domingo, 27 de junho de 2021


26 DE JUNHO DE 2021
LYA LUFT

A família humana

Não acho que tudo tenha piorado nos dias atuais. Nunca fui saudosista. Prefiro a comunicação imediata pela internet a cartas que levavam meses. Gosto mais de trabalhar no computador do que de usar a velha máquina de escrever (que tinha lá seu charme). No whats ou outros, falo instantaneamente com amigos e familiares aqui perto, do outro lado do mundo - os afetos se multiplicam, se consolidam, circulam mais emoções. Nossa qualidade de vida melhorou em muitas coisas, mas serviços essenciais entre nós andam deteriorados, uma vasta parcela da humanidade ainda vive em nível de miséria.

São as contradições inacreditáveis de um sistema onde cosmólogos investigam espaços insuspeitados, cada dia trazendo revelações intrigantes, mas ainda sofre e morre gente nos corredores de hospitais sobrecarregados, milhões de crianças morrem de fome, outros milhões nunca chegam à escola, ou brincam diante de barracos com barro feito de água e esgoto.

Minhas repetições são intencionais, aqui, nos romances, até nos poemas. Retorno a temas sobre os quais eu mesma tenho incertezas. Que envolvem antes de mais nada ética, moralidade, confiança. Decência: pois é neles que eu aposto, nos decentes que olham para o outro - que somos todos nós, do gari ao intelectual, da dona de casa à universitária, dos morenos aos louros de olhos azuis - com atenção e respeito.

Estudos recentes sobre história das culturas revelam dados sobre tempos em que a parceria predominou sobre a dominação: entre povos, entre grupos, entre pessoas. Mas o mesmo ser humano que busca o amor anseia pela dominação nas relações pessoais, internacionais, de gênero, de idade, de classe.

E se tentássemos mais parceria? Na verdade não acredito muito nisso, a não ser que a gente dê uma melhorada em si mesmo. É possível que em algumas décadas, ou mais, a miscigenação será generalizada, superados os conflitos raciais às vezes trágicos. Teremos uma miscigenação densa de cores, formas, idiomas e culturas.

Origem, dinheiro ou tom de pele vão interessar menos do que caráter e lealdade, a produtividade e competência menos do que a visão de mundo e a abertura para o outro, a máquina importará tanto quanto o sonho, a hostilidade não vai esmagar a esperança, e não teremos de dominar o outro tentando construir uma civilização.

Talvez eu hoje tenha acordado feito uma visionária ingênua: não é inteiramente ruim, isso se chama esperança de que um dia predomine, sim, a família humana. "E aí?", perguntarão. "Sem conflito, sem cobiça, sem alguma opressão e alguma guerrinha, qual a graça?"

Aí, não vamos bocejar como anjos entediados, mas crescer mais, e mais, em caráter, sabedoria, harmonia, e - por que não? - algum tipo de felicidade.

*Texto originalmente publicado em 22 de junho de 2019

LYA LUFT

26 DE JUNHO DE 2021
LEANDRO KARNAL

Como será a vida de uma herdeira do trono que nunca se tornou, de fato, imperatriz coroada? No ano passado, Bruno da Silva Antunes de Cerqueira e Maria de Fátima Moraes Argon lançaram um grosso volume: Alegrias e Tristezas Estudos sobre a Autobiografia de D. Isabel do Brasil (Linotipo Digital). O estudo é consistente, bem encadernado e tem por foco o texto Joies et Tristesses que a filha de Pedro II escreveu no exílio e a Memória para Meus Filhos.

O livro é bem feito: debates teóricos sobre a escrita biográfica, digressões sobre o nome da princesa ser com S ou Z, notas de orientações, reprodução dos textos, tradução e muitas outras informações. Ao mesmo tempo em que citam autores dos mais atualizados no campo teórico, fazem a atividade mais tradicional possível a um filho de Heródoto. Além de tudo, o volume apresenta muitas fotografias e quadros, bem como uma imensa lista de datas e acontecimentos na vida da princesa.

O gesto maior de Isabel é o 13 de maio, a abolição da escravatura. Todos sabem que o movimento negro milita pelo fortalecimento da data de 20 de novembro, ligada à luta e morte de Zumbi dos Palmares. A data da "Redentora" seria uma ideia de concessão de uma mulher branca e de olhos azuis; a data do maior quilombo é uma ocasião que reforça a luta e a resistência. Quando o olhar for mais técnico e menos orientado a partir do presente, as duas datas continuarão a ser muito significativas, cada uma indicando um aspecto real e simbólico da questão mais fundamental da história brasileira: pessoas escravizadas.

A escravidão caiu porque houve luta e resistência ativa de quilombolas, pressão da Inglaterra, convicções intelectuais e humanitárias de classes médias urbanas, declínio da necessidade do trabalho compulsório, ações concretas da Coroa e estímulo do papa Leão XIII no caso brasileiro. Quando a princesa assinou a chamada Lei Áurea, o trabalho forçado estava em colapso em meio a pressões variadas, inclusive fugas em massa e incêndios de fazendas. Ainda assim, o valor prático e simbólico do 13 de maio é colossal. Enquanto houvesse o estatuto jurídico da escravidão, a situação seria instável mesmo para a maioria de negros libertos. 

Não seria errado considerar a lei dada na Corte do Rio de Janeiro como uma tentativa de interromper a onda de saques, incêndios, fugas e violências que cresciam há alguns anos. Assim, a "libertação" da lei 3.353 seria mais uma estratégia conservadora de tentar solidificar o controle de latifundiários brancos do que um gesto visando ao bem-estar de escravizados. Funcionaria, aqui, como o 4 de agosto de 1789 na França, quando a Assembleia aboliu os direitos feudais para tentar impedir a onda de saques e de incêndios daquele verão revolucionário. 

Mesmo assim, emito minha opinião: simbolicamente, o 13 de maio é importante no Brasil, tão importante que o movimento republicano tentou construir uma memória que afastasse a princesa e o Império da luta abolicionista. Para os mais radicais, o Império foi lento na luta abolicionista; para os escravocratas, foi rápido demais e ainda fez sem indenização. Lembremo-nos: apesar da crescente onda de migração europeia para a lavoura cafeeira em marcha vitoriosa sobre São Paulo, os escravos existiam em pequenas fazendas de quase todo país, em igrejas, no comércio e até entre negros libertos. Se já estava abolida em províncias como o Ceará, a escravidão ainda era onipresente no Brasil de 1888. O racismo? Bem, esse é outro capítulo que não foi abalado naquele domingo de comemorações.

Pedro II perdeu o trono no ano seguinte. Isabel e o Conde D?Eu acompanharam o imperador ao exílio. Nenhum veria o Brasil de novo. A princesa, chefe da casa imperial brasileira desde a morte do pai (5/12/1891) faleceu no castelo D?Eu, na França, a 14 de novembro de 1921, por volta das 10h da manhã. O conde, neto do rei Luís Filipe da França, tão atacado pela imprensa republicana e por Rui Barbosa, em particular, falece retornando ao Brasil no ano seguinte.

