sábado, 30 de janeiro de 2016



31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
CARPINEJAR

Roubava a própria casa

Na infância, não sei bem o motivo, mas não tinha direito à cópia da chave de casa. Vinha do colégio desfalcado de medos.

Só os adultos recebiam a honra do molho com chaveiro. Era outro tempo: menos assalto, menos violência, sem cercas eletrônicas, mais crianças brincando na rua. A mãe ou o pai ou um dos três irmãos sempre estava na residência para abrir a porta. Não me preocupava com segurança.

Mas enfrentava momentos de azar quando não havia ninguém, tarde de passeio no supermercado e de reivindicação das preferências de cada um no rancho. Ansioso e hiperativo, não esperava obediente no banco de madeira. Fui um ladrão do próprio lar. O meu tipo físico ajudava: magrinho, ágil, de pernas longas.

Conhecia quais as janelas que poderiam estar destrancadas e forçava as venezianas, experiente dos pontos fracos e dos hábitos dos moradores. Não me encabulava de saltar o portão do pátio. Escalava as paredes para me esgueirar em uma fresta e pular para dentro da sala. Com arame de um cabide quebrado, puxava a chave reserva do gancho da parede. A minha maior façanha foi um dia em que subi o telhado, apoiando-me no muro, e desci pelo alçapão do banheiro. Eu me sentia um herói da ilegalidade. Festejava as minhas transgressões.

Dessa experiência, desenvolvi o meu olhar de fora, estrangeiro, sobre a rotina. Enxergava a minha casa como se não fosse minha, para aprender a entrar sem a chave. A brincadeira me preparou a manter um distanciamento dos laços de sangue, com facilidade para inventar e me transformar em personagem. Admirava observar os pais e irmãos pelas vidraças da rua, com o talento de um fantasma. A minha alegria era não existir, era me ausentar por completo, era ser um anônimo observando aquelas pessoas pela primeira vez.

Acabei sendo o único que não seguiu Direito. Numa família de defensores, promotores e juízes, escolhi ser um marginal da palavra. O escritor é aquele que nunca se vê inteiramente adaptado e sempre assalta a intimidade e o passado dos próximos. Tenho pena de meus irmãos, até hoje roubo as memórias deles e jamais devolvo. Nunca teve graça apertar a campainha e avisar da minha chegada.

*O colunista entra em férias nesta semana e retorna em março.



31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Romance nas ruas


Desde muito tempo eu gosto de ler romances e contos sobre Porto Alegre. Podem ser mesmo ruins, que eu gosto igual. Tem alguma coisa de curiosidade histórica, mas com um viés pessoal. Minha finada avó materna, a vó Ziloca (Ladeira de Moraes em solteira, Loch depois de casada), era porto-alegrense, nascida em 1904, e por certo me influenciou nisso. Ela era uma boa leitora, mas não foi por isso: foi por comentários eventuais que fazia, sobre cenas da infância dela, por exemplo a casa do avô dela no Menino Deus da virada do século 19 para o 20.

Uma vez, nós creio que ali na Praça XV, talvez esperando um bonde, ela me apontou uma esquina e disse que, na revolução de 23 – eu posso estar agora misturando datas, mas acho que era – ela tinha trabalhado uns dias como voluntária numa enfermaria que ficava ali mesmo, e ela apontou. E eu vibrei.

Não é que adiante muito conhecer essas firulas do passado, mas sei lá, me dá um grande gosto saber essas coisas, de cotidianos extraviados, jeitos fenecidos de viver a cidade.

Esse gosto cresceu muito quando eu convivi com o também finado Aníbal Damasceno Ferreira. Grande conhecedor de firulas singulares, o Aníbal, por nada, me perguntava: “Mas tu não leu o Estricnina? Bá, tem que ler!”. E lá ia eu atrás do tal livro, publicado pela primeira vez em 1897 e republicado cem anos depois (já por minha iniciativa). Outro que ele me fez ler foi o raro As Loucuras do Doutor Mingote, do Martim Gomes, de 1932, se não me engano. E assim outros.

Uma vez dei de cara com o Estrada Perdida, do Telmo Vergara, romance também dos anos 30. Talvez tenha sido o Fábio Steyer quem me falou do livro, sobre o qual ele escreveu um belíssimo estudo, em seu doutorado. Até agora não me conformo de livros como esses não terem edição corrente.

(Ei, se tiver algum leitor com vontade de botar dinheiro a fundo perdido num projeto inteligente, que vai fazer muito bem para a saúde espiritual da cidade, por favor me procure que eu tenho uma ótima sugestão.)

Toda essa evocação meio nostálgica me veio agora a propósito de falar de um livro recentíssimo, saído ano passado, ganhador de importante prêmio nacional – o Jabuti. Se chama Quarenta Dias, saiu pela Alfaguara; a autora é Maria Valéria Rezende. E é freira. Sim, freira. Estranheza pouca é bobagem?

