quarta-feira, 16 de outubro de 2013


16 de outubro de 2013 | N° 17585
MARTHA MEDEIROS

Com a garganta presa

Foi muito divertido o retorno que tive da crônica de domingo passado, sobre as balas da infância. Muitos leitores lembraram de suas guloseimas favoritas, lamentaram eu não ter citado as balas Mocinho, apostaram que a pastilha cujo nome esqueci era a Supra Sumo (também adorava, mas não era essa...) e contaram episódios de quase morte por engasgamento com a bala Soft.

Porém, sacudidos de cabeça para baixo, todos se salvaram. Há quem jure que essas balas foram proibidas por terem um formato perfeito para grudar na traqueia até asfixiar – não encontrei fontes oficiais sobre o assunto, mas estou tentada a acreditar que elas entraram mesmo para a lista negra do FBI, da CIA e da Scotland Yard. Era tenso: eu chupava essas balas como se estivesse participando de uma roleta-russa.

Engasgos rendem cenas hilárias, mas levo o assunto a sério, pois quem já teve o desprazer de passar por isso sabe o quanto é estressante. E se a cena se der em local público, não só é estressante como constrangedor. Difícil manter a pose quando se está prestes a morrer sufocada, com os olhos esbugalhados e o rosto ganhando o tom de beterraba.

Acontece comigo com uma frequência que não chega a ser alarmante, mas manda a prudência que eu não relaxe tendo um copo em mãos. Não engasgo com sólidos, apenas com líquidos. Já vivenciei o problema no meio da madrugada, ao tomar água, e também em restaurantes, bares, até em beira de piscina.

Sofro só de imaginar que um dia possa ocorrer durante uma palestra ou uma entrevista. Hoje me concentro demais para que a epiglote (porta de entrada do ar nos pulmões) não feche em hora indevida, mas às vezes estou empolgada com a conversa, emocionada até, e aí é que o rolo acontece. Se dá para manter a classe? Olha, nem sendo a Costanza Pascolato.

Quase sempre estou acompanhada, e quem me conhece sabe o que fazer: é a manobra de Heimlich, criada pelo médico americano Henry Heimlich, que em 1974 inventou um método simples para induzir uma tosse artificial. O salvador deve se posicionar por trás do engasgado e abraçá-lo mantendo as duas mãos bem abaixo do peito dele, e fazer uma pressão curta, porém firme em direção ao tórax, tantas vezes quantas necessárias.

Pequenos socos até que seja expelido o que estiver interrompendo aquele bate-papo que, até então, transcorria de forma tão agradável. É um procedimento mais indicado para quem tem algo sólido obstruindo a respiração, mas mesmo com líquidos funciona. Comigo, ao menos, funciona, ou não estaria aqui respirando e escrevendo.

Considere essa crônica um serviço de utilidade pública. Mesmo as balas Soft tendo sido banidas do comércio (nada sei sobre o mercado negro), ainda assim há muitas coisas que nos engasgam, entre sólidos, líquidos e emoções sortidas: quem já não quase sufocou com um beijo? Se for para faltar ar, que seja por amor, que também é doce.


Uma linda quarta-feira pra você

quarta-feira, 9 de outubro de 2013


Bom dia!

Não destrua seus valores
comparando-se com
outras pessoas.
É por sermos diferentes
uns dos outros
que cada um de nós
é especial!
Seja sempre feliz
e tenha sempre muito
amor em seu
coraçao
Beijos iluminados





09 de outubro de 2013 | N° 17578
MARTHA MEDEIROS

A carteira de trabalho

Estava em frente ao computador, como quase sempre estou, esperando que alguma ideia inspiradora descesse do céu para me ajudar a escrever a coluna desta quarta-feira. Enquanto a ideia brilhante não vinha, li o jornal e fiquei ainda mais estarrecida com as notícias sobre o Brasil. Desperdícios, obras inacabadas, tudo ficando para depois, para um dia, para quando Deus quiser, e pensei: não, não vou falar de novo sobre o atraso do país. Aí a palavra atraso me remeteu ao atraso de um pagamento, e fui fazer algumas contas – a tela do computador seguiu em branco.

Foi então que a zeladora bateu à porta do meu apartamento e entregou a correspondência. Entre a papelada havia um envelope sem selo, sem carimbo, só com meu nome escrito. Abri. Não havia um bilhete, um telefone para contato, um e-mail, coisa alguma – apenas a minha carteira de trabalho.

A minha carteira de trabalho! Onde ela estava, e com quem? Eu a teria perdido na rua? Mas quando é que eu portei essa carteira pela última vez, se há quase 20 anos trabalho como autônoma? Jurava que ela estava repousando no fundo de alguma gaveta, e ela me retorna pela porta da frente, assim, como quem volta de um passeio.

A primeira sensação foi a de que entrei para a categoria das destrambelhadas. Como é possível alguém perder algo sem se dar conta? E não foi uma caneta, um pente, e sim um documento. Quanto tempo ele passou fora de casa sem que eu percebesse? Por precaução, fui dar uma espiada no quarto das minhas filhas para ver se suas roupas continuavam penduradas nos armários.

Respirei fundo e abri aquela carteira de trabalho emitida em 1981, com orelhas em todas as folhas desbotadas e frágeis pelo tempo em que estiveram abandonadas, pegando chuva, sendo manuseadas por pessoas estranhas, vá saber. Na primeira página, minha foto: uma estagiária com expressão de pavor, nunca havia trabalhado antes, nada suspeitava sobre seu futuro. A assinatura, ao menos, era segura.

E então, página por página, fui investigando a mim mesma, recordando de todos os lugares onde trabalhei, por quanto tempo, se havia sido demitida, promovida, reajustada. A parte dos salários foi a mais cômica. Em um emprego, eu ganhava 90 mil. No emprego seguinte: 250 mil. E no outro, 1 milhão!! Por fim, em meu último emprego, eu ganhava a gloriosa quantia de 1 milhão e 600 mil cruzeiros mensais. Morra de inveja, Eike.

Depois dessa turnê pelo passado de um país cuja moeda mudava de nome todo ano e cuja inflação fazia nossos rendimentos atingirem essa saraivada de dígitos, fechei a carteira de trabalho e fui tratar de desvendar o mistério de seu retorno ao lar. Desvendado (não revelo porque é bom manter algum mistério nesta vida, e também porque o espaço acabou), voltei conformada para minhas contas, lamentando que não se façam mais milionários como antigamente.


domingo, 6 de outubro de 2013


06 de outubro de 2013 | N° 17575
FABRÍCIO CARPINEJAR

Pai de meu pai

Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.

É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.

É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela – tudo é corredor, tudo é longe.

É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

Todo filho é pai da morte de seu pai.

Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.

E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.

Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.

A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.

A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.

Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?

Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.

No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:

– Deixa que eu ajudo.  Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.

Colocou o rosto de seu pai contra seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.

Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.

Embalou o pai de um lado para o outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai.

E apenas dizia, sussurrado: – Estou aqui, estou aqui, pai!


O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.

06 de outubro de 2013 | N° 17575
MARTHA MEDEIROS

Tão óbvio

Sempre tive mais tendência a simplificar do que complicar, mas agora isso se intensificou a ponto de eu começar a flertar com o budismo. Lendo alguns livros e assistindo palestras, tenho percebido como o caminho para ser feliz é óbvio eu mesma já fui acusada de escrever sobre coisas óbvias, e não tenho como me defender contra isso: escrevo obviedades, sem dúvida. Porém me pergunto, intrigada: por que as obviedades andam tão necessárias?

É que normalmente o óbvio fica soterrado sob camadas e mais camadas de auto boicotes: as pessoas se irritam por besteiras, fazem escolhas idiotas, brigam no trânsito, não se abrem sobre o que sentem, desperdiçam energia à toa, desrespeitam o coletivo e são refratárias a tudo que seja simples e fácil, já que a dor, a culpa e o ódio faz parecer que elas têm uma vida mais profunda.

Felicidade é algo que todos desejam e ao mesmo tempo renegam, já que não saberiam lidar com algo que lhes deixaria tão soltos e leves. Com péssimo ibope junto aos intelectuais, a felicidade (que nada tem a ver com bobice, mas com paz de espírito) ficou associada à superficialidade, enquanto que o sofrimento produz arte e filosofia.

Sob esse aspecto, óbvio que ser um deprimido é mais charmoso.

Pena que isso seja um estereótipo. Ora, filosofia busca a consciência, que é chave para a felicidade, e a arte faz um bem danado a mentes atormentadas, que através dela conseguem realizar catarses e se conectar com um mundo que lhes parece hostil. Ou seja, não importa quem ou de que forma, todos querem viver melhor, sem esquecer que esse “melhor” tem sentidos diversos para uns e para outros. Seja qual for o significado de “melhor” pra você, ele é a sua perseguição. Só que alguns escolhem vias cheias de obstáculos e acabam não aproveitando a viagem.

O bem-estar vem de onde? Óbvio: da convivência com amigos, de relações saudáveis, de não permitir que frustrações e ressentimentos virem a tônica da vida, de não reagir com exagero diante de insignificâncias, da valorização das miudezas grandiosas do cotidiano, de sentir-se disponível para o novo e o diferente a fim de enriquecer a própria existência, mantendo uma espiritualidade básica que envolva a generosidade, a compaixão, a tolerância (não é obrigatório ter religião pra isso).

Mais: de aceitar as mudanças, de trocar de perspectiva quando se estiver obcecado com algo, de buscar a evolução da mente.

Inventei a pólvora? Estou dizendo alguma coisa que você já não esteja careca de saber? É tudo tão evidente, tão incontestável, que dá até sono. O que você ainda está fazendo lendo essa página? Acorde e vá pra rua.

Aí você sai e cruza com centenas de outros cidadãos para quem o óbvio é uma teoria sem aplicação prática, e que continuam encrencando-se de forma absurda, a fim de voltarem para casa estressados e sentindo-se vítimas do próprio destino. Charmosos, sem dúvida. Resta saber a que custo pessoal.


sábado, 5 de outubro de 2013


05 de outubro de 2013 | N° 17574
NILSON SOUZA

O cantor da madrugada

Eu já tinha percebido, mas foi lendo uma carta de leitor num jornal paulista que confirmei a minha impressão: os sabiás estão começando a cantar cada vez mais cedo. O homem escreveu para desabafar, disse que acorda na madrugada e não consegue mais dormir por causa do pássaro namorador.

Os sabiás-laranjeira, como se sabe, cantam para atrair as fêmeas – e aquele que canta mais alto e em tom mais melodioso leva vantagem sobre os demais. O raciocínio delas é lógico: machos que cantam com mais vigor terão maior capacidade de alimentar os filhotes. A interpretação não é minha, é de ornitólogos.

Mas por que eles não deixam para abrir o bico lá pelas sete ou oito horas, como fazem todos os mortais? Também tem resposta para isso.

A culpa é das metrópoles, garantem os especialistas. As luzes da cidade levam a ave a pensar que o dia já clareou. Tem também os ruídos: para evitar a concorrência do barulho de portões eletrônicos se abrindo, carros circulando, buzinas e mães acordando filhos dorminhocos, os pássaros soltam a voz mais cedo. Assim garantem audiência total. Há quem se incomode. O missivista a que me referi queria que a prefeitura de sua cidade tomasse providências, impondo a lei do silêncio à passarada. Era só o que faltava. Nós, com nossos casulos de cimento e ferro, ocupamos o espaço que um dia foi só dos bichos e ainda queremos que eles se calem. Deixa o sabiá namorar, amigo paulista!

O sabiá-laranjeira, ave-símbolo do Brasil, tem sido cantado em prosa e verso por nossos escritores e poetas, de Gonçalves Dias a Chico Buarque. É uma espécie de trompetista da primavera. Desde que este país era habitado apenas por selvagens, os sabiás sinalizam a chegada da estação das flores. Existe até uma lenda indígena que diz que quando uma criança ouve o canto do sabiá pela madrugada recebe uma bênção de amor, felicidade e paz. E agora os civilizados querem calar o bicho.

Peço licença para discrepar, como dizia um sábio (não um sabiá) da Academia Brasileira de Letras. Tenho tanto respeito e admiração pelos alaranjados, que até ando deixando meu carro fora da garagem, para não perturbar o sossego de um casal que fez ninho exatamente num arbusto situado na entrada.


Mal distingo o macho da fêmea, mas percebo que eles estão sempre lá, vigilantes, e sei que em breve acompanharei aulas de voo no meu pátio, como já aconteceu em outras primaveras. Meu trato informal com eles é o seguinte: fiquem à vontade, mas não esqueçam de me acordar com aquela deliciosa sinfonia da madrugada.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013


02 de outubro de 2013 | N° 17571
MARTHA MEDEIROS

Nós e a cidade

Uma casa e um smartphone: você precisa de mais alguma coisa? Hoje a gente se enclausura e faz uma vida. O que fica do lado de fora da janela é apenas uma cidade com ruas que levam a outras clausuras: a do escritório, a da academia, a da igreja, a do shopping, a do estádio, a da casa de amigos e familiares. Durante o trajeto, de um ponto a outro entre as clausuras, vamos reclamando do trânsito e olhando para os lados com aflição, a fim de conferir se não há ninguém nos seguindo, à espreita.

A cidade em que vivemos deveria despertar o mesmo sentido de lar que nossa casa desperta. Também é uma referência emocional, e o natural seria que circulássemos por ela com desenvoltura, alegria, entusiasmo – valorizando os passeios e nos sentindo acolhidos. Uma cidade é um espaço de integração e dinamismo, um elemento vivo. Ela deve ser boa para nós, deve nos reservar um futuro. Uma cidade – a nossa cidade – deve nos convidar para fazer parte dela com profundidade, como um chamado amoroso. Mas para amá-la precisamos confiar nela, admirá-la e considerá-la protetora.

Que condição de cidadania pode haver em transitar apressadamente entre clausuras, em não desfrutarmos do acolhimento que uma cidade, qualquer cidade, deveria oferecer a quem nela vive?

Uma amiga teve o carro roubado às 14h de um lindo dia de sol enquanto estacionava aqui perto de casa. Minha cunhada resgatou o filho na escola enquanto acontecia um tiroteio na praça em frente. Uma conhecida foi assaltada duas vezes no mesmo mês e no mesmo quarteirão. Isso restrito à minha vizinhança, imagino que você também colecione histórias sobre a sua.

Quem já teve o privilégio de viajar para locais mais seguros não se conforma com a indignidade de caminhar pela própria cidade desconfiando de quem cruza pela calçada. Comerciantes atendem por trás de grades depois de certa hora – como se ainda houvesse um horário mais perigoso do que outro. É ridículo se sentir ameaçado pelo lugar onde se vive.

É por isso que apoio os que lutam para atualizar nosso Código Penal. Prisão perpétua para crimes hediondos, fim do regime de progressão (que o preso cumpra sua pena integralmente) e redução da maioridade penal para 16 anos quando houver prática de assassinato, estupro, sequestro, pedofilia, tráfico de drogas, de órgãos, de armas. Chega do prende e solta.

Política é a arte de se deixar seduzir pelo poder, mas que poder? Nossos engravatados discursam pomposamente, cortam fitas de inauguração, vivem em reuniões, fazem de conta que representam o povo, enquanto o povo continua negligenciado pela retórica, pela burocracia, pela lerdeza, por leis obsoletas, por interesses eleitoreiros e pelo DNA defeituoso deste país que, em vez de permitir que nos encantemos por nossas cidades, faz apenas com que tenhamos medo delas.