A história sempre marcha acelerada. O castelo dos Eu acaba sendo vendido para o magnata de imprensa brasileira Assis Chateaubriand. Mais tarde, seria revendido para sediar a prefeitura da cidade da Normandia. Os corpos do imperador, da Imperatriz, da princesa e do conde-marechal seriam depositados na catedral de Petrópolis. O clima do centenário da independência e o desgaste de República tinham inclinado os poderes ao cultivo da memória do Império. Nos 150 anos da data, o corpo do avô de Isabel, Pedro I, foi trazido para o Brasil.

Império e República possuem memórias entrelaçadas. A baixa qualidade média dos governantes pós 1889 destaca a formação exemplar de Pedro II e de Isabel. Claro, construir a memória do Império como um período de harmonia áurea é um esforço muito ideológico. Ocorre o mesmo quando entusiastas tentam inventar uma memória plana e linda de Getúlio Vargas, da ditadura civil-militar (1964-1985) ou de governos recentes como o de Lula. Os esforços falam muito dos autores e também do que veio depois como governo. O corpo da "Redentora" repousa em Petrópolis. A memória dela, como de qualquer pessoa, oscila no diálogo entre o passado e o presente. Muita esperança para príncipes e plebeus.

LEANDRO KARNAL

26 DE JUNHO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Efeito colateral do absurdo

Ele telefonou de manhã cedo e me assustei: ué, só trocamos WhatsApps. Telefonemas estavam reservados para os aniversários ou para alguma tragédia pessoal. Como não era meu aniversário, me preparei para o pior. Alô.

Ele estava arrasado, havia rompido uma relação. Não com a namorada, nem com o filho. Na noite anterior, discutiu feio com um grande amigo e se desentenderam de vez, o passado em comum não conseguiu evitar o fim. Nunca imaginou que chegaria a esse ponto por causa de política. "Não sou nenhum radical, você sabe" - começou me dizendo - "mas cheguei no meu limite. Desde moleques, éramos dois idealistas, comíamos e bebíamos livros, lutávamos contra o moralismo, viajávamos de carona pelo Brasil conhecendo praias lindas e cidades miseráveis, vimos a condição precária de tanta gente. 

As cenas chocantes de tortura que assistíamos em filmes nos revoltavam, queríamos mudar o mundo! Inocentes, claro, mas o valor que dávamos à justiça, à vida e à igualdade era inegociável. E, supunha eu, vitalício. Agora, de cabelo branco, ele grita "mito, mito!" para um sujeito que baba ovo pra ditadura e pra torturador, e que está nos levando a um retrocesso desmoralizante. Não foi um voto em oposição ao PT, essa desculpa já caducou. Ele realmente se identifica com o cara, Martha. Como continuar conversando sobre futebol como se nada tivesse mudado?

Fui a escolhida para o desabafo porque, semanas antes, havia comentado que, apesar do abismo aberto no país em 2018, eu ainda acreditava que as amizades formadoras, aquelas que se cristalizaram na infância e adolescência, não deveriam ser desfeitas pela polarização. Manter o laço com quem nos viu crescer e que repartiu vivências muito íntimas é uma espécie de seguro-emocional. Amizade verdadeira é um alicerce, uma maravilha do mundo antigo, quase um marco zero existencial.

Até agora, por sorte, não tive um embate violento e definitivo com ninguém que fosse especial para mim. Nas redes é outro papo, as pessoas se exaltam e, se o vínculo é fraco ou inexistente, tchau e bênção. Mas é muito doloroso colidir com um amigo querido que ainda acredita que a crise é entre esquerda e direita, que se posiciona como se houvesse dois extremos em disputa, quando não há. Nossos políticos podem ser malandros, safados, frustrantes ou coisa pior, mas atuam na mesma arena democrática, são todos discutíveis. O obscurantismo é indiscutível. Alternativa suicida.

Era mesmo uma tragédia pessoal: meu amigo ligou para falar sobre a morte do afeto, fulminado pela glorificação do absurdo. Minha defesa pela manutenção dos laços entre pessoas discordantes não surtiu efeito dessa vez. Ele perdeu um irmão em vida, o que é sempre triste. Para atenuar, combinamos de reduzir a troca de WhatsApps e nos telefonarmos mais.

MARTHA MEDEIROS

26 DE JUNHO DE 2021
CLAUDIA TAJES

500 mil não é um número

As 500 mil vítimas da covid no Brasil, a gente sabe, são muitas, muitas mais. Todos os filhos. As mães. Os pais. Os companheiros. As companheiras. As famílias. Os amigos. Quem trabalhava junto. Quem empregava. Quem dependia. Todo mundo que perdeu alguém por covid é vítima também.

500 mil. Esses dias, o moço do Uber disse que não se deve acreditar totalmente nos números. Concordei, os números são maiores, eu disse, é certo que há subnotificação. Ele tirou o nariz da máscara para me responder melhor: "Não, dona, eles mentem para mais". O sogro do meu irmão, que é militar, disse que enchem os caixões de pedras para enterrar. É assim que eles ganham dinheiro.

Seriam tantas as perguntas a fazer que preferi esconder ainda mais a cara na máscara e encerrar o assunto. Quem mente para mais? Quem enterra pedras, e onde? Quem são os "eles" que ganham dinheiro com isso?

Mas o motorista queria papo. Na sequência, passou a xingar a máscara, dizendo que ela não serve para nada e que só usa dentro do carro para não se incomodar. Vai que algum passageiro denuncie. No resto do tempo, não usa. Já tive covid, falou, e me curei com Azitromicina. Estou garantido. Não vou nem me vacinar.

Ele se sente respaldado. A maior autoridade do país não usa máscara. Até o ex-ministro da doença foi a um shopping com a carinha gorducha totalmente exposta. Cada vez que um sujeito desses nega o perigo em público, mais gente compra a ideia.

E morre mais gente também.

No outro fim de semana, vi na televisão uma matéria com vários brutamontes que, não satisfeitos em andar com a boca e o nariz para fora, ainda moem de pancada os funcionários das lojas que pedem - educadamente - para eles colocarem a máscara. A que ponto chegamos. Quem achava que o desembargador de Santos, aquele que humilhou o guarda municipal, era o cúmulo da grosseria e da violência, ainda vai ver muita grosseria e violência. Na TV e na vida.

Abri um pouco mais o vidro e recorri ao celular, companhia valiosa na hora em que a gente escolhe se isolar do mundo, ou ao menos deseja fingir um confortável alheamento. O motorista continuou falando.

Era um rapaz de nem 30 anos com um filho de 14, evidentemente que as coisas não foram fáceis para ele. Odiava estudar, não terminou o colégio e não se arrepende. Gosta de dirigir, está na profissão certa. Se há coisa que ameniza a dureza desses dias é isso, ter um trabalho e, de bônus, gostar do que se faz.

Apesar das dificuldades de uma vida batalhada, mesmo assim não acho que o negacionismo dele se justifique. São inúmeras as possibilidades de informação, muitas e muitas fontes diferentes para se recorrer, e tirar a prova. Ler uma notícia confiável leva tanto tempo quanto abrir o manifesto mal escrito que alguém postou no grupo da família. As escolhas, ah, as escolhas. O resultado delas nos persegue e determina o que será de nós, como indivíduos e como país. As urnas de 2018 não me deixam mentir.

