determinação nossa condição humana, marcada por fragilidade, sensibilidade, ousadia e devoção, e a promover a construção de pontes capazes de aproximar culturas e povos. Se no horizonte do cenário mundial despontam sinais de preocupação à causa da prepotência de alguns poucos, na aurora do novo ano desponta para os filhos desta "pátria amada" um lume de esperança. Esperança de justiça social, paz e fraternidade.

Os cristãos, filhos e filhas desta "terra adorada", especialmente os jovens, têm a missão de colaborar na construção de dias melhores para as futuras gerações comprometendo-se com a ética, promovendo o cuidado pela casa comum e responsabilizando-se pela coisa pública.

O resgate da esperança é fundamental para que o Brasil possa avançar. Por isso, eu sonho. Sonho com um tempo novo em que a esperança não nos seja roubada.

DOM JAIME SPENGLER Arcebispo metropolitano de Porto Alegre



29 DE DEZEMBRO DE 2018
SCOLA ENTREVISTA

"Sou contra o valor abusivo do pedágio no Estado"

JUVIR COSTELLA, Futuro secretário dos Transportes do RS

Sem experiência na área, mas com disposição para buscar respostas rápidas para melhorar os serviços, Juvir Costella assume, nos próximos dias, o cargo de secretário dos Transportes do Rio Grande do Sul. Ainda no primeiro ano, o governo eleito precisará destravar o programa de concessões que começou a ser feito pela atual gestão mas andou devagar, concluir obras que já começaram, como a duplicação da RS-118, entre Gravataí e Sapucaia do Sul, e rediscutir o papel da Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR). Costella é deputado eleito pelo MDB, mesmo partido de José Ivo Sartori. Ainda assim, se diz insatisfeito com a qualidade das estradas.

Como melhorar as estradas estaduais?

Temos de enfrentar essa questão indo em busca de recursos. O futuro governo terá como prioridade a recuperação das estradas. Tem uma questão de segurança e logística importante aí. Se tivermos rodovias em estado de bom para ótimo, isso trará investimentos de empresas para o Rio Grande do Sul.

O senhor está satisfeito com as estradas?

Não, de forma alguma. A recuperação vem acontecendo, principalmente nos últimos dois anos. Em algumas regiões, avançamos bastante. Mas temos ainda muito, muito mesmo, para evoluir. Foram mais de 3 mil quilômetros de estradas recuperadas. Mas trata-se apenas de uma etapa. E tem outra coisa preocupante: acessos municipais. Estamos no século 21 e quase 50 municípios não têm acesso de asfalto. Isso chega a ser desumano.

A RS-118 sempre teve atraso na entrega. Agora, a mais recente promessa é de conclusão no primeiro semestre de 2019. Vai se confirmar?

Não trabalho com chance de atraso. Prefiro falar sobre expectativa de conclusão. Vou ser incansável para garantir a conclusão no primeiro semestre. Sempre pode atrasar 30, 60 dias.

É apenas questão de dinheiro? Ou existe algum outro possível entrave?

Os projetos mais importantes para essa estrada estão concluídos. A área que precisa ser desocupada, dos quilômetros 0 ao 5, em Sapucaia do Sul, já foi feita. As obras mais pesadas, como viadutos e elevadas, estão prontas. O acesso de Esteio está 60% concluído. O único ponto que tem um pouco mais de dificuldade é a inclusão da BR-448 (Rodovia do Parque) com a RS-118. Esse viaduto independe da conclusão da estrada, que é uma obra para todo o Estado e não apenas para a Região Metropolitana.

O Rio Grande do Sul tem locais conhecidos como Estrada da Morte e Curva da Morte. O que o senhor vai fazer para acabar com esse estigma?

O grande desafio é fazer com que as estradas tenham melhores condições. Precisamos também criar um trabalho de conscientização das pessoas com relação ao respeito dos limites de velocidade e identificar e atuar em pontos com grandes índices de mortes.

O que vai acontecer com a Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR)?

