quarta-feira, 31 de agosto de 2011



31 de agosto de 2011 | N° 16810
MARTHA MEDEIROS


Entre ser feliz e ser livre

Dizem que ainda vai chover muito no Sul e fazer frio até outubro. Meleca. O jeito é se conformar tendo um bom livro nas mãos, como o delicioso Casados com Paris, de Paula McLain, que narra, numa biografia romanceada, como foi o primeiro casamento de Ernest Hemingway. Ele tinha 21 anos e sonhava em ser um escritor famoso quando conheceu Hadley Richardson, de 28, que só desejava viver um grande amor. Eram os efervescentes anos 20, pós-Primeira Guerra.

Ambos viviam sonorizados pelo jazz, tendo como amigos Gertrude Stein e o casal Fitzgerald, e driblavam a lei seca com litros de uísque, vinho e absinto. O espírito é parecido com o do último filme de Woody Allen, mas o livro vai bem mais fundo no registro de época. Um prosa escrita em tom de pileque, com direito a uma ressaca braba no final.

Hemingway era, ele próprio, um personagem fascinante: trazia à tona as contradições mais secretas do ser humano. Sensível e rude ao mesmo tempo, demonstrava ser um homem com múltiplos talentos, menos o de se adaptar a uma felicidade de butique. Corria o mundo atrás de seus sonhos, e, não os encontrando, empacotava suas coisas e voltava ao ponto de origem, até que a próxima aventura o chamasse.

Amava os amigos, a bebida, o sexo oposto, a literatura e as touradas, não necessariamente nessa ordem: aliás, sem ordem alguma. Ele próprio era um animal belo, viril e destemido diante de uma arena perplexa. Havia sobrevivido a uma guerra que tentara lhe roubar a alma. Aprendera a se defender mesmo quando não era atacado.

Hadley acompanhava esse ritmo entre encantada e assustada. Não era fácil ser mulher de um homem que vivia aumentando as apostas: sentir mais, arriscar mais. Não fosse assim, seria a morte por indignidade, como ele definia a resignação. Logo, sua primeira esposa viveu no melhor dos mundos e no pior, quase simultaneamente.

O livro é narrado por ela, Hadley. É comovente ver sua luta interna para manter um casamento razoavelmente dentro dos padrões sem com isso podar o homem para o qual a felicidade não era um valor absoluto, mas a liberdade, sim. Hemingway nunca teve dúvida de que ser livre era bem mais necessário e menos complicado do que ser feliz.

Fácil para quem vivencia essa liberdade, difícil para quem tem que engoli-la. Hadley era tão encantadora e especial quanto Hemingway, ainda que sob outro ponto de vista. E é esse embate emocional que o livro narra de forma adorável e ao mesmo tempo angustiante: um homem que segue lutando para não entregar sua alma em nome das conveniências, e uma mulher que também não abre mão da sua, apesar das perdas que vier a sofrer.

Quem ganha é o leitor.

terça-feira, 30 de agosto de 2011



30 de agosto de 2011 | N° 16809
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


No tempo da Legalidade

Vivi, morando a duas quadras da resistência democrática, o episódio da Legalidade. Na tarde de 25 de agosto de 1961, minha tia Olha chamou-me para ouvir uma notícia espantosa: Jânio Quadros havia renunciado ao mandato de Presidente da República.

Eu ainda não votava, mas tinha esperança na figura daquele líder contraditório. Esperança em quê? Em que ele desse continuidade ao governo de Juscelino Kubitschek, o homem que havia construído 50 anos em cinco.

É certo que Jânio Quadros vinha se mostrando um primeiro magistrado bizarro. As notícias que eu ouvia de sua administração eram esquisitas ou extravagantes. Por decretos ou simples bilhetes, ele havia planejado a anexação da Guiana Francesa, proibido o maiô em concurso de miss, proscrito o lança-perfume, acabado com as brigas de galo, fulminado as corridas de cavalo em dias de semana. Não era o que se esperava de um estadista.

Nem mesmo de um estrategista. Jânio havia enviado o vice-presidente João Goulart em visita oficial à China, na esperança de que as ambições fardadas não permitiriam sua posse no Planalto. Os ministros militares vetaram Jango, mas não contavam com a oposição firme, corajosa e decidida de um gaúcho. Leonel Brizola empolgou o Rio Grande e logo o Brasil com sua conclamação à resistência ao golpe, pela Rede da Legalidade, instalada nos subterrâneos do Piratini.

Eu assisti a tudo isso muito de perto. A certa altura, meu avô, o patriarca da família, ante a ameaça de bombardeio do Palácio, decidiu que todos iríamos para a casa dos primos Rizzon, que nos acolheram magnificamente na Jerônimo de Ornellas. Dali partimos para Cachoeira – o desfile dos voluntários de Rio Pardo foi uma visão noturna inapagável.

Em minha terra, tudo foi festa, aí incluída a dos 15 anos de minha amiga Lia Pertille. As aulas estavam suspensas, havia reuniões dançantes todos os dias e seguíamos a cada hora o triunfo dos legalistas – Brizola à frente – até a derrota dos golpistas, os mesmos que menos de três anos depois deporiam Jango e inaugurariam a ditadura.

Mas isso então ainda estava distante. Eu era, à época, um garoto de 16 anos e aqueles dias ficaram para toda vida como um interlúdio inesquecível.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011



29 de agosto de 2011 | N° 16808
PAULO SANT’ANA


Três pênaltis, pra valer um!

O meu personagem do Gre-Nal, o meu herói do Gre-Nal, não estava em campo, mas ninguém esteve mais dentro do campo, em todos os lugares, do que ele.

O meu herói do Gre-Nal e do grande passo que o Grêmio deu ontem para fugir do rebaixamento foi indiscutivelmente Celso Roth.

Ele ontem quase virou ídolo da torcida tricolor. Por sinal, torcida que levou para o estádio ontem uma grande bandeira com meu nome e com minha fotografia. E dizer que para fazer a volta olímpica no estádio tenho que pedir autorização do incompetente de plantão, o que por sinal nunca me foi negado. Também pudera.

Obrigado, torcida tricolor, por esta homenagem quase póstuma que me prestou ontem.

Mas o meu assunto é outro, é sobre o herói do Gre-Nal, Celso Roth. Ele tirou do seu caldeirão de feiticeiro um avatar mágico, Escudero. Escudero foi a grande arma gremista para a legendária jornada de ontem. E ninguém esperava que Escudero fosse brotar e jorrar do caldo melífluo dos neurônios de Celso Roth, inundando o estádio e o Rio Grande inteiro do legítimo, incomparável e imortal orgulho tricolor.

Já cantei o meu herói. Mas aqui na redação de Zero Hora, na semana passada, um dos meus melhores amigos de jornalismo, Zini Pires, depois de o Grêmio ter perdido para o Atlético Goianense, o Zini me atirou na cara que eu apoiara a contratação de Celso Roth.

Doeu-me muito, mas esta dor ontem à tarde se transformou em orgasmo. Eu não sabia e não aceito, mas o Zini disse na minha cara que Celso Roth no Grêmio era obra minha. Vê-se agora que foi obra divina.

Roth deixou sempre dois gremistas a cuidar de Leandro Damião. Um marcava e o outro ficava ao lado, de soslaio. Com isso e com Escudero, Celso Roth tornou o Internacional irreconhecível em campo. Eu reconheci desde o primeiro minuto o Grêmio imortal em campo durante os 94 minutos.

Gremistas de todo o RS, ouçam-me. Onde é que vocês, gremistas, poderiam ler que foi preciso haver três pênaltis na área do Internacional para o árbitro cobrar só um? Onde, gremistas, vocês leriam esta esplêndida verdade? Só aqui nesta abençoada coluna que Deus me deu para eu ser justo.

Mais do que a vitória no Gre-Nal em si, ela encerrou um grande outro significado: o Grêmio distanciou-se relativamente da zona de rebaixamento, ainda mais que temos de enfrentar no próximo jogo o Corinthians, em São Paulo. Ainda não está afastado o perigo.

Pelo menos chega de perder Gre-Nal e títulos no Olímpico! Chega! Chega!

Marquinhos foi decisivo para os seis pontos que o Grêmio alcançou contra o Fluminense e no Gre-Nal.

E que coisa incrível é este fenômeno chamado Índio. Pois não é que ele, no auge da sua velhice, conseguiu ontem embarafustar-se por toda a área gremista e fazer aquele gol incrível que deixou a nós, torcedores gremistas de todo o planeta, mudos e inertes!