Pois olha só o enredo básico: no presente da narradora, ela está escrevendo as lembranças de um período algo alucinatório, vivido no passado não muito distante. O que aconteceu: ela, a professora aposentada Alice, moradora de João Pessoa, na distante (para nós) Paraíba, se muda para Porto Alegre. Motivo: sua filha única casou com um gaúcho, e os dois trabalham na universidade; e a filha vai ter filho, motivo para convocar a mãe-quase-vó a se mudar para cá, para ajudar com o nenê.

Alice não quer, mas acaba vindo. Não gosta do frio, sente falta do vento e do mar. É posta num apartamento que odeia instantânea e profundamente, por motivos que eu não posso contar aqui, para não cortar o barato do leitor que vem vindo. Mas esse desconforto não é tudo, aliás é quase nada diante da outra novidade: longe de sua cidade amada, longe dos amigos e da rotina adorável que lá mantinha, ela pelo menos tinha a esperança de viver o neto que viria. Só que não: intempestivamente, a filha avisa que rolou uma bolsa para a Europa, e ela e o marido não podem perder. A mãe podia ficar por ali esperando, certo?

Alice fica em Porto Alegre, mas a um preço que só lendo pra avaliar. Sem entrar em detalhes demasiados, ela passa a viver... na rua, sim, na rua porto-alegrense, por 40 longos dias. Uma loucura, de acordo, mas foi assim.

E o mais impressionante é que esse relato da rua real da nossa cidade foi todo colhido ao vivo, pela autora, que se fez passar por alguém nessa condição, para poder ter elementos autênticos, fortes, na composição do relato.

O resultado é bastante bom, embora narrativamente não seja excelente, porque a trama perde força lá pelas tantas e o livro tem alguma velocidade só pela inércia. De todo modo, é uma leitura que merece o empenho, para gente que gosta da cidade e, não menos, para ter uma notícia viva de lugares inesperados em Porto Alegre, como o Campo da Tuca, a Maria Degolada, a Rodoviária, marcos do mapa que em geral permanecem muito longe das páginas impressas.

*Luís Augusto FIscher é Professor de Literatura na UFRGS e escritor, autor de inteligência com dor (2009). Escreve quinzenalmente.


31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
MARTHA MEDEIROS

24 horas sem carro


Deixei meu carro na oficina. Na manhã seguinte, um amigo inglês, David, chegou à cidade e me convidou para almoçar. Normalmente, eu o buscaria no hotel de carro, onde ele já estaria me aguardando em frente ao prédio, mas não foi assim dessa vez. Fui até o seu hotel de táxi. Desci. Entrei na recepção. E reparei que o tradicional balcão do check in mais parecia o de um boteco. O lobby era decorado com peças garimpadas em antiquários, privilegiando o design dos anos 50, mas com resultado bem contemporâneo. Mais cara de hostal do que de hotel de rede.

Desconhecia a existência desse lugar bacana.

David aparece. Onde ir? Sugeri almoçar no Multipalco, assim ele conheceria o Theatro São Pedro. Propus irmos a pé. O homem fuma e seu outro vício é o sol – um londrino, lembra? Fazia 31 graus e o céu estava limpo como minha consciência. Bora! E então caminhamos por ruas onde só costumo passar de carro sem prestar atenção em nada. Porém, naquele instante, eu estava dentro da cidade, pertencendo a ela. Como quando viajo.

Cruzamos por pessoas mateando (dei as explicações de praxe), comentamos sobre a beleza do viaduto da Borges e seu abandono, e chamou a atenção dele a quantidade de pequenas livrarias pelas quais passamos – jura? Nunca tinha reparado. Aproveitei para me gabar dos nossos índices de leitura se comparados com os do resto do país. Exagerei só um pouquinho – juro.

Então cortamos caminho por dentro da Praça da Matriz com seus residentes sem-teto (quando havia feito isso? Acho que nunca) e antes de nos acomodarmos numa mesa do restaurante, David invadiu a concha acústica da área e declamou alguns versos de Shakespeare – um pequeno luxo de uma terça-feira qualquer. Depois de almoçarmos, procurei o querido João Antonio, braço direito da dona Eva Sopher, e ele nos abriu as portas do templo da cultura gaúcha, onde dei a sorte de ver a Marcia do Canto em pleno ensaio final do espetáculo que homenageou o Nico. Abraços, beijos, risadas.

Dali, voltamos para o hotel percorrendo outras ruas. Paramos numa farmácia e encontrei Adriana, que foi professora da minha filha no maternal, vinte anos atrás. Hoje ela trabalha com literatura na cidade do Porto, onde mora, e combinamos de armar um projeto juntas – de repente umas leituras dos meus textos por lá, em terra lusa. Mais um pouco, em frente ao Beneficência Portuguesa, cruzo com o Matico, um amigo perdido no túnel do tempo – ambos nascemos ali, naquele hospital em cuja calçada nos reencontramos. Abraços, beijos, risadas.

Fim dos nossos serviços. Me despedi do David e, embalada, continuei caminhando, caminhando, caminhando, até chegar à minha casa.

Ligaram da oficina avisando que meu carro está pronto e estou sem nenhuma vontade de ir buscá-lo.