Há duas discussões: rediscutir o papel do Daer. Existem excelentes técnicos no departamento queestão sendo mal aproveitados. E a EGR tem papel fundamental para o Estado. Está em 16 rodovias com praças de pedágios. O governador eleito tem dito que, se tiver de vender, vamos fazê-lo. Digo a mesma coisa. Não vejo dificuldade nenhuma em vender a EGR, mas quem vai fazer o papel da empresa depois disso?

Mas, por enquanto, muda alguma coisa?

Por enquanto, ela vem desenvolvendo o seu bom papel. Não sou contra pedágio. Sou contra o valor abusivo do pedágio. Por que do Mampituba para cima podemos ter pedágio de R$ 2,50 e aqui custa R$ 7, R$ 8? Esse é um outro debate que quero fazer.

A tarifa aqui é elevada?

Tarifa de R$ 7 para as estradas do Estado é alta demais. O que leva uma praça de pedágio a cobrar esse valor? Existe a expectativa de se criarem novas praças por meio de parcerias e concessões. E precisamos debater também se é papel do Estado manter uma empresa pública para administrar pedágios.

Qual é sua opinião sobre isso?

Não é papel do Estado manter empresa que cuida de pedágios e de estradas. Acho que isso pode ser feito por meio de concessões e parcerias.

O caminho da EGR, então, é a privatização?

Exatamente. O Estado deve buscar algo por aí, privatização ou forma de concessão. A EGR tem hoje cerca de 1,5 mil servidores envolvidos em todas as praças. São muitas famílias envolvidas, por isso, é necessário planejamento. Mas insisto: não é papel do Estado ter empresa para cuidar de pedágios. Para estradas, já temos o Daer.

Quais são as concessões que vão acontecer ainda no primeiro ano do governo?

Uma empresa de consultoria vai entregar a modelagem das concessões no primeiro trimestre. Em cima disso, vamos começar a trabalhar. Ela cria parâmetros de exploração das estradas a partir de dados técnicos. Sou muito ativo. Sou um cara de respostas. E rápidas.

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Balanço do governo Sartori aponta a recuperação de 3 mil quilômetros de estradas, de um total de 10 mil quilômetros, por meio de financiamentos de BNDES e Banco Mundial.

Durante a campanha eleitoral, o governador eleito Eduardo Leite (PSDB) prometeu "extinguir" a EGR, o que foi reafirmado em entrevista à Rádio Gaúcha na sexta-feira.

As tarifas em locais administrados pela EGR variam em cada praça. Para carros de passeio, vão de R$ 3,25 (caso da RS-239, em Campo Bom), a R$ 7,90 (caso da RS-115, em Gramado).

Até dezembro deste ano, a EGR arrecadou R$ 260 milhões em pedágios. O custo da empresa nesse período foi de R$ 263 milhões. O balanço considera a operação das 14 praças espalhadas pelo Estado.
DANIEL SCOLA

29 DE DEZEMBRO DE 2018
VIOLÊNCIA URBANA

Família e motorista são feitos reféns em assalto

Um casal de Minas Gerais e a filha, de 11 anos, foram feitos reféns por mais de cinco horas, após pedir uma corrida por aplicativo em Canoas. Eles foram sequestrados por dois homens que já mantinham em cárcere o motorista. O caso começou por volta das 4h de sexta-feira, na Capital.

Após entrar no carro, o condutor foi obrigado pela dupla a ligar o aplicativo e aceitar uma corrida. Um deles, que estava armado, assumiu a direção do veículo, uma SUV Tiguan. Cerca de meia hora depois, os três chegaram a Canoas, quando a família mineira ingressou no carro. Eles pegariam um voo para Belo Horizonte, segundo o agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Fernando Martelli.

O motorista do aplicativo sentou-se no banco do carona, enquanto a família era mantida no banco traseiro, ao lado de um dos ladrões. Por volta das 7h30min, o condutor do app conseguiu pular do carro, na altura de Glorinha, no km 59 da freeway (BR-290). O homem rolou sobre o canteiro central da rodovia e atravessou para a pista contrária. Martelli conta que ele pegou carona e foi deixado no posto da PRF:

- Ele chegou muito assustado, chorando, com a perna ralada de quando caiu no chão.

O homem disse à polícia que, durante as horas em que ficou com os criminosos, foi obrigado a parar em caixas eletrônicos na tentativa de fazer saques. Ainda segundo o relato dele, um dos assaltantes fumava crack e ameaçava os reféns exigindo dinheiro.

A família seguiu com os sequestradores até as 10h, quando foi libertada, em Osório. Eles pegaram carona e foram deixados no posto do Comando Rodoviário da Brigada Militar, na RS-030. Os mineiros perderam roupas, mochilas, carteiras e os celulares, segundo a polícia. A delegada Laura Rodrigues Lopes, da DPTur, informou que eles não sofreram ferimentos e irá analisar câmeras próximas ao local onde o veículo foi abandonado, no bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre.

TIAGO BOFF

29 DE DEZEMBRO DE 2018
INDICADORES - Economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS

Que 2019 não seja um ano velho


Tenho lido analistas de mercado sugerirem que o governo Temer acaba relativamente bem, tendo feito algum dever de casa, com reformas importantes. De acordo com estas análises, a PEC do Teto dos Gastos, a reforma trabalhista e a política de juros foram importantes ações para promover a retomada da economia. Bem, não me parece ter funcionado tão bem até aqui. Esperava-se que encerraríamos 2018 em situação bastante melhor - o que incluiria uma condição fiscal um pouco mais confortável, maior crescimento econômico, menor desemprego e inflação controlada.

A inflação, de fato, está sob controle, por mérito da acertada política monetária conduzida pelo Banco Central e também da crise. Mas, é só. A situação fiscal complexa, herdada do governo Dilma, ignorou a "pedagogia" do teto de gastos - inclusive com ações bastante emblemáticas como o aumento do salário dos ministros, sancionado pelo presidente Michel Temer sem constrangimento. Alguns dizem que o teto moraliza o gasto, pois seria possível aumentar o investimento em saúde, por exemplo, desde que se mova recursos de outras áreas em benefício desta. Será ingenuidade?

Já a reforma trabalhista foi aprovada com a promessa de melhorar o ambiente de contratação de funcionários, o que aumentaria o emprego. Não aumentou e encerramos o ano com mais de 12 milhões de desempregados. Nenhuma regulação trabalhista é capaz de gerar emprego, mas pode ser um estímulo positivo adicional, reduzindo insegurança jurídica. Nisso, acredito que a reforma tenha atuado. Mas, não sem transferir boa parte do custo para o trabalhador. É ele que, agora, ganhando salário por hora intermitente, poderá ter de pagar perícia técnica no caso de uma insalubridade duvidosa, por exemplo.

Para 2019, então, eu desejo que o desenvolvimentismo ultrapassado que se desenha não prospere. As políticas já em curso precisarão ser complementadas por outras, de modo a organizar de verdade a estrutura econômica do país, levando em conta também os custos envolvidos e a sua distribuição.

Crescimento econômico e emprego são os fundamentos de uma economia dinâmica. Mas, eles precisam significar a melhoria de vida de todas as pessoas. Neste sentido, o aprofundamento das desigualdades não pode ser desconsiderado, como foi no passado. Enfim, entre otimismo e pessimismo para 2019, fico com o realismo: temos muito trabalho pela frente.

Ely José de Mattos escreve aos fins de semana, a cada 15 dias - ELY JOSÉ DE MATTOS

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018


24 DE DEZEMBRO DE 2018
ARTIGO

FELIZ NATAL

Os dados da desigualdade no Brasil sãode arrepiar. Escolha qualquer indicador,mulheres e negros estão sempre abaixode homens e brancos. No país, a renda do 1% maisrico é igual à dos 99% restantes. E ricos ficam cada vez mais ricos e pobres mais pobres.

No mundo, há 62 indivíduos com renda somada de US$ 1,7 trilhão, igual ao que ganham os 50% mais pobres do planeta. Mas nós, brasileiros, somos campeões mundiais em desigualdade.

O pior é que a maioria dos pobres no Brasil vive na periferia das cidades. Sonha com melhor emprego, transporte, segurança, saúde e educação. Mas sofre as mazelas do dia a dia. Quem mora na Restinga gasta três horas para ir e voltar do trabalho.

