quarta-feira, 30 de abril de 2014



30 de abril de 2014 | N° 17779 
MARTHA MEDEIROS

O coletivo em chamas 

Quando bem criança, eu ia de ônibus com minha mãe para o centro da cidade. Era uma aventura.

No colégio, voltava para casa de ônibus todas as manhãs. Aliás, na primeira excursão do colégio, fui com as colegas conhecer o Rio de Janeiro e lá nossa pequena “máfia” (Ana, Alice, Suzana, Anelise...) ia de Botafogo para Copacabana também de ônibus, escondidas das freiras – o máximo de rebeldia da nossa adolescência.

Meu primeiro namorado não tinha carro, ainda que tivesse habilitação: quando a saída não era a pé, era de ônibus. Íamos a um boteco, a um show, a um parque – de ônibus.

E muito viajei de ônibus para Torres, Florianópolis, Canela, Santana do Livramento, Montevidéu. Já fui até Salvador de ônibus, ida e volta. Eu não era pobre: era jovem.

Depois, surgiu o lotação, e com ele a promessa de maior conforto e agilidade: aderi. E hoje não uso mais uma coisa nem outra, me desloco de automóvel e táxi, mas nunca perdi o respeito pelo principal transporte público não só do Brasil, mas de todos os países, inclusive daqueles que possuem metrô há mais de cem anos, caso da Inglaterra e da Argentina.

Se a roda é o símbolo-mor da evolução da humanidade, o ônibus é sua representação mais significativa. Ele leva trabalhadores aos seus empregos, estudantes às suas escolas, torcedores aos estádios, possibilita que as pessoas se visitem em bairros e cidades distantes, faz a economia girar, põe a vida em movimento.

Todo mundo, absolutamente todo mundo precisa de um, ou precisa de alguém que utiliza um.

O mesmo “todo mundo” que come pão e toma leite diariamente, só que ninguém faz passeata contra o aumento do pão e do leite. No entanto, quando há aumento da tarifa de ônibus, para-se uma cidade. Revoltados, os manifestantes enfrentam policiais, quebram agências bancárias e incendeiam... ônibus? Logo os ônibus?

Qualquer vandalismo é um tiro no pé, já que a cidade é de todos, mas queimar ônibus desafia meu racionalismo, me deixa perplexa, principalmente pela frequência com que tem acontecido. Virou uma banalidade, já nem é mais um ato político. Dos motivos mais bobos, como no caso de o seu time ter perdido um jogo, até algo mais trágico e emocional, como um tio atropelado na estrada, parece que a única forma de protestar é riscar um fósforo e pronto, temos uma fogueira e um revide. Só que não se está falando de um artefato de papel. 

Um ônibus é um bem enorme, pesado, robusto – e extremamente necessário na manhã seguinte. Um ônibus. Dois. Sete. Agora imagine 34 ônibus queimados de uma só vez, como aconteceu recentemente em Osasco, na grande São Paulo. Calcule o prejuízo não só para a empresa proprietária dos veículos, mas para a sociedade.

Não chegamos até aqui para voltar à pré-história.

domingo, 27 de abril de 2014

Ferreira Gullar

Arte de enganar pobres

É muito fácil assumir o governo e passar a dar comida, casa e dinheiro a milhões de pessoas

A esse populismo, que surgiu na América Latina há alguns anos, entendi de chamá-lo de neopopulismo para distingui-lo do outro, de décadas atrás, originário da direita, como o de Perón, na Argentina, e o de Getúlio Vargas, no Brasil; o atual, que Hugo Chávez intitulou de socialismo bolivariano, como o nome está dizendo, quer ser socialismo, isto é, de esquerda.

De fato, não é nem socialismo nem de esquerda, mas sim uma contrafação do projeto revolucionário que, em nosso continente, após o fim da União Soviética, ficou num beco sem saída: não podia insistir na pregação de uma ideologia que fracassara nem converter-se ao capitalismo, contra o qual pregava.

Por algum tempo, o PT ainda teimou em sua pregação esquerdista, mas, em face das sucessivas derrotas de Lula como candidato à Presidência da República, teve que mudar o discurso e, ao chegar ao governo, seguir as determinações do regime capitalista. Mas teve a esperteza de usar o poder para ampliar ao máximo o assistencialismo, em suas diversas formas, desde o Bolsa Família até medidas econômicas para ampliar o consumo por parte das camadas mais pobres.

A preocupação, portanto, não era, e não é, governar visando o bem-estar da nação como um todo, mas, sim, usar a máquina do Estado para crescer politicamente. O neopopulismo é isso: distribuir benesses às camadas mais pobres da população para ganhar-lhe os votos e manter-se indefinidamente no poder.

Não resta dúvida de que reduzir a miséria, melhorar as condições de vida dos mais necessitados, está correto. O que está errado é valer-se politicamente de suas carências para apoderar-se do governo, da máquina oficial, dos recursos públicos e usá-los em benefício próprio, sem se importar com as consequências que decorreriam disso.

É nas consequências que está a questão. A desigualdade social é inaceitável, e o objetivo de um governo efetivamente democrático é enfrentar esse problema e fazer o possível para resolvê-lo; como não é fácil resolvê-lo, deve, pelo menos, tomar as medidas certas nessa direção. Mas é mais fácil fingir que o resolve.

Foi Marx quem disse que só se muda o que se conhece. Noutras palavras, para resolver um problema como o da desigualdade social, há que conhecer-lhe as causas e as dificuldades para superá-las. É uma ilusão pensar que ele só existe porque os governantes nunca quiseram resolvê-lo. Isso, em muitos casos, será verdade, mas não basta querer. Pior ainda é fingir que o está resolvendo, lançando mão do assistencialismo demagógico próprio do populismo.

É fácil assumir o governo e passar a dar comida, casa e dinheiro a milhões de pessoas; dinheiro esse que devia ir para a educação, para o saneamento, para resolver os problemas da infraestrutura, ou seja, para dar melhores condições profissionais ao trabalhador e possibilitar o crescimento econômico. Esse é o caminho certo, que nenhum governante desconhece e, se não o segue, é porque não quer. O resultado é que não se formam profissionais e torna-se inviável o produto exportável, fonte de recursos para o crescimento econômico.

As consequências inevitáveis desse procedimento são, por um lado, induzir milhões de pessoas a não trabalharem e, por outro, inibir o crescimento econômico, enquanto aumentam os gastos públicos.

O neopopulismo, fingindo opor-se à desigualdade social, na verdade induz os beneficiados pelo Bolsa Família a só aceitarem emprego se o patrão não assinar a carteira de trabalho, o que constituiu uma conquista do trabalhador brasileiro. E foi o governo do Partido dos Trabalhadores que os levou a esse retrocesso. Pode? Não por acaso, o Brasil é hoje um dos países onde se pagam mais impostos no mundo, enquanto o número dos que vivem do dinheiro público aumenta todos os dias. Fazer filhos tornou-se fonte de renda.

Assim é o populismo de hoje, que veio para supostamente reduzir a pobreza, quando se sabe que uma família, por receber mensalmente menos da metade de um salário mínimo, não deixa de ser pobre. Claro, não passa fome, mas jamais sairá do nível de carência, a que se conformou, subornada pelo assistencialismo governamental. Esse é o verdadeiro mensalão, que compra o voto de milhões de eleitores com o nosso dinheiro.


quarta-feira, 23 de abril de 2014


23 de abril de 2014 | N° 17772
MARTHA MEDEIROS

A loucura mora ao lado

Por muitos anos, minha mãe morou num prédio que ficava ao lado de uma clínica dermatológica. O médico responsável morava com a família no andar de cima da clínica. Uma tranquilidade: no caso de um imprevisto, era só bater na porta desse vizinho providencial e o atendimento seria imediato e eficaz. Minha mãe nunca precisou, mas certa vez levou lá minha filha, ainda pequena, durante uma ocasião em que eu estava viajando. E o atendimento foi realmente imediato e eficaz. Um luxo.

Passado um tempo, a esposa e o filhinho do médico evaporaram. A clientela diminuiu. Até que a clínica fechou de vez. O médico passou a ser visto raramente. Barba por fazer, roupas desleixadas. Minha mãe e eu chegamos a comentar sobre a esquisitice da situação, mas não imaginamos que fosse algo grave, até que um dia nos deparamos com a foto dele estampada na página policial do jornal, sendo acusado do assassinato da mulher e do filho. Durante algumas semanas, muitas reportagens foram feitas, mas os corpos nunca foram encontrados e o aparente crime ficou sem solução. A casa foi vendida, o cara sumiu, o mistério venceu.

Lembrei desse episódio quando soube da tragédia de Três Passos. Todo crime é chocante, mas ficamos ainda mais chocados quando os prováveis assassinos são os chamados cidadãos acima de qualquer suspeita – como se dinheiro, beleza e classe social imunizassem contra a violência e a patologia. Não imunizam nem evitam nada, apenas nos colocam todos na mesma calçada. Talvez estejamos cumprimentando todo dia alguém que mataria uma criança, confiantes de que a vizinhança é gentil e que é uma sorte não vivermos entre marginais.

De forma objetiva, Bernardo foi vítima da ganância da madrasta e da amiga desta, mas necessitamos de uma explicação mais profunda e para isso recorremos ao nosso vasto cardápio de acusações. Há quem responsabilize o ateísmo, a televisão, os games, os filmes de ação, a liberalidade dos costumes, a decadência do império, a revolução feminista, a corrupção, os distúrbios psíquicos, o consumismo, a internet, o narcotráfico, o individualismo etc., etc., etc., até compor uma lista apocalíptica de fatores que justifique o saudosismo: “A vida já foi mais valorizada”.


Foi mesmo? Conforta pensar que somos vítimas de uma era, mas o fato é que a vida sempre foi trágica. Nosso susto é apenas proporcional à proximidade com que a tragédia se manifesta. Lá nos cafundós do judas, onde crianças também morrem pelas mãos de parentes, tudo parece mais fácil de deglutir: elas não se parecem com nossos filhos e nós não parecemos com seus pais. Mas, quando acontece na casa ao lado, aí a gente se embaralha e só nos resta entregar os pontos e reconhecer que não há explicação que console. Simplesmente o mundo é e sempre foi um hospício.

sábado, 19 de abril de 2014


20 de abril de 2014 | N° 17769
MARTHA MEDEIROS

Casa comigo

Os dois namorados estavam dentro do carro, à noite, estacionados em frente ao prédio da excelentíssima, discutindo a relação. Discutindo mesmo, aos berros, brigando. Em meio a algum pra mim chega!, surgiram dois meliantes armados e interromperam aquele bate-boca. Transferiram os namorados para o banco de trás e saíram em disparada com eles: sequestro relâmpago. Rodaram a cidade durante 50 minutos, fizeram saques em caixas eletrônicos, até que os levaram para um lugar ermo, no meio do mato.

Duas coronhadas, uma em cada um, rostos sangrando, mas era pouco: despiram os dois, deixando-os apenas com a roupa de baixo, e os amarraram em troncos de árvores. Não houve agressão sexual, mas não se pode dizer que foi um passeio no bosque. Em plena madrugada, abandonaram o casal imobilizado e seguiram com o carro do rapaz rumo à impunidade garantida.

Restou o silêncio. Assustados, os dois tentaram, tentaram de novo, e conseguiram, finalmente, se desamarrar. Livres, sozinhos, sem saber onde estavam, olharam um para o outro e tiveram um ataque de riso. Ele a abraçou fortemente e só conseguiu dizer duas palavras: “Casa comigo”.

Aconteceu mesmo. Quem me contou, olho no olho, foi a protagonista feminina da história. Eu não conseguiria imaginar pedido de casamento mais romântico. Sem vinho, sem luz de velas e sem anel de brilhantes – um pedido movido simplesmente pela emergência da vida, pela busca de uma felicidade genuína, pela supressão da razão em detrimento da emoção verdadeira.

Estavam para morrer, os dois. Foram unidos pelo mesmo pensamento desde que foram surpreendidos por dois estranhos armados: acabou. Não tem mais por que discutir a relação. Não tem mais relação. Não tem mais manhã seguinte. Não tem mais futuro. Acabou. Que perda de tempo. Para que brigar? Para que se estressar com ciúmes, com queixas, com mágoas? Acabou.

E então descobrem que não acabou. Desamarram-se, estão nus por fora e por dentro, despidos de qualquer racionalidade, apenas aliviados com o desfecho da aventura e absolutamente tomados pela potência do que é essencial na vida. O amor.

Casa comigo.

Estão casados há 10 anos. Não sei se plenamente felizes. É provável que os motivos dos ciúmes e das queixas e de tudo aquilo que explodiu naquela discussão dentro do carro antes do sequestro tenha se repetido outras vezes. A realidade impõe os seus caprichos. Obriga a gente a pensar e manter a sanidade. Maldita sanidade.

Mas houve um momento em que eles não pensaram. Só sentiram. Sentiram tudo. Sentiram sem amarras. Sentiram soltos. Sentiram livres. Pura emoção. E a emoção se impôs: casa comigo. Tiveram os piores padrinhos do mundo: a violência e o medo. Mas que beijo deve ter sido dado ali no meio do nada.


RUTH DE AQUINO
11/04/2014 20h38

Quem paga o pato é você

Lula fala como se não fosse em nada responsável por tudo o que está aí. E a maioria ainda acredita nele

O maior líder da oposição atualmente, que cobra mais medidas concretas da presidente Dilma Rousseff, que mais reclama do estado preocupante da economia brasileira, que ganha mais manchetes, que mais mexe com o mercado quando abre o verbo, e que mais tem condições de ganhar a eleição, todo mundo sabe, é Lula, o criador da criatura.

Lula sempre soube que não entende nada de economia. Mas entende de povo. Sabe que os brasileiros estão pessimistas e irritados com a inflação sentida no mercado e na feira. O tal “teto da meta” já foi estourado há muito tempo no dia a dia, e isso é fatal para uma líder sem carisma. As greves começarão a pipocar, para o povo recuperar o poder aquisitivo. Lula não gosta nadinha do que vê. Você pode chamá-lo do que quiser, menos de bobo.

Em sua entrevista a blogueiros, com repercussão na imprensa que ele ataca, Lula foi direto na jugular da companheira. “Poderíamos estar melhor, e a Dilma terá de dizer isso na campanha claramente: como a gente vai melhorar a economia brasileira.” Lula fala como se não fosse em nada responsável por tudo o que está aí. E a grande maioria dos eleitores acredita nele.

Se será ou não candidato, é outro papo. Lula interveio agora na Presidência de maneira mais bruta que o Comitê Olímpico Internacional interveio na Olimpíada do Rio. É o mesmo raciocínio. Quando um projeto corre o risco de desandar, entra no ringue o mais forte para evitar danos futuros. O projeto Dilma soçobra como os Jogos no Rio. Falta credibilidade a ambos.

Lula não quer ninguém atrapalhando o PT. Nem a pupila Dilma, nem o ex-vice-presidente da Câmara, André Vargas, hoje um náufrago abandonado à própria sorte. “No final”, disse Lula, “quem paga o pato (da amizade de Vargas com o doleiro preso Alberto Youssef) é o PT.”
Quem paga hoje o pato não é o PT, mas o cidadão brasileiro. Paga o pato, a galinha, os ovos, o tomate. Paga mais do que dizem os índices oficiais de inflação. Paga o pato do despreparo e do oba-oba da equipe econômica, que deitou no sofá do Planalto em tempos fáceis e agora não consegue nem maquiar a economia real. Adiam-se aumentos nas contas de luz e de gasolina, e ninguém acredita mais em meta nenhuma.

Na corrida contra o tempo e contra o descrédito, até a eleição, Dilma tropeça em si mesma, se encolhe, não pode aparecer em público porque será vaiada, torce para a Seleção ganhar a Copa e tem de engolir as broncas públicas de Lula. “Minha candidata é a Dilma”, repete Lula. Mas ele só alimenta o que chama de “boataria”, quando se diz insatisfeito com os rumos da economia no Brasil.

“O problema maior foi deixar a inflação bater no topo da meta”, diz o economista Edmar Bacha, um dos pais do Plano Real e ex-presidente do BNDES e do IBGE. “Estavam brincando com fogo e estão colhendo o que semearam.” Está claro, segundo Bacha, que a taxa de inflação real é maior que os 6,15% anuais. “Essa taxa, parcialmente oculta pelo controle dos preços administrados, contamina muito a própria ordem social.” Bacha não se assusta com as greves nem crê na argentinização do Brasil. “Não é o fim do mundo. Quem está parando é gente com poder de barganha, operários envolvidos em obras estratégicas.”

No Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, funcionários em greve das obras de expansão do metrô irromperam com paus e pedras na esquina de minha rua. Estavam furiosos com os colegas que furavam a paralisação e insistiam em trabalhar. Os grevistas exigem pagamento de 100% sobre as horas extras, aumento da cesta básica de R$ 230 para R$ 300, retroativo a fevereiro, e 10% de aumento nos salários.

É só conversar com qualquer um na rua, taxista, segurança, lojista, feirante, dona de casa, que você ouvirá o que as pesquisas detectam: insatisfação, medo e desconfiança. O Rio teve a inflação mais alta do país, 7,87% em 12 meses. A alta em alimentos e serviços é muito maior, tanto que a moeda na cidade passou a ser apelidada de “surreal”. Como a maioria não acredita em “legado social da Copa”, tornou-se visível uma torcida cada vez mais militante contra o desempenho da Seleção.

Os grevistas da linha 4 do metrô carioca reivindicam só 10% de aumento porque não leem jornal nem revista. Se fossem bem informados, saberiam que o governo federal aumentou as despesas totais em 15%, só no primeiro bimestre de 2014. A conta de pessoal e encargos sociais cresceu 13,5% em janeiro e fevereiro.

Péssimo exemplo! Com as finanças públicas sem controle no Brasil de Lula e Dilma, quem paga o pato não é o PT, é você. Até rimou.



19 de abril de 2014 | N° 17768
NÍLSON SOUZA

Gabo vive

No dia em que começaram a matá-lo, García Márquez deixou o hospital às 13h45min de uma tarde ensolarada na Cidade do México e foi conduzido de ambulância para sua casa no bairro colonial de San Ángel para receber cuidados paliativos e o carinho de seus familiares. Ninguém sabe se ele sonhou que atravessava uma mata de figueiras-bravas, onde caía uma chuva miúda e branca, como seu personagem Santiago Nasar.

Tampouco se sabe se foi feliz no seu último sono longe de casa. O que se sabe, pelo noticiário, é que estava com câncer terminal e que os médicos decidiram não sacrificá-lo com um tratamento doloroso, considerando o avançado estado da doença e sua idade. O autor de Cem Anos de Solidão estava com 87 anos.

Dizem seus acompanhantes que ele enfrentou a última internação com bom humor, embora incomodado com a presença implacável de jornalistas na frente do hospital. Foram eles, os homens da mídia, que começaram a matá-lo antes da hora, cumprindo os desígnios de uma atividade que o próprio escritor classificou um dia de “melhor profissão do mundo”. Jornalista de origem, o genial romancista colombiano concluiu assim o seu célebre texto sobre a missão de informar: “Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la.

Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”.

Pois agora ele é a notícia, como, aliás, sempre foi desde que começou a se destacar na literatura. Morreu na última quinta-feira, em casa. Não chega a ser um desses imprevistos da vida. É, antes, o previsto, o certo, o inevitável. Uma pena que tenha chegado a hora desse ser humano tão criativo, que encantou milhões de leitores com seus livros envolventes e sua realidade fantástica. Mas, como ele mesmo ensinou em sua autobiografia, a vida não é o que a gente viveu, mas sim o que a gente recorda, e como a gente recorda para contá-la.


Esse homem realmente viveu para contar. E contou com maestria, paixão e empatia com os leitores. Mereceu, portanto, que sua morte anunciada chegasse suave, sem demasiado sofrimento e na companhia de seus afetos. De minha parte, na condição de leitor, admirador e seguidor da profissão que ele enalteceu, só posso dizer que acabei de pichar simbolicamente uma frase no meu coração: “Gabo vive!”.

quarta-feira, 16 de abril de 2014


16 de abril de 2014 | N° 17765
MARTHA MEDEIROS

Certinha, mas nem tanto

A moça me escreveu do Rio de Janeiro, onde recentemente havia prestado concurso para um banco. Estava indignada, pois uma das questões da prova era de interpretação de texto – um texto meu – e ela não se conformava de ter errado. Havia marcado alternativa A, e o gabarito acusava que a resposta correta era a D. Ela me enviou a questão e perguntou: estou tão louca assim?

Nada louca. Eu teria marcado a questão A também, mas interpretação de texto é das coisas mais subjetivas que existe, não entendo como ainda consta de provas. Que em sala de aula se discuta o assunto, está certo, mas provas são eliminatórias, e a chance de se promover uma injustiça é grande. A moça que me escreveu foi injustiçada, assim como vários colegas dela que também não marcaram a resposta que a banca elegeu como a correta.

Lamento esses transtornos, mas ao mesmo tempo vibro quando me vejo inserida na sociedade por vias assim pitorescas. Inúmeras ocasiões profissionais me trouxeram orgulho – sessões de autógrafos, adaptações de teatro, palestras – mas é completamente diferente quando você se depara, por exemplo, com seu nome numa revista de palavras cruzadas, o que também já aconteceu. 

Virar desafio de palavras cruzadas, assim como motivar questões de provas, me faz sentir a própria Valesca Popozuda. É sinal de que você caiu na boca do povo. No melhor sentido.

Se já vivi essas duas experiências, digamos, mais populares, agora cheguei lá: meu nome está na letra de um hit da banda Bochincho. Você não conhece a banda Bochincho? Somos dois alienados, eu também não conhecia. Bochincho é um grupo de fandango que acaba de lançar a música Tá Querendo eu Dou. Narra a história de uma menina que se faz de grande coisa, mas está longe disso. Diz a letra: “Eu chamo no bate-papo/ Ela paga de santinha/ Frase de Martha Medeiros/Fazendo o tipo certinho/ Mas no fundo é bandida/ E não rola nada sério”.

Não é um poema?

Ok, sem gozação. Uma ouvinte de rádio escutou a música e logo me comunicou por e-mail, não sem antes alertar de que talvez eu me chateasse. Ora, por que iria me chatear? Achei divertido. Pouco importa que não seja o tipo de som que eu costume ouvir, o que vale é a farra, o inusitado, a graça da coisa. O fato de a personagem da música querer se passar por certinha e me citar para conseguir isso é um caso a ser levado para a terapia.


Para a minha terapia. Ando mesmo sem assunto no divã, então esse viria a calhar: quanto me vale essa imagem de “certinha”? Não seria um cárcere privado? Acho bem saudável possuir um lado fandangueiro também, já que no céu só o que se ouve são violinos e harpas, e ninguém quer pegar no sono tão cedo. Um arrasta-pé no inferno, vez que outra, não há de manchar severamente meu currículo.

sábado, 12 de abril de 2014


Amor a tempo

Sou capaz de merecer
Teu beijo a tempo de
Desfrutar do teu desejo.

Sou parte do teu ser
Se ainda não percebeste.
Sonha comigo no teu detalhe,
Nas esquinas frias e quentes do teu pensamento...
Sonha de verdade, com afinco.
Somente assim, o amor chegará a tempo!


Amor Internauta

O amor é tão complexo.
Como explicar um amor internauta?
Como explicar um amor a uma pessoa que não se viu com os olhos?
Como explicar a dor de um amor ausente (não materializado)?
Como explicar essa vontade de não largar o ser amado?
E pra que explicar...?
Se a única explicação está no próprio amor! que 
é infinitamente maior do que qualquer razão.
Meus olhos, enxergaram a tua alma, o que materializou-se 
foi um ser bonito, porque tem
as qualidades essências de existência, onde destacam-se: 
amar, se doar e perdoar...
Tem pessoas que tem o privilégio de ter o ser amado 
tão perto e não sabe conserva-lo .
Estamos tão longe geograficamente e tão perto 
através dos nossos pensamentos,
declarações de amor, pela lua
que contemplamos juntos , pelo coração, pela emoção, 
pelas simples e eternas palavras...
Que se resumem em dizer
Te amo
(Essa mensagem dedico ao amor que conhecí, na Internet,
depois que teclamos nunca nos largamos...
E nos amamos infinitamente...).


Amo-te mais do que ontem

Hoje, amo-te ainda mais que ontem,
Você está em tudo que vivo
Sua lembrança permanece viva em minha memória
O tempo não consegue apagá-la, nem ao menos deiá-la distorcida.
Você vive em mim, a cada momento sinto como se você tivesse acabado de partir.
Mas a saudade que sinto de ti e essa distância que nos separa
não me faz amar-te menos
Ao contrário, amo-te hoje mais que ontem
e agora mais que a pouco tempo atrás.
Tudo que vivi com você passa como um filme em minha memória
Sinto ainda teu cheiro suave, verdadeiro prêmio da natureza,
sinto teus carinhos, teus beijos.
E hoje amo-te mais que ontem.



13 de abril de 2014 | N° 17762
MARTHA MEDEIROS

A dor do crescimento

Eu tentava descrever como era aquela dor, mas não encontrava jeito. Acontecia nas pernas, nas duas ao mesmo tempo. Não era fadiga muscular, não era um machucado, nem torção, nada tinha inflamado, eu não havia batido com elas numa mesa, nem tropeçado, não parecia nem mesmo dor, e sim um incômodo, um alerta interno.

Eu podia caminhar, até correr, se quisesse. Mas não estava tudo bem, e quando eu vencia a vergonha de não conseguir explicar exatamente o que sentia e me queixava daquilo que nem parecia existir de tão aleatório alguém dizia: não esquenta, é a dor do crescimento.

Um diagnóstico poético demais para uma criança. Como assim, dor do crescimento? Eu crescia numa velocidade irritantemente lenta, tão poucos centímetros por ano, não acreditava que esse ganho ínfimo de estatura, imperceptível, pudesse originar dor. Dor vem do choque, vem do baque, deixa marca, tem motivo, não poderia nascer assim de um alongamento que ninguém conseguia enxergar a olho nu.

Reumatismo também não era, porque reumatismo era doença de avós. Tudo bem que eu já estivesse com quase 11 anos, mas não era assim tão velha.

“É dor do crescimento, menina, todo mundo tem, não te bobeia. Já já passa”.

Não passou. Apenas subiu das pernas para o coração e depois foi ainda mais para cima, alojando-se no cérebro. Abandonou os membros inferiores e passou a fazer turismo em duas regiões de mais prestígio. Essa transferência aconteceu logo que eu parei de alongar verticalmente e virei o que se chama por aí de gente grande e estabilizada.

Mas gente grande continua crescendo?

Pois é. Não me peça para explicar, porque sigo não encontrando um jeito de. Às vezes dói no peito, às vezes na cabeça, às vezes nos dois lugares ao mesmo tempo, mas não há nada sangrando, e também não é fadiga, mesmo já se tendo vivido bastante e cansativamente. Torção... Não, também não. De novo, ninguém esbarrou numa mesa, nenhuma parte do corpo ficou roxa, não é um arranhão, nem parece dor.

Então é o quê? Um esgotamento por fazer sempre as mesmas perguntas irrespondíveis, por se retorcer com questões que aparentam ter soluções simples, mas não têm, por não aceitar que seja difícil o que deveria ser fácil, por se flagrar tendo reações contundentes quando a vontade era de chorar baixinho, por tentar estabelecer uma forma de vida que organize o caos, mesmo sabendo que o caos está sempre atrás da porta rindo das nossas tentativas de controlá-lo. Nada fica roxo, mas turva a visão. Nada deixa cicatriz aparente, mas não fecha. Fica aberto, latente, insistentemente lembrando a existência daquilo que não se explica, sobre o qual pouco se conversa, mas que, de alguma forma, também faz a gente ganhar em estatura.

Ainda é a dor do crescimento, e não cessa.

sábado, 5 de abril de 2014


06 de abril de 2014 | N° 17755
MARTHA MEDEIROS

Alguma coisa

Recebi o e-mail de uma mulher madura contando que ela e o marido estão praticamente vivendo um para o outro, pois estão decepcionados com os demais semelhantes - cuja semelhança ela não vê, aliás. Resumo aqui suas palavras: Somos instruídos e temos ótimo pique, porém estamos cada vez mais isolados, os filhos moram longe e as demais pessoas não nos dizem nada. Gostamos de coisas que ninguém gosta. Nosso nível de tolerância é mínimo diante da hipocrisia humana, do politicamente correto, do bairrismo, dos fanáticos, dos mal-educados, dos ridículos, dos sem noção, dos burros, dos ignorantes e da manipulação da massa através dos meios de comunicação.

Escapei não sei como. Ela diz que comigo até que gostaria de conversar, e me pediu opinião sobre sua ansiedade. “Se meu marido morrer, ficarei perdida”.

Bom, eis um caso de uma mulher que cruzou com sua alma gêmea, o que a coloca em vantagem. Porém, procura almas gêmeas também na vida social. Amiga, desista. Você já encontrou a sua e casou com ela, valorize a sua sorte, não seja fominha.

Brincadeiras à parte, dizer o quê? Afora os seres intragáveis, a maioria das pessoas possui alguma coisa que fecha com a gente. Alguma coisa. Não precisa fechar em tudo. Tem aquela amiga que é ótima para viajar, tem a santa que ouve nossos lamentos, aquela outra que é uma alegre parceira de indiadas, a que sempre tem uma bolsa de festa para emprestar, a que se oferece para dar carona, a que é companheira para assistir filmes iranianos, a que diz tanta bobagem que é impossível não rir. Alguma coisa, entende?

Minha leitora deveria diminuir o nível de exigência e extrair das pessoas o seu melhor, deixando o pior pra lá. A vizinha chata pode ser uma ótima professora de espanhol, a avarenta pode preparar um risoto caprichado, a cafona pode ser aquela que ficará na cabeceira da sua cama quando você estiver com um febrão. Todos têm seu lado A e B - nós, inclusive.

Compreendo que minha leitora tem um estilo de vida arrojado e uma cabeça cosmopolita que destoa da cidade onde vive, que não é nenhuma Nova York. Então por que não se muda para uma urbe mais vibrante? Se não der, que baixe a guarda e procure as agulhas no palheiro, elas existem. Tive uma amiga que igualmente acreditava ter nascido no planeta errado, para ela todos também eram bairristas, ignorantes e ridículos - e quanto mais ela discursava sobre seu inconformismo, mais ela própria parecia bairrista, ignorante e ridícula. A falta de condescendência nos bitola.

Querida leitora, torço para que consiga encontrar pessoas afins e interagir com as menos afins sem tanto rigor. Você faz bem em grudar no seu marido - um companheiro que é seu melhor amigo é uma benção - mas não julgue tão severamente os que estão em volta. Eles podem ser úteis, nem que seja para exercitar sua humildade.