RUTH DE AQUINO
29/01/2016 - 21h54 - Atualizado 29/01/2016 21h54

A zica do Planalto

Cada fala de Dilma sobre a zika vira uma festa para humoristas e um constrangimento para a população

Zica com “c” é uma gíria brasileira que significa mau agouro, azar, maldição, momento de baixo-astral, quando tudo dá errado. A origem da palavra não se sabe ao certo, mas há quem jure que seria uma contração da palavra ziquizira. Faz sentido. Não tem nada a ver com a zika, triste doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti. Triste porque infecta o cérebro de bebês no útero materno, triste porque atesta nossa incompetência de país subdesenvolvido diante do mosquito que também transmite a dengue, triste porque pode atingir 1,5 milhão de pessoas no Brasil neste ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Cada fala da presidente Dilma Rousseff sobre a zika vira uma festa para humoristas e um constrangimento para a maioria da população – não, claro, para os militantes dilmistas, que a perdoam sempre e atribuem esses lapsos à pressão da dieta argentina ou da “inquisição medieval” contra ela e contra Lula. Dilma já chamou o mosquito de vírus. Dilma já chamou a zika de vetor. Dilma já disse que a doença é transmitida por ovos infectados por vírus. Dilma já inventou um outro inseto que seria especializado em zika, e que não seria o mesmo da dengue. 

Dilma também disse que “o Brasil não parou e nem vai parar” – e não vai mesmo parar de piorar enquanto ela achar que o inferno são os outros. A microcefalia do Planalto não permite que criatura e criador caiam na real. Dilma e Lula estão juntos na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Juntos no idioma maltratado. Juntos na solidariedade a Zé Dirceu, o consultor-modelo que mais voou em jatinhos de empreiteiros e lobistas, abastecidos por propinas. Juntos no discurso de perseguição da “mídia”, da Lava Jato e dos delatores premiados.

Pode continuar a trocar o ministro da Saúde, o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento, o ministro da Educação (aliás, por onde anda Aloizio Mercadante, qual será seu bloco escolar este ano?). De nada vai adiantar essa dança das cadeiras ministeriais para agradar a um ou outro partido. Não são eles os mosquitos vetores que contaminaram o Brasil com uma ziquizira da qual será muito difícil sair. O da Saúde, Marcelo Castro, formado em psiquiatria, depois de espalhar piadinhas de mau gosto com mulheres grávidas, cometeu o pecado fatal: foi sincero. Marcelo Castro disse que o Brasil “está perdendo feio” a guerra contra o mosquito – e isso é o fim da picada, não é, presidente?

Dilma não convive com a sinceridade. Seu governo não erra. Aliás, “se erra”, como admitiu há alguns meses, erra pouco e sem maldade – e tudo tem conserto. Erra porque foi vítima. Suas amigas, do gênero Erenice Guerra, também sempre acertam. Se erram, é por ingenuidade ou por falta de memória. A ex-ministra Erenice é ingênua, dá para sentir. E nem lembra quem pagou viagens aéreas dela. Dilma também já se esqueceu de muitas canetadas nessa roda-viva de Petrobras, Casa Civil, Presidência da República. Seu problema não foi o mosquito, mas a mosca azul.

Para a mosca azul não há antídoto nem vacina. A mosca, num passe de mágica, tira as contas do vermelho num gráfico ilusório, com a sua, a nossa ajuda. Uns bilhões do FGTS aqui, outros da CPMF ali, e pronto. O país fica cor-de-rosa, a cor dos programas eleitorais do PT. Só que não, a conta não fecha mesmo assim, porque o Estado brasileiro é voraz e gigantesco. Não há foco na redução do tamanho. Só no aumento de taxas, impostos e contas de serviços públicos. A dívida pública federal terminou 2015 em R$ 2,793 trilhões. A dívida – assim como o Brasil – não vai parar.

Diante do Conselhão de quase uma centena de empresários, empreendedores, banqueiros e autoridades – sem a presença incômoda da imprensa –, Dilma lançou um plano de sete medidas para liberar R$ 83 bilhões em crédito para habitação, agricultura, infraestrutura, pequenas e médias empresas. A maior parte desse dinheiro viria do FGTS. Crédito para um país em recessão, que não acredita na capacidade do governo para enfrentar a crise. Dilma disse que, para “a travessia a um porto seguro”, a CPMF é “a melhor solução disponível”.

Não existe nem espaço para o crédito moral, quando se vê Lula, o fiador de Dilma, acuado por delações que o envolvem em reformas milionárias e obscuras de imóveis como o tríplex do Guarujá ou o sítio de Atibaia – hoje amaldiçoados. Na vida real, os juros batem recorde e famílias endividadas precisam refinanciar seus débitos porque não podem lançar mão do dinheiro alheio. O Solaris não nasce para todos. A zica que contaminou o país tem origem na Capital.


30 de janeiro de 2016 | N° 18430
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A RODA QUE GIRA


VIVEMOS SOB O TACÃO DO PASSADO COM RARAS CHANCES DE SERMOS DE FATO CRIATIVOS

É difícil entender o que leva alguns a considerar que nossa vida deva ser sempre um modelo interessