sábado, 26 de março de 2022


26 DE MARÇO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Onde foi parar minha vida?

Procuro embaixo do tapete, dentro do açucareiro... cadê? Ainda ontem ela estava aqui, diante dos meus olhos, anotada nas páginas da agenda, o passo a passo dos meus dias, com horários regulados, almoço e jantar, reuniões de trabalho, namorado no fim de semana.

"Ainda ontem" é vício de linguagem. Não faz tão pouco tempo assim, já que entrementes houve uma pandemia que nos paralisou por dois anos, e quando ela começava a ser controlada, veio essa guerra que alterou os batimentos cardíacos de todos, então não foi ainda ontem que eu tive uma vida medianamente organizada, mas lembro bem dela, não pode estar tão longe. Atrás da geladeira, esquecida na garagem... cadê?

Todas as lives começavam com a mesma pergunta: qual será o legado dessa crise, como vai ser quando o vírus deixar de ser uma ameaça, que pessoas nos tornaremos depois dessa experiência? Ah, seremos mais solidários, levaremos em conta o coletivo, teremos mais consciência da nossa fragilidade, inventaremos novas profissões para impulsionar a economia, tudo vai mudar, nada vai mudar. Foi chute para tudo que é lado e ainda aguardo as confirmações dos prognósticos. De certo, mesmo, é que a vida que eu tinha aproveitou que eu estava distraída com o rebuliço do mundo e picou a mula.

Restou essa desatinada buscando a si mesma. Na gaveta do banheiro... será?

Olha eu ali no posto abastecendo o carro para dirigir 800 quilômetros, sem medo do cansaço ou do preço da gasolina. Olha eu em frente ao computador pesquisando uma passagem barata para voar até um país caro (Paris e Londres não pareciam tão distantes). Olha como eu dormia mais de cinco horas por noite e tinha cinco quilos a menos: lembranças enviadas pelo Facebook, tentando me convencer que aquela continua sendo eu mesma (coitado, até ele ficou no passado).

Nos álbuns de fotografias, escondida nas páginas de um livro... onde ela se esconde de mim, a vida que era minha e que não sei onde foi parar?

Mas parou. É fato. Paralisou no sinal vermelho e o motor apagou. Alguns veículos passam por mim em baixa velocidade e gritam pela janela que estou atrapalhando o tráfego. Outros estão apagados também, ao meu lado, aguardando reboque. Parei, paramos. Você não?

Pode ser apenas um longo agora, reflexão necessária sobre este vácuo entre o que fomos e o que seremos. No fundo é a mesma vida, ainda que pareça vida nenhuma. Talvez tenhamos alcançado o tão desejado "depois da pandemia", mas não consigo retomar do mesmo ponto onde parei, nem realizar um novo parto de mim mesma, desaprendi a partir e acho tudo bem estranho: sério que usei a palavra entrementes nesse texto? Vou continuar procurando, a vida de antes deve estar em algum lugar.

MARTHA MEDEIROS

26 DE MARÇO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Nosso porto

A primeira lembrança: não lembro.

Talvez seja a Redenção, mas também pode ser a pracinha perto de casa ou mesmo o pátio da casa da avó. Uma coisa era certa: tinha um cheiro que até hoje algumas ruas de Porto Alegre têm, cheiro que não se sente em nenhum outro lugar. Tempero? Chá? As flores ficando amareladas no vaso da sala?

Por um bom tempo, todas as lembranças são de Porto Alegre.

Sorvete com a família na sorveteria Nevada, da Cristóvão Colombo. No verão de calor quase sólido, o meio da rua tomado por cascudos - fora os que vinham voando e entravam no cabelo, para pavor das crianças.

E o sorvete no Mercado Público. A taça de creme, chocolate e morango sempre aos sábados, com o pai.

Os jogos no Olímpico. Depois do almoço de domingo, minhas irmãs - uma delas virou casaca e hoje é colorada -, eu e o pai nas cadeiras. Enquanto ele tentava ver Espinosa e Ivo Wortmann em campo, as filhas pedindo para comer absolutamente tudo o que estivesse à venda. Overdose de cachorro-quente com churros com pipoca com picolé. Sobre a bola rolando, nada a declarar. Daí nasceu meu irmão e nós três fomos para o banco.

As lojas do centro com a mãe. Não que ela gostasse de me levar, já que a objetividade não existe quando se vai às compras com uma criança pequena a tiracolo, coisa que a gente só descobre mais tarde, com os próprios filhos. As lojas preferidas: todas. De tecidos, roupas, quinquilharias, ferragens, farmácias. As bijuterias da Sloper, praticamente uma Disneylândia na Rua da Praia. A Livraria do Globo, de onde ninguém saía sem um livrinho de colorir com água, que fosse.

Ipanema, para onde nos mudamos no início da minha adolescência, o que me obrigou a deixar uma vida de 12 anos para trás. Parece pouco, mas é uma história. De repente, o nada. O colégio desconhecido, o medo de não fazer novos amigos. Mudar de bairro é mudar de planeta, quando se tem 12 anos.

O tempo sendo contado pelo que já podia fazer sem a tutela dos pais. Pegar ônibus, linhas Serraria e Juca Batista, a parada na frente da nossa casa. Sair de noite para as festinhas na AABB e no Clube do Professor Gaúcho. Daí para a primeira cerveja e o primeiro beijo, não necessariamente nessa ordem, a vida foi um pulo.

Engraçado como a Zona Sul era muito mais longe, naquele tempo. De lá até a Fabico, nas vizinhanças do Planetário, levava-se a eternidade. Entre uma e outra, havia a Osvaldo Aranha, os cinemas e os bares. Era preciso ser forte para ir às aulas. Nem sempre eu fui.

Então, um dia, a pessoa acorda adulta e tudo vira uma lembrança só. Trabalho, morar sozinha, amores que depois a gente renega, outros que renegam a gente. Encontrar um caminho, trocar de caminho, não se achar nunca. Quando se conhece outros lugares, Porto Alegre perde um tanto da mágica que tinha lá no início. Não se envelhece sem realidade, o que vale para pessoas e para cidades. De qualquer jeito, voltar para Porto Alegre é sempre um respiro. Algo como sentir, outra vez, o cheiro de tempero, de chá, das flores ficando amareladas no vaso da sala. O cheiro de casa.

Feliz aniversário, meu porto.

CLAUDIA TAJES

26 DE MARÇO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Os calores começam a amenizar, lentamente. No Centro-Sul do país, batem ventos que clamarão, em breve, por mangas compridas. Chegamos a mais um outono, época de criatividade e introspecção. Que tal ler um pouco? Lemos para analisar o real, para ter companhia e, inclusive, para conseguir olhar um pouco além do rema-rema cotidiano.

Estamos no ano do bicentenário da Independência. Muita gente dará opinião, surgirão reportagens e o tema pode aparecer de muitas formas. Não perca tempo: uma boa maneira de estar preparado para a data é ler o recente Independência do Brasil, de João Paulo Pimenta (Ed. Contexto). Obra geral, bem-feita para ter uma visão ampla que o professor da USP oferece ao grande público. Se você não conhece, aproveite também para explorar 1822, de Laurentino Gomes (Globo Livros). Sempre gostei muito da trilogia (1808, 1822 e 1889), bem como os recentes sobre Escravidão. Por fim, se quiser estar "afiado" para o evento, também pode conhecer duas biografias de protagonistas do processo de emancipação política: D. Pedro I, de Isabel Lustosa, e José Bonifácio, de Miriam Dolhnikoff (ambos da Cia. das Letras). Boas biografias são fascinantes e parecem prender a pessoa que lê de uma forma muito positiva.

Se o outono trouxe o desejo de boas narrativas literárias, Herança (Miguel Bonnefoy, ed. Vestígio) fará você passar horas agradáveis. O livro conheceu enorme sucesso na França. O autor faz um diálogo com as tradições da América e da Europa e mostra como a história afeta a percepção do mundo. Sempre gostei de autores com pés em dois mundos: Camus, Orwell, Carpentier...

Está com pensamentos densos sobre a busca da serenidade, o sentido da vida ou a necessidade de reorientar objetivos? Então, minha reflexiva leitora e meu meditabundo leitor: é hora de encarar três breves obras filosóficas. Estou falando de Grandes Mestres do Estoicismo (Edipro). Você vai descobrir muitas coisas bebendo das ideias Sobre a Brevidade da Vida (Sêneca); Meditações (Marco Aurélio) e o célebre Manual de Epicteto. Os estoicos quase sempre são muito práticos. A oportuna publicação da trilogia serve para amantes da filosofia e para o público em geral.

Comemos muito, pensamos sobre alimentação e usamos a boa mesa como fonte de sociabilidade. Jacques Attali traz ideias muito inovadoras no texto A Epopeia da Comida, uma Breve História da Nossa Alimentação (ed. Vestígio). Com frequência, volumes de história da alimentação trazem informações algo aristocráticas sobre as origens de um prato ou quando passamos a comer trufas. Grandes manuais do tema parecem ter um toque aristocrático-decadentista. O autor foge desse estereótipo. É uma viagem sobre a história da distribuição e elaboração de hábitos alimentares com partes analíticas da fome. Faz repensar a comida como fato geográfico, social e político.

O tema do machismo é fundamental para qualquer ideia educacional e de grupos de trabalho. Sugiro que as escolas, escritórios e as famílias façam grupos de estudos com o livro de Ruth Manus: Guia Prático Antimachismo para Pessoas de Todos os Gêneros (Sextante). Debater o machismo e a questão da mulher é uma aposta na civilização e na melhoria do nosso mundo. Ler o livro da Ruth, claro e contundente, é um ponto de partida.

Existe uma opção muito interessante. Só conhecemos um autor ou uma autora se entrarmos mais fundo no seu universo criativo. Que tal escolher um livro clássico e explorar mais obras de quem o concebeu? Deseja aceitar o desafio de entrar no cérebro de Clarice Lispector? Prefere Conceição Evaristo? Vai nadar de braçadas nos contos de Chekhov? Aceita o desafio de entender mais Ana Maria Gonçalves ou Itamar Vieira Júnior? Escolha alguém bom e pesquise sobre duas ou três melhores obras. Vá fundo! É uma viagem maravilhosa. Você verá repetição de alguns pontos e transformações de outros. Sua maneira de ler será transformada.

Quando eu estava no fim da minha graduação em História, a coletânea de Amin Maalouf foi uma descoberta. Ela apresentava as Cruzadas vistas pelas leituras de documentos árabes. Foi uma grande lição sobre fontes e a subjetividade das narrativas. Em 2011, o autor ingressou na Academia Francesa. Na obra O Naufrágio das Civilizações (Vestígio), ele analisa os conflitos identitários, o islamismo radical e o ultraliberalismo como riscos à civilização. O livro deu-me muitas pistas analíticas sobre o mundo em que vivemos. Concordando ou discordando, torna-se, desde o lançamento, obra fundamental para debater onde estamos na eterna encruzilhada da história.

Em resumo, minha sedenta leitora e meu ávido leitor: ler é uma chave que abre o mundo e útil, igualmente, quando o mundo perde sentido ou sabor. Leia para mudar tudo, leia para entender o que está acontecendo e leia, enfim, para sobreviver ao naufrágio das coisas e do sentido. As pessoas que amam o mundo e querem mudá-lo devem buscar livros. Aqueles que detestam o mundo necessitam isolar-se, igualmente, lancem-se aos autores. Leia sempre e cada vez mais. Invista em si. Um bom livro aberto é uma lufada de esperança.

LEANDRO KARNAL

26 DE MARÇO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

A AURORA DE PORTO ALEGRE

A lei municipal 3.609, de 29 de dezembro de 1971, oficializou o dia 26 de março de 1772 como data da fundação de Porto Alegre, que neste sábado celebra, portanto, 250 anos. Foi nessa data que uma Provisão Régia e uma Provisão Eclesiástica, expedidas no Rio de Janeiro, desmembraram Porto dos Casais de Viamão, capital da província desde que Rio Grande caíra nas mãos dos espanhóis, em 24 de abril 1763. Naquele ano de 1772, o vilarejo de Porto dos Casais foi elevado à condição de freguesia, termo derivado de filii ecclesiae, filhos da igreja, ou seja, os que habitavam em torno de uma capela, uma paróquia, e esta era forma elementar de circunscrição civil.

A igreja situava-se na margem do rio (Delta do Jacuí), onde hoje é a Praça da Alfândega. O nome dado à freguesia foi Porto de São Francisco dos Casais, mas em 18 de janeiro de 1773 este se alteraria para Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, com homenagem à cidade de Portalegre, no Alto Alemtejo, Portugal. Ano que vem, portanto, à luz da documentação histórica, poderemos comemorar novamente os 250 anos de Porto Alegre.

Há, todavia, antecedentes a partir do pequeno porto situado na foz do Riacho, o atual Arroio Dilúvio, e que então desaguava no Lago do Viamão (Lago Guaíba) na região onde hoje há o aterro do Parque Harmonia. O Porto do Viamão passou a chamar-se Porto dos Dorneles a partir de 1740, em alusão ao sesmeiro Jerônimo de Ornelas Menezes e Vasconcelos, que deu origem à ocupação dessa região em 1732. Neste caso, em 2022 podemos comemorar também os 290 anos da cidade.

Em abril de 1751, o governador de Santa Catarina mandou para o Porto Dorneles casais açorianos recentemente radicados no Desterro (Florianópolis); em Rio Grande, porém, dispersaram-se e somente o casal de Francisco Antônio da Silveira (o Chico da Azenha) avançou para cá, e recebeu lote de terras junto ao Riacho; construiu sua casa no local onde depois ergueu-se o já destruído Cinema Castelo, e instalou um moinho (azenha) que resistiu até pouco tempo atrás no pátio do Hospital Ernesto Dorneles.

Ao final de 1751, nova leva de açorianos chegou ao Desterro e de lá partiu rumo ao Porto Dorneles, onde chegaram no final de janeiro de 1752, para ocupar, inicialmente, área junto ao Morro de Santana; diante da falta de água, porém, logo mudaram para as adjacências do porto. Eram 60 casais, dos quais sabemos os nomes de 59, e ocuparam os dois lados da península, dando origem à efetiva ocupação da região que um dia se tornaria o centro da cidade e logo ganharia a persistente urbanização em quarteirões. Praticaram boa agropecuária, desenvolveram-se e expandiram-se para chácaras no rumo de Viamão e para o Sul. Por essa razão, em janeiro poderíamos ter comemorado também os 270 anos desta cidade, com seu lindo nome de Porto dos Casais, e com a bela homenagem que lhes rendeu o escultor Carlos Tenius, no Monumento dos Açorianos (1974), que estiliza com corpos humanos o bojo do navio que trouxe os casais, com uma Vitória na proa e o arrojo de linhas modernas, apontando o futuro de uma cidade.

Felizes aniversários, Porto Alegre!

FRANCISCO MARSHALL

26 DE MARÇO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

A INVISIBILIDADE DAS SEQUELAS

Epidemias de doença virais podem deixar pessoas com sequelas que não são levadas a sério, nem pelos médicos nem pela sociedade.

A covid-19 é mais um exemplo. Depois de sobreviver à fase aguda, os pacientes são considerados curados, mesmo que ainda apresentem sintomas, não importa se frustros ou exuberantes.

Esse fenômeno não é novo na história das epidemias, como discute Laura Spinney, no último número da revista Nature. A gripe espanhola, que se disseminou pelo mundo em 1918, deixou um rastro de quadros neurológicos compatíveis com uma doença conhecida como encefalite letárgica, que ganhou o nome de "doença do sono", por causa da sonolência que a caracterizava.

Das pessoas que se curavam dessa sequela, cerca de 80% desenvolviam quadros neurológicos muito semelhantes aos da doença de Parkinson.

Nunca ficou demonstrada a presença do vírus influenza no tecido cerebral, de forma a estabelecer uma relação clara de causa e efeito, mas o número de casos de encefalite letárgica e de doença de Parkinson aumentou de forma significativa ao redor do mundo, nos anos que se seguiram à pandemia.

Nas pandemias de influenza dos anos 1957 e 1968, também houve aumento da incidência de complicações neurológicas, entre as quais a encefalite letárgica. Como na gripe espanhola, também não foi possível comprovar relação de causa e efeito entre o vírus e o processo inflamatório que acomete o tecido cerebral na encefalite.

Apesar dessa dificuldade, está bem documentado que o vírus influenza infecta o tecido cerebral e provoca inflamações em diversos órgãos. Vários estudos detectaram ondas de ataques cardíacos e derrames cerebrais depois das temporadas de gripe. Crianças com encefalite pós-gripal são raras, mas podem desenvolver quadros fatais ou evoluir com danos neurológicos.

Influenza não é a única doença infecciosa capaz de deixar sequelas. O vírus do sarampo pode causar uma doença neurológica rara conhecida como pan-encefalite esclerosante subaguda, que pode cursar com quadros neurológicos graves.

Décadas depois de ter tido poliomielite, muita gente volta a se queixar de dificuldades respiratórias e motoras de grau variável, que podem eventualmente levá-los de volta para a cadeira de rodas e à dependência de suplementação de oxigênio (as estimativas variam de 20% a 85%). Durante muitos anos, esses casos ficaram sem explicação.

Tais reativações de sintomas de uma doença viral ocorrida muitos anos antes, foram incapazes de despertar a atenção dos médicos ou dos pesquisadores para explicá-las e descobrir formas de prevenção.

Cerca de seis meses depois do aparecimento dos primeiros casos de covid-19, vieram os primeiros relatos de sintomas que persistiam por semanas ou meses. Hoje, sabemos que a "covid longa" é uma síndrome caracterizada por cerca de 200 sintomas que envolvem pelo menos 10 órgãos e sistemas, entre os quais coração, cérebro, pulmões, pele, intestinos e nervos periféricos.

Queixas de fadiga, dispneia aos pequenos esforços, queda de cabelo, perda de olfato e paladar, fraqueza muscular, sensação de formigamento nas extremidades e um conjunto de alterações cognitivas que recebem o nome de "fog" cerebral são as mais frequentes. Podem durar semanas ou meses, como em outras síndromes pós-virais.

Embora corram mais risco de desenvolver covid longa os pacientes que tiveram manifestações graves na fase aguda, têm sido descritos inúmeros casos entre pessoas com apresentações pouco sintomáticas da doença.

Na história das epidemias, com a atenção voltada para as demandas médicas da fase aguda, os sistemas de saúde sempre negligenciaram os quadros crônicos provocados por elas. Desta vez, no entanto, a internet fez a diferença: grupo de pacientes com covid longa formaram comunidades online para compartilhar seus problemas e cobrar soluções para eles.

Em maio de 2021, economistas da London School of Hygiene & Tropical Medicine estimaram que as sequelas da covid consumiam 30% dos gastos de saúde com a epidemia. Essa avaliação inicial não levou em conta os custos com os transtornos psiquiátricos nem os das crianças com sintomas de longa duração.

As estimativas atuais são de que a pandemia deixará um rastro de doenças crônicas pós-virais que exigirão mais recursos do que o próprio tratamento da fase aguda em hospitais, à medida que a disseminação for controlada.

DRAUZIO VARELLA

26 DE MARÇO DE 2022
MONJA COEN

QUAL É O SEU PAPEL?

Hoje é hoje. Não é ontem nem amanhã. Entretanto, sem o que foi e o que será o que é não existiria. Você está lendo no futuro o que estou escrevendo no passado. E agora estamos no presente.

De presente a presente, desatamos nós e, delicada ou rudemente, desembrulhamos papéis. Alguns presentes chegam bem embrulhados, caixa dentro de caixa e no fim tudo vazio. Outros vêm de qualquer jeito, desalinhados, embrulhados em jornais velhos. Em cada presente, uma mensagem secreta e translúcida. Será que há algo a ser revelado?

Fotos estão presentes no negativo. De negativo a negativo revela-se no positivo. Menos e menos dá mais. Negar pode levar a afirmar.

Da Negação ao Despertar é o título de um novo livro meu. Não é a negatividade de quem jamais vê a luz no fim do túnel. Nem o negativismo de quem duvida da ciência, da realidade e da vida. Que, como a avestruz assustada, enfia a cabecinha num buraco e se sente protegida.

Há um negar que leva ao despertar. Tudo que não é leva ao que é. Nada tem uma autoidentidade substancial independente e separada. Tudo está em movimento, transformação. Eu você, esta página de jornal, que hoje nos faz ler, refletir e amanhã estará descartada. Entretanto, embora a impressão fique mais fraca e o papel amarelado, o que foi escrito e lido fica em nós guardado. As letrinhas causam alteração.

Há quem tenha boa memória e há quem de nada lembre. Preferiu fingir que esqueceu. O comediante se torna herói e o homem forte destrói. Qual o seu papel? Ontem foi diferente de quem é agora. Amanhã, domingo, o que acontecerá?

Cada acontecimento, experiência, visão, sentido, cheiro, audição transformam a nós e ao mundo. É impossível separar você de mim, eu de você, nós da Terra e de tudo que aqui vive e habita. Todos os seres do passado e do futuro neste instante aqui se manifestam: árvores e mares, rios e florestas, traidores e mendigos, sábios e poetas.

Qual o seu papel? Já experimentou mudar a fala, o olhar, o andar e representar outro personagem em outro lugar? Filho, filha, neto, bisneta, amigo, inimigo, amor, desafeto, pai, mãe, avô e avó - temos múltiplos papéis na família e no mundo, nos estudos e no trabalho. Vizinhança, parceria, plantação, cavalaria.

O laço bem jogado derruba e prende um boi ou um cavalo. Há quem prenda a si mesmo nas tramas de um abraço.

Tudo e o todo, em constante movimento. Há algumas mudanças decididas e orientadas por mentes despertas. Outras ocorrem sem direcionamento por pessoas distraídas, sem atenção, esburacando ruas e corações.

Você reconhece seu papel e posição? É capaz de estar presente no presente e ser excelente nas mais variadas funções? Não para se exibir e provar sua capacidade, mas para tornar a realidade mais agradável ao maior número de seres? Há tanto a ser feito...

Estamos chegando ao fim das águas de março, mas ainda haverá enchentes e desabamentos. Entramos no outono com uma brisa refrescante, mas ainda haverá dias quentes e úmidos. As homenagens às mulheres desencadearam respeito e consideração, mesmo assim ainda haverá feminicídios, abusos, exploração, salários inferiores e insegurança.

Ainda há guerras e violências, fome, miséria, drogas, armas e dependências. Há ternura e há fartura, há solidariedade e afeto, reconhecimento, singeleza e ternura. Escolha. O que fazer no presente para que seja um bom presente?

Mãos em prece.

MONJA COEN

26 DE MARÇO DE 2022
J.J. CAMARGO

ONDE ESTAMOS ERRANDO?

A Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, criada em 1808 pelo príncipe regente Dom João VI, é a segunda mais antiga das faculdades médicas do Brasil. E tem uma histórica preocupação com a qualidade da formação profissional no nosso país.

O simpósio sobre educação médica girava em torno de uma pergunta central que todos tínhamos que, de alguma maneira, responder: "O que estamos errando na formação médica?".

O tipo de pergunta que desconserta porque naturalmente somos mais afeitos ao sucesso, qualquer que seja a tarefa.

Mas sem espaço para choramingar, havia de elencar as causas de um desempenho no qual, a julgar pelo produto final, estamos fracassando.

Certamente, de um tema tão multifacetado e complexo não se pode esperar uma resposta única e abrangente. É certo que professores, alunos e circunstâncias mudaram, e com uma velocidade estonteante capaz de triturar os conceitos mais enraizados e pretensamente definitivos neste mundo líquido, de transformações permanentes, em que a única certeza é a de que não sabemos como o amanhã será.

E claro, é sempre mais difícil assumir o quanto erramos, por imprevidência, inércia, boa-fé ou comodismo. Vendo retrospectivamente, foi uma ingenuidade imaginar que seria previsível o resultado da obra pronta, ignorando-se os indícios de que a qualidade da matéria-prima fosse duvidosa.

Impossível não evocar a parábola de Galeano, na qual um escultor famoso recebeu uma grande pedra e um pedido da prefeitura para produzir, com seu talento, um grande cavalo para colocar na praça central da cidade. Subido numa escada, pôs-se a trabalhar, a golpes de martelo e cinzel, sob os olhares curiosos dos meninos do bairro.

Dias depois, começaram as férias, e as crianças foram para as montanhas ou o litoral. Dois meses mais tarde, quando voltaram, um lindo corcel ocupava o ateliê do artista, e um dos meninos, com os olhos muito arregalados, perguntou: "Como é que você sabia que dentro daquela pedra havia um cavalo?".

Os tempos mudaram, as prioridades inverteram-se, a instantaneidade da informação induziu à ideia equivocada de que pressa é virtude, que o açodamento é sinônimo de inteligência, que a prudência é indício de insegurança, e que o número de seguidores é prioritário no currículo de qualquer candidato, para qualquer função.

A imaturidade decorrente passou a se manifestar na incapacidade cognitiva de redigir um texto que exprima emoção e, muito fortemente, na fugacidade das relações amorosas, como se amor e ciúme tivessem por súbito desencanto se tornado sentimentos obsoletos.

Na verdade, estávamos a caminho de descobrir que a falta de pertencimento afetivo é a mais aguda expressão de pobreza emocional, congênita ou adquirida pelo exercício da impessoalidade.

Com evidente repercussão na formação profissional, a hierarquia acadêmica começou a ser questionada, os influencers sentiram-se tratados como gurus, e ninguém se espantou diante da espantosa rotatividade desses virtuosos palpiteiros.

A inteligência emocional, reconhecida como indispensável para quem pretenda interagir com pessoas necessitadas de ajuda, passou a ser desprezada, ignorando-se que as diferenças individuais dos aprendizes exigem que cabeças sensíveis e experientes sirvam de modelo a quem se lança na difícil tarefa de cuidar de seres humanos, equiparados na ânsia pela felicidade, mas completamente diferentes nos atributos para alcançá-la.

Nós, professores, continuamos a receber pedras brutas de diferentes tamanhos, mas agora sem nenhuma certeza do que tenham dentro.

J.J. CAMARGO

26 DE MARÇO DE 2022
DAVID COIMBRA

A arte de tirar a sesta

Os espanhóis fazem a sesta. E fazem sem remorso. Das duas às cinco da tarde, boa parte do país simplesmente dorme. É admirável. Sempre quis cultivar o hábito da sesta, mas como lidar com o sentimento de culpa? Acho que foi o maldito sistema capitalista que inoculou na minha mente a irreprimível sensação de que a hora depois do almoço é para produzir.

Produção, produção, produção. Bens de consumo, é isso que vocês querem, não é? A mais valia. O negócio de vocês é a mais valia! Por causa dessa ardilosa filosofia calvinista, passei a vida reprimindo minha vontade de fazer a sesta. Mesmo assim, o corpo reivindica. O corpo não está nem aí para a ética burguesa.

Houve uma época, lá pelos 16 anos de idade, em que trabalhei no departamento de cobrança da J.H. Santos, uma grande loja de departamentos que havia em Porto Alegre. Eu não cobrava nada de ninguém, meu serviço era interno, de escritório. A sede ficava ali na Otávio Rocha, em frente à Renner. Começava o trabalho bem cedo, pouco depois das sete da madrugada. Tinha de chegar, bater o ponto no oitavo andar e depois descer para a minha sala. Se não batesse o ponto no horário, descontavam o dia. Quer dizer: trabalhava de graça.

Era terrível, porque morava lá no IAPI. Então, precisava acordar cedo, praticamente ainda noite, uma dor. Resultado: depois do almoço, dava-me um sono, mas um SONO. Era invencível. Não havia nada que resolvesse. Tomava café e dormia com a xícara na mão, ia lavar o rosto e dormia no banheiro. Eles me davam uns formulários para preencher, uma folha de papel com uns quadradinhos. Eu devia escrever uns números naqueles quadradinhos. Cristo! Os quadradinhos e os números começavam a se embolar na minha visão, as minhas pálpebras pesavam e a cabeça começava a se transformar numa bola de boliche. Estava quase afundando o queixo no peito e vinha o chefe de lá e desferia o maior tapa na mesa, PLÁ!

- Acorda, rapaz! Eu levava o maior susto, pedia desculpas e seguia preenchendo os quadradinhos.

Lembro que, na época, li uma reportagem sobre a tradição da sesta na Espanha. Contava que muitas empresas mantinham caminhas aconchegantes em uma sala escura para os funcionários descansar depois do almoço. Suspirei. A velha e boa Espanha.

O general Geisel fazia a sesta. Depois do almoço, ele subia para seus aposentos particulares no Alvorada, tirava o terno e a gravata, entrava em um pijama e dormia por exatos 30 minutos, ao cabo dos quais se levantava, vestia-se de presidente e ia

despachar. Pelé, no intervalo dos jogos, estendia-se no banco duro do vestiário e cochilava por 15 minutos. Em seguida, recomposto, voltava a campo e marcava mais dois gols. E Churchill, que era de dormir pouco à noite, mesmo durante os ardores da Segunda Guerra Mundial, parava tudo após o almoço, repousava por meia hora e retornava à lida de charuto empinado, disposto a dizimar nazistas. Já o meu avô, o sapateiro Walter, reservava 15 minutos para si mesmo depois da uma da tarde. Ele fechava a sapataria e ia para os fundos. Apagava as luzes, recostava-se em uma espreguiçadeira, ligava o rádio no Sala de Redação e adormecia ouvindo o Foguinho discutir com o Cid.

Pensando em tudo isso, convenci a mim mesmo de que devia vencer meus preconceitos e tentar praticar a sesta. Afinal, tenho repetido meus 16 anos e acordo para trabalhar, quando ainda é noite.

Certo. No primeiro dia, interrompi o texto bem na palavra "corajosamente", tomei de uma colcha macia como uma carícia de mãe e fui para o quarto. Fechei os olhos. Senti o torpor dominar meu corpo. Afrouxei a resistência. Mas, depois de cinco minutos, sentei na cama gritando:

- PRODUÇÃO! PRODUÇÃO!

Aqueles cinco minutos me fizeram mal e passei o resto do dia me sentindo estranho.

Não repeti a experiência durante toda a semana, mas, dias atrás, atravessei a manhã escrevendo e preparando um feijão com linguiça, temperado apenas com alho e sal. Imodestamente, afirmo que produzi um caldo cremoso, com sabor de comida da avó. Em 20 minutos, fiz um arroz soltinho, aliás ótimo arroz, vindo da Tailândia. Cortei um tomate em fatias da espessura de uma moeda de um real e temperei com sal, limão e azeite de oliva. Acompanhei o repasto de uma, uma única taça de tinto da Califórnia. Saí da mesa suspirando, levando no rosto meio sorriso e meio olhar. Então, sem nada premeditar, sem planejamento e sem solenidade, me estiquei no sofá da sala e, em um minuto, adormeci feito um gato no sol. Depois de um quarto de hora, despertei, sentindo-me muito, muito bem. Sentindo-me um espanhol.

Voltei para o computador sabendo-me renovado. Olhei para a tela. Ataquei o texto, murmurando suavemente:

- Produção... Produção...

Texto originalmente publicado na edição de 28 e 29 de janeiro de 2017 - DAVID COIMBRA


26 DE MARÇO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

OS 250 ANOS

Tudo é tão imenso em Porto Alegre que até os 250 anos de existência, comemorados neste 26 de março, em verdade, vão muito além. O aniversário é apenas a data oficial de quando a aldeia foi elevada à condição de freguesia em 1772.

As 60 famílias açorianas que fundaram o Porto dos Casais desembarcaram aqui em 1751. Logo, ocuparam o morro de Sant´Ana e o vilarejo se expandiu. A sede da capitania era Rio Grande, que em 1763 é ocupada pela Espanha, e a capital transfere-se para Viamão. Mas é Porto Alegre que cresce e, no final de 1812, torna-se sede da capitania de São Pedro do Rio Grande.

Daí em diante, viveu diferentes situações. Na Revolução Farroupilha, só por poucos meses esteve em poder dos Farrapos, expulsos da vila pelas forças do Império. Por isso, em 1841, Dom Pedro II dá à cidade o título de "mui leal e valerosa", que até hoje está no brasão, equivocadamente.

Em 1855, a epidemia de cólera matou 1,4 mil pessoas. Em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, a cidade foi pioneira na libertação dos negros escravos. Tempos atrás, em pleno século 21, um negro foi morto a pancadas por "seguranças" de um supermercado, confundido com "ladrão" pela cor da pele.

Em 1950, quando vim estudar em Porto Alegre, a cidade tinha 600 mil habitantes. Hoje, tem mais de 1,5 milhão. Aqui formei minha visão de mundo e de vida. Morava na Casa da JUC, na Praça da Matriz, a catedral estava ainda em construção e, sábados e domingos, ouvia música erudita executada pela Banda Municipal no Auditório Araújo Vianna, onde hoje está a Assembleia Legislativa.

Antes, ainda guri, assisti a um jogo de polo no local onde hoje está o Hospital de Clínicas. Guardo na retina o prédio "rococó" do Colégio Júlio de Castilhos, na Avenida João Pessoa, que se incendiou no final de 1951.

Nessa Porto Alegre do passado, nos banhávamos no Guaíba, hoje poluído. O rio foi invadido e aterrado, mas a Orla atual virou belo ponto de lazer, descanso e exercício da população.

Enfim, como diz a canção, "Porto Alegre é demais".

FLÁVIO TAVARES

26 DE MARÇO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

PORTO ALEGRE, 250 ANOS

Porto Alegre alcança os 250 anos se reconciliando com a sua grande riqueza natural e vivendo uma nova efervescência urbana e econômica após os dias mais soturnos da pandemia. A revitalização da Orla, que segue em curso, devolveu a convivência da população com o Guaíba, o corpo hídrico que está na origem do nascimento e do desenvolvimento da cidade. Suas margens, agora dotadas de bela infraestrutura recém construída para lazer e prática de atividades físicas, renovaram o orgulho dos porto-alegrenses e, mais importante, tornaram-se um ponto de encontro democrático para cidadãos de todos os bairros em busca de momentos aprazíveis. Uma genuína redescoberta.

Há, ao mesmo tempo, uma ebulição que resplandece com a retomada das interações sociais, a volta dos eventos culturais e esportivos e com novos empreendimentos voltados à gastronomia e ao turismo. Regiões degradadas, como o Centro Histórico e o 4º Distrito, muitas vezes a primeira visão que o visitante tem da Capital, ganham projetos que prometem revigorá-las e torná-las outra vez pulsantes e dinâmicas. No quesito econômico, a Capital busca cada vez mais se firmar como polo de tecnologia e inovação, consolidando a sua vocação voltada aos serviços, em que despontam ainda áreas como educação e, sobretudo, saúde. São iniciativas e políticas que unem poder público, empreendedores privados e sociedade civil e vão na direção correta ao contribuir para uma Porto Alegre conectada com o futuro, retendo cérebros e impulsionando o desenvolvimento da cidade.

A Capital assiste no presente ao andamento de uma série de obras e planos para, assim como ocorreu no passado, moldar o porvir. Sejam na infraestrutura viária, no saneamento ou no embelezamento, essas iniciativas devem em sua essência ser voltadas à melhoria da qualidade de vida da população. Ao lado dessa remodelação dos aspectos físicos da cidade, um organismo dinâmico em constante transformação, não deve ser perdida de vista a importância de requalificar serviços essenciais, como transporte de passageiros, limpeza das vias e praças, recuperação ambiental de lugares como o Arroio Dilúvio, atenção às periferias e combate à desigualdade social. Uma revitalização plena da cidade não prescinde de cuidar dos invisíveis ou de quem vive em pontos mais afastados dos olhos da opinião pública que tem voz para reivindicar. São desafios, aliás, comuns a todas as metrópoles brasileiras.

Se o leitor atentar, acima e nas reportagens publicadas nesta edição de Zero Hora é marcante a presença de palavras com o prefixo "re", no sentido dar novo impulso a algo. Reconciliar, revitalizar, renovar, redescobrir, revigorar, remodelar e retomar são alguns dos verbos empregados. É uma prova de que Porto Alegre, ao longo de seus dois séculos e meio de história, conseguiu em diferentes momentos fulgurar, mas, por diversas razões, passou por períodos de certo abatimento, o que parece começar a ficar para trás, graças à mobilização de seus cidadãos e lideranças.

O destino da Capital não importa somente para os que vivem nela. Como maior cidade e centro administrativo, é uma espécie de símbolo da visão do Rio Grande do Sul. Une uma zona rural produtiva e diversificada, ímpar para grandes metrópoles, com o burburinho frenético do cotidiano citadino. Porto Alegre tem ao mesmo tempo um ar provinciano e uma atmosfera cosmopolita. São contrastes que se complementam. Alia a tradição e as maravilhas naturais - como o Guaíba e seu inigualável pôr do sol - à modernidade e à tecnologia de ponta. Com seu charme, feridas e variedade étnica, resume e dá os contornos da compreensão externa sobre o que é este Estado e quem é a gente do garrão do Brasil. Tornar a Capital um lugar mais próspero e agradável para viver, ao fim, se traduz em ganhos tangíveis e simbólicos não só para os porto-alegrenses, mas para os gaúchos de todos os rincões. 


26 DE MARÇO DE 2022
+ ECONOMIA

Dólar cai, mas juro vai subir mais Terreno na lua?

Nesta semana, a Federação das Indústrias do Estado (Fiergs) anunciou que pretende entrar no metaverso. Seria a primeira entidade a ingressar no mundo virtual, e ainda teria "sede própria". Em todo o mundo, já existem "imobiliárias" especializadas em vender terrenos digitais. Mas essa será uma nova versão dos "terrenos na lua", golpe que ganhou popularidade nos anos 1960, depois da primeira alunissagem da história, em 20 de julho de 1969? No caso da Fiergs, a proposta faz sentido: a entidade pretende usar o metaverso como canal de comunicação para temas institucionais e para promover marcas e produtos das indústrias gaúchas.

Existe um "mercado imobiliário" vendendo terrenos no metaverso, com "zonas nobres" - onde há maior quantidade de usuários ativos - e periféricas. A revista Fortune projetou que pode envolver "vários trilhões de dólares". Há relatos de "compra de terreno" por US$ 2,43 milhões.

Depois que o IPCA-15 ficou em 0,95% em março, "acima das expectativas mais pessimistas", como definiu um analista, o dólar acentuou a queda no mercado de câmbio no Brasil. É bom lembrar que o IPCA-15 é conhecido como "prévia da inflação" porque é uma pesquisa igualzinha à do índice considerado oficial no país, apenas em outro período.

Sinal de que mais inflação é bom e de que a economia brasileira vai bem? Não, ao contrário: as projeções agora embutem maior probabilidade de que a alta já prevista em um ponto percentual no início de maio não seja a última do atual ciclo de alta.

Nunca é demais repetir que a causa básica da valorização do real é a elevação do juro no Brasil. É fácil de entender: investidores são remunerados pela rentabilidade de suas aplicações e pela taxa de juro. Se só ao entrar no Brasil já garantem 11,75% ao ano, enquanto a taxa básica dos Estados Unidos está em 0,5%, é óbvio que a Selic virou um ímã de dólares. Isso é ruim? Não pela consequência, porque dólar mais barato ajuda a conter a inflação, mas pela causa.

Como se sabe, a função do juro em alta é reduzir consumo, investimento, crédito. Isso significa que a economia brasileira é obrigada a desacelerar, ou seja, a crescer menos. Então, se a inflação segue em alta, o mesmo ocorre com o juro, que tira velocidade da atividade produtiva.

Quem mencionou a inflação "acima das expectativas mais pessimistas" foi Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos. Sua projeção era de 0,81%, e atribui a diferença a uma dupla simbólica: gasolina e perfumes - depois do mega-aumento surgiram memes com gasolina vendida em pequenos frascos. O segundo item também apareceu como surpresa não computada na previsão de 0,85% de Felipe Sichel, estrategista-chefe do banco digital Modalmais. Conforme o economista, o item do grupo Saúde e Cuidados Pessoais subiu 12,84%.

Mas se bons odores pressionaram a inflação, inspiram mau cheiro logo ali adiante: conforme Sichel, o IPCA-15 mostra "dinâmica e composição ainda desfavoráveis, reforçando nossa tese de elevação de 100bps na Selic em maio" ("bps" são pontos básicos, que equivalem àquele um ponto percentual que o BC já avisou que deve levar a Selic a 12,75%).

+ ECONOMIA

26 DE MARÇO DE 2022 
CHAMOU ATENÇÃO

Quarta dose autorizada no RS

Em reunião realizada na sexta-feira, gestores estaduais e municipais da área da Saúde decidiram, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), que cidades com disponibilidade de vacinas contra a covid-19 já podem começar a aplicação em idosos a partir de 80 anos, respeitando o intervalo de quatro meses após a terceira dose.

A Secretaria Estadual da Saúde (SES) deve publicar, nos próximos dias, mais detalhes sobre a quarta dose. Idosos com alguma injeção em atraso devem, primeiro, cumprir o esquema previsto anteriormente, dentro dos prazos referentes a cada imunizante.

Novos repasses de vacinas estão previstos pelo governo do Rio Grande do Sul para as prefeituras, conforme as próximas remessas que chegarem do Ministério da Saúde.

O imunizante preferencial para a quarta dose é o da Pfizer, mas as vacinas da Janssen e da AstraZeneca também podem ser utilizadas.

No Estado, a população total acima de 80 anos é estimada em 326 mil pessoas - dessas, de acordo com a SES, cerca de 243 mil (74%) já têm o primeiro reforço. Fica o alerta para quem não está em dia: aproximadamente 26 mil pessoas não tomaram nem a primeira injeção. Em relação à segunda dose, 8,3 mil idosos dessa faixa etária precisam tomá-la, e outros 63 mil necessitam da terceira.

Quanto ao público com a vacinação completa, 180 mil pessoas já estariam habilitadas para a quarta dose. Até o final da primeira semana de abril, mais 28 mil terão cumprido o prazo de quatro meses e poderão receber esse segundo reforço.

Em Porto Alegre, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) avalia o estoque para definir o início da imunização dessa parcela da população. Os octogenários se somam agora aos imunossuprimidos de 18 anos ou mais, que já tinham a orientação de procurar pela quarta dose.

 LARISSA ROSO

sábado, 19 de março de 2022


19 DE MARÇO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Ouvi falar

Estava saindo para ir ao teatro quando entrou um WhatsApp da minha filha que mora na França. "Mãe, está circulando nas redes um vídeo com imagens de Paris sendo bombardeada. Bem realista, mas fake, não te estressa". Assisti ao vídeo, uma obra-prima da montagem. No final, revelava ser uma peça de propaganda pró-Ucrânia, mas, antes de chegar aos créditos, quem tivesse filhos morando em Paris já teria enfartado.

Ainda sobre a guerra, há quem tenha acusado a modelo ucraniana Marianna Podgurskaya, grávida, de posar sobre uma maca, fingindo ter sido atingida pelo bombardeio russo em uma maternidade (prédio que teria sido convertido em uma base militar). E há quem diga que não houve encenação nenhuma, que ela se feriu realmente, mas está tudo bem, deu à luz uma garotinha saudável dias atrás.

São dois exemplos bobos se comparados aos estragos gigantescos que a desinformação provoca. É ela que nos governa nesses tempos em que tuítes funcionam como mísseis virtuais, alcançando qualquer ponto do planeta. Nunca foi tão fácil viralizar uma mentira, nem tão rápido, nem tão devastador. De filtros fotográficos que alteram a aparência, até a indústria internacional das fake news, ressignificamos McLuhan: o meio é a mensagem, porém desvinculada da verdade, descomprometida com a realidade, vadia e livre para destruir reputações, eleger canalhas e enganar os trouxas.

Quem ganha com isso? Os criminosos organizados e ocultos que automatizam o boato a fim de manipular a opinião pública. Antes que sejam punidos, eles já se valeram da ingenuidade de uns, da ignorância de outros e da preguiça da maioria: quem tem disposição para checar uma notícia, buscar outras fontes, conversar com pessoas que dominam melhor o assunto? É tarefa que consome um tempo que não está sobrando pra ninguém, e assim o comodismo se torna um aliado do mal. Acreditar em tudo ou acreditar em nada nos desorienta da mesma maneira.

Ao eliminarmos a fronteira entre verdade e mentira, liberamos o tráfego para o desvario. Textos circulam com autoria trocada, notícias de sete anos atrás são veiculadas como se fossem atuais, bizarrices ganham status de fato importante e edita-se qualquer declaração, bastando, para isso, um celular. Continuamos brincando de telefone sem fio, quando sussurrávamos no ouvido do coleguinha: "Vou almoçar na casa do Alberto porque é dia de lasanha", para descobrirmos, às gargalhadas, que a frase original havia se transformado em "A moça tem um casamento aberto com sua tia baranga".

Hoje vale o que foi mal compreendido e quem não aprova casamento aberto ou se ofende com a palavra baranga abraça uma causa que não existe e assim justifica seu voto. Desvario é pouco.

MARTHA MEDEIROS

19 DE MARÇO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Questionário Proust para realistas e sonhadores

Qual sua ideia de felicidade?

Realista: felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes.

Sonhador: um mundo sem guerras.

Qual seu maior medo?

Realista: que o litro da gasolina passe de R$ 10.

Sonhador: viver sem medo.

Qual seu maior defeito?

Realista: sonhar (mas muito de vez em quando).

Sonhador: deixar a realidade me contaminar (mas muito de vez em quando).

O que você mais detesta nos outros?

Realista: falta de pragmatismo.

Sonhador: excesso de pragmatismo.

Quem é você depois da pandemia?

Realista: o mesmo de antes, agora com três doses de vacina.

Sonhador: alguém que acredita ainda mais na vida.

Qual seu prato preferido?

Realista: depende do que estiver em oferta no supermercado.

Sonhador: prato cheio para todos.

Qual seu sonho de consumo?

Realista: um botijão de 13 quilos.

Sonhador: se as pessoas consumissem menos, o planeta não estaria do jeito que está.

Uma crença?

Realista: urna eletrônica.

Sonhador: democracia.

Se pudesse nascer de novo, quem gostaria de ser?

Realista: reencarnação não existe.

Sonhador: Beyoncé, óbvio.

Em que lugar do mundo gostaria de morar?

Realista: com o dólar pela hora da morte, vou ficando por Porto Alegre mesmo.

Sonhador: tenho passaporte vacinal, vou para onde eu quiser.

Como gostaria de morrer?

Realista: dormindo.

Sonhador: vivendo.

Qual é o seu lema?

Realista: um dia de cada vez.

Sonhador: tem uma luz no fim do túnel - e não é a da concessionária, que nos deixou dias e dias sem energia.

Que conselho deixaria para seus filhos?

Realista: não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da minha miséria.

Sonhador: olha lá em quem vocês vão votar.

CLAUDIA TAJES

19 DE MARÇO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Já viajei muito na minha vida. Confesso, para horror dos entusiastas, que passo por uma fase um pouco refratária a aeroportos, aviões, malas, hotéis e trâmites de deslocamentos. Em minha defesa: parte da minha vida profissional foi feita viajando: tanto para palestras como conduzindo grupos ao exterior. Tive experiências maravilhosas conhecendo lugares ou apresentando cidades. Porém, como a diferença entre remédio e veneno (ah, o phármakon!) é a dose, cresceu meu apego a minha casa.

Não conheço tudo e há mais coisas que eu deveria ver do que já contemplei. Apesar de ter ido ao Museu do Louvre, por exemplo, dezenas e dezenas de vezes, o acervo daquela instituição permite recortes novos e incursões maravilhosas todas as vezes. Sim, há obras desconhecidas e cidade ignotas. Exemplo? Contratei uma competente guia para minha visita a Ávila, na Espanha, em janeiro deste ano. Lúcia foi além do que eu esperava e me mostrou coisas que eu nunca tinha imaginado. Era historiadora e nativa da cidade. Foi muito bom! Aí chegamos ao ponto. Foi perfeito, todavia, não tão fascinante como na primeira, segunda, terceira ou quarta vez que estive em Ávila.

Meu saudoso amigo Marcelo Cunha acompanhou-me em inúmeras viagens pela Ásia. Diante das maravilhas da Muralha da China, do Palácio Imperial em Tóquio, das formações rochosas de Halong Bay no Vietnã ou das ruínas de Angkor Wat no Camboja, ele contemplava com alegria, ouvia minha explicação com silêncio atento e, após algum tempo, soltava o bordão: "Tá visto!". Era a deixa para seguir adiante.

Não me julguem, preclara leitora e sábio leitor. Ser blasé irrita, eu sei, mas não é um defeito de caráter. É algo estrutural da personalidade de algumas pessoas. Talvez seja pelo fato de eu ser aquariano com ascendente em Aquário: um ser do ar...

Eu sei que a repetição traz segurança para muita gente. Uma família me revelou que viajavam ao mesmo hotel no litoral catarinense todos os anos há duas décadas e reservavam os mesmos quartos. Eram felizes naquele espaço e esperavam com muita ansiedade pelos dias das férias. À medida que o patriarca da prole me explicava, eu supunha cenas do filme O Iluminado: eu, ensandecido, pelos corredores do hotel.

Sim, existe quem repita com alegria, quem necessite de um novo lugar sempre e outros que cansaram do conceito de viagem em si. Precisamos entender a variação da espécie humana. Penso nisso quando vejo uma mesa ao lado da minha pedir borda da pizza recheada com catupiry. Reflito: não é ilegal, não parece ferir a ética, apenas... é o jeito deles.

Quando eu tinha 24 anos, fiz 37 cidades europeias em uma única viagem. As passagens eram caras, eu era bem mais pobre e queria "aproveitar". De trem, em hotéis que nem sempre tinham banheiro no quarto e outros nos quais eu dormi completamente vestido como medida de higiene, fui indo a lugares fascinantes, quase todos pela primeira vez. Caminhei anos-luz. Tinha muita saúde, vontade inquebrantável de ver museus e igrejas, disposição de aventura e muita coragem. Na madrugada em Cracóvia ou Bratislava, vagando por Upsala ou Carcassone, amava me perder em ruelas e enfrentar o desafio da comunicação.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia um cara de Lisboa. Na casa dos 30, passei a viajar apenas por um país. Fazia roteiros temáticos: romantismo alemão, barroco francês, modernismo norte-americano.

Chegado aos 40, ficava em um lugar como Roma no mesmo hotel e fazia pequenas incursões para Assis ou Montecassino. No fim do dia, voltava ao meu hotel da Piazza del Popolo. O tempo flui e, depois dos 50, passei a amar turismo em um único lugar. Já me disseram que se trata do chamado "pós-luxo".

O que terei pela frente? São ciclos? Você, minha viajada leitora e meu rodado leitor, passaram pelas mesmas etapas? Foram se imobilizando e abandonando peregrinações a esmo? Ficamos mais sábios, mais entediados, mais equilibrados ou apenas mais chatos?

No ano que vem, terei 60 anos. Penso em um novo modelo. Alugar uma casa em algum lugar interessante e viver lá por um mês. Ir ao mercado, cozinhar, andar a pé ou de ônibus/trem, sem vontade de conquistar Troia, lutar com cíclopes ou feiticeiras. Queria imersão em cotidianos diferentes pelo Brasil e pelo mundo. Muita leitura, muito chá e algum vinho. Também imagino poucas, pouquíssimas fotos. Escolher uma música marcante como a Sinfonia do Novo Mundo (Antonín Dvorák) ou as Suítes de Cello, de Bach. Observar o pôr do sol e erguer um solene e entusiasmado brinde ao momento, à beleza de tudo e à felicidade tranquila. Acima de tudo, saudar as coisas que não preciso comprar, os lugares que não necessito ver ou rever e me entregar à plenitude fáustica de um momento perfeito.

Em resumo, depois de anos viajando para ter ou ver, quero fazer turismo de ser. Deve ser a maturidade, ou o cansaço, ou as duas coisas que costumam vir combinadas. E, finalmente, verei o mundo que meu furor juvenil não permitia contemplar. Assim, terei recuperado minha alma da obrigação de absorver o universo. Enfim, talvez pela primeira vez, uma viagem de esperança e de paz.

LEANDRO KARNAL