Não bastasse o problema da renda baixa, vida difícil ou escola ruim, a desigualdade de nosso pobre é também territorial. Pois na periferia tudo é mais precário. Tente enfartar numa vila de Porto Alegre.

Aproveitando o espírito natalino, sugiro uma reflexão sobre a vida de nosso semelhante. Tudo está difícil. A desigualdade passou dos limites. Transcende às capacidades individuais. Os mais pobres competem sempre em condições desiguais.

É claro que só sairemos do buraco se enfrentarmos a crise da Previdência, as distorções nas relações de trabalho e se tornarmos a economia mais competitiva.

Mas, sem políticas que promovam melhor distribuição de renda e serviços públicos de melhor qualidade, o Brasil nunca avançará. É preciso cuidar dos mais vulneráveis.

E isso exige patriotismo. Olhar menos para o próprio umbigo. Aceitar perder privilégios. É a única forma através da qual filhos de quaisquer brasileiros, sobretudo os mais pobres, poderão se tornar, um dia, profissionais mais competitivos.

O Brasil está ruim até para os ricos. Muitos mantêm seus negócios aqui, mas a família já foi embora, para fugir da violência. Imagine a vida de quem não tem alternativa a não ser ficar.

O melhor presente de Natal para nós, brasileiros, seria que o novo governo tentasse de fato reduzir desigualdades. Promovesse mudanças que um dia trouxessem igualdade de oportunidade para todos. Mas isto é pedir demais ao Papai Noel. 

Médico e professor gilberto.ez@terra.com.br - GILBERTO SCHWARTSMANN


24 DE DEZEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

O PAPEL DE CADA UM

Quando se aproxima a possedo novo presidente edos governadores, renovam-se as esperanças deum futuro mais digno eluminoso para o país. Esse é um dosméritos da alternância de poder, pilarfundamental de uma democraciasaudável. Apesar da solidificação das instituiçõesnas últimas décadas, a cultura políticabrasileira ainda enfrenta desafios. Dois deles, que merecem reflexão nesta hora, são o personalismo e o paternalismo, primos próximos que, quase sempre, se apresentam de mãos dadas.

O voto é apenas uma parte do que se convencionou chamar de cidadania. Escolher um presidente e um governador é delegar poder, mas não significa terceirizar ética, participação e esperança. Presidente e governador nada fazem sozinhos, embora muitas vezes, nas campanhas, se esforcem para convencer os eleitores do contrário. Cada um de nós tem papel de protagonismo, pelo exemplo e pela voz, na construção desse país mais seguro, justo e desenvolvido, clamor revelado pela apuração de 105 milhões de votos para presidente e de 5,8 milhões de votos para governador no Rio Grande do Sul. Exemplos recentes comprovam que, quando a sociedade e os cidadãos se omitem, os eleitos se julgam donos do poder. Nos últimos anos, apesar dos sobressaltos, conseguimos avançar no caminho da democracia.

Se é absolutamente imprescindível o papel das instituições, tão ou mais importante é a participação dos indivíduos

Quando se aproxima a posse do novo presidente e dos governadores, renovam-se as esperanças de um futuro mais digno e luminoso para o país. Esse é um dos méritos da alternância de poder, pilar fundamental de uma democracia saudável.

Apesar da solidificação das instituições nas últimas décadas, a cultura política brasileira ainda enfrenta desafios. Dois deles, que merecem reflexão nesta hora, são o personalismo e o paternalismo, primos próximos que, quase sempre, se apresentam de mãos dadas.

O voto é apenas uma parte do que se convencionou chamar de cidadania. Escolher um presidente e um governador é delegar poder, mas não significa terceirizar ética, participação e esperança.

Presidente e governador nada fazem sozinhos, embora muitas vezes, nas campanhas, se esforcem para convencer os eleitores do contrário. Cada um de nós tem papel de protagonismo, pelo exemplo e pela voz, na construção desse país mais seguro, justo e desenvolvido, clamor revelado pela apuração de 105 milhões de votos para presidente e de 5,8 milhões de votos para governador no Rio Grande do Sul.

Exemplos recentes comprovam que, quando a sociedade e os cidadãos se omitem, os eleitos se julgam donos do poder. Nos últimos anos, apesar dos sobressaltos, conseguimos avançar no caminho da democracia.

Se é absolutamente imprescindível o papel das instituições, tão ou mais importante é a participação dos indivíduos. Do respeito à fila à cordialidade entre vizinhos, a verdadeira Justiça também se constrói fora dos tribunais, nas relações individuais e tantas vezes invisíveis. O que chega ao Judiciário, na maioria dos casos, é a presunção de injustiça clamando por reparação.

Jair Bolsonaro e Eduardo Leite se elegeram com sólidas maiorias, mas não de forma unânime. Assim como têm o dever de governar para todos, o país e o Estado se beneficiariam se todos trabalhassem para ver o Brasil e o Rio Grande darem certo. Isso não significa abrir mão das diferenças. Reconhecer as semelhanças e trabalhar por convergências é a única forma de dar legitimidade aos pontos realmente fundamentais do embate de práticas e de ideias.

Nesta época do ano, quando se reacendem a esperança e a fé, importante lembrar que liderar não é fazer sozinho. É inspirar, ajudar, construir, dar o exemplo e motivar. Vale para o presidente, para governador e, principalmente, para cada um de nós.


24 DE DEZEMBRO DE 2018

CARPINEJAR


A árvore de Natal do gaúcho


Quando atravessava o pampa e era menino, intrigava-me quando via uma árvore solitária no descampado. Uma única árvore em dezenas e dezenas de quilômetros de verde, uma rara árvore em hectares e hectares infinitos de campo.

Não sei ao certo o que pensava, as emoções vinham misturadas. Primeiro, havia uma curiosidade: como ela nasceu sem nada ao redor, quem a plantou, que semente intrépida atravessou as coxilhas por um pouco de céu? Parecia plantada por Deus, por mãos hábeis do sobrenatural, convertendo o fim do mundo em outro início.

Depois, ela me transmitia uma melancolia, aquela árvore não tinha amigos para conversar, não contava com nenhum galho próximo para dar as mãos e fazer sinfonia, não dispunha de um semelhante para exercitar a sua linguagem. Valia-se do dialeto dos pássaros na hora de se comunicar com a vida, pois só eles a visitavam.

A compaixão encharcava os meus olhos e boca. Crescera órfã, sem pai e sem mãe por perto, ocupando o seu horizonte com bois e cavalos. Deveria ser difícil não pertencer a um bosque ou a uma turma de iguais, até para se proteger, até para ganhar colo no cansaço. Não havia nenhuma criança acessível e fácil para transformá-la em escada e mirante, nenhum peão para oferecer sombra.

Em seguida, ela me passava coragem. Uma valentia de estar sozinha na tempestade e nos ventos, obrigada a se segurar e se cuidar nos reveses do tempo. Não podia pedir socorro, bastava-se com as próprias raízes. Admirava, então, a sua independência de não depender de ninguém para ser tão bonita e frondosa. Exalava uma confiança impenetrável.

Mais adiante nas ideias, compreendia a sua generosidade, ela servia de referência aos moradores das redondezas, de cartão-ponto aos lavradores, que não se viam perdidos quando a encontravam pelo caminho.

Trabalhava, de noite, na função de bússola no mar de estrelas, apontando os seus ponteiros de madeira, e, de dia, influenciava as coordenadas dos viajantes, tal farol circular com a sua luz verde.

Desde piá, eu me percebia representado por ela, que traduzia todos os meus sentimentos por ter nascido no Estado: a solidão, a melancolia, a coragem e a solidariedade. Somos exatamente esse milagre de obstinação e força de vontade.

Tanto que acredito que a árvore de Natal do gaúcho não seja o pinheiro, mas a figueira. Porque, contra tudo e contra todos, ela se levanta para o Sol e para a Lua. Seu isolamento geográfico não a intimida, pelo contrário, a inspira a subir mais alto, a provar a sua força, quase tocando as nuvens, uma bandeira vitalícia, para ser vista de longe, para que uma criança como eu nunca se veja abandonada pelo destino.

CARPINEJAR

24 DE DEZEMBRO DE 2018
CLÓVIS MALTA

Natal para todos

Que bom e estranho seria se esse espírito do bem chamado de Natal baixasse sobre todas as pessoas, no planeta inteiro, poderoso como o das forças da natureza num terreiro de candomblé. Não importa sobre quem, se é cristão, ou ateu, ou nada, não interessa a crença, nem se as pessoas a têm ou não, nem o nome das pessoas, nem a cor, nem as escolhas, desde que estejam todas se sentindo livres e às voltas com uns desejos saudavelmente malucos. Umas vontades que, sob o clima de final de ano, nos deixam pensando se não seria possível realizá-las, por que não?, pois, se ficarem para mais adiante, talvez nem dê tempo.

Por exemplo: ir até uma praia distante, no Guaíba mesmo. Ficar mirando-a por um tempo, até constatar que o lago/rio, por ordem alfabética, para não abrirmos discussão com a galera, é lindo. E apreciar a vista.

Talvez andar pelas ruas, pelo prazer de andar. Parar sob uma árvore e prestar atenção no canto das cigarras. Pensar, por exemplo, em tudo o que se vai dispensar no mundo quando a tecnologia conseguir reproduzir esse e outros sons de forma idêntica.

Se possível, andar um pouco mais, muito, nem que seja só mentalmente, como quem caminha sobre um mapa imaginário. Andar porque só andando, não importa como, se percebe nos detalhes a beleza do mundo.

Se tiver dinheiro, tomar sorvete, comer pipoca. Tomar um ônibus urbano, sem perguntar qual, e se deixar levar pela cidade, pela vida, pelos bairros elegantes, pela periferia tão descuidada, pelos campos com esses morros de cumes arredondados. Entender que a paisagem tem tudo a ver com a dos nossos cadernos de infância. Demonstrar gratidão por isso.

Se puder, andar, amar, andar. Andar sem se deixar levar pelos pensamentos, apenas permitindo que passem como nuvens ralas.

Andar, refletir, meditar, rezar, agradecer pelas pessoas, por você, por nós, por todos, pelas oportunidades que esta existência nos dá. Ser simples, mas tão simples na busca do realmente essencial, que nem precisa dizer, pois todos vão notar.

Clamar por mais respeito aos seres, todos os seres. Pensar no sofrimento daquele homem tão sereno na cruz, no negrinho do pastoreio sendo consumido pelo formigueiro. Só para não perdermos a dimensão de até onde pode ir o horror humano.

Imaginar que os dois, o da cruz e o do formigueiro, foram bebês formosos como o da manjedoura.

Perceber que há algo igual e comum a todos, que tudo nos conecta, até a mente, até esse clima natalino, mesmo entre quem não consegue ter fé, mas então passa a conseguir, e a sentir, a fé. Pois acabou de descobri-la ali onde esteve o tempo todo, essa fé, como num milagre.

E, aí, tente imaginar o mundo inteiro nas ruas, defendendo a fraternidade. Mentalize isso, para que aconteça. Gente de todo lado possuída por esse espírito forte como Exu, com a bandeira do Natal. Do Natal que é amor pleno, sem discriminações, pois apenas acolhe, abre os braços e diz: vem.

Natal para todos.

CLÓVIS MALTA

22 DE DEZEMBRO DE 2018
ANA CARDOSO

Sejamos cadelas

Calma, calma leitora. Não é nada disso que você está pensando. O que vou sugerir neste singelo texto de fim de ano é que a gente siga mais nossos instintos em 2019, como a protagonista desta história, a cadela Raia.

É sabido que alguns animais têm inteligência emocional superior à nossa. Você certamente já observou que os pássaros voam para longe antes da tempestade, que as abelhas fogem dos venenos e que os gatos evitam ao máximo quem não gosta deles.

Há alguns Natais, em Eldorado do Sul, a pastora alemã Raia deu à luz 10 cãezinhos. Não sei quantas tetas tem uma cadela, mas 10 filhos é muita coisa para um mamífero. A bichinha não tinha sossego. Estava magra, esgotada.

Uma semana depois do parto, pela manhã, a dona encontrou Raia com apenas cinco filhotes. Onde estariam os outros? Adriana acordou o marido Rui e saíram a procurar o restante da prole pelo sítio. Depois de muito andarem, acharam um buraco, não muito profundo, a 500 metros da casa, com os outros cachorrinhos dentro.

Estavam vivos e chorando. Os humanos pegaram os cães e os levaram de volta para a casinha da cadela. Raia não demonstrou estar contente, mas os aceitou. No meio da tarde, Adriana foi conferir se estava tudo em ordem e PLUFT!, cinco cachorrinhos haviam sumido novamente.

Desta vez, já sabiam o caminho. Trouxeram de volta os filhotes. Raia não deu a mínima. Que raios estava acontecendo ali? Será que a cadela não queria os filhos? No meio da noite, Adriana acordou assustada. Levantou, e suas suspeitas se confirmaram: apenas metade deles estava na casinha, com a mãe. Adriana, no meio da madrugada, deu-se por vencida e não foi buscar os demais.

Adriana nem dormiu direito. No dia seguinte, encontrou, na casinha, apenas os filhotes "escolhidos", que dormiam e grunhiam, tão pequenos que nem sabiam latir. Temendo que a cadela houvesse fugido - era só que o faltava nessa esdrúxula novela canina - Adriana correu para o buraco. Lá estavam Raia e seus outros cinco filhos.

Então a humana, que é uma psicóloga renomada, entendeu a lógica da cadela. Do alto de sua sabedoria canina, Raia havia separado os filhos em dois grupos para dar conta melhor da família. Quantas vezes, nós humanos, queremos abraçar o mundo de uma só vez e falhamos? Que tal compartimentarmos nossos deveres e nos concentrarmos no que conseguimos fazer, respeitarmos nossos limites ao invés de querer criar 10 filhos ao mesmo tempo, o tempo todo?

ANA CARDOSO

sábado, 22 de dezembro de 2018


22 DE DEZEMBRO DE 2018
LYA LUFT


Natal outra vez?

Nada original para a colunista escrever sobre Natal no Natal. Talvez o hábito, ou o desejo de desbanalizar o tema. Ou certa irritação: gente que detesta Natal, que se isola e vai dormir cedo ou toma um porre, briga com a família ou só pensa em desgraça, ou chora pelos Natais da infância. Lista de infinitas chatices.

Já que ele existe, por que não curtir um pouco? Por que achar que datas são armação capitalista para empresas ganharem dinheiro? Ganharão dinheiro se eu permitir, se eu o gastar, sobretudo se me endividar com a festa em lugar de me alegrar com ela. Gente em filas gigantescas ou apavorantes multidões: "Tenho sete filhos mais seis netos mais oito sobrinhos mais..." e a pobre mulher com poucos dentes faz a conta, se atrapalha e, claro, vai gastar o salário, o décimo, as férias, e pagar pelo ano todo o delírio dos presentes.

Gosto de lembrar de coisas da infância, mas sem melancolia. Quase verão: o crepúsculo vermelho eram os fornos do céu onde os anjos preparavam os doces de Natal. E em algum lugar crescia uma árvore miraculosa que logo se multiplicaria em nossas casas. Velas e aquele cheiro de cera derretendo, bolas de mil cores, a música da caixa da avó, velhíssima mas intacta. Presentes misteriosos embaixo da árvore, nada de escolher antes no shopping. Não existia shopping. Existia segredo e encantamento.

Na véspera, ninguém podia entrar na sala, onde lençóis pendurados fechavam como biombos todo um recanto. Na cozinha, os biscoitos em forma de estrela com açúcar colorido em cima; adivinhar os presentes escondidos; gente da família chegando. Vestido novo de organza, sapato de verniz, promessas de me comportar, sim sim sim sim... dali em diante eu seria outra. Prometo ser boazinha prometo ser obediente prometo não responder pra mãe nem botar a língua nem me esconder na hora de dormir nem nem nem.

Por fim, na noite de Natal, um anjo dissimulado atrás dos panos alvos tocava sinetas, retiravam-se as cortinas improvisadas, e era o paraíso. A árvore dos milagres. Nós, em torno, éramos anjos também. A árvore chegava ao teto, pé direito tão alto como se ali em cima houvesse sempre névoa. Girava vagarosa numa pinha de ferro sobre uma caixa de música, uns discos de metal com lasquinhas levantadas. O som metálico em canções natalinas, e nós ali, tomados de beleza. Depois havia abraços e presentes, os adultos tomavam champanha e alguém tocava piano, todos cantavam, as mulheres contentes, porque mães e avós gostam de reunir seus pintos de qualquer idade.

Atrás das portas de vidro que abriam para o jardim, solenes anjos com asas de tule também giravam devagar - parecendo minha mãe numa foto de menina junto daquela árvore, ouvindo a mesma música, com um vestido de muitos tules, parecendo, ela mesma, um anjo contemplativo.

Então, esta senhora que já viveu, leu, aprendeu, curtiu ou sofreu tanto - acredita em Natal? Pois ela acredita em fadas e duendes que de noite cochicham entre as árvores do seu jardim, acreditou em Cegonha até uma idade vergonhosa, acredita em Deus. Acreditar é bom, se for em coisas positivas, que afinal existem.

Que este Natal seja de não ser nem lamuriento nem implicante, mas de acreditar.

LYA LUFT

22 DE DEZEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

BOAS FRESTAS



Quando eu era adolescente, a escrivaninha do meu quarto ficava encostada contra uma parede onde havia uma janela que dava para a rua. Entre mim e o mundo havia persianas feitas de lâminas horizontais que ocultavam o que acontecia lá fora, a fim de que eu pudesse me concentrar nos estudos do colégio. Mas, de vez em quando, eu abria um espaço entre uma lâmina e outra para espiar.

Era através dessas frestas que eu reparava num garoto que morava quase em frente. Ele entrava e saía de sua casa, andava de skate, se reunia com os amigos do quarteirão. E eu ali, escondida atrás das persianas, observando e sonhando. Inventei um romance entre mim e ele pelas frestas. Muitos anos depois, a realidade atravessou a janela e a história aconteceu pra valer, mas esse tempo também já acabou.

O que não acabou foi essa mania de abrir um espaço para ver o que acontece do outro lado da vida, quando eu deveria estar atenta apenas ao que acontece bem na minha frente.

Frestas. Pequenas aberturas necessárias para fazer contato com a imaginação, com a fantasia, com o que, estimulado pela curiosidade ou pela fé, pode se tornar menos impossível do que parece.

Abro a página de um livro e ganho o universo. Ouço cinco minutos de música em meio ao expediente e já troco de ânimo. Envio um e-mail audacioso para uma colega e passo a participar de um projeto. Basta uma pequena quebra de rotina, mudar de tom, arriscar um sim. O sim é a fresta necessária entre lâminas e lâminas de nãos. O não bloqueia a vida sonhada.

Às vezes parece que já está tudo escrito, o destino determinado. É desse jeito, dessa forma, não invente coisa, está bom assim. Apenas respire e vença os dias, um após o outro. As persianas estão fechadas protegendo você dos raios ultravioletas, dos temporais, das tentações, de tudo o que existe do lado de lá, onde você não está. Aquiete-se. Nada de mal pode lhe acontecer, querida.

Mas nada de bom também, se a gente não teimar.

Então procuro escutar além do que ouço, enxergar além do que vejo, acreditar no que vai além do racional. Com a ponta dos dedos, separo uma lâmina da outra para descobrir de onde virá o indefinido, aquilo que ainda não existe senão como possibilidade, o big bang que será capaz de produzir um novo mundo, a explosão que sinalizará que é hora de zerar o cronômetro e recomeçar a contagem do tempo.

Estamos terminando dezembro. E se, em vez de falar de Natal, que é sempre igual, a gente abrisse pequenos vãos por onde alguma novidade possa entrar e tornar a vida menos repetitiva? Eu, que não suporto trocadilhos, até a eles estou recorrendo para fugir da mesmice: boas frestas para todos.

MARTHA MEDEIROS