Quinhentos mil. Em uma semana particularmente doída, um alento foi ouvir a Conceição Campos, vacinada pelo próprio ministro Marcelo Queiroga em uma ação de vacinação em massa em parceria com a Fiocruz na Ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro. Entrevistada, Conceição não amarelou:

- A vacina é verdadeira, mas a mão que me aplicou não é. Essa sensação foi muito forte para mim. De estar recebendo uma vacina pela mão de um representante do governo que não fala bem da vacina, que não defende a máscara, que não defende o distanciamento social. Soa muito falso.

Quinhentos mil é um número marcado na nossa história para sempre. Mas, quem sabe, com mais Conceições e menos meninos de miolo mole, menos políticos faturando com a ignorância e menos médicos anticiência, a gente possa parar de contar.

Falando nisso: Quase Oração é uma ação coletiva que conta com a participação de dezenas de brasileiros se revezando para contabilizar os números das vítimas fatais da pandemia. Infelizmente, é possível acompanhar essa triste contagem ao vivo no Instagram @quaseoracao. Que chegue logo ao fim.

CLAUDIA TAJES

26 DE JUNHO DE 2021
ELIANE MARQUES

O MAL-ESTAR DE AQUILES (DE SOUSA)

Não somos criaturas ternas que atacam apenas em defesa própria. Estamos mais para causar sofrimento, martírio e morte do que para amar o próximo. Segundo Freud, nosso destino será decidido pela condição de até que ponto a vida na cultura suportará os solavancos das pulsões de agressão e de autodestruição. Discutido por ele em O Mal-estar na Cultura (1929-1930), o tema se torna urgente nesta época de desprestígio da palavra e de avanço das imagens mercadológicas com as quais disfarçamos nossa falta estrutural. Fala muito bem disso Cartola de Sousa, que, com o filho Aquiles apoiado na anca, tentava tapar com a mão o calcanhar defeituoso dele em Luanda, Lisboa, Paraíso, da escritora angolana Djaimilia P. de Almeida.

Em Totem e Tabu (1913), o filho da psicanálise conjetura que a humanidade teria partido da horda primitiva, em que a vontade do chefe era ilimitada, às alianças fraternas, mais fortes do que um indivíduo, regidas pela lei simbólica no bojo da qual a vida em comum se tornaria melhor. Desde então se esperaria que, no transcurso histórico, se cumprisse, sem tropeços, a inclusão de um número maior de pessoas no que se chama humanidade. Por isso não se compreenderia como a cultura, que permitiu vida melhor, agora seria causa de sofrimento.

A agressividade vista no outro, mas disfarçada em nós, a exemplo de Cartola a esconder o calcanhar de Aquiles, é o que perturba as relações sociais. À cultura se impõe esforços para o fim de contê-la. O preceito de amar o próximo como a si mesmo, tão inútil como os demais em lograr mudanças face à agressividade, pródiga em inventar rivais para se justificar, constitui um desses esforços.

Para viver a vida de cultura se impõe a renúncia à satisfação das tendências agressivas. Contudo, tal renúncia ocorre cada vez mais entre os membros de um grupo restrito e privilegiado mediante a destinação de sua hostilidade aos considerados estranhos, anormais, outsiders; afinal, certas pessoas sempre poderão se proteger entre si com a condição de que sobrem outras em quem descarreguem os golpes.

Um antigo inconformismo constituiu o terreno em que circunstâncias históricas fizeram germinar a condenação da cultura. Para Freud, o último deles foi o contato dos europeus com povos aos quais atribuíram uma vida plena de felicidade que supostamente seria a eles inalcançável e que, talvez, por isso, digo eu, tentaram destruir, ainda que essa felicidade plena estivesse apenas em suas fantasias de (in)civilizados.

ELIANE MARQUES

26 DE JUNHO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

POR QUE TANTA GENTE QUE TEVE COVID APRESENTA SINTOMAS PERSISTENTES

Que doença estranha. Cerca de 20% dos infectados não sentem nada, outros têm sintomas que podem ser leves, de intensidade moderada ou daqueles que jogam o cristão na cama, sem coragem para levantar. Ao mesmo tempo, alguns precisam ser hospitalizados e depender de vagas nas UTIs para sobreviver.

Desde o início da pandemia, sabemos que pacientes intubados que passaram vários dias ligados a aparelhos de ventilação mecânica demoram meses para recuperar as condições físicas de antes. Os demais teriam evolução benigna, com sintomas que regrediriam em até duas semanas.

A experiência, no entanto, tem demonstrado que entre 10% e 30% dos que se recuperaram apresentam queixas persistentes, durante semanas ou meses. Os especialistas calculam que alguns desses quadros podem adquirir características de cronicidade, semelhantes aos descritos na síndrome da fadiga crônica que se instala depois de determinadas infecções virais.

Há duas teorias para explicar esses casos: partículas virais remanescentes persistiriam nos pulmões, nos músculos, no cérebro e nas mucosas do aparelho digestivo mantendo ativo o processo inflamatório nesses locais; certos elementos do sistema imunológico hiperestimulados pela presença do vírus agrediriam os tecidos do próprio organismo.

Nessas pessoas, há dúvidas sobre o efeito das vacinas. Até agora, os dados parecem mostrar que, na maioria delas, os sintomas regridem mais rapidamente depois da vacinação, enquanto que em outras eles ficam inalterados ou pioram.

O estudo Survivor Corps, conduzido na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, tem acompanhado pela internet pacientes que tiveram covid, com a finalidade de avaliar a duração dos sintomas que constam em uma lista apresentada pelos pesquisadores. Os participantes podem acrescentar outros que não foram citados na relação.

As principais conclusões foram as seguintes:

1) Os sintomas presentes nos casos de longa duração são mais comuns do que os enumerados pelos Centers for Disease Control, dos Estados Unidos. Os participantes se queixaram de haver desencontro entre seus problemas de saúde e as informações disponíveis nos órgãos oficiais.

2) Enquanto o impacto da doença nos pulmões e no sistema cardiovascular tem chamado mais atenção, os resultados sugerem que o cérebro, os olhos, a pele e a musculatura apresentam afecções frequentes que comprometem a qualidade de vida dos que se recuperam da doença.

3) Cerca de 26% dos que apresentam covid prolongada se queixam de dores crônicas, instaladas depois do quadro inicial, principalmente nos músculos, nas articulações ou espalhadas pelo corpo. Na maior parte das vezes, são dores difíceis de controlar. Os participantes do estudo se queixam de que os médicos menosprezam suas queixas e não estão preparados para tratá-los.

A lista dos 50 sintomas mais comuns relatados ao Survivor Corps é extensa. Por ordem de frequência, são os seguintes: fadiga, dores no corpo, fôlego curto ou dificuldade para respirar, dificuldade para concentrar a atenção, incapacidade para praticar atividade física, dor de cabeça, dificuldade para dormir, ansiedade, problemas de memória, tontura, sensação de opressão no peito, tosse, dores nas juntas, dor de garganta, palpitações, diarreia, sudorese noturna, perda parcial ou total do olfato, taquicardia, febre ou calafrios, queda de cabelo, visão embaçada, congestão nasal, depressão, neuropatia nos pés e mãos, perda parcial ou total do paladar, abscesso na orofaringe, dores abdominais, dor na coluna lombar, falta de ar ao abaixar, olhos secos, náuseas e vômitos, ganho de peso, sensação de ouvido entupido, câimbras nas pernas, tremores, pontos brilhantes no campo visual, sede constante, vermelhidão na pele (rash), sensação de choque no trajeto dos nervos, dor súbita no tórax, zumbido nos ouvidos, confusão mental, contrações musculares involuntárias, irritabilidade.