E é estranho que a torcida gremista praticamente não tivesse acreditado que poderia haver uma vitória tricolor: só houve 23 mil pagantes, quando eram esperados 40 mil.

Como eu tenho sofrido nos últimos meses! Mais ainda que com minha doença, tenho sofrido com o Grêmio. E a vitória de ontem foi um bálsamo para o meu sofrimento.

Como é delicioso iniciar uma semana debaixo de uma vitória no Gre-Nal, que coisa boa, que imensa felicidade nos invade e nos sossega. E nos faz acreditar que Deus reserva ainda doces refrigérios para a nossa existência sofrida.

Se o Grêmio conseguir um empate contra o Corinthians, então isso será tudo que pedimos ao destino.

Pode parecer também estranho que minha meta e a de todos os gremistas seja apenas fugir do rebaixamento, deixamos de ser aquele clube que sempre foi candidato a campeão.

Mas cada um com a sua meta, o que interessa é a meta.

E o Gre-Nal foi interessantíssimo para nossa meta.

sábado, 27 de agosto de 2011



28 de agosto de 2011 | N° 16807
MARTHA MEDEIROS


A palavra

Falar e escrever sem necessidade de tradução ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver todos os dias

Freud costumava dizer que poetas e escritores precederam os psicanalistas na descoberta do inconsciente. Tudo porque literatura e psicanálise possuem um profundo elo em comum: a palavra.

Já me perguntei algumas vezes como é que uma pessoa que tem dificuldade com a palavra consegue externar suas fantasias e carências durante uma terapia. Consultas são um refinado exercício de comunicação. Se relacionamentos amorosos fracassam por falhas na comunicação, creio que a relação terapêutica também naufragará diante da impossibilidade de se fazer entender.

Estou lendo um belo livro de uma autora que, além de poeta, é psicanalista, Sandra Niskier Flander. E o livro chama-se justamente a pa-lavra, assim, em minúsculas e salientando o verbo contido no substantivo. Lavrar: revolver e sulcar a terra, prepará-la para o cultivo.

Se eu tenho um Deus, e tenho alguns, a palavra é certamente um deles. Um Deus feminino, porém não menos dominador. Ela, a palavra, foi determinante na minha trajetória não só profissional, mas existencial. Só cheguei a algum lugar nessa vida por me expressar com clareza, algo que muitos consideram fácil, mas fácil é escrever com afetação.

A clareza exige simplicidade, foco, precisão e generosidade. A pessoa que nos ouve e que nos lê não é obrigada a ter uma bola de cristal para descobrir o que queremos dizer. Falar e escrever sem necessidade de tradução ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver todos os dias por aqueles que apreciam viver num mundo com menos obstáculos.

A palavra, que ferramenta.

É pena que haja tamanha displicência em relação ao seu uso. Poucos se dão conta de que ela é a chave que abre as portas mais emperradas, que ela facilita negociações, encurta caminhos, cria laços, aproxima as pessoas.

Tanta gente nasce e morre sem dialogar com a vida. Contam coisas, falam por falar, mas não conversam, não usam a palavra como elemento de troca. Encantam-se pelo som da própria voz e, nessa onda narcísica, qualquer palavra lhes serve.

Mas não. Não serve qualquer uma.

A palavra exata é uma pequeno diamante. Embeleza tudo: o convívio, o poema, o amor. Quando a palavra não tem serventia alguma, o silêncio mantém-se no posto daquele que melhor fala por nós.

Em terapia – voltemos ao assunto inicial –, temos que nos apresentar sem defesas, relatar impressões do passado, tornar públicas nossas aflições mais secretas, perder o pudor diante das nossas fraquezas, ser honestos de uma forma quase violenta, tudo em busca de uma “absolvição” que nos permita viver sem arrastar tantas correntes.

Como atingir o ponto nevrálgico das nossas dores sem o bisturi certeiro da palavra? É através dela que a gente se cura.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011



24 de agosto de 2011 | N° 16803
MARTHA MEDEIROS


A idade do posso tudo

Ela tem algo em torno de 70 anos, mas parece menos, como é comum hoje em dia. Dinâmica, é daquelas mulheres de personalidade que sabem conduzir uma boa conversa. No entanto, passei a reparar que suas opiniões, outrora expressadas de forma elegante, entraram no estágio “faca na bota”.

Ela mesma deu a pista sobre o que estava acontecendo, depois de ter feito um comentário certeiro, porém bastante duro a respeito de uma amiga: “Agora eu falo mesmo, tenho idade pra isso”.

Esse episódio me voltou à lembrança quando li recentemente a notícia de que o ator Gerard Depardieu não acatou o pedido de uma comissária de bordo para que ele aguardasse a decolagem antes de ir ao banheiro: ele simplesmente urinou no corredor da aeronave, diante de outros passageiros.

Se estava tão apertado, deveria ter entrado no banheiro mesmo assim, ninguém iria segurá-lo à força, mas partir para a provocação me pareceu arrogante, a mesma arrogância que tenho percebido em pessoas que, diante da maturidade mais que estabelecida, julgam-se acima do bem e do mal.

Conheço pessoas de 85 e até de 90 anos que, se não esbanjam saúde, seguem firmes e fortes sobre as próprias pernas e com a cabeça igualmente funcionando bem. Aquela caricatura dos avós de cabelo branco, com as costas arqueadas, arrastando os pés e extremamente rabugentos é apenas isso, uma caricatura. Vovós, hoje, estão tendo que apresentar a carteira de identidade no caixa do banco para provar que têm direito a fila especial.

Ainda assim, a idade manda recado. Os joelhos já não reagem como se espera, a memória fica difusa, as chances de ser olhado com algum desejo pelo sexo oposto caem drasticamente e o futuro, bem, o futuro não é mais representado por uma infinita highway, e sim por uma estradinha de tiro curto e com placas avisando: atenção, curva perigosa.

O maior benefício de ter vivido tanto é, de fato, a sabedoria acumulada. Só que alguns optam por jogá-la na cara dos outros com as palavras mais afiadas que encontram, como se a sabedoria fosse um instrumento de desforra.

O caso do ator francês é diferente, não há sabedoria nenhuma na sua transgressão, mas é outra amostragem do “dane-se” que acomete muita gente madura. Ao alcançar uma idade avançada, parece que a elegância deixa de ser essencial para o convívio. Depois de ter passado a vida obedecendo regras e sendo cordato, o sujeito sente-se autorizado a fazer a macaquice que quiser – como faria o adolescente que ele já foi.

De minha parte, não me vejo na iminência de rodar a baiana por direito adquirido com a idade, mas vá saber daqui a alguns anos. De boa moça a bruxa azeda, a transformação pode se dar do dia pra noite. Basta um convite para confrontar-se com a própria finitude.

Uma gostosa quarta-feira pra você.

terça-feira, 23 de agosto de 2011



23 de agosto de 2011 | N° 16802
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Jamais esquecerei

Como não amar o passado? – me pergunta uma leitora a propósito de uma de minhas crônicas. Por uma coincidência, estive esvaziando gavetas e encontrei o instantâneo em que outra amiga e eu passeamos de mãos dadas pela Praça da Matriz.

Ana Laura tinha cabelos loiros e traços perfeitos. Ana Laura e eu passeávamos de mãos dadas pela Praça da Matriz de sua cidade. Corriam então os Anos Dourados, o dia era de verão e glorioso.

Não sei do que foi feito de Ana Laura, se casou, se ainda mora em sua cidade, se tem filhos, se é odontóloga, advogada, médica ou simplesmente do lar. Mas recordo como se fosse hoje nós dois tão jovens passeando de mãos dadas num começo de namoro.

Não sei o que foi feito de Ana Laura, mas guardo a memória precisa de seu vestido leve, de seus tornozelos finos, de seu sorriso perfeito. Lembro que falávamos de um baile que ia haver aquela noite, de um cachorrinho que tinha desaparecido, do Brasil, que era então um país inaugural.

Um sorridente mineiro semeava estradas, hidrelétricas, desbravava fronteiras e instalava fábricas de automóveis onde então eles eram importados. Fuscas, Dauphines, DKWs, Aero-Willys, Simca-Chambords enchiam ruas e avenidas, uma rodovia rasgava a selva, Brasília erguia-se do nada em pleno Sertão.

Vivíamos então um tempo mágico, pois os ventos da esperança sopravam por aqui. Ana Laura era parte daquele cenário, em que soavam os acordes da bossa nova, nascia o cinema novo, o Brasil era campeão mundial de futebol na Suécia, Maria Esther Bueno vencia em Wimbledon, Éder Jofre arrasava nos ringues, ganhávamos ainda certames de basquete a pesca submarina.

Onde andará Ana Laura? Será diplomata, psicanalista, pianista? Não sei. São tudo coisas de problemática resposta. Só sei que os tempos são outros, bem diversos daqueles em que a adolescência era azul e o país uma festa móvel.

E o que foi feito de mim? Hoje sou todo um senhor que não caminha pela Praça da Matriz com uma garota loira. Não há mais Anos Dourados, somos um mar de corrupção.

Me resta a imagem da garota de 15 anos – os mesmos 15 anos que eu tinha – e que de repente e sem aviso, no passeio pela Praça da Matriz de sua cidade me disse aquelas palavras que jamais esquecerei.

sábado, 20 de agosto de 2011



21 de agosto de 2011 | N° 16799
MARTHA MEDEIROS


E um dia você envelheceu

Em que momento você se dá conta de que está mais perto do fim do que do começo? Se esta crônica fosse um teste de revista, poderia ajudá-lo a descobrir se está mesmo ficando velho. Basta que tenha dito as seguintes frases com alguma assiduidade nos últimos meses:

a) Não enxergo mais nada sem meus óculos.

b) Como é mesmo o nome daquele programa de tevê de que a gente gostava?

c) Eu jurei que tinha deixado a chave do carro aqui.

d) Vai ter lugar pra sentar?

e) Não tenho mais paciência para ler autores novos, agora só me dedico aos clássicos.

f) Nunca ouvi falar dessa banda. Dessa outra também não.

g) Com essa chuva, prefiro ficar em casa.

h) Com esse calor, prefiro ficar em casa.

i) Quem viu um, viu todos.

j) Dois cálices agora é o meu limite.

k) Tem escada rolante?

l) Com essa noite linda e estrelada, prefiro ficar em casa.

Você se reconhece em pelo menos metade dessas afirmações? Pegue sua bengala, coloque seu aparelho de surdez e ouça: bem-vindo ao clube. Eu disse BEM-VINDO AO CLUBE! Pois é. Ao Clube dos Matusaléns que não parecem ter mais do que 40 anos, mas é só aparência, por dentro a alma já está andando de graça nos ônibus e frequentando fila especial no banco.

Na verdade, os esquecimentos e a preguiça nunca abalaram a minha autoestima. Troco o nome das pessoas desde que me conheço por gente e nunca fui de noitada, ficar em casa já era meu programa preferido aos 17 anos.

Ainda assim, tenho a cara de pau de dizer que mantenho o espírito cada vez mais renovado. Só me sinto meio caquética quando, ao ler uma entrevista de um cineasta famoso, ou de um empresário famoso, ou de qualquer pessoa famosa, descubro o ano em que eles nasceram: 1978. 1981. 1989. O quê?? Só pode ser erro de revisão.

Em 1978 eu estava me preparando para o vestibular, em 1981 eu já ganhava salário, em 1989 eu tinha três livros publicados, enquanto que os notáveis de hoje estavam em um berçário fazendo gugu-dadá.

E agora eles são capas de revista, profissionais respeitados, com família constituída e investindo em plano de aposentadoria. São adultos realizados que nasceram quando eu já era adulta. Humm. Então eu sou o que hoje?

A idade pesa quando descubro que quem nasceu bem depois de mim já está se queixando dos cabelos brancos. Só não me sinto totalmente humilhada porque quem estiver nascendo neste 21 de agosto logo vai estar dando entrevista e os fazendo enfrentar o mesmo estupor. Como assim, nascido em 2011 e já presidente de empresa? Ninguém escapa desse susto.

Ruth de Aquino

Seremos algum dia japoneses?

O dinheiro e as barras de ouro estavam em cofres e carteiras de vítimas do tsunami no Japão. Em casas e empresas destruídas. Nas ruas, entre escombros e lixo. Ao todo, o equivalente a R$ 125 milhões. Dinheiro achado não tem dono. Certo? Para centenas ou milhares de japoneses que entregaram o que encontraram à polícia, a máxima de sua vida é outra: não fico com o que não é meu.

E em quem eles confiaram? Na polícia, que localizou as pessoas em abrigos ou na casa de parentes e já conseguiu devolver 96% do dinheiro.

A reportagem foi do correspondente da TV Globo na Ásia, Roberto Kovalick. A história encantou. “Você viu o que os japoneses fizeram?” Natural a surpresa.

Num país como o Brasil, onde a verba destinada às inundações na serra do Rio de Janeiro vai para o bolso de prefeitos, secretários e empresários, em vez de ajudar as vítimas que perderam tudo, esse exemplo de cidadania parece um conto de fadas. O que aconteceu em Teresópolis e Nova Friburgo não foi um mero e imoral desvio de dinheiro público. Foi covardia.

Político japonês não é santo. Mas digamos que, em alguns países, os valores da população são menos complacentes do que em nosso cordial patropi. E a impunidade não é regra. Em que instante a nossa malandragem deixa de ser folclórica e cultural e passa a ser crime de desonestidade? Por que a lei de tirar vantagem em tudo está incrustada na mente de tantos brasileiros? A tal ponto que os honestos passam a ser otários porque o mundo seria dos espertos?

A presidente Dilma Rousseff não parece fazer parte do time dos espertos. É o que tem atraído para ela um tsunami de simpatia popular. Você deve ter reparado. Ao discursar, Dilma não faz piada, não diz palavrão, nem comete analogias com o futebol. Ao contrário.

Ela é a antítese do palanqueiro populista. Tem dificuldade em falar a linguagem do povão até quando coloca o chapéu das Margaridas, as trabalhadoras rurais. Promete “implantar, implementar, disponibilizar”.

Eles devolveram às vítimas do tsunami R$ 125 milhões. Precisamos – nós e a polícia – aprender a agir assim

Seu desconforto com o palco é evidente. Dilma lê. Não é bom para ela, porque os olhos baixam. A leitura torna o discurso mais frio e hesitante, porque há vírgulas. Ela tropeça nos travessões. Seu pensamento não flui. É pedir demais que ela se torne um dia uma oradora que arrebate multidões.

Mas a ausência de carisma parece não importar ao brasileiro. O eleitor não aguenta mais a cambada que suga recursos de nossa Saúde, nossa Educação. Dilma parece um peixe fora do aquário de piranhas políticas. E por isso conquista.

“Quero reafirmar a importância concreta e simbólica do pacto que firmamos hoje. É o Brasil fazendo a faxina que tem que fazer, a faxina contra a miséria”, disse Dilma na sede do governo de São Paulo. Foi um discurso para calar quem tenta isolar a presidente. Ela quis mostrar que está acima das disputas palacianas e não está sozinha coisa nenhuma. O “pacto republicano” de Dilma é suprapartidário. As fotos do “flerte” com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso devem ter causado urticária ao PT. Onde está mesmo a “herança maldita”?

Leitores me pediram para encampar a campanha anticorrupção do gaúcho Pedro Simon. Esta coluna não precisa encampar nada. Simon disse: “A sociedade tem que liderar o movimento”. É patético o coro de “volta, Lula”, ensaiado pelos que comiam churrasco no Palácio da Alvorada e hoje se veem privados da picanha presidencial.

As redes sociais começam a se mobilizar. Cariocas marcaram para 20 de setembro um grande ato contra a corrupção, na Cinelândia, centro do Rio, onde 200 mil pediram em 1984 as Diretas Já. “Queremos evitar batuque, por isso não escolhemos a orla”, dizem os organizadores. Há a sensação de que o movimento precisa estar nas ruas para ganhar legitimidade.

Políticos incomodados tentam nos impingir o medo. Uma frente anticorrupção jogaria o país na anarquia ou na ditadura.

Isso é conversa para brasileiro dormir. Um dia, todos precisaremos aprender que não se coloca no bolso, na bolsa, nas meias e nas cuecas um dinheiro que não nos pertence. É roubo.


20 de agosto de 2011 | N° 16798
NILSON SOUZA


Escrito na Lua

Oprograma Espaço Aberto, da Globo News, apresentou dia desses uma interessante entrevista com o último homem a pisar na Lua, o astronauta norte-americano Eugene Cernan, que está com 77 anos. Ele foi questionado pelo apresentador e também por quatro crianças brasileiras, que haviam lido previamente sobre sua história.

