sábado, 28 de outubro de 2017


28 DE OUTUBRO DE 2017
LYA LUFT

Bullying



Eu não ia escrever sobre, porque não se fala em outra coisa. Mas, talvez por isso mesmo, e porque alguns leitores pediram, estou comentando o caso. Vários ângulos, todos difíceis, todos espinhosos, perigosos, sempre tristes. Num excepcional período de violência física ou emocional, a qualquer estranhamento saímos de dedo em riste ou brandindo uma espada (pode ser verbal) feito serial killers. Estressados por condições da própria vida, da cidade, Estado, país e ultimamente também do vasto mundo, zombarias ou brigas que em outros tempos podiam se resolver no pátio da escola, ou com alguma conversa mais sensata, hoje às vezes se tornam dramas. 

Não só os assédios ficaram mais violentos como, espalhados em redes sociais, difundem a humilhação, o desamparo e a dor em grupos maiores e - todo mundo irritado, inconscientemente assustado - a situação se torna grave. Mesmo assim, habitualmente não nos matamos nem matamos os outros por isso.

Como ajudar, abrandar, reduzir o problema que se agrava? Tudo começa em casa, o que parece clichê: falo na autoestima da meninada. Na sua segurança e na capacidade de enfrentar desafios. Isso vem, em parte, com a própria personalidade, mas depende também do ambiente familiar. De poder-se abrir com pai ou mãe numa dificuldade maior. Se faltam estímulo, aprovação, parceria e até alegria na família, o adolescente ou a criança é mais vulnerável. 

Paternidade, maternidade, já são bastante difíceis, apesar de toda a felicidade e ternura que nos dão. Ninguém pode evitar que um filho tropece na calçada e quebre a perna, por exemplo. Mas é preciso estar atento a coisas bem mais sutis do que isso. Se um pai, ou mãe, cujo filho acaba de matar colegas e ferir muitos outros, ou que se suicidou, nunca notou que seu filho sofria com zombarias ou deboches, nesse amor talvez houvesse lacunas ou muros.

Um filho mais quieto nem sempre está deprimido ou a perigo. Pode só querer ficar em paz, sem intromissões dos pais (amor pode ser excessivo, sim...), querer refletir, curtir uma descoberta ou até uma perda. Crescer dói. Adolescentes, como as crianças, são pessoas. E sofrem, têm perplexidades, angústias, solidão, dramas e dilemas. É bom saber que há por perto adultos amorosos e interessados. É bom ter a quem recorrer sem medo.

Porém: se amar é cuidar, é também ficar atento sem histeria. Interessado, mas não intrometido. Amoroso, não esmagador. (Quais os limites? Nem eu sei, criar filho é um pouco tatear no escuro.) E não nos enganemos: o pai, a mãe, não são o "melhor amigo ou amiga" dos filhos ou filhas - isso eles têm na escola, no bairro. Pais devem ser pai amigo e mãe amiga: aqueles que, o filho sabe, sente, podem acolher, orientar, abraçar como nenhum amigo.

Que os deuses inventem sempre um adulto em casa, ou na escola um professor querido e respeitado, para ajudar a vencer desafios emocionais e a superar eventuais perseguições. Isso pode salvar uma vida.

lya.luft@zerohora.com.br

28 DE OUTUBRO DE 2017
CARPINEJAR

Nenhuma desculpa é instantânea


Quando você erra nunca tem tempo para se explicar. Sempre ficará de castigo.

Não existe retratação imediata, entenda isso, não há desculpa instantânea, não receberá o indulto no próximo minuto.

Nem conseguirá argumentar. Gaguejará as primeiras palavras de arrependimento, e o microfone do coração será cortado. A pessoa agredida com a falsidade não vai querer ouvir - baterá a porta, sairá de perto, virará as costas.

Ninguém aceita bem uma mentira desfeita ou uma lealdade quebrada. O pecado tem o seu preço, os seus juros e os seus números quebrados. Aquele que foi enganado precisa de tempo para absorver a notícia.  Quanto mais demorar em dizer a verdade mais estrago produzirá na confiança.

A ingenuidade é acreditar que não importa o que tenha feito de errado, o amor prevalecerá. Todo mundo que pede perdão comete a gafe de não imaginar a recusa e a raiva após a decepção. Todo mundo que pede perdão é romântico e se ferra. Desenha o melhor dos cenários e não cogita o cancelamento do show.

No relacionamento, o conserto depende da difícil reposição. Não é só chegar na oficina sentimental e aguardar a troca sumária das peças.

Talvez a convivência jamais seja a mesma, talvez a amizade jamais readquira a sua espontaneidade.

Voltar a confiar é uma das missões mais complicadas da vida, pois depende da benevolência da memória e da força de vontade.

Qualquer confissão implica em trabalho para reconquistar o outro. Passará uma semana inteira telefonando ou aparecendo de repente sem chance alguma de ser atendido. Desculpa se alcança com insistência.

Terá que gastar a fortuna de seus dias e de sua paciência. Dependendo da gravidade da falha, exigirá meses ou anos ou quem sabe nunca se concretize um retorno. Mas não tem como ser diferente, não tem como ser indiferente, não tem como seguir uma relação sem honestidade.

CARPINEJAR

28 DE OUTUBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Amor bandido

O tempo coloca tudo rapidinho no passado. Lembra a Bibi? Aquela lindona da Juliana Paes numa novela remota chamada A Força do Querer, que até dias atrás hipnotizava o país e que já entrou para o cemitério global? Pois ela evidenciou o amor bandido, esse que atrai meio mundo, que desperta fantasias, que é tema de música, cinema, literatura e que deixa homens e mulheres a ponto de bala metaforicamente, claro. Amor bandido não precisa envolver disparos de metralhadora.

O que é um amor bandido? Well, começa pelo escolhido (ou escolhida, mas não me patrulhe por eu adotar o gênero masculino para descrever o indivíduo - vale para as perigosas, também).

Ele é o protótipo do safado, isso fica claro já no início da troca de mensagens - ninguém é tão sedutor numa segunda-feira. Mas pra ele não existe dia inútil, sempre é hora para um xaveco. Você me abala, você é sexy, você é um arraso. Ele não dirá que você é a nora que a mãe dele sonhou, ele é bandido, não um palerma.

Então, o bandido marca um encontro num boteco e aparece bem vestido e sem pistola no coldre, e você até pensa que a regeneração começou, mas não se iluda, ele tem munição de sobra: as dissimulações, os segredos, a parte trash de uma história que ele revelará parcialmente e com cenas censuradas. Você é apenas um capítulo da biografia dele, ok? Relaxe e não se ache.

O amor bandido pode não ter nada de criminoso. É apenas um amor vadio, um amor sem endereço fixo, um amor que faz perder o sono, um amor que requer exames de HIV, um amor cheio de nudes no WhatsApp, um amor onde haverá uma terceira pessoa sendo traída, um amor que telefona bem na hora em que você não pode atender, um amor que exige lingerie provocante, um amor que jamais passará um Natal com você, um amor que obriga você a mentir e que faz você usar um batom de uma cor que ninguém sabia que existia na cartela, de um vermelho extra picante. Gente, quem resiste?

O amor bandido jamais será pai dos seus filhos. Se for, será rebaixado a amor domesticado, e perderá a graça e o adjetivo. Amor bandido tem que ser estéril e pra sempre, sairá da sua vida em poucos meses, mas nunca da sua cabeça.

Ele faz você usar uma jaqueta que você pensava em doar para uma periguete, faz você falar certos verbos que nem a Madonna se atreve, faz você parecer a menina da escola que seus pais proibiam de cumprimentar, faz você se sentir a mulher mais gostosa de toda a quadra da Mangueira. Um filho da mãe adorável que você odeia amar (ou ama odiar, fica a critério do freguês).

Amor bandido vem com olhar de lince, voz aveludada, corpo gingado, aventuras inventadas e tendo você como dona do altar. Ajoelhado a seus pés, ele reza e promete o impossível, e você, mais malandra que ele, finge que acredita e dá a ambos a extrema-unção: que morramos juntos nesta piração.

MARTHA MEDEIROS

28 DE OUTUBRO DE 2017

PIANGERS

Seja um herói


Não faz muito tempo, a Ana estava lendo O Menino Maluquinho para a Aurora. Nosso livro tem o autógrafo do Ziraldo, mais uma das vantagens do livro de papel sobre o tablet. Acho tablet maravilhoso mas livro de papel tem cheiro, dá pra deixar na areia da praia e não acaba a bateria. A Aurora estava fascinada com o menino que tinha asas nos pés, pernas que abraçavam o mundo e o olho maior que a barriga. Sempre que lemos juntos celebramos a delícia que é entrar de mãos dadas em um universo encantado.

Mas, então, a Ana estava lendo O Menino Maluquinho para a Aurora. E olhem que coisa fofa o que ela disse. No final do livro, como vocês devem saber, o Menino Maluquinho cresce. O livro diz: "Ele cresceu e virou um cara legal! Aliás, virou o cara mais legal do mundo!". Nesse momento, a Aurora olhou pra Ana com os olhos arregalados e disse: "Mãe, então esse livro é sobre o papai!".

Nossos filhos nos acham incríveis. Lembro que falávamos sobre o Japão uma vez no carro, e a Aurora disse, no banco de trás: "Papai sabe falar japonês". Não sei, mas não disse na hora, que não quero estragar a fantasia da menina. Quando viu que eu guardava os remédios em uma mala de médico na despensa, ela exclamou: "Papai! Você é médico! Que legal!". E passamos semanas colando band-aid em todas as marquinhas de mosquito.

Ao mesmo tempo em que me emociono, reflito sobre o olhar de admiração da pequena. Nossos filhos nos consideram seus heróis. Carregamos duas sacolas de supermercado e somos os homens mais fortes do mundo. Somos os homens mais lindos a seus olhos. Meu amigo Marcos está notavelmente acima do peso e sua esposa não o deixa esquecer disso mas sempre que o faz sua filha vem abraçá-lo e cochicha: "Você está muito bem assim, papai".

Somos os mais fortes, os mais lindos, os mais inteligentes. Nossas crianças confiam mais em nós do que nas professoras. Mais em nós do que no Google. Acreditam que somos os mais gentis, os mais educados, os mais honestos. Seja o herói que seu filho acha que você é. Crianças são um ótimo balizador de decisões. Se eu tomar esta decisão profissional, o que meu filho acharia? Se eu ficar com o troco errado, o que meu filho acharia? Se eu não for gentil com as pessoas, o que meu filho acharia? É um ótimo critério para tomar decisões.

Seja o herói que seu filho acha que você é. É o que digo pra mim mesmo. Preciso aprender japonês.

PIANGERS

quarta-feira, 25 de outubro de 2017


25 DE OUTUBRO DE 2017
PEDRO GONZAGA

PALAVRAS


De fundos coloridos elas emergem em fontes gritantes, sempre com o tom imperativo dos slogans, a modo de disfarçar sua falsa profundidade. Redutoras e flavorizadas, as frases motivacionais infiltram-se em diálogos, passam a ser reveladoras da intimidade, volvem cada espaço sentimental numa prateleira de autoajuda de papelaria. É como se tudo fosse regido pela prática sordidez do mundo dos negócios, e assim surgem produtos como: Eu tenho que saber meu valor; É preciso investir na relação; Fique do lado de quem cresce com você.

A pobreza verbal está para a mente, assim como a pobreza material está para o corpo, mas a primeira pouco se nota. Tempo faz que bato nesta tecla, nas salas de aula, nas palestras, naquilo que escrevo: o uso dos bordões das redes sociais, a ausência da literatura no cotidiano (algo dramático num país de tantos excluídos sem escolha), somados ao esquecimento dos velhos ditos populares, nunca pomposos, nunca ocos, só poderia dar nisso: Eu não sou mesmice, sou intensidade. Ou: O que os outros chamam loucura, eu chamo ousadia. Ou ainda: Superar não é escolha, é necessidade.

Por não conhecerem dúvida, por não enxergarem o outro senão como adversário, por não saberem que o silêncio e o desassossego são partes integrantes da experiência humana, tais lemas conformam todos os eventos vitais a uma espécie de concurso de virtudes em que as pessoas conhecidas são apenas plateia. Por isso, por trás de cada obviedade, existe um eu raso convertido num você raso e subordinado, que não se sabe discípulo de uma ordem estúpida. Tal conversão é simples, tão simples que parece mágica, de fato, é mágica. 

De um Eu sou a pessoa mais linda, passa-se a Acredite que você é linda; de um Eu sou a minha maior expectativa, a Seja você sua maior expectativa; de algo como Eu sou grato a mim mesmo por existir, nasce uma nova "gratidão", que só em aparência se assemelha à tão bela e velha palavra, porque neste caso, dada a exclusão dos outros, diz seu justo contrário. E este é o maior perigo de fazer de tantos clichês um procedimento: palavras levianas calcinam palavras, palavras arrogantes calcinam ideias, palavras egoístas calcinam sentimentos.

A literatura, com seu amor às palavras, bem poderia ser uma saída.

As listas dos mais vendidos alimentam as chamas.

pdgonzaga@icloud.com

sábado, 21 de outubro de 2017


21 DE OUTUBRO DE 2017
LYA LUFT

Objeto precioso


Minha coluna de hoje seria sobre um vídeo que recebi de uma amiga, que me deu um belo susto e me levou a escrever um artigo logo. Sem pesquisar, sem conferir. Até a voz do vídeo eu pensei reconhecer. Era uma jovem mostrando uma boneca que a filhinha teria recebido entre outros presentes, boneca "menina" de vestidinho e tudo, que - descobriu a criança trocando a roupa do brinquedo - ostentava um óbvio "piu-piu", na linguagem dela. Mas, compensando uma precipitação que em geral não tenho ao escrever, logo alguém chamou minha atenção, o vídeo era fake, e nem novidade era. Suspendemos a coluna, e eis-me aqui fazendo outra, bem mais agradável para mim.

Falo de um precioso objeto que acaba de chegar em minha casa, via Sedex, naturalmente com algum atraso porque estivemos em greve. Que objeto, e por que precioso - para esta que aqui escreve? Meu novo livro. Meu livro de número trinta. Trinta? Refiz a conta e, sim, em muitas décadas, escrevi trinta livros, então não é um exagero. Bem menos de um por ano.

Estou habituada a escrever e receber meus livros. Essa é a minha profissão. Mas este, talvez pelo número, me tocou mais. Estou com ele em cima da escrivaninha, aquele primeiro e único que o editor me manda sempre antes que chegue meu lote completo: pequeno, discreto, A Casa Inventada. Que casa, e quem inventa? Criei uma alegórica casa da vida, da vida de cada um de nós, que a vamos criando. Diz uma personagem a outra: "Você não está inventando a casa da sua vida, está tecendo a sua mortalha. A cada noite interrompemos o trabalho, e recomeçamos no dia seguinte". Seremos todos Penélopes da própria existência?

Quem sabe. O jeito é ler o livro. Que deve estar nas livrarias do país no dia 6 de novembro, em pouco mais de duas semanas. O editor escreveu uma orelha breve mas que me agradou, pois pergunta-se, como todo mundo fará: que gênero é esse? Ficção, memória, ensaio não acadêmico? Gosto de misturar tudo isso, desde O Rio do Meio, de 1997, passando pelo Perdas & Ganhos, e alguns outros, além de mais poesia e mais ficção. O editor conclui, e lhe agradeço por mais isso: "É o gênero Lya Luft".

Então nasceu e está chegando o meu novo livro, minha nova criatura, essa casa na qual não somos pedreiros nem arquitetos, mas amadores.

Quando ele estiver nas livrarias, eu aviso. Logo haverá, como sempre, aquela noite de autógrafos que me dará pesadelos (também como sempre), embora cada vez acabe numa celebração de afetos e carinho.

Quando chegar a hora, eu anunciarei aqui, e escreverei de novo: "Não me deixem só". E divirtam-se com mais uma invenção minha.

lya.luft@zerohora.com.br


21 DE OUTUBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Perder o casal


Cena da peça A Reunificação das Duas Coreias, do francês Joël Pommerat: é noite, o marido e a esposa retornam de um jantar e a babá está aguardando-os, sentada numa cadeira da sala. Indo direto ao quarto dos filhos, a esposa dá pela ausência deles. Volta para a sala e pergunta para a babá onde estão as crianças. A babá, atônita, não responde. A mulher e o homem começam a gritar com ela. A babá não sabe o que dizer. O homem pega o telefone e chama a polícia, a esposa chora, e a babá segue constrangida. 

Eles continuam berrando com ela: Onde estão nossos filhos?. Ela, então, responde: Que filhos? Vocês não têm filhos. Vocês me contrataram para ficar aqui como se houvesse crianças, mas elas não existem. Aceitei essa palhaçada porque estou precisando de dinheiro. A polícia já está batendo à porta, mas o casal não abre, agora estão ajoelhados em frente à babá, implorando para que ela não destrua a farsa. O texto deles é um soco.

"Se você tirar nossos filhos, nossa vida vai parar. Não existiremos mais. Nossa história perderia todo o sentido, tudo desabaria. Nossa vida não teria mais nada de real, nenhuma justificativa, acabaríamos nos perdendo um do outro. No fundo, não temos nada de importante a nos dizer, nada a compartilhar, nada em comum. Nada de importante para fazermos juntos, nada de verdadeiramente necessário e crucial sem nossos filhos. 

Nos tornaremos dois estranhos, dois fantasmas.Tememos isso como a morte. Não queremos perder nosso casal, isto é o que nos mantém vivos. Você sabe que um casal é como um ser vivo. É um parâmetro essencial, é uma luz que chama a atenção dos outros para a sua existência. Nosso casal se construiu com base nos nossos filhos. Então, sem filhos, nós desaparecemos, não temos identidade própria. Isso não lhe causa nenhuma compaixão? Por favor, devolva nossos filhos."

É perturbador ver alguém implorando para que lhe devolvam uma ilusão.

Cruzamos com vários casais pelas ruas sem conhecer as mentiras que sustentam suas existências. Para não perderem "o casal", alguns homens e mulheres fazem vista grossa para a ausência de amor e para os desejos particulares que cada um abafou. Horrorizam-se com a possibilidade de não terem projeção social caso retornem ao mundo dos solteiros. Enquadrados, sentem-se mais seguros.

Famílias são bênçãos, são projetos conscientes de vida, mas também podem ser formadas apenas a fim de constituir uma prova de ajustamento. Através da família, pertencemos a um mundo idealizado. Quem se desmembra deste mundo carrega consigo a sombra de um defeito moral. É visto como um desgarrado, um solitário, essa gente estranha que assusta, pois são livres demais.

Por isso, alguns "ajustados", não tendo coragem de ser sós, recorrem à farsa. Há uma pequena nação de covardes por trás das cortinas.

MARTHA MEDEIROS


21 DE OUTUBRO DE 2017
CLARA AVERBUCK


De boas intenções as famílias estão cheias

Olá, familiares. Venho trazer um pedido: nunca, nunca, JAMAIS, em hipótese alguma, falem mal dos corpos das adolescentes.

Se você acha que ela está "gordinha", "acima do peso" ou qualquer coisa assim, guarde pra você.

Se você acha que ela poderia comer menos pois, olha só, como engorda fácil, também guarde pra você. Se você acha que se essa menina não "se cuidar e fizer um esporte vai ficar gorda", guarde muito profundamente pra você.

Se sua nobre intenção era "ajudar" falando coisas desse naipe, saiba que você FALHOU. Falar mal dos corpos das meninas que estão começando a crescer e se acostumar com corpo de mulher só vai fazer com que elas se sintam mal, muito mal consigo mesmas, em um mundo que já faz isso com maestria, começando pelo fato de que, apenas por crescerem, elas já recebem olhares que não recebiam antes nas ruas e não sabem o que fazer com eles. 

Só vai fazer com que tenham vergonha de seus corpos, com que se escondam, e sabe o que mais? Que DESENVOLVAM DISTÚRBIOS ALIMENTARES. Que busquem remédios milagrosos e perigosos. Encontrem nichos de meninas já doentes com "dicas" na internet, que existem aos borbotões.

Criticando uma adolescente, familiar, você não está ajudando; Você está atrapalhando e ajudando a criar uma mulher insegura.

Caso a sua grande preocupação seja a saúde, que é sempre a desculpa para dar pitaco no corpo alheio, aborde A SAÚDE, não o corpo ou usando o jurássico IMC para justificar sua abelhudice. Não custa repetir: magreza não é saúde. Há inúmeras pessoas magras com colesterol alto e distúrbios mil e outras, consideradas "acima do peso", vivendo saudáveis e felizes.

Sabe o que não é saudável nessas pessoas? Saúde mental. Se a sua preocupação é saúde, pense também na saúde mental e em quantas meninas jovens enlouquecem diante de corpos manipulados, seja por imagem ou por plásticas que criam corpos inatingíveis e que elas buscam com o desespero da aprovação que jamais virá, porque nunca é o suficiente.

A intenção pode ser boa. Passei muito tempo da minha vida ouvindo que tinha um belíssimo rosto mas que meu corpo, hmmm... E isso que eu nunca fui gorda. Menos ainda na adolescência. E mesmo assim desenvolvi distúrbios que me acompanham até hoje. Novamente: não sejam essas pessoas. Lembro que, no auge de uma depressão misturada com anorexia, a única que percebeu foi a minha avó. Todo mundo achava aquela magreza linda (49kg para 1.73), e apenas a minha avozinha viu que tinha algo errado ali. Tinha. Eu estava morta por dentro. Mas magra! Linda! Não, gente. Meus olhos sequer brilhavam.

Querem elogiar? Arrumem novos elogios. "Como você emagreceu", como tanto tenho ouvido agora, chega a me agredir, já que eu emagreci porque tive uma gastrite galopante e fiquei dias sem comer. Agora estou bem, fazendo esportes, mas isso ainda me afeta. E se eu ainda estivesse doente? E se fosse mais sério? E se eu não quisesse falar sobre isso?

Parem com isso, por favor. Parem de tratar magreza como sinônimo de normalidade e felicidade.

Todos os corpos merecem ser felizes e respeitados. Então, por misericórdia, se não tiver nada de positivo para falar, não diga nada.

Shhh. O silêncio é mesmo de ouro quando o que sairia da sua boca seria ouro de tolo.

CLARA AVERBUCK

21 DE OUTUBRO DE 2017
CARPINEJAR

Você é uma abelha ou uma mosca do amor?

Você pode ser uma abelha ou uma mosca no relacionamento.

A abelha busca o pólen, prepara longamente o mel do seu esforço, articula as asas em nome da colmeia, chega a esquecer de si pelo alvoroço da família, tem a euforia de passear acompanhada. Mesmo quando a vida não ajuda, trabalha a esperança. Não entrou num romance para esperar algo, mas para fazer. Não reclama à toa, partilha os seus dilemas procurando uma solução. A dúvida a inspira a perseguir novos jardins e explorar outras paisagens.

Por sua vez, a mosca namora ou casa já pensando no divórcio, já receosa do fracasso, já aguardando a confirmação de seus medos. Sempre tem razão, sempre replica expectativas desagradáveis. Quer provar que o seu par não presta, ainda que tenha que se privar da própria felicidade.

Ela sobrevoa sobras mortas e fica catando implicâncias superadas. Adota o ciúme para desqualificar, emprega a competição para constranger. Não avalia a sua alegria por aquilo que pode oferecer, mas por aquilo que pode receber. Não vai adiante nas adversidades, para no ar, fixa-se no passado. Revela o pior de sua companhia, desmerecendo os elogios e omitindo os avanços. Não cria o seu espaço, aproveita-se da personalidade alheia. Suga apenas a realidade de suas projeções, pois nenhuma mosca é capaz de morder ou mastigar os problemas.

A mosca finge que está tudo bem quando está mal, finge que está mal quando está tudo bem, não enfrenta a verdade, conversa fatiado, realizando muitas coisas paralelamente, isenta-se pela pressa dizendo que não é a melhor hora para mudar (nunca é a melhor hora), não coloca a sua companhia como prioridade, deixa o telefone tocar quando vê o nome, conserva uma atenção dispersiva, arruma pretextos para não se mexer, não pede desculpa porque não acredita no parceiro, arma-se de uma pendência no trabalho para manter a confortável inércia.

A mosca é egoísta, a abelha é solidária. A mosca é do contra, a abelha é a favor. A mosca é conformada, a abelha é curiosa. A mosca provoca enterros, a abelha apressa renascimentos. A mosca revira o lixo das contradições, a abelha organiza o caos e separa o útil do fútil. A mosca incomoda, a abelha incentiva. A mosca não defende ninguém, a abelha possui a ferroada para proteger quem ama. A mosca abandona, a abelha carrega.

Ambas voam. Mas só a abelha sobe alto no amor.

CARPINEJAR

quinta-feira, 19 de outubro de 2017


18 DE OUTUBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Novostempos.com

Fui uma menina romântica. Vibrava quando o príncipe surgia no final da história da Branca de Neve e da Bela Adormecida: ufa, basta de perrengue, agora é só subir na garupa do cavalo branco e ser feliz pra sempre, bora.

Mas não demorou para eu descobrir que esse desapego - elas não levavam nem bolsa - era irreal. Um dia, uma colega de aula me convidou para ir à sua casa: sua irmã mais velha iria se casar dali a uma semana e ela queria me mostrar uma coisa. O que seria? Cheguei e fomos direto para o quarto da tal irmã, que não estava. Minha colega abriu a porta bem devagarzinho. Meu coração aos pulos. Foi então que vi.

Ou melhor, não vi. Não vi a cama. Não vi as mesas de cabeceira. Não vi o chão. Estava tudo - tudo! - coberto de presentes, pratarias, cristais. Tum-tum, tum-tum, meu peito batia forte. Parecia a caverna do Ali Babá. Jogos de louça, faqueiros, copos, cálices, vasos, castiçais, bandejas, luminárias, liquidificador, torradeira, aparelho de fondue, baldes de gelo, pratinhos de sobremesa, porta-retratos, jogos americanos, aparelhos de chá, xícaras, cachepôs. Que cavalo branco, o quê. Quem casa precisa é de um bom caminhão de carreto.

Meu romantismo infantil foi ligeiramente corrompido por aquela visão materialista. Amor e uma cabana? Só se a cabana for muito bem equipada. Tudo bem, ainda parecia um conto de fadas. Deveria ser estimulante começar vida nova ganhando tanta coisa, desde o pano de prato até a baixela de prata.

A partir de então, passei a valorizar esse rito de passagem matrimonial, tanto que, quando recebo um convite de casamento, logo me pergunto: em que bazar estará a lista de presentes? Planejo ir até a loja e, diante das opções sugeridas pelo casal, encontrar algo que me permita participar de seu novo cotidiano, seja através da jarra em que eles se servirão de suco pela manhã ou dos cálices em que tomarão seu vinho à noite. 

Ou dar algo mais original, feito por alguma artesã que eles não conheçam: tigelas pintadas à mão para a salada de frutas ou uma toalha de mesa bordada. Até que alguém me acorda e avisa que parei no tempo, que tudo o que relatei acima virou um documentário de época e que hoje os noivos vivem juntos e já têm casa montada. Lista? No site.

O processo de presentear agora é instantâneo: você abre o computador e encontra um cardápio com fotos de alguns objetos utilitários, ou a proposta de comprar uma cota para as passagens aéreas e os passeios que serão feitos durante a lua de mel. Você escolhe, clica, dá o número do seu cartão de crédito, digita uma mensagem virtual e envia - foi. Os noivos, do outro lado da tela, receberão o quê? O dinheiro equivalente.

Tum-tum, tum-tum, bateria meu coração emocionado, se ainda se emocionasse.

MARTHA MEDEIROS

sábado, 14 de outubro de 2017



14 DE OUTUBRO DE 2017
LYA LUFT

Os iconoclastas e um vaga-lume


Na última semana, escrevi, quinta-feira (como interina do Verissimo, que está de férias), que andamos demasiadamente parecidos com aquele burro falante que meu pai gostava de mencionar: fala alto, muitas palavras, grande convicção, feliz da vida..., sobre assuntos de que pouco ou nada sabe. Ou "para se fazer de interessante!", dizia minha mãe, já que hoje dei pra citar os pais.

Mais se entusiasma ainda essa criatura quando, achando-se original, segue uma parte da manada derrubando conceitos sem analisar, dando pontapés em filosofias sem entender, fazendo suas necessidades 1 e 2 em cima de coisas que nem consegue avaliar. Algumas manifestações de leigos ou artistas nesses dias me impressionaram, como alguém comendo (espero que de mentirinha) um absorvente de onde escorria sangue (espero que falso). A que levaria isso? Por que estamos tão agressivos, dispostos a decepar cabeças e cuspir nos outros? Por que assumimos essas brigas e cruzadas hiperbólicas? Inquietação, medo, indignação, decepção - confusão mesmo?

Falando com um filósofo (de verdade...) outro dia, ele me lembrou de que estamos mais para iconoclastas do que para criadores de boas coisas. Tanto se desfez o conceito de arte, tanto se destruiu, tanto bancamos os moderninhos e seguimos - sem informação e humildade, essenciais - o que nos pareciam novidades luminosas, que aos poucos tudo foi-se esboroando. Cada um fala o que quer, apresenta o que bem entende, e ai de quem não considerar arte panela de fezes ferventes, pingolim cortado e outras belezas.

Se estranhamos, vêm os que vociferam: então vocês defendem a censura? Então vamos quebrar o David de Michelangelo, cobrir teto e paredes da Capela Sistina... e outros delírios mais. Um momento, gente! Um pouco de bom senso e humildade faz bem! Ninguém pensa em censurar arte. Por outro lado, nem todo mundo quereria suas criancinhas induzidas a manipular uma pessoa nua (que não é uma escultura...). 

Em muitas casas, nudez é natural. Não em todas. Então a primeira lei seria respeitar as diferenças de costumes, assunto do dia - o que acho muito bom! Mas não precisamos exagerar. Logo, quem não é gay nem trans nem bi ou poli será objeto de preconceito e terá de sair às ruas para se defender. Que cansaço.

Melhor prestar atenção no que acontece aqui neste pobre país, onde até no Supremo reina confusão, onde está quase decretado que raposas serão julgadas por raposas, e as galinhas vão se ferrar de maneira fenomenal. Onde a miséria reina, gente morre de falta de higiene, mulheres dão à luz no chão, velhos morrem em macas, crianças estão sem escola, e corremos nas ruas como ratazanas caçadas.

Mas fiquei feliz na última semana com a conversa, na Federasul, no Tá na Mesa: carinho, respeito, cumplicidade, ótimas perguntas, e a sensação de que, sem romantismo algum - como é meu caso em relação ao país -, sempre há uma luz logo ali. Pode ser só um vaga-lume... mas é luz.

lya.luft@zerohora.com.br



14 DE OUTUBRO DE 2017
CLÁUDIA LAITANO

PERDEU, PLAYBOY


Quando um psicopata mata a família ou coloca fogo na casa, sempre aparece um vizinho espantado para dizer que o assassino era um sujeito pacato, desses que plantam violetas no jardim. O magnata do cinema Harvey Weinstein, 65 anos, era mais ou menos o oposto desse tipo de criminoso discreto e anônimo que floresce à sombra da própria insignificância. Cofundador da produtora Miramax (batizada em homenagem a seus pais, Miriam e Max), responsável pelo sucesso de filmes como Pulp Fiction, O Paciente Inglês e Shakespeare Apaixonado, Weinstein era até o mês passado um dos homens mais poderosos - e impunes - de Hollywood.

Desde que uma reportagem publicada no The New York Times levantou a lebre, atrizes e modelos famosas têm feito fila para relatar episódios de assédio sexual envolvendo o produtor. Os casos eram tantos e tão conhecidos que um site se deu ao trabalho de recolher referências cômicas ao comportamento "expansivo" do produtor em séries, talk-shows e até no anúncio das indicadas ao Oscar de melhor atriz coadjuvante de 2013. Ou seja: nem as lajotas da calçada da fama foram pegas de surpresa.

Na última terça-feira, uma reportagem publicada na New Yorker colocou ainda mais lenha no escândalo. O repórter Ronan Farrow (filho de Mia Farrow e Woody Allen) apurou uma série de casos de diferentes tipos de agressões sexuais envolvendo o produtor. Entre as vítimas, atrizes como Mira Sorvino, Rosana Arquette, Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow - nada menos do que o Olimpo hollywoodiano.

O roteiro do ataque, ao contrário da maioria dos filmes que Weinstein produziu, era repetitivo e pouco inspirado. Sob o pretexto de alguma reunião de trabalho, o produtor atraía as atrizes para o quarto de um hotel de luxo. Quando a estrela se distraía, o patrão se apresentava apenas de roupão - pedindo ou oferecendo uma massagem (sério?). 

Se elas resistiam, Weinstein argumentava que a "massagem" era "parte do business". Se o repeliam, eram ameaçadas de retaliação. Algumas perderam trabalhos, outras foram difamadas por notícias plantadas em jornais de fofocas. A maioria simplesmente ficava calada, com medo ou vergonha. Weinstein não brincava em serviço.

Em 2015, porém, a jovem modelo italiana Ambra Battilana Gutierrez, com 22 anos na época, decidiu pedir ajuda da polícia e levou um gravador para a "reunião" no hotel. A gravação faz parte da reportagem da New Yorker. Perdeu, playboy.

Sim, nos últimos dias, o playboy perdeu o emprego (na própria companhia), a mulher (que pediu divórcio), os amigos e o que ainda lhe restava de reputação depois de três décadas de abuso de poder. Por um lado, parece que a justiça foi feita. Ainda assim, é assustador perceber que mesmo quando as vítimas são ricas ou famosas é muito difícil romper a capa de impunidade que protege homens como o ex-médico Roger Abdelmassih, o comediante Bill Cosby ou o produtor Harvey Weinstein. Uma capa tramada não apenas por dinheiro e poder, mas pela histórica - e ainda tolerada - naturalização da violência contra o desejo das mulheres.

CLÁUDIA LAITANO


14 DE OUTUBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

KEEP CALM e não vire um reaça

Aquele carrancudo que entrou e saiu do elevador sem dar bom-dia não tem nada contra você, o problema é que ele, além de não ter o hábito de ser cortês, descobriu ontem à noite que a mulher com quem casou há dois anos tem um amante.

O apressadinho que está buzinando de forma alucinada atrás do seu carro não tem nada contra você. Além de ser naturalmente mal-educado, ele dormiu apenas três horas esta noite e não tomou café da manhã, o que não colaborou para melhorar seu precário humor.

A mulher que postou na sua página do Face uma ofensa despropositada porque discorda das suas ideias não está com raiva de você, ela nem entendeu direito o que você quis dizer, aliás, ela nem sabe quem você é. A coitada não se conforma de nunca ter passado num concurso público e esse frustração transformou a mulher num azedume ambulante.

O cara que furou a fila não está competindo com você, ele já perdeu pra si mesmo faz tempo. O chato que conta piadinhas machistas não está querendo provocar você, é que o infeliz não pega ninguém. O colega que questiona tudo que você faz não está querendo importunar você, óbvio que o sujeito tem baixa autoestima. Aquele olhar atravessado que a passageira do ônibus deu pra sua roupa não é uma crítica a você, ela é que não tem coragem de se expressar com mais criatividade.

Somos todos inocentes das neuras, traumas, complexos e distúrbios alheios. Se a pessoa surta, se a pessoa faz estardalhaço, se a pessoa briga por qualquer coisa, não é contra você nem contra mim, a encrenca é com ela mesma. Taí uma fórmula precária, porém bem intencionada, de colaborar com a paz no mundo: não dê trela.

Mantenha a calma e reserve toda sua indignação para quem está realmente atrapalhando sua vida com total consciência disso. Política, sim, é sobre você, sobre mim, sobre nós todos, não tem atenuante. É com essa corja que temos que nos entender - ou nos desentender. Mas com inteligência. 

Não caia na conversa de qualquer oportunista que surgir com um discurso preconceituoso e radical, tipo um Trump tupiniquim, destes que prometem colocar ordem na casa, mas que não passam de ignorantes que só aprofundam o atraso da nação. Você não precisa decidir agora em quem votará para presidente em 2018. Cuide para não ser reacionário, porque a tentação é grande. 

O país está nervoso, e a tendência é confundir ditadura e conservadorismo com salvação. Não dê aval para este brutal retrocesso. Não acredite em mitos, em frases de efeito, em extremismos. Aguarde até saber quem serão os candidatos, qual o comprometimento de cada um deles, seu passado, seu currículo, suas propostas de desenvolvimento econômico e inclusão social, e aí sim, pense, pondere e dê o troco com sanidade - não com desespero.

MARTHA MEDEIROS


14 DE OUTUBRO DE 2017
CARPINEJAR

SHIMEJI OU SHITAKE?

Quando abrimos o cardápio de um novo restaurante japonês, eu e minha esposa não lembramos se gostamos de shimeji ou shitake. Como que esquecemos de novo? Paramos com o dedo entre as duas porções de cogumelos. Qual será mesmo a de nossa preferência? Shimeji ou shitake na manteiga?

Sofremos de um lapso mútuo, de um Alzheimer amoroso. E vacilamos o pêndulo da mão diante dos números dos pratos.

- Não acredito que não me lembro - diz Beatriz. - Não acredito que também não me lembro - respondo. Já comemos dezenas de vezes. É, inclusive, um de nossos menus prediletos, ao lado do carpaccio de salmão, do guioza e do sashimi.

Porém, há um bloqueio inexplicável de nossa parte. Não guardamos os dados. Somos um Google offline naquela hora.

Coisa estranha. Raciocinando em perspectiva, não é um fato isolado. Existem lembranças que não se fixam por algum motivo inaudito. Registros impossíveis de se decorar. Pode ser um telefone discado com frequência que não entra na cabeça de jeito nenhum. Pode ser o nome de uma cidade recorrente que escapa das sinapses.

Surpreendente é o esquecimento mútuo, o esquecimento sincrônico, eu e ela repetindo a dúvida pela enésima oportunidade.

Chamamos sempre o garçom para esclarecer o dilema. - Qual dos dois é o menor? - questionamos. - O shimeji - o garçom explica. - Queremos o shimeji! - exclamamos em uníssono.

Batemos palmas, gritamos gol, festejamos com beijos. O atendente deve se espantar com o nosso contentamento, exagerado para uma informação trivial.

É que o alívio dá realmente um barato próximo da droga - assim como espirrar é bom, por mais desagradável e barulhento que seja.

Desobrigar o cérebro a mais uma tarefa traz leveza e picos de endorfina.

Rimos sem parar dali por diante, nunca duvidando de que o nosso amor é o grande. A gente nunca erra esse pedido.

CARPINEJAR

sábado, 7 de outubro de 2017



07 DE OUTUBRO DE 2017
CARPINEJAR

Saídas de emergência

Minha escola pública não tinha um único portão de entrada e saída. Na verdade, tinha. Mas eu não poderia arriscar. Vivia no coliseu de Roma. Não se matava um leão por dia, fugia-se dele.

Em minha turma da segunda série, havia meninos muito maiores, já de bigode, que haviam rodado três anos seguidos. Eles roubavam a merenda e criavam um método nada refinado de tortura psicológica com apelidos e ameaças. Era apenas não dar cola na prova que qualquer um já virava jurado de briga.

- Vou lhe pegar na saída!

Quando um dos membros da gangue dos repetentes dizia tal sentença em voz alta, a escola inteira espalhava o indício de briga depois do último período. Improvisava-se a arena na praça, defronte à escola, longe dos professores e das advertências do SOE. Uma escolta de curiosos e mórbidos levava o condenado para o abatedouro e não lhe permitia pensar e declinar do perigoso convite.

No momento em que alguém prometia guerra, não se admitia covardia. A pessoa marcada ficava assinalada para sempre. Até conhecer o sangue de sua boca e perder os dentes de leite.

Terminava sendo a vítima predileta: franzino, desengonçado e de fala fina. Um ideal saco de pancadas para demonstração de virilidade dos agressores. Eu passava o recreio testando acessos de emergência. Poderia ter sido bombeiro.

Conhecia a segurança da estrutura na palma da minha mão. Pulando duas grades da casinha de jardinagem, eu chegava à rua pela lateral do prédio. Eu me vali desse atalho algumas vezes, corria pela escadaria da Rua Itaqui e contornava cinco quadras. Fiz sempre caminhos mais longos no retorno ao lar. A ida para escola durava 10 minutos, a volta demorava meia hora. A mãe devia pensar que me distraia poeticamente com os pássaros, mas apenas escapava da fundo mortal dos cruzados de meus colegas. 

O sinal mal soava e já disparava, encerrava as tarefas com antecedência para deixar a mochila pronta e escapulir sem perseguição. Pelo tempo apertado, às vezes, não conseguia me desvencilhar do rebanho e dos dedos em riste na minha cara. Daí fingia ir ao banheiro e descia para a quadra de asfalto do futebol, o que me restava saltar do paredão de três metros. A sorte é que uma carroça largava sacos de lixo com jornais e papéis velhos no terreno, que amortizava a queda. Preferia quebrar a perna pulando a dar ao outro a honra das feridas.

Para sair da escola, não dependia de boas notas. Exigia um tanto de preparo físico e de resiliência.

Quando não vejo saída, guardo ainda o costume de abrir as portas de meu medo.

CARPINEJAR


07 DE OUTUBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Uma história


Mesmo quem não é noveleiro deve lembrar: em fevereiro de 2014, o país parou para ver o primeiro beijo gay na Globo, trocado pelos atores Mateus Solano e Thiago Fragoso no último capítulo da novela Amor à Vida. Os índices de rejeição à cena foram mínimos se comparados à sua ampla aceitação. Na ocasião, eu estava em Gramado, assistindo à tevê num quarto de hotel, e me lembro de ter escutado fogos de artifício quando os lábios dos dois se encontraram, e não havia jogo de futebol acontecendo.

Corta para o primeiro capítulo da novela Babilônia, reunindo duas grandes divas da dramaturgia nacional, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, totens da dignidade, cujos personagens deram um selinho que iria repercutir estrondosamente nas rede sociais: foram condenadas ao fogo do inferno. Um único segundo de afeto lésbico e o mundo caiu.

A diferença entre uma cena e outra: o casal de homens havia construído uma história durante todo o período em que a novela esteve no ar. Aproximação, dificuldades, dores, alegrias, superações. O beijo foi um epílogo natural. Já daquelas duas senhoras, no primeiro capítulo, ninguém sabia nada ainda, e não obtiveram perdão. Ganhar nossa condescendência assim, de forma instantânea? Sem chance.

Saindo da ficção para a vida real. Dois políticos escolhidos aleatoriamente para ilustrar este pensamento: Geddel e Lula. Por que é mais fácil condenar um do que o outro?

Porque Geddel não tem história. Este sobrenome estreou na nossa rotina há alguns meses, ninguém sabe de onde ele veio e pouco se importa para onde ele vai, ninguém reconheceria sua foto se a mostrassem no meio da rua durante uma enquete, só se sabe que ele escondia 51 milhões de reais dentro de malas e caixotes. Perdeu, zé-ninguém.

Lula, não. Lula tem história. Saiu do Nordeste como boia fria, trabalhou como metalúrgico, virou um sindicalista importante, tem cena 1, cena 2, cena 3. Lula arregimentou seguidores em sua vida muito antes de as redes sociais existirem. Lula tem nome, sobrenome, apelido social, família, rosto, digitais, voz, personalidade, começo e meio.

Como dedicar a Lula o mesmo fim que merece um Geddel sem começo e meio?

Especialistas não levam nada disso em consideração, mas a opinião pública, sim. A história contextualiza e atenua os fatos, mesmo quando eles são condenáveis (em tempo: beijos não são condenáveis; corrupção, sim). Surgir do nada nunca sugere inocência, mas ter caminhado muito até chegar aqui abranda o nosso julgamento.

Não estou em campanha, não tenho candidato, não há subtexto. Dei apenas dois exemplos do quanto uma trajetória reconhecida publicamente pode alterar o olhar de quem julga. Moral da história: que se tenha, pra começar, uma história.

MARTHA MEDEIROS

07 DE OUTUBRO DE 2017
LYA LUFT

O coração do enigma



Hoje, quando escrevo isto, está uma manhã brilhante, clara. Olho a paisagem enquanto tomo meu café, vejo algumas notícias de jornal e TV porque isso é um de meus vícios, venho ligar este computador porque tenho trabalho - mas a notícia da morte de mais uma pessoa jovem pousa no meu ombro como uma ave noturna.

Há alguns anos, comecei um romance (O Quarto Fechado) com uma cena que nasceu lá dos cantos retorcidos do meu coração: pai e mãe sentados dos dois lados do caixão do filho adolescente morto. Toda a trama do livro parte desse momento, e acho que com ele termina. Não sei mais por que me ocorreu, nunca vi cena igual, mas tudo o que lemos, sonhamos, vivemos, nos contam, se deposita no nosso inconsciente como aquela lamazinha no fundo de um aquário. Escrever é como mexer ali com um lápis, uma varinha: tudo vem à superfície.

Morte é o grande enigma; morte de jovens é o coração mais escuro desse enigma, ali onde nem o amor alcança. "Gente demais morrendo", queixou-se uma amiga. Acrescentei "jovens demais morrendo" - por doença, por fatalidades, ou porque namoram, nas drogas, a morte. Lembro das visitas que fiz, anos atrás (gosto de repetir), a uma famosa clínica para recuperação de adictos no interior de São Paulo. 

Da estrada, via-se um belo resort (acho que ainda nem usávamos a palavra): colinas, edifício bonito de dois andares, árvores, piscina grande. À beira dela, grupinhos de jovens, biquínis e sungas, guarda-sóis, alguém batucava um samba numa das pontas, e todos pareciam alegres.

Mais tarde, chegando perto deles, vi poucos olhares atentos: a maioria distantes, parados, ausentes de si mesmos. Vários pulsos com cicatrizes ou ainda curativos. Depoimentos angustiados ou ditos com indiferença: muitos eram assíduos ali, tinham alta e em semanas ou menos estavam de volta. Mesmo lá dentro, sob vigilância que devia ser forte, conseguia-se alguma droga. Fora dali, em casa, uma das meninas me contou que os traficantes jogavam pelotinhas de coca pela sua janela de madrugada.

Sempre saí de lá com uma terrível sensação de desesperança, embora, sei disso, haja os que de verdade se recuperam: agarram aquele touro selvagem pelos chifres e, com tratamento, psiquiatra, família firme, muita sorte - sobretudo vontade de viver e viver melhor -, vão em frente sem a fatal muleta da droga (álcool é droga). Alguns deles, me diziam, estavam cansados. Não era por diversão que cortavam os pulsos, saltavam da janela ou se injetavam mais veneno, querendo se aliviar do duríssimo fardo do desalento.

"Algumas pessoas nascem mal equipadas para a vida", comentou alguém numa dessas ocasiões, e nunca esqueci. Como se não tivessem pele que as proteja, para elas qualquer brisa é uma dor infinita. Querem sossego, querem alívio, querem morrer. E quando a dor é demasiada, fica difícil analisar o sofrimento dos que vão ficar, ou a possibilidade de, horas depois, poder

ter-se arrependido.

Esse pássaro noturno pousado em meu ombro me faz sentir o quanto todo o resto - que não é resto, sei!!! -, os mil desastres e dificuldades que por aqui imperam, parece pequeno quando ouvimos pulsar, ameaçador, o coração do eterno enigma.

lya.luft@zerohora.com.br

quarta-feira, 4 de outubro de 2017



04 DE OUTUBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Museus


Depois da polêmica envolvendo a mostra Queermuseu, que foi cancelada em Porto Alegre por causa de alguns ativistas escandalizados, nova polêmica tomou conta das redes sociais. O Museu de Arte Moderna de São Paulo abriu a mostra Panorama da Arte Brasileira com uma apresentação única para convidados e devidamente sinalizada sobre seu teor: nela, um homem nu manipula um origami, numa interpretação livre da obra Bicho, de Lygia Clark. Uma menina, acompanhada da mãe, estava no recinto e tocou nos pés do homem, e foi o que bastou para o museu ser acusado de incitar a pedofilia.

Talvez eu não levasse uma criança para assistir a uma performance que incluísse nudez total, mas apenas por uma questão de pudor, pois não vejo diferença em levá-la a uma praia em que se faz topless. Quando não há conotação erótica, a nudez pode ser apenas o simbolismo de um organismo vivo (uma proposta artística) ou pode ser uma atitude naturalista (ao ar livre, sem nenhum propósito sacana). Nudez não significa apenas sexo.

Esse verbo - significar - precisa ser mais bem compreendido, partindo de uma premissa: não existe um único significado para as coisas. E é aí que entra a importância de um museu.

No momento em que se entra em um, devemos estar abertos para o conhecimento e conscientes de que ali é um universo de representação. Quadros, esculturas, gravuras, instalações, performances, grafites, fotografias, antiguidades: nada é exatamente o que é. Uma xícara não é apenas uma xícara, mas a representação de uma época e de um costume. Um ferro retorcido não é apenas um ferro retorcido, mas a representação de um suplício. 

Uma tela vazia não é apenas uma tela vazia, mas a representação do silêncio. Uma bandeira de papel não é apenas uma bandeira de papel, mas a representação da infância. Um homem nu não é apenas um homem nu, mas a representação da nossa ancestralidade. Tudo o que se encontra dentro de um museu é representação de alguma espécie de beleza, de dor, de perturbação e de tudo mais que compõe nossa humanidade. Ninguém deve entrar num museu com uma ideia preconcebida. 

Pode-se, claro, gostar ou não gostar do que se vê, ficar ou ir embora, opinar contra ou a favor: somos livres. O único erro é não levar em consideração que esses são espaços sagrados (e aí incluo teatros, cinemas, livrarias, auditórios) que nos dão a oportunidade de atravessar um portal, deixando do lado de fora a banalidade da nossa existência para recepcionar uma provocação que nos elevará a outra categoria de gente - a de seres pensantes com capacidade de expansão.

Não estou certa de nada, a não ser de que a ausência de arte em nossas vidas é o que nos condena à mediocridade, é o que torna nossas vidas pequenas e é o que nos faz ter tanto, tanto medo de tudo.

martha.medeiros@terra.com.br