Acreditar que a infecção pelo novo coronavírus só causa problemas nos mais velhos e naqueles que apresentaram formas graves da doença é pensamento mágico. Qualquer pessoa infectada pelo vírus pode evoluir com sintomas de longa duração, ainda que a fase aguda tenha sido relativamente benigna, sem necessidade de cuidados médicos especiais.

DRAUZIO VARELLA

26 DE JUNHO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

ESSE ESTRANHO CHAMADO DESEJO

Umas das coisas que mais me intrigam no ser humano é o desejo. A escolha daquilo que desejamos feita de uma forma inerente e espontânea, sem que sejamos obrigados a fazer, mas pela nossa livre vontade diante de muitas opções. Não falo daquelas coisas necessárias, que precisamos fazer de qualquer jeito e que talvez nem faríamos se fosse possível. Falo dessas escolhas deliberadas, impensáveis, perigosas, absurdas para muitos. Esse mecanismo dentro de nós capaz de ter vontade própria, de estarrecer o bom senso do mundo e até mesmo o nosso. Um desejo tão imperativo que desafia inclusive o medo, o risco, o perigo.

Gente movida pela paixão de fazer coisas que qualquer um de nós não faria em sã consciência. O desejo de se atirar de um avião em queda livre, escalar o Everest, surfar nas ondas gigantes. O impulso de se entregar a uma ordem mandatória dentro de você, num permanente confronto com a morte, mas sem nenhum desejo de morrer. Apenas pelo prazer da aventura.

Gente que faz isso não por heroísmo ou lucro mas pela devoção de realizar seu sonho. Por desejar fazer aquilo acima de quase tudo. Lobos solitários em seu imenso e extraordinário enfrentamento.

Podem parecer loucos para uma grande maioria, mas fazem parte de grupos de pessoas que querem muito fazer essa mesma coisa, enquanto o resto de nós, espantado, tenta entender o porquê.

Vi, por exemplo, as fotos e o vídeo de Maya Gabeira que, surfando uma daquelas ondas gigantes, tipo 24 metros, na praia de Nazaré, em Portugal, caiu e foi arrastada pelas aguas. Foi tirada do mar inconsciente por sua equipe de resgate. Foi um susto enorme, e ela viu a morte de perto. Por uma fração de tempo teria morrido.

Uma coisa infinitamente menor do que essa, na vida de qualquer ser humano, resultaria num tremendo trauma irrecuperável, suficiente pra alguém nunca mais querer nem sequer pisar na areia da praia. Colocar os pés na agua, nem pensar.

Mas para alguns o desejo é soberano, e um ano depois ela bate o recorde feminino, na mesma praia, surfando sua maior onda gigante.

Não menos espetacular, o holandês Wim Hof é um outro exemplo de atleta extremo, capaz de nadar sem roupa por horas debaixo do gelo, desafiando a capacidade de alguém suportar a mais gelada das temperaturas. Ou Alexander Honnold, um alpinista que escala montanhas numa técnica chamada Free Solo, isto é, subir uma montanha de pedra completamente sem cordas. Basta assistir ao documentário, também chamado Free Solo, que acompanha sua escalada, apenas com as mãos e unhas, do impressionante El Cap, no Yosemite Park, um monólito de quase mil metros. Sua aventura foi considerada a maior conquista atlética de todos os tempos.

Sou amiga do Amyr Klink, cuja paixão é navegar solitário, atravessar oceanos e de preferência ficar por mais de seis meses preso no gelo da Antártica, sozinho, isolado num minúsculo veleiro, conforto zero nas tempestades geladas do Polo Norte. O que seria um pesadelo para qualquer ser humano, para Amyr é o sonho da vida. Alguém consegue me explicar isso?

Dá pra entender esse estranho chamado Desejo?

BRUNA LOMBARDI

26 DE JUNHO DE 2021
CAPA

"Quando você fica mais velha, começa a se tornar mais forte"

Acqua Movie é rodado no sertão pernambucano e na região do Médio São Francisco. Como foi trabalhar nessas localidades?

Incrível! Foi uma aventura. Uma experiência inesquecível. Não conhecia o sertão. É um lugar lindo. A luz do sertão é um negócio que você se apaixona quando vê. Ficamos um mês sem voltar para casa. Os hotéis eram todos em beira de estrada. Por um lado, foi um pouco difícil, as temperaturas muito altas durante o dia. Lembro que nunca passei tanto calor na minha vida, doía o corpo, sabe. Mas era de uma beleza... O povo é muito acolhedor, generoso e divertido.

Você sente falta de ver mais mulheres retratando suas questões ou contando suas histórias na TV e no cinema?

Sim. Estamos começando a tomar um espaço maior do que já houve, mas ainda é pouco. Ainda é um mundo muito machista. O poder do homens no próprio audiovisual continua maior, e as histórias contadas seguem sendo muito masculinas. Temos um longo caminho pela frente. Não estamos nem perto daquilo que podemos fazer. Mas, comparado a quando comecei, melhorou bastante. Porém, é um meio bastante machista, principalmente as histórias que se contam, com ponto de vista excessivamente masculino. As histórias contadas e feitas pelas mulheres trazem outra vibração para o mundo, justamente o que estamos precisando agora.

Em entrevista de 2018, você já disse que "não tem idade para fazer mocinha". Como você vê o espaço dado a histórias de mulheres maduras no audiovisual?

No Exterior já mudou. Lá, você vê isso muito forte. O Brasil está começando a engatinhar. Na gringa, você vê as séries sendo estreladas por atrizes mais velhas, no caso, não garotinhas ou jovens iniciantes. Com o tempo, você vai ficando com mais poder para decidir o que quer, para bancar aquilo em que acredita. Há grandes atrizes produzindo suas coisas. Acho que o caminho no Brasil também será esse. O mundo está mudando, ainda bem. O Brasil precisa ficar mais adulto. Deixar de ser um país infantilizado, de meninos (risos). Tem que ser de homens e mulheres.

Como foi a chegada aos 50? Como tem sido essa nova fase para você?

Não sei se é uma nova fase. Você vai indo, vai vivendo. Hoje me sinto mais feliz do que era antes. Me sinto mais em paz com as coisas, comigo mesma. Consigo reconhecer melhor a mim mesma, o que é importante. Quando se é mais jovem, você vive, mas não se reconhece. Você não se afirma muito. Quando fica mais velha, começa a se tornar mais forte, a ter mais poder consigo mesma. Aumenta mais a responsabilidade com você. Sente-se mais responsável pelas suas escolhas, pois você já não tem mais a vida inteira pela frente. Tudo ganha uma importância maior. Você pensa: "Não vou perder o meu tempo com isso, pois não me interessa". São escolhas responsáveis em relação a si própria.

Você já comentou que gostou de ficar em sua própria companhia durante o isolamento. Esse sentimento veio com a maturidade?

Sempre tive isso, desde criança. A quarentena, no começo, trouxe mais tempo para mim. Depois foi enchendo o saco (risos). Já deu, não quero mais! Tem gente que não gosta de ficar consigo mesma. Eu gosto.

No geral, como tem sido a pandemia para você?