Uma delas lembrou que na ocasião – comandando a Apolo 17, em 1972 –, ele deixara gravado em solo lunar o nome de sua filha. E perguntou-lhe:

– O que o senhor escreveria se voltasse lá agora?

O velho astronauta pensou um pouco e respondeu que deixaria exatamente uma mensagem para as crianças de hoje:

– Sonhe o impossível. Depois, vá lá e faça!

As pegadas de Eugene Cernan no solo arenoso do satélite terrestre, onde ele e seu companheiro Harrison Schmitt permaneceram por 22 horas, já devem ter-se apagado. Ele foi o 12º terráqueo a andar por lá. Depois, ninguém mais pisou na Lua, por puro desinteresse das autoridades e dos cientistas, provavelmente porque os exploradores não encontraram petróleo, nem ouro, nem qualquer outra substância valiosa para a insaciável ambição humana. Desistimos da Lua, mas não de buscar novidades longe de casa.

Enquanto as naves robotizadas percorrem o espaço à procura de outros mundos mais promissores, os Estados Unidos acabaram de recolher para a garagem o ônibus espacial, para desgosto do velho astronauta, ainda saudoso da sua proeza. Ele falou com gosto sobre o seu terceiro passeio espacial.

Explicou aos meninos do Brasil por que aproveitou a caminhada na Lua para saltar como um canguru, enquanto cantava uma canção popular de seu país. Disse que a brincadeira foi facilitada pela ausência de gravidade, que deixa uma pessoa com um sexto de seu peso. E justificou:

– Tudo o que você faz na vida tem que ser bem feito. Mas você tem que se divertir.

Essa talvez seja a principal lição da maior aventura do ser humano em todos os tempos: na última vez que um homem pisou na Lua, ele voltou a ser criança. E a Lua, mesmo pisoteada, ainda nos faz sonhar, como recomenda o velho astronauta.

Só não devemos esquecer do principal: um sonho até pode ser a metade de uma realidade, mas só se concretiza quando o homem age.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011



17 de agosto de 2011 | N° 16795
MARTHA MEDEIROS


A arte da manutenção

Bem que eu gostaria de dizer que esta crônica foi inspirada em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, livro de Robert M. Pirsig que, encantada, comecei a ler aos 24 anos e que nunca terminei. Estava adorando e, de repente, cadê o livro?

Emprestei, me roubaram ou esqueci no ônibus. Só sei que o perdi. Um dia retomarei essa leitura, não de onde parei, óbvio, e sim desde o início – minha memória não dá pra mais nada, só reciclando.

Então, como ia dizendo, não me inspirei nesse clássico da filosofia moderna, o que me conferiria certo charme, e sim em fuleiras notinhas de rodapé que se repetem sem que ninguém dê a mínima: cinco feridos em carrinho de montanha-russa, casal despenca da roda-gigante, adolescente atingida por um brinquedo que se desprendeu. Os parques de diversões não estão pra brincadeira.

A responsabilidade é de quem? De quem deveria zelar pela manutenção, mas ninguém está nem aí. Inaugura-se o parque, o tempo passa, tudo enferruja, o equipamento se corrói e salve-se quem puder.

Não resisto à tentação de comparar. Você me conhece. Vou comparar. É ou não é o retrato da maioria das relações?

No começo, tudo parque de diversão. Frio na barriga, vertigem, gritinhos. Depois, acostuma-se, o medo passa, a excitação também. Ninguém mais vê graça na coisa, mas, sabe como é, acostumamos, vira hábito, todo sábado à tarde, toda quarta à noite, os amigos estimulam, vamos lá, vamos lá, até que um se esborracha no chão.

Entre dolorida, surpresa e indignada, a vítima se pergunta: o que é que aconteceu? Os responsáveis pelo parque não zelaram pela segurança, apenas isso, e, como alertei, não estou falando apenas de parques, mas também de casamentos, paixões, amizades, o prazer maior da vida.

Era pra ser divertido pra sempre, empolgante pra sempre, inspirador pra sempre, mas a maioria acredita que a longevidade dos amores é atribuição do destino, ele é que tem que tomar conta.

Nenhum encantamento se mantém sem uma boa supervisão. Não basta dar corda e depois cruzar os braços. Não dá pra apertar o botão e depois sair para tomar um lanche. Não se pode confiar na sorte. A engrenagem não se autolubrifica sozinha, os movimentos não se renovam no automático e o tempo não faz mágica. Diversão, como tudo na vida, também exige cuidado.

Mas quem é que tem paciência para o zelo, de onde tirar disposição para renovar o suspiro mil vezes reprisado? Começa maravilhoso, depois fica legal, aí legalzinho, até o “larguei de mão, cansei”.

Manutenção. Talvez eu tenha extraído aqui, por resquícios indeléveis da memória, alguns substratos do emblemático livro de Robert M. Pirsig, mas o assunto ainda é parque de diversões (os reais e os metafóricos), e o perigo que os ronda quando decaem.

terça-feira, 16 de agosto de 2011



16 de agosto de 2011 | N° 16794
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A reinvenção do passado

A história de uma cidade pode ser contada pelos retratos de suas famílias. É o que faz Cachoeira, que, por iniciativa e inspiração de Ione Sanmartin Carlos, está reunindo, no Arquivo Histórico Municipal Carlos Salzano, a memória visual da trajetória de pais, filhos, netos e bisnetos daqueles que deram forma ao passado. Trata-se, segundo reportagem de Maurício Vieira da Cunha, publicada no Jornal do Povo, de uma recuperação de nossa terra e de nossa gente.

O passado nunca esteve tão presente, diz, em uma outra reportagem, Patrícia Rocha, publicada no caderno Donna, de Zero Hora. Ela está cheia de razão, pois afinal o passado é a soma de todos os presentes. No caso de Cachoeira, a matéria é ilustrada por uma foto que é toda uma iluminação. Trata-se de uma festa ocorrida no final dos anos 30, em que se celebra o aniversário de Lovely de Bem Garcia.

A aniversariante, de uma beleza incomparável, e que com aqueles traços, aqueles lindíssimos olhos verdes, poderia estar sem favor em Hollywood, aparece cercada de alguns de seus então jovens convidados, em trajes de gala, dentre eles meu grande amigo Carlos Mor.

Cachoeira era então uma cidade orgulhosamente próspera. Era a segunda praça financeira do Estado. Era a maior produtora de arroz do Brasil. Ostentava imensos engenhos, mais altos do que arranha-céus. Concluía o mais moderno hospital das três Américas. Seu porto era o terceiro mais movimentado do Rio Grande.

Com as circunstâncias históricas que vivemos hoje, é improvável reinaugurar esse cenário. Mas algo do passado pode ser reinventado e eternizado. Basta que os cachoeirenses revisitem suas caixas de guardados e mandem fotografias de família para o Arquivo Histórico Municipal Carlos Salzano.

Talvez nenhuma seja tão esplêndida quanto a de Lovely de Bem Garcia. Mas todas contribuirão para a redescoberta de tempos em que éramos felizes e sabíamos.


16 de agosto de 2011 | N° 16794
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Não pisar, não se deixar pisar (II)

Tendo filhos pequenos só agora, depois dos 50, me pego frequentemente a tentar formular princípios que valha passar adiante. Sei que a maior parte da educação acontece quando a gente não está atento, quando a gente age e reage e os filhos entendem, sem doutrina explícita, o que é que somos, como pensamos, o que desejamos e o que repudiamos; mas nem essa consciência me impede de ficar rodeando o problema.

Em uma de suas crônicas imortais, Nelson Rodrigues relata uma despedida entre Otto Lara Resende e seu filho. Otto ia passar uma temporada em Portugal, e chegada a hora escolheu dizer umas palavras a quem ficava. Matutou, matutou, e saiu com esta, atravessado de emoção: “Ama teu próximo como a ti mesmo”.

Isso segundo o relato do Nelson, amigo e admirador do Otto, mas também um astucioso (adjetivo que minha vó materna gostava de usar nesse contexto), pronto para armar uma trampa para o outro, como fez naquele título de peça sua, Otto Lara Resende, ou Bonitinha mas Ordinária. Já pensou alguém escrever hoje uma peça chamada, digamos, Luis Fernando Verissimo, ou A Depravada da Auxiliadora?

Esses dias, numa curta viagem com as parceiras Katia Suman e Claudia Tajes para levar o nosso Sarau Elétrico a uma feira do livro no Interior (Lajeado, especificamente), lá pelas tantas fez-se o silêncio no carro, o motorista preocupado com a chuva, as duas e eu mergulhados na noite, apenas aguardando a chegada.

E foi então que, evocando umas cenas ocorridas com meu filho, agora com quatro anos e meio, me veio uma síntese dessas, uma verdade que eu gostaria de transmitir a ele, uma frase fulminante e total: “Não pisar nos outros, mas não se deixar pisar pelos outros”.

Fiquei com a frase na cabeça, polindo um pouco. Acrescentei um trecho: “Não pisar nos outros, especialmente os mais fracos, e não se deixar pisar pelos outros, especialmente os mais fortes”. Depois lembrei que também há a tirania dos fracos, que se aproveitam da bondade alheia e a exploram; então acrescentei: “Nem pelos mais fortes, nem pelos mais fracos”.

Tudo banal, como dá pra ver. Como o “Amai-vos uns aos outros”, é uma verdade gentil e talvez inútil, coisa de gente de classe média como eu. Mas olha só, Benjamim: é por aí.

sábado, 13 de agosto de 2011



14 de agosto de 2011 | N° 16792
MARTHA MEDEIROS


Aquele que cativas

Me concedo o direito de não me sentir responsável por aquele que cativo. Me sinto grata, mas responsável é demais

Devia ter uns 14 anos. Estava na sala de aula, olhar compenetrado no quadro-negro, quando de mão em mão chegou até mim um bilhete de uma colega que costumava ser esnobada pela turma e com quem conversara algumas poucas vezes na hora do recreio. Ela me convidava para ir a sua casa à tarde. E concluía com uma sentença: És eternamente responsável por aquele que cativas.

Eu não tinha a menor intimidade com aquela colega e não estava a fim de ir a sua casa. Mas ela havia recorrido a Saint Exupéry. Me impressionou.

Fui à casa dela, conversamos, emprestei uns cadernos, mas nunca ficamos íntimas e nunca mais ouvi falar da garota. Hoje deve ser uma ótima advogada, já que desde menina conhecia as manhas para se convencer alguém.

O que ficou daquela tarde foi o argumento. “És responsável por aquele que cativas.” Acabei rezando por essa cartilha por um longo tempo. Bastava a pessoa simpatizar comigo e eu me sentia na obrigação de ser atenciosa a ponto de fazer coisas que não queria. Até que um dia dei um basta nesse trelelé.

Com todo o respeito ao autor de O Pequeno Príncipe, a terceira obra mais publicada e traduzida no mundo, presença constante nas listas dos mais vendidos mesmo 68 anos depois de ter sido lançado, me concedo o direito de não me sentir responsável por aquele que cativo. Me sinto grata e envaidecida, mas responsável é um tantinho demais.

A frase, que não deixa de ser um bonito verso, ganhou ares de reprimenda e punição. Cuidado: se alguém gostar muito de você, se passar a depender de você, danou-se, será obrigatório adotá-lo. O que era pra ser espontâneo virou um dever.

Reconheço as melhores intenções do livro, que é belo e merece continuar sendo lido por muitas gerações. Mas a frase, quando usada como ameaça, cria um mal-estar entre cativantes e cativados. Será mesmo que você é responsável por quem se encantou por você?

Sei que há pessoas de má-fé que seduzem os outros por diversão e depois desaparecem, deixando o seduzido chorando abraçado às suas ilusões. Maldade. Não se deve brincar com os sentimentos de ninguém, aprendemos isso antes mesmo de aprender a ler. Mas nos casos em que a sedução se deu de forma não proposital, ninguém deve sentir-se amarrado.

E mesmo quando houve sedução intencional e essa foi retribuída, virando um relacionamento, quem desama primeiro não precisa se sentir culpado se resolver ir embora. Que seja educado, gentil, amável com aquele que tanto o preza ainda, mas está liberado para tocar sua vida de outra forma e à distância. Quem fica deve aprender a fazer o mesmo. Não é fácil ser rejeitado, mas transferir a responsabilidade do seu bem-estar para outra pessoa tampouco é uma atitude cativante.

Nada pessoal, pequeno príncipe. Apenas um contra-argumento.

Gostoso domingo para você. Aos papais leitores deste blogger, sintam-se abraçados. Muita Saúde, para todos.


13 de agosto de 2011 | N° 16791
NILSON SOUZA


O sorriso de Paula

Meu colega de ofício Léo Gerchmann voltou de Buenos Aires com uma lembrança inesquecível de Puerto Madero, o bairro turístico da moda na capital argentina. É uma foto. Mas a imagem não é de nenhuma das magníficas obras arquitetônicas que transformaram o porto semiabandonado num dos locais mais charmosos da América do Sul.

A fotografia mostra o próprio Léo, com sua filha Paula, de quatro anos, sobre seus ombros. A menina é linda, e o pai é a própria expressão da felicidade. Léo mantém a foto sobre sua mesa de trabalho, olha-a a todo momento e faz questão de mostrá-la para quem passa por perto.

A corujice do meu amigo se justifica, pois nada pode ser tão gratificante quanto o amor incondicional entre pais e filhos, mas a imagem também retrata o novo modelo de paternidade documentado em reportagem da última edição da revista Veja. Os pais nunca estiveram tão próximos dos filhos como nestes tempos de novos arranjos familiares.

Outro dia, saí para caminhar no calçadão de Ipanema e encontrei tantos pais empurrando carrinhos de bebês, que resolvi até fazer um ensaio fotográfico com o celular, para provar à minha mulher que não estava inventando. Ao pedir permissão aos pais para fotografá-los, ouvi comentários como este de um jovem que ajeitava dois inquietos meninos gêmeos nos respectivos assentos:

– Não troco este momento por nada no mundo!

As mães andavam longe, provavelmente fazendo compras, trabalhando ou pagando as contas. Também já vai distante o tempo em que o homem era unicamente o provedor da casa e passava ao largo das funções domésticas. E o mais interessante é que os pais não perderam aquela autoridade de quem tinha a última palavra na hora de impor disciplina.

Pelo contrário, ao assumir a condição de cuidadores parecem estar ganhando ainda mais a admiração e o apreço das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Tanto que a garotada já não mostra ansiedade para sair de casa cedo.

Alguns especialistas dizem que o novo papel aumenta a pressão sobre os homens, que precisam ser profissionais competentes, exímios trocadores de fraldas e ainda manter a aura de autoridade disciplinadora.

Pode ser, mas eles parecem bem felizes com isso. Pelo menos é o que dá a entender o colega Léo, hipnotizado de orgulho pelo sorriso emblemático de Paula.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011



10 de agosto de 2011 | N° 16788
MARTHA MEDEIROS


Amo Domingos

Se você fizer uma enquete sobre o dia mais odiado da semana, vai ouvir a mesma resposta dos entrevistados: segunda-feira. Tsc, tsc, que falta de espírito de aventura. Nada como uma segunda-feira novinha em folha pra você dar continuidade a tudo o que ficou pendente na semana passada. Se você acha que só uma neurótica comemoraria a volta ao trabalho e ao trânsito, está esquecendo o que a segunda-feira tem de melhor: acabou o domingo.

Domingo só é bom quando você está fora da cidade e, melhor ainda, do país. Estando em casa, o cenário é de guerra: as camas permanecerão como amanheceram, o jornal passará o dia inteiro esquartejado no chão e a cozinha será interditada pela Vigilância Sanitária. E, ao ligar a TV num canal aberto, aí mesmo é que a pulsão para o suicídio será latente. Domingo é um tédio. Mas é possível salvá-lo.

Domingo passado, me ofertei uma overdose de Domingos Oliveira. Assisti no DVD aos filmes Separações e Feminices, li alguns textos seus para teatro reunidos em livro, assisti a reprises de programas que ele gravou para o Canal Brasil e ainda sobrou tempo para curtir seu blog. Recomendo Domingos Oliveira contra o marasmo dos dias, de qualquer dia.

Como muitos sabem da minha fissura por Woody Allen, podem estar fazendo a conexão, já que dizem que um é a versão do outro, mas acho que cada um é brilhante a seu modo. Se há uma conexão, é a da inteligência, da irreverência e do prazer. Eles falam da dor existencial como se ela fosse uma bênção, como se devesse ser consumida com uma pequena dose de sarcasmo e um bom vinho.