Tempos difíceis, que exigem que você seja forte. São tempos em que você tem que mostrar a sua força para você mesma, enfrentar e resistir. E atravessar, como se fosse uma guerra. Eu atravessei, como todo mundo atravessou. Procuro ser uma pessoa que encara as coisas conforme vão acontecendo. É preciso ser muito resiliente neste momento, encarar com verdade. Quem é importante para você? Quem não é? Quais relações você quer manter? Esses questionamentos vinham naturalmente durante a pandemia. Espero que esteja acabando essa fase. A pandemia já era difícil, mas estar no Brasil, com tudo o que a gente está passando, faz a coisa ser ainda mais complicada.

O que te ajuda a se manter forte?

Manter a saúde mental e física passa a ser um grande desafio. Eu medito bastante. Mas passei por momentos assim, mais difíceis. "E agora? Estou de saco cheio..." Não! Levanta, vamos fazer exercícios. Fazer exercícios é superação (risos), é difícil para todo mundo.

As atividades físicas ganharam mais importância neste período?

Sempre foram importantes para mim. Esse período é mais difícil para manter saúde mental e física. Por não ir à academia, em tese, tem que ser mais disciplinado. Então, é uma fase que exige mais força. Você está numa guerra? O necessário é sobreviver. Então, vamos fazer o necessário para isso. Procuro ser forte. Nem sempre estou feliz, mas acredito que as pessoas precisam se manter fortes.

Pouco antes da pandemia, você esteve no centro de discussões sobre cancelamento e apropriação cultural por conta de sua fantasia no Carnaval no desfile do bloco Baixo Augusta, de São Paulo, que continha referências indígenas. Hoje como você avalia esse episódio?

Foi um episódio muito fugaz porque as pessoas perceberam rapidamente que foi um equívoco. Estava apoiada por entidades indígenas, tanto que fui autorizada a fazer isso. Talvez as pessoas não soubessem que eu não estava lá pulando bloquinho de Carnaval. Não foi isso. O Baixa Augusta é um bloco ativista. O tema do bloco era Viva a Resistência. A resistência indígena era uma grande questão. Ainda é. Só piorou de lá para cá. Eu, como rainha do bloco, os convidei para estarem comigo. Chamei um indígena que fez o trabalho gráfico no meu corpo. Não estava nem fantasiada de indígena, mas foi esse trabalho que gerou a repercussão. Foi tudo muito rápido, como um sopro.

Não se sentiu cancelada?

Para falar a verdade, me senti bastante acolhida na época. Eu ia no mercado e todo mundo falava: "Ai, amei o que você fez". A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) escreveu uma carta pública dizendo: "Ela é nossa parceira, estava conosco". Houve um esclarecimento. As pessoas são muito superficiais na leitura, muito imediatistas. A internet é assim. Vem rápido e passa logo. Fiquei bem tranquila.

Falando em Carnaval, a festividade não pôde ser realizada este ano por conta da pandemia. Você tem expectativas para a volta da festa?

Não. Minha única expectativa é que o povo brasileiro seja vacinado. Só isso. Que a gente posso alimentar o povo brasileiro, e as pessoas tenham emprego. Carnaval, sinceramente, pode esperar. Todo mundo está com saudade, a gente quer voltar para as ruas. Mas nós só vamos ter razão para comemorar quando tivermos todo mundo bem. Pelo menos vacinados. No momento, não estou pensando no Carnaval.

Cidade Invisível traz questões como pressão do setor imobiliário sobre as áreas naturais e as comunidades que vivem na floresta. O meio ambiente também é assunto em Acqua Movie e é um tema frequente nas suas redes sociais. Qual é a sua relação com essa causa?

Para qualquer pessoa que está conectada com a contemporaneidade, isso passa a ser uma questão fundamental. Uma causa mais urgente. Isso foi entrando na minha vida aos poucos. Por acaso, as obras que fui fazendo e curtindo, tratavam disso.

Quais são os seus próximos projetos?

Tenho A Árvore, que é um projeto belíssimo que fiz na pandemia. Era uma peça e acabou sendo um produto audiovisual. Vou fazer a segunda temporada de Cidade Invisível e depois tem uma série da Globo chamada Fim, da Fernanda Torres, que a gente interrompeu as gravações na metade.


26 DE JUNHO DE 2021
HISTÓRIA

A OBRA

O livro Retratos de Camafeu: Biografias de Escritoras Sul-rio-grandenses reúne as histórias de vida de nove autoras do Rio Grande do Sul que produziram suas obras entre os séculos 19 e 20. Praticamente desconhecidas da historiografia literária, tanto brasileira como gaúcha, essas mulheres viveram em diferentes cidades do Estado: Porto Alegre, Cachoeira do Sul, Pelotas e Rio Grande. Embora não se conhecessem, em um ponto convergiram: todas tiveram versos, charadas e textos em prosa publicados no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, editado em Lisboa.

Em uma sociedade como a rio-grandense, em que a voz do homem sempre soou mais alto, e a produção feminina foi relegada ao silêncio, ter espaço em um periódico estrangeiro poderia ter concedido a elas destaque e visibilidade. No entanto, isso não aconteceu e foi necessário que um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e da Universidade de Caxias do Sul (UCS), sob a liderança da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), desenvolvesse um projeto interinstitucional sob o patrocínio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) a fim de recuperar as autoras. Assim, no volume há as biografias dessas autoras, em capítulos escritos por especialistas integrantes do projeto.

Cecil Jeanine Albert Zinani traz à tona Anália Vieira do Nascimento (Porto Alegre, 1854-1911), professora, poeta e exímia criadora de logogrifos, um tipo de passatempo bastante comum em periódicos do século 19. Salete Rosa Pezzi dos Santos escreve sobre Andradina América Andrade de Oliveira (Porto Alegre, 1864; São Paulo, 1935), que dividiu a sua vida profissional entre a escrita literária, o jornalismo e o magistério, sendo lembrada, especialmente, pelo polêmico livro epistolar Divórcio?, de 1912, em que discute a questão da indissolubilidade do casamento.

Maria Eunice Moreira lança um olhar sobre a obra e a vida de Cândida Fortes Brandão (Cachoeira do Sul, 1862-1922), que também se dedicou, em sua cidade natal, ao magistério, à poesia e ao jornalismo, em especial contribuindo para o jornal cachoeirense O Comércio. Viviane Viebrantz Herchmann aborda Ibrantina Cardona (Nova Friburgo/RJ, 1868; São José do Rio Pardo/SP), única das nove mulheres que não nasceu no Rio Grande do Sul, embora tenha vivido no Estado a infância e a adolescência. Morou ainda em Santa Catarina, Minas Gerais e São Paulo, escrevendo livros de poesia e textos a favor da emancipação feminina e da educação como forma de progresso da sociedade.

Regina Kohlrausch recupera os dados biográficos de Luísa Cavalcanti Guimarães (Pelotas, 1869-1891) e Júlia César Cavalcanti (Pelotas, 1871-1890), irmãs de vida breve, vitimadas pela tuberculose, o que não impediu que ambas se dedicassem à poesia, além de redigirem artigos em que defendiam os direitos da mulher e a instauração da República no Brasil.

Francisco das Neves Alves examina a poeta, contista, cronista, dramaturga, jornalista e editora Julieta de Melo Monteiro (Rio Grande, 1855-1928), autora de vasta obra espalhada por periódicos e livros, muitos dos quais editados em parceria com a irmã Revocata Heloísa de Melo. Paloma Esteves Laitano atenta para Maria Clara da Cunha Santos (Pelotas, 1866; Rio de Janeiro, 1911), que morou em várias cidades brasileiras, em todas elas dedicando-se à literatura, ao jornalismo, à música e às artes plásticas. E Mauro Nicola Póvoas analisa a pequena obra, esparsa em jornais, de Tercília Nunes Lobo (Rio Grande, 1854-1917), que cultivou poemas em que há o predomínio de uma temática melancólica e a preferência pelo uso do soneto.

O volume Retratos de Camafeu: Biografias de Escritoras Sul-rio-grandenses será lançado no Seminário Internacional de Escrita Feminina: Perspectivas Histórico-Literárias, organizado pela Biblioteca Rio-Grandense, de Rio Grande, e pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Furg. O evento, que será realizado de forma gratuita e remota, entre 28 e 30 de junho, conta, em sua programação, com importantes pesquisadores de instituições brasileiras e portuguesas. Veja mais em casaletras.com/sief.

Retratos de Camafeu: Biografias de Escritoras Sul- rio-grandenses

Maria Eunice Moreira (org.), Coleção Rio-Grandense, Biblioteca Rio-Grandense, 168 páginas, disponível em versões impressa e digital em issuu.com/bibliotecariograndense 

MARIA EUNICE MOREIRA MAURO NICOLA PÓVOAS

26 DE JUNHO DE 2021
J.J. CAMARGO

A VIDA NÃO É PARA DESPREVENIDOS

Que a nossa vida é recheada de perplexidades, estamos todos de acordo, e cada um, se estimulado a catalogá-las, elegerá a seu gosto uma mais absurda do que a outra. A minha, desde que comecei a conviver com doentes de todas as idades e condições sociais e descobri o fascínio de ajudá-los, nada me machucou mais do que a doença na infância.

Nem os religiosos, que ficam aliviados por atribuírem tudo à vontade desse Deus que sabe o que é melhor para seus súditos, tiveram argumentos ou ânimo para tentar dar um sentido ao sofrimento de um pingo de gente que nem viveu o suficiente para identificar o bem e separá-lo do mal, este entendido como merecedor de castigo. Menos ainda entendi quando uma criança nasce com um defeito congênito irreparável que lhe retira qualquer chance de sobrevida, tornando explícito que ela veio ao mundo só para sofrer.

Por conta desse meu condicionamento emocional, a história contada pelo Milton Meier, um dos precursores da cirurgia cardíaca pediátrica no Brasil, exigiu que eu me desse um tempo antes recontá-la, porque, como vocês verão, ela não é para desprevenidos.

O Milton Meier, a grande unanimidade afetiva da Academia Nacional de Medicina, começou a atender o Julio desde que ele tinha 15 dias de vida, quando se descobriu que ele batera à porta desse mundo arroxeado e arfante, por um defeito cardíaco em que lhe faltava um dos ventrículos, encaminhando-o para uma sucessão de procedimentos cirúrgicos, arriscados, dolorosos e meramente paliativos, sem expectativa real de chegar à vida adulta.

Como o Milton é o tipo de médico que todos queremos ter, aquele que nunca desiste do paciente, entregou-se à abnegada tarefa de dar ao Julinho a vida mais digna e longa que seu grande talento cirúrgico pudesse oferecer. Em um tempo marcado pela esperança ilimitada dos pais, encantados pela gana de viver do filhote, ele foi submetido a quatro cirurgias, buscando reparar as incorreções da natureza relapsa.

Na primeira infância, Julio chegou a ter um período de melhora, mas com limitações: apenas andava, enquanto os outros meninos corriam. Se agachava quando os outros pulavam. Quando completou oito anos, e já tendo sido submetido à cirurgia dos dois lados do peito, estava azulado outra vez e novamente tinha que ser operado. Como já crescera nele, além de pernas e braços, a noção do perigo, arriscou-se a questionar: "Tio, será que eu saio desta?".

Meio desconcertado, Milton respondeu: "Dessa o quê, Julio?" Titubeante, como se contasse um segredo, Julio perguntou-lhe, baixinho: "Eu vou morrer nessa operação?". Hesitou um pouco e acrescentou: "Tio, eu não quero morrer!".

Ainda não foi daquela vez. Viveu mais alguns anos. Muito poucos. Apesar de cada vez mais limitado, era uma criança alegre. Frequentava a escola, depois o curso ginasial, era inteligente e muito bom aluno. Julio lia muito, gostava de ver bons filmes. Aproveitava cada instante como se fosse o ultimo, intuindo que seria.

Um dia, Milton soube que Julinho estava na UTI, e a mãe ligara pedindo-lhe que fosse vê-lo. O filho estava outra vez azulado, como nascera. As artérias do pulmão não suportaram mais a pressão elevada e entraram em falência. Julio estava morrendo? e só tinha 14 anos. Aquela idade em que todos tivemos a deslumbrante certeza de que a vida estava apenas começando!

E Milton, no comando dessa narrativa, com grande esforço, modulou a voz para contar o resto dessa história. E transferiu o choro para o final, quando não lhe faltou companhia: "Poucas vezes fui a enterros de pacientes. Nunca me conformei com a morte, jamais de uma criança. Fui ao enterro do Julio. Muito triste, fui falar com os pais. Quando abracei a mãe, falei ?Não tenho o que dizer para você?. ?Mas eu tenho?, ela retorquiu entre lágrimas. ?Você me deu o Julio por 14 anos!? Somente para ouvir esse agradecimento já valeu a pena ter vivido!"

J.J. CAMARGO

26 DE JUNHO DE 2021
JULIA DANTAS

LEMBREMOS DO PAMPA

Agora que finalmente Ricardo Salles está fora do Ministério do Meio Ambiente, é hora de reforçar a preocupação com a preservação dos nossos territórios verdes. No noticiário nacional, muito se fala (como é devido) do desmatamento recorde da Amazônia, das queimadas no Pantanal, do volume nunca antes visto de madeira ilegal sendo transportada no país, mas aqui na nossa região fica quase esquecida a situação igualmente dramática do Pampa.

Conforme dados coletados em 2016 pelo Inpe (aquele mesmo Inpe atacado pelo Ministério do Meio Ambiente por ter feito seu trabalho de divulgação de informações), o Pampa já perdeu mais da metade de seu alcance original, e o ritmo de destruição vem aumentando anualmente.

É possível que nossa pouca atenção se deva ao tamanho do Pampa no Brasil, pequeno em comparação às grandes florestas tropicais: ele ocupa apenas cerca de 2% do território nacional. Isso não diminui sua importância. Embora, somando-se a área total, o Pampa fique atrás de outros ecossistemas nas métricas de biodiversidade, proporcionalmente ele apresenta a maior biodiversidade do país, já que, num único metro quadrado de campo nativo, é possível encontrar 57 espécies diferentes de plantas.

As áreas destruídas do Pampa são geralmente transformadas em áreas de cultivo agrícola, muitas delas em territórios que deveriam ser protegidos por lei. Os avanços das florestas de eucalipto e pinus, além de projetos de mineração, também ameaçam a integridade do bioma que, vale lembrar, abrange territórios de países vizinhos e abriga o aquífero Guarani, uma das maiores reservas mundiais de água doce.

Ao contrário do que acontece na Amazônia, onde muitas terras são arrasadas para dar espaço à criação de gado, aqui o Pampa sofre com a substituição da pecuária pela monocultura de soja. Pesquisadores da UFRGS ressaltam que a presença de gado livre aqui é benéfica, ajudando a manter a vegetação do Pampa equilibrada. Mas as zonas que antes serviam de pasto têm sido desmatadas: no ano passado houve um aumento de 99% no desmatamento em relação ao ano anterior, segundo dados do sistema MapBiomas Alerta. Desnecessário dizer que esse desmatamento costuma ser criminoso, e nada surpreendente dizer que, na conta geral do Brasil, apenas 5% dos avisos de desmatamento resultaram em multa ou embargo.

Para que esse bioma singular seja preservado, é preciso que se faça valer a lei que impõe Reserva Legal de 20% nas propriedades rurais. E, para isso, é necessário um Ministério do Meio Ambiente que esteja, de fato, interessado no meio ambiente.

JULIA DANTAS


26 DE JUNHO DE 2021
CINEMA

DEPOIS DE CORRER PELO MUNDO, SAGA ACELERA NO ESPAÇO

Mesmo derrapando de novo na verossimilhança, "Velozes & Furiosos 9" deve agradar aos fãs de desafios mirabolantes

É como se os produtores da franquia Velozes & Furiosos, ao ouvirem a icônica frase presente na abertura da clássica série Star Trek ("O espaço, a fronteira final"), pensassem: "Vamos atravessá-la. Porém, com um carro tunado". E aconteceu, conforme os muitos memes que circulam há anos pela internet previam. Uma pena que o trailer do nono filme da saga tenha estragado a surpresa e entregado a viagem sideral antes da estreia.

Infelizmente, o empresário bilionário Elon Musk, ao arremessar seu Tesla para fora da Terra, acabou com a chance de alguém dizer que a franquia cinematográfica liderada por Vin Diesel, audaciosamente, chegou onde nenhum automóvel jamais esteve. Mas, mesmo perdendo a piada com referência às viagens do Capitão Kirk, não deixam de ser absurdos os rumos tomados pela saga. E isso não é necessariamente ruim.

Mais uma vez empacotado com o tema "família", Velozes & Furiosos 9 (veja salas e horários na página 6) começa apresentando um irmão de Dominic Toretto (Diesel), Jakob (John Cena), que jamais havia sido mencionado durante os outros oito filmes. Mas, entre tantas concessões feitas pelos fãs para seguirem imersos na frágil verossimilhança da franquia, esta não é, nem de longe, a mais difícil - os retornos de Letty (Michelle Rodriguez) e, agora, de Han (Sung Kang) do mundo dos mortos estão aí para provar.

O problema é que Jakob está jogando no lado dos vilões, colaborando como espião para uma organização que quer dominar o mundo e, para isso, precisa de um dispositivo supertecnológico - sim, este mesmo enredo já esteve presente na saga anteriormente, mas é o ponto do filme que menos importa, acredite. O pano de fundo é apenas o start para explodir com tudo e reunir o time dos mocinhos novamente, inclusive trazendo de volta personagens que ficaram pela franquia.

O roteiro, escrito pelo novato na saga Daniel Casey e por Justin Lin, que também é diretor e velho conhecido da franquia, sendo responsável por cinco dos nove filmes - e, veja só, ele também comandou o filme Star Trek: Sem Fronteiras (2016) -, sequer se preocupa em ter alguma coerência. Desde que a franquia abraçou o exagero e aprendeu a rir de si mesma, a trama principal consiste, basicamente, em ver até onde vai a criatividade da equipe que comanda a produção. E vai longe.

Família

Neste novo passeio pelo mundo dos carros de 10 segundos (e foguetes, agora), para explicar a relação de Dom e Jakob, Justin Lin decidiu intercalar, entre as muitas explosões, diversos e longos flashbacks, contando para o público, depois de 20 anos - o primeiro Velozes & Furiosos é de 2001 -, o passado do personagem de Vin Diesel e, consequentemente, de seu irmão esquecido. Tudo com muito drama familiar.

Esse esforço para tentar humanizar os personagens principais da saga, apesar dos muitos clichês, se faz cada vez mais necessário, uma vez que, a cada novo capítulo, os desafios que eles enfrentam se tornam mais mirabolantes e praticamente impossíveis. Inclusive, a questão é abordada no próprio filme, com Roman (Tyrese Gibson) suspeitando de que ele e seus amigos, na verdade, são mais que humanos, já que conseguem escapar de situações que pessoas comuns jamais conseguiriam. É de se pensar.

Dentro deste cenário, Vin Diesel e sua trupe rodam por vários países para caçar Jakob e atrapalhar os seus planos maléficos. E, como dizem, o destino não é o que importa, mas, sim, a viagem. E neste ponto Velozes & Furiosos 9 não decepciona. Em seus 145 minutos - o mais longo da série, mas que não aparenta, pelo seu ritmo frenético -, o filme traz momentos grandiosos e que desafiam qualquer lógica, como Dom conseguindo pendurar o seu carro em um cabo e se balançar através das montanhas no melhor estilo Homem- Aranha. Apesar de bobo, tudo é feito com muito esmero, aliando efeitos especiais de primeira e um grande desempenho físico dos dublês e atores. Há um nítido carinho pela saga no meio de tanta testosterona.

Por outro lado, as performances dos artistas no quesito interpretação não devem agradar aos que procuram por algo além de explosões e velocidade. Enquanto o elenco tem nomes consagrados e premiados, como Charlize Theron e Helen Mirren - que, por sinal, parece se divertir horrores pilotando carros e aplicando golpes -, que conseguem se destacar, mesmo com o material raso que têm, o restante derrapa. Com frases curtas e que buscam ser sempre impactantes, mas que dificilmente contam com uma conclusão, os atores e atrizes andam na corda bamba da vergonha alheia. Porém, ninguém ali tem pretensão de ganhar um Oscar. Não com este filme, pelo menos.

Apesar de seus diversos problemas básicos de roteiro e de desrespeito à física, Velozes & Furiosos 9 entrega aos seus fãs uma continuação de sua escalada à megalomania e com uma trilha sonora empolgante - com direito a Anitta. O resultado é divertidíssimo para quem estiver aberto a abraçar o absurdo e dar boas risadas ao descobrir que não existe limite para o que é possível fazer com um carro.

Agora que a porteira para fora da Terra foi aberta, o que será que os últimos dois capítulos da saga entregarão? O único problema é que, no espaço, não dá pra ouvir o ronco dos motores...

 CARLOS REDEL

26 DE JUNHO DE 2021
DAVID COIMBRA

Aquelas velhas madrugadas

O Doctor Jeckyll tinha uma cabeça de onça pendurada em cima da escada que levava para o segundo piso da casa. Era exatamente embaixo daquela onça que o Professor Juninho se posicionava. Ele pegava uma cervejinha long neck no bar e ficava ali, com um meio sorriso de Monalisa intrigando quem entrava. Intrigava as mulheres, óbvio. A gente se distraía e, quando voltava a cabeça para conversar com ele, já havia uma moça ao lado, rindo e comentando:

- Ai, Professor...

O Doctor Jeckyll tinha a cerveja mais gelada da cidade e o melhor som. Só clássicos do rock?n?roll. Ficava ali no Largo da Epatur. Às vezes nós saíamos do bar e deparávamos com a feira sendo montada e as donas de casa já se acercando para comprar chicória e couve-flor. Vou dizer: se tem uma coisa de que um noctívago não gosta é de estar na rua quando o sol nasce. É o princípio do Conde Drácula: o sol faz o boêmio derreter. Lembro daquela música belíssima do Chico:

"Eu faço samba e amor até mais tarde

E tenho muito sono de manhã".

É um hino da boemia. Um diamante. Conta com precisão o que sente o boêmio.

Já fui boêmio. Seria ainda, se a vida não tivesse me empurrado para outro lado, para o lado das manhãs. Mas não lamento. A vida, quando decide que você tem de seguir por um caminho, você obedece, vai sem reclamar e tenta aproveitar a paisagem.

É o que faço. E, fazendo assim, até me esqueço de alguns detalhes de como era naquela época. Imagine que eu não saía da cama antes das 10 horas. Como diz na música do Chico:

"Não sei se preguiçoso ou se covarde

Debaixo do meu cobertor de lã

Eu faço samba e amor até mais tarde

E tenho muito sono de manhã".

Bem, eu era exclusivamente um jornalista de jornal. Chegava à Redação depois do almoço e, antes de começar a trabalhar, ia direto para o bar, tomar um café restaurador. Então, reencontrava meus companheiros da noite, o Juninho, o Ricardo Carle, a Mariana Bertolucci e outros mais. Sentindo a cabeça ainda mareada, nós prometíamos que naquele dia iríamos cedo para casa. Mas aí voltava a entrar em ação o princípio do Conde Drácula: quando o sol se deitava no Guaíba, nós nos assanhávamos:

- Vamos? - Vamos! E íamos.

Está certo, éramos jovens. Hoje não teríamos preparo físico para aquelas jornadas. A noite foi perdendo sua força à medida que a idade avançou. Mesmo assim, estava acostumado a tomar chopes cremosos com os amigos, a compartilhar churrascos, a frequentar restaurantes.

Até que a vida empurrou a mim, e a todos os outros bilhões de terráqueos, para outro lado. A vida noturna foi mutilada pela pandemia. E eu, agora, mesmo tendo tomado as duas doses da vacina contra a peste, mesmo estando vivo e bem, eu, agora, sabe o que me aconteceu? Como diria Mario Quintana, "perdi um jeito de sorrir que eu tinha". Estou desasado, receoso, sem naturalidade para usufruir dos prazeres da noite, ainda que seja uma noite breve.

Novas e agressivas cepas, variantes malvadas, esse vírus não nos deixa em paz. Não voltarei aos meus tempos de viver na madrugada, é claro, isso já passou, mas quero poder beber chopes cremosos com os parceiros sem medo de ser contaminado pelo garçom. Maldito corona! Até quando vai nos aprisionar? Até quando atormentará o mundo? Como perguntou o Chico naquela bela canção:

"Será que é tão difícil amanhecer?"

DAVID COIMBRA

26 DE JUNHO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

INDEPENDÊNCIA REAFIRMADA

São tranquilizadoras as palavras do novo superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, Aldronei Antônio Pacheco Rodrigues, em entrevista concedida aos repórteres Adriana Irion e Humberto Trezzi, publicada na edição de sexta-feira de Zero Hora. Ao assegurar que "a PF não será amordaçada", o novo chefe local da corporação reafirma que eventuais pressões políticas não surtirão efeito em relação a investigações sensíveis que envolvam pessoas ligadas ao poder. Reforçar o compromisso com essa autonomia significa passar à sociedade o claro recado de que se trata de uma instituição de Estado, a serviço do país, e não de um governo, seja ele qual for.

Em pleno ano de 2021, poderia soar estranha a necessidade de rea- firmar essa condição. São notórias, entretanto, pressões atuais de quem gostaria de ter um maior controle sobre a corporação que, para o bem da sociedade, estão fadadas a fracassar. Uma prova inconteste da independência da PF foi a Operação Lava-Jato, que desnudou o maior esquema de corrupção da história do país e culminou com a prisão de políticos poderosos e grandes empresários que, antes, pareciam intocáveis. As apurações sobre a promiscuidade que teve a Petrobras como epicentro alcançaram políticos de um grande número de partidos, dos mais variados matizes ideológicos, inclusive pessoas ligadas ao governo de então.

Mas está correto Aldronei Rodrigues ao reforçar que, como instituição, a PF seguirá cumprindo o seu dever e, diante de qualquer tentativa de cercear-se o trabalho de investigadores e delegados, o resultado produzido será uma reação e mais empenho de seus agentes. A confirmação dessa independência, a despeito de eventuais tentativas de intervenção, está na constatação de que apurações incômodas a aliados do governo federal seguem em curso. Não poderia ser diferente para um órgão que tem grande admiração dos brasileiros e goza de extrema credibilidade, notadamente pelo combate à corrupção nos últimos anos, como mostra especialmente a Lava-Jato.

O amadurecimento do país passa pelo fortalecimento e atuação independente de suas instituições, algo que ainda é mais importante quando uma das principais missões a serem executadas é a luta contra malfeitos com dinheiro público, uma chaga no Brasil. Com o emprego da inteligência, da tecnologia e o senso de dever de seus membros, a PF, nas palavras de Aldronei Rodrigues, mostra que permanecerá firme em um de seus mais importantes objetivos, o de apurar e expor desvios, independentemente dos poderosos de turno.

 


26 DE JUNHO DE 2021
INFORME ESPECIAL

Um "cala a boca" para a hipocrisia

No começo da semana, escrevi sobre a fúria de Jair Bolsonaro diante de uma pergunta sobre o uso de máscaras. Em resumo, afirmei que o presidente não foi o primeiro e nem o último a querer que seus críticos calem a boca. Mas é, sem dúvida, o mais barulhento e violento.

Ao lembrar que políticos sonham com o silêncio dos que os fiscalizam, não pretendi, em nenhum momento, minimizar a atitude descabida do presidente. Apenas coloquei-a em um contexto mais amplo. O que Bolsonaro fez é injustificável.

Vamos, porém, aos fatos. Lembro, de um politico, aqui no mesmo no Rio Grande do Sul, que, não faz muito, pagava um assessor para, entre outras missões, patrulhar e tentar desmoralizar jornalistas pelas redes sociais. O jagunço virtual fazia o que o chefe mandava. Era implacável na suas campanhas difamatórias, recheadas ora de uma falsa ironia intelectualoide, ora de acusações distorcidas e falsas. Enquanto o chefe, que não tem qualquer afinidade ideológica com Bolsonaro, posava de democrata.

Um outro político, de um outro partido, adorava ligar para a direção e pedir a cabeça de jornalistas. Obviamente, nunca foi atendido. E assim sucessivamente. Da esquerda à direita, passando pelo centro.

Se o descontrole autoritário do presidente é chocante, a hipocrisia de muitos que o condenam também é. Quando era o seu político de estimação a bater (e, muitas vezes depois, esconder a mão), aplaudiam. Agora, se surpreendem e redigem textões no Facebook. É apenas isso que desejo afirmar, sem relativizar as críticas à brutalidade de Jair Bolsonaro.

TULIO MILMAN