Sempre é outono no universo desses cineastas, mesmo que esteja nevando lá fora ou que um mormaço africano esteja derretendo catedrais. Em suas obras, a vida é celebrada a cada palavra, a cada vírgula, e sem ponto final. Não há pedantismo, não há manipulação dos sentimentos, tudo é poesia, mistério e graça. Há quanto tempo você não depara com poesia, mistério e graça?

Adoro também o jeito que eles dirigem seus filmes. Fica-se com a sensação de que tudo é um grande e ininterrupto ensaio, que o roteiro não precisa ser seguido com rigidez, que o improviso é que dá o tom do espetáculo: tal qual a vida fora do palco e das telas.

E há, por fim, o amor. A paixão. As desilusões. A ópera burlesca dos desejos. A busca incessante por estar com o outro, ser amado pelo outro, ganhar algum significado através do outro. É um balé de encontros e desencontros tragicômico que permanece continuamente em cartaz.

Hoje Domingos Oliveira será homenageado pelo Festival de Cinema de Gramado. Não podendo estar lá, faço minha pequena homenagem aqui neste espaço mesmo.

Eu, que não gosto de domingos, hoje venho publicamente dizer que adoro Domingos.

terça-feira, 9 de agosto de 2011



09 de agosto de 2011 | N° 16787
CLÁUDIO MORENO


Uma fábula moderna

Nenhum pensador grego deixou de se ocupar com uma questão muito simples, mas essencial até hoje: o que nós temos que o animal não tem? Entre as várias respostas – a capacidade de rir, de fazer geometria, de usar as mãos, de andar ereto e de sentir vergonha, além da disposição para fazer sexo a qualquer momento ou estação (inclusive, se bem me entendem, com seres de outras espécies) –, uma foi unânime: só nós temos linguagem.

O animal não fala, não faz promessas, não mente, não tem crenças nem faz ironia, não tem ideia do futuro e não conhece o “se” das hipóteses, conceito que nos torna donos imaginários de todas as possibilidades do universo.

É verdade que nas fábulas ele fala, às vezes até demais, mas usando nossa voz e nossa gramática; o lobo e o cordeiro, o corvo e a raposa são seres humanos que Esopo e La Fontaine disfarçaram para melhor criticar nossos costumes. A própria mitologia grega, tão rica em prodígios, tem raríssimos bichos falantes.

O mais famoso foi Xanto, um dos cavalos de Aquiles, que resolveu tomar a palavra para avisar que em breve seu dono ia morrer – manifestação tão incomum que os deuses imediatamente o emudeceram, para que não esquecesse que aos animais não foi dado o dom de falar.

Conosco é diferente; podemos conversar com eles. Certos animais – o cavalo, o gato e, acima de tudo, o cachorro – terminaram se tornando nossos parceiros e confidentes. Contrastando com a efêmera e frágil natureza das relações humanas, eles oferecem – especialmente o cão – o tesouro de uma devoção completa, de um vínculo que só se romperá quando morrer um de nós, e por isso os elegemos como o ouvido ideal para as mais íntimas reflexões.

Não é um diálogo entre as espécies: ao falar com meu cachorro, é comigo mesmo que eu falo. Há quem afirme que ele pode me entender, mas, mesmo que o faça, sei que guardará para sempre um discretíssimo silêncio.

Pois no livro Amazing Dogs, lançado este ano, o prof. Jan Bondenson descreve a delirante experiência da Tier-Sprechschule, criada na Alemanha entre-guerras, que “ensinava” os cachorros a falar.

Dizem que um desses “alunos” articulava claramente “Mein Fuhrer”, enquanto outro, que usava as patas para indicar o alfabeto, confessava seu desprezo pelos franceses. Hitler e muitos de seus cientistas apoiaram a pesquisa com entusiasmo, pois o ideário nazista considerava fundamental a integração do homem com a natureza, especialmente com os animais.

“E onde fica a moral da fábula?” – pergunta Gaudí, meu pequeno shih-tzu – “Por acaso a adesão daqueles homens maus tornou menos nobre a nossa causa?”. É claro que não, inquieta criatura. O problema é bem outro: enquanto os nazis abarrotavam os trens da morte com o povo judeu, não houve dia em que a imprensa alemã não manifestasse.


09 de agosto de 2011 | N° 16787
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma vida plena

Hoje eu quero paz. Quando era mais jovem, tinha como ideal uma vida intensa e agitada, em que não faltassem projetos, livros, amores, desejos, sonhos e movimentação.

Hoje eu almejo serenidade. Há épocas para desfrutar cada momento, querer a muitas mulheres, sofrer dessa dor boa que é apaixonar-se. Há tempos para mergulhar em paixão, numa voragem irresistível e magnífica. Há instantes para existir ardentemente, viajar sem horizontes, voltar a lugares onde se foi feliz.

Mas há também ocasiões para traçar um balanço de todas as belas experiências vividas, não para recriá-las, mas para fazê-las se reinaugurar na memória. Tive uma bela experiência de vida. Mas agora quero fruí-la como quem percorre as páginas de um diário e a reinventa com prazer.

Berlim, 1982. Na segunda de minhas estadas naquela cidade, então dividida contra si mesma, eu despertava nas manhãs de domingo com um sentimento inaugural do mundo. A alma leve, o coração tranquilo, eu refletia que tinha estudado bem toda a semana e agora havia um dia inteiro para ser feliz.

Nova York, 1984. O happy hour do café do Hotel Rochester me enchia de doces expectativas, mas nenhuma tão sedutora como a da loira de olhos azuis que pediu licença para sentar à minha mesa, no que foi o prelúdio de momentos inesquecíveis.

Paris, 1980. Eu tomando um vinho no Café des Beaux Arts e o Rio Sena fluindo mansamente diante de mim. E em minha companhia aquela suave sensação de que eu era feliz pelo simples ato de existir.

Ilha de Rodes, 2002. Eu e uma amiga descendo a ladeira que levava ao Colosso e escalando num bar para um café. Éramos como duas crianças, relembrando coisas da viagem de transatlântico e recordando nossas próprias infâncias. E à nossa frente as águas esmeralda do mar.

E tudo isso é somente um prólogo. Há um tempo de viver e um tempo de reviver. Eu revivo minhas lembranças com uma única e grande certeza.

Tenho uma vida plena

sábado, 6 de agosto de 2011



07 de agosto de 2011 | N° 16785
MARTHA MEDEIROS


Uma mulher entre parênteses


Tinha algo a dizer, mas jamais aos gritos, jamais com ênfase, jamais invocando uma reação

Era como ela catalogava as pessoas: através dos sinais de pontuação. Irritava-se com as amigas que terminavam as frases com reticências... Eram mulheres que nunca definiam suas opiniões, que davam a entender que poderiam mudar de ideia dali a dois segundos e que abusavam da melancolia.

Por outro lado, tampouco se sentia à vontade com as mulheres em estado constante de exclamação. Extra, extra! Tudo nelas causava impacto! Consideravam-se mais importantes do que as outras! Ela, não. Ela era mais discreta. A mais discreta de todas.

Também não era do tipo mulher dois pontos: aquela que está sempre prestes a dizer uma verdade inquestionável, que merece destaque. Também não era daquelas perguntadeiras xaropes que não acreditam no que ouvem, não acreditam no que veem e estão sempre querendo conferir se os outros possuem as mesmas dúvidas: será, será, será? Ela possuía suas interrogações, claro, mas não as expunha.

Era uma mulher entre parênteses.

Fazia parte do universo, mas vivia isolada em seus próprios pensamentos e emoções.

Era como se ela fosse um sussurro, um segredo. Como uma amante que não pode ser exibida à luz do dia. Às vezes, sentia um certo incômodo com a situação, parecia que estava sendo discriminada, que não deveria interagir com o restante das pessoas por possuir algum vírus contagioso.

Outras vezes, avaliava sua situação com olhos mais românticos e concluía que tudo não passava de proteção. Ela era tão especial que seria uma temeridade misturar-se com mulheres óbvias e transparentes em excesso. A mulher entre parênteses tinha algo a dizer, mas jamais aos gritos, jamais com ênfase, jamais invocando uma reação. Ela havia sido adestrada para falar para dentro, apenas consigo mesma.

Tudo muito elegante.

Aos poucos, no entanto, ela passou a perceber que viver entre parênteses começava a sufocá-la. Ela mantinha suas verdades (e suas fantasias) numa redoma, e isso a livrava de uma existência vulgar, mas que graça tinha?

Resolveu um dia comentar sobre o assunto com o marido, que achou muito estranho ela reivindicar mais liberdade de expressão. Ora, manter-se entre parênteses era um charmoso confinamento. “Minha linda, você é uma mulher que guarda a sua alma.”

Um dia ela acordou e descobriu que não queria mais guardar a sua alma. Não queria mais ser um esclarecimento oculto. Ela queria fazer parte da confusão.

“Mas, minha linda...” E não quis mais, também, aquele homem entre aspas.

Ruth de Aquino

Uma epidemia que mata 100 por dia

A causa não é fome, guerra, vírus ou bactéria. Uma vida se perde a cada 15 minutos em acidentes de trânsito no Brasil. Olhe seu relógio e pense: “100 brasileiros morrem a cada 24 horas em ferragens, no asfalto e na calçada”. Por ano, são 36 mil – no cálculo mais conservador. Esses são os mortos.

Sem contar os amputados e paraplégicos. Motoristas, passageiros, pedestres, ciclistas, motociclistas. Eu sei, você sabe. E quem dirige carros potentes, alcoolizado e a 150 quilômetros por hora também sabe.

Desastres recentes, no Estado de São Paulo, envolveram gente de muita grana e na idade mais perigosa segundo as estatísticas da violência sobre rodas: entre 20 e 30 anos.

A nutricionista Gabriella Guerrero Pereira, de 28 anos, perdeu o controle do Land Rover blindado e atropelou na calçada o administrador Vítor Gurman, de 24, na Rua Natingui, na Vila Madalena, bairro com bares e restaurantes lotados à noite.

Gabriella deu entrevista, chorou, disse que assumiu a direção do carro “robusto mas instável” porque o namorado estava bêbado. “A rua é muito estreita para a proporção do carro. O acidente aconteceu”, disse ela. Gabriella não fez exame de bafômetro “porque o PM não pediu”. O PM desmentiu. Disse que ela se recusou. Vítor morreu dias depois do atropelamento.

O engenheiro Marcelo Malvio Alvez de Lima, de 36 anos, dirigia um Porsche na Rua Tabapuã, no bairro Itaim Bibi. Num cruzamento, chocou-se com o Tucson da advogada Carolina Menezes Cintra Santos, de 28 anos. Carolina tinha cometido um erro: ela passava o sinal vermelho lentamente, quando foi atingida pelo Porsche de Marcelo. O engenheiro foi acusado de estar a 150 quilômetros por hora, numa rua que permite velocidade máxima de 60 quilômetros por hora.

Ele nega. “Não sou bandido”, disse, em entrevista. Tinha bebido, segundo ele, “não mais do que duas taças de vinho”. Não gostou de ficar conhecido como o “dono do Porsche”. Sobre o desastre, afirmou: “Aconteceu um acidente, ela faleceu, com certeza isso estava nos planos de Deus”. Marcelo pagou R$ 300 mil de fiança. Carolina morreu no instante da colisão.

O administrador João Luís Raiza Filho, de 30 anos, perdeu o controle de seu Chevrolet Camaro, subiu no canteiro de uma praça em São Bernardo do Campo, bateu em árvores e derrubou um muro. Como estava nu da cintura para baixo, um PM precisou emprestar a ele uma cueca para sair do carro.

No banco ao lado do motorista, havia uma garrafa vazia de uísque. Raiza Filho já foi personagem de “Nossa Antena”. Em outubro de 2007, o playboy, então com 27 anos, destruiu sua Ferrari na véspera do GP de Fórmula 1 em São Paulo. Bateu sob um viaduto. Deu cabeçada na boca de um cinegrafista.

Teve de pagar R$ 3 mil pela agressão. Há quatro anos, esta coluna dizia o seguinte: “Numa sociedade em que nossos atos têm consequência, esse rapaz seria condenado a prestar serviços à comunidade. Se seu castigo for apenas trocar uma Ferrari por um Mercedes, nada mudará em sua vida”. E não mudou mesmo. Errei na marca do novo carro.
Olhe seu relógio e pense: uma vida se perde a cada 15 minutos em acidentes de trânsito no Brasil

Raiza Filho não matou ninguém ainda. Mas é evidente que ele e milhões de motoristas são um perigo real para si e para a sociedade. Pilotam estimulados por álcool, deprimidos por drogas ou excitados pela sensação de onipotência.

Ainda há os que simplesmente não sabem dirigir e não poderiam ter carteira de habilitação. Temos ao volante um exército de homicidas e suicidas em potencial. O trânsito brasileiro mata 2,5 vezes mais que nos Estados Unidos e 3,7 vezes mais que na Europa, segundo um estudo divulgado em dezembro de 2009.

“Não é possível que haja no Brasil muitos problemas mais graves do que 100 mortos em acidentes a cada dia.” A declaração é do diretor-geral de trânsito na Espanha, Pere Navarro Olivella, de 59 anos. A Espanha reduziu em 57% as mortes nas estradas. Não basta educar, é preciso vigiar e punir.

As campanhas devem ser duras, segundo ele: “Ridicularizar infratores reincidentes, mostrar deficientes e crianças acidentadas na TV”. Acidente de trânsito “não é maldição divina e deve ser combatido como doença grave”, disse Olivella. Chega de culpar o destino e Deus.


06 de agosto de 2011 | N° 16784
NILSON SOUZA


Inércia demográfica

Escrevi em 1998 uma crônica intitulada “O seisbilionésimozinho”, que tratava do nascimento do bebê que elevaria a população da Terra para 6 bilhões de habitantes. No ano seguinte, quando a marca foi atingida, a ONU previu que o mundo levaria 14 anos para chegar aos 7 bi. Levou apenas 12.

Será em outubro próximo, de acordo com os previsores. Eles arriscam, inclusive, a vaticinar o nascimento em algum lugar da Índia, que em breve será o país mais populoso do planeta, deixando a China para trás. Os chineses, como sabemos, têm uma política draconiana de controle da natalidade, um filho por casal, e estamos conversados.

Ainda assim, a população da China, que é hoje de 1,6 bilhão de pessoas, só começará a diminuir a partir de 2030 por causa da tal inércia demográfica – um conceito científico que explica por que as populações continuam crescendo mesmo quando a taxa de fecundidade está abaixo do índice de reposição.

Por exemplo: o Brasil já alcançou esta taxa reducionista em 2006, mas a população continua crescendo porque a quantidade de mulheres em período reprodutivo é muito maior do que o de pessoas em idade avançada, que não terão mais filhos. Resumo da ópera: a população brasileira só começará a regredir por volta de 2040 e a mundial fará a curva em 2050, quando o planeta tiver 9 bilhões de habitantes.

São apenas previsões, sempre é bom lembrar. Os tsunamis estão aí para provar que não só o homem é imprevisível na sua capacidade destruidora, mas a natureza também. Possivelmente, os dinossauros também se julgavam imortais. Tem ainda o desafio de arranjar alimento para toda essa gente e de impedir que entupam o Amazonas com pneus velhos. Mas não é esse o objetivo deste comentário.

O que me move é o espanto de ver que a população humana, mesmo com as guerras e os acidentes de trânsito, aumentou em 1 bilhão de pessoas entre uma crônica e outra que escrevi. Custo a acreditar que presenciei tamanho fenômeno. Ainda mais sabendo que o mundo precisou de 125 anos para passar de 1 bilhão para 2 bilhões de almas encarnadas.

Pois bem, naquela ocasião, ao saudar a chegada do bebê 6.000.000.000, lamentei: “Seis bi de cérebros ditos inteligentes e ainda não fomos capazes de descobrir a fórmula da paz. Seis bi de corações ditos humanos e ainda não aprendemos o significado da solidariedade. Seis bi de vidas dependentes da natureza e ainda não aprendemos a respeitá-la”. Em breve seremos sete bi – e nenhuma dessas metas parece visível no horizonte.

Será a tal inércia demográfica?

quarta-feira, 3 de agosto de 2011



03 de agosto de 2011 | N° 16781
MARTHA MEDEIROS


Vingança

Muitas frases espirituosas já foram escritas a respeito de vingança. Gosto de uma que diz: “Contra quem lhe tomou sua esposa, não existe vingança melhor do que o infeliz ficar com ela pra sempre”. Vale para ambos os sexos, acrescento.

A vingança é uma atitude de mau humor, e o mau humor pode ser risível. Eu, ao menos, acho engraçado que alguém perca tempo se dedicando a se vingar do que quer que seja, deixando claro o quanto se sentiu ofendido. Há vingança melhor do que não dar a mínima?

Mas, para a maioria das pessoas, é difícil ficar indiferente diante de uma situação que, a priori, causou prejuízo. Até o Velho Testamento cita o “olho por olho” como forma de sanar o dano causado. Toma lá, dá cá. Aqui se faz, aqui se paga. Ok, mas me parece um desperdício de energia.

Não chego ao cúmulo de oferecer a outra face, que isso é coisa pra santo. Perdoo, mas me blindo. Se aprontou uma vez, aprontará outra. Fico na minha, me fortaleço e trato de viver cada dia melhor – nada irrita mais nossos inimigos.

Pesquisas indicam que as mulheres são mais vingativas do que os homens, o que nos faz descer alguns degraus, sustentando a teoria do sexo frágil. Transar com outro, sem estar a fim, só porque fomos traídas? Roubar o namorado da amiga porque ela ficou com nosso emprego? Espalhar boatos pela internet porque alguém foi desleal? É a confirmação da nossa pequeneza, que passa a se igualar à pequeneza de quem falhou conosco.

A iraniana Ameneh Bahrami, que no último domingo perdoou o homem que lhe jogou ácido no rosto, cegando-a, declarou que a clemência lhe fez bem. Ela o salvou minutos antes de ele próprio ter os olhos corroídos por ácido num hospital de Teerã. O médico já estava com o material na mão para consumar a vingança (autorizada pelas leis islâmicas). O agressor estava de joelhos, aos prantos, aguardando o pior, quando chegou o telefonema com o perdão da vítima.

Por que Ameneh desistiu de pagar na mesma moeda? Sei lá, talvez porque não foi um filho dela que o maluco cegou (mexam com nossas crias e bye bye superioridade), mas o mais provável é que o mal nunca tenha feito parte da sua natureza. Ela não quis ser como ele.

Dizem que se vingar dá uma sensação agradável, que a vingança é doce, traz consolo, segurança, que há até um componente erótico em sua consumação. Estão aí os defensores da pena de morte para confirmar o júbilo que a vingança provoca.

Eu sigo achando que lutar por justiça é um dever, mas se vingar é tosco. Só é aceitável quando o destino é que se vinga por nós, sem que a gente suje as mãos. Há que se confiar na providência divina.

Já a vingança arquitetada é a infantilidade usando salto alto e batom, fingindo-se de gente grande.

terça-feira, 2 de agosto de 2011


JAIRO MARQUES

Gosto muito de você, leãozinho

O que me incomoda mais na história de Ariel é a forma como ganhou uma aura quase santificada

FIQUEI BEGE ao ver toda a comoção do povo com a morte do leão paraplégico Ariel, que fez a passagem na semana passada. O bicho era criado dentro de um apartamento praticamente tratado a pão de ló, mas não resistiu ao avanço de sua enfermidade -uma doença degenerativa-, que o afastou da selva ou da jaula, não sei dizer ao certo.

Não tenho nada contra bichanos, adoro cachorro, mas admito que não deslizou de mim nenhuma lágrima pelo pobre. No "Animal Planet", já vi leões sendo mortos de uma forma muito mais trágica e desalentadora.

Tenho certo receio de estarmos levando a sério demais aquela frase que se fala nas horas de injustiças, de malfeitos, de raiva, de inveja, de pressão, de desespero, de saco cheio: "É por isso que gosto mais de bicho do que de gente".

O que me incomoda mais na história de Ariel não é a luta para tentar salvá-lo, evidentemente, mas a forma como o animal ganhou uma aura quase santificada por estar ali, em sofrimento, perdendo, aos poucos, os movimentos, as capacidades vitais. Isso o fez merecedor de atenção midiática invejável.

Já conheci muito "serumano", também acometido por perrengues degenerativos que não teve a atenção nem do vizinho para dar uma ajudinha para limpar a baba que teimava em escorrer da boca aberta. O leão conseguiu acesso a tratamento revolucionário, bife de primeira a cada, sei lá, meia hora para encher a barriguinha, correntes de orações e, depois de morto, vaquinha para cremação do corpo.

Enquanto o bichano foi acolhido com amor e dedicação pela dona e pelo Brasil, milhares de crianças com deficiência se amontoam em abrigos à espera de adoção -e muito mais espera, na maioria dos casos, do que as de crianças "normais"-para que ganhem um lar ou uma selva, uma cabana.

As crianças mal-acabadinhas aguardam alguém que as ame, as mande para a funilaria dar uma arrumadinha nas partes avariadas, que dê a elas aprendizado, dignidade e força para rugir contra preconceitos, para rugir por acessos, por aceitação na sociedade.

Bichos em sofrimento mexem mesmo com nossas emoções e nossa sensibilidade humana, afinal, ele não pode falar, não pode expressar nem indicar o que tanto o azucrina a vida. Ver o Ariel com olhar quase se apagando no colo de sua tratadora despertava na gente uma vontade de ajudar. Mas, que me perdoem os maribondões pretos da defesa dos animais, o seu Casseta já dizia que "mãe é mãe, paca é paca".

Todos os dias, acontecem acidentes que deixam primos, tios, amigos e conhecidos capengas das partes motoras. É gente que fica na cama, às vezes, por meses até que se colem os ossos e que o rejunte dê conta de harmonizar o ânimo de retomar o cotidiano com a necessidade de encarar as savanas atrás de presa.

Na cabeça nossa do dia a dia, esses leões são sempre muito mais fortes e capazes de chacoalhar o pelo e afiar as garras. E, assim, deixa-se a visita de lado, o telefonema para o final de semana, a lembrancinha para o Natal. E, quando os leões ficam velhos e dados como incapazes, achamos que eles querem o sossego da alcateia apenas. Tem algo errado no mundo animal.

jairo.marques@grupofolha.com.br


02 de agosto de 2011 | N° 16780
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Historinha de paixão

Foram ambos acometidos por uma daquelas paixões proibidas, que só floresciam aos 16 anos, na época dos últimos boleros e dos primeiros sons da Bossa Nova. O pai dela era do antigo PTB e o dele do velho PSD e haviam se estranhado num comício.

Ora, em Alhandra a inimizade se estendia automaticamente às famílias. A garota, Mariana, ficava proibida de sequer cumprimentar Gustavo, o rapaz. Quanto a dançar de rosto colado nas reuniões do Aliança Piscina Tênis Clube, nem sonhar.

Por sorte, naquele tempo prosperava uma espécie de correio sentimental, com a prestimosa intermediação dos amigos. Gustavo escrevia: “Estação, às 8” e nesse exato horário Mariana surgia na estação deserta e cúmplice, depois de mentir em casa que ia ver Candelabro Italiano no Cine Ideal. Mariana escrevia: “Freiras, às 9” e Gustavo a esperava na penumbra acolhedora do jardim do colégio, depois de mentir em casa que tinha um jogo de basquete.

Ora, como há xeretas em todos os pontos do universo, terminaram denunciados. Mariana foi trancafiada num internato em Santa Maria e Gustavo despachado a Jataí, Goiás, para aprender Ciências Agrárias. Trocaram cartas sentidas e recheadas de juras por uns seis meses até que outra denúncia silenciasse a clandestina e apaixonada correspondência.

Mariana casou aos 23 com um zootécnico de Rio Verde. Gustavo casou aos 25 com uma fazendeira de Porto Nacional. Em 1973 teve um congresso de agricultura em São Paulo. Um avistou o outro, mas se limitaram a trocar olhares durante os painéis. Em 1985 compareceram a um simpósio sobre oleaginosas em Belo Horizonte. No coquetel de encerramento, Gustavo fez um discretíssimo sinal a Mariana, indicando um terraço mergulhado na escuridão, mas lá os aguardava um festival-surpresa de fogos de artifício.

Em 2004, divorciado, Gustavo enfim redescobriu Mariana, viúva, numa exposição de gado em Palmas, Tocantins. Convidou-a pronta e romanticamente para um jantar à luz de velas. Mariana percebeu que Gustavo engordara. Gustavo notou que Mariana ostentava mais pés de galinha de que todo o seu aviário. Conversaram longamente sobre campo & lavoura, netos e o governo Lula. Prometeram trocar e-mails.

De volta para casa, Gustavo dedicou-se no avião a uma revista de palavras cruzadas. “Paixão”, desafiava a coluna vertical. Ele pediu à aeromoça um uísque. De volta para casa, Mariana leu na revista de bordo um anúncio de cosméticos e decidiu pintar seu cabelo de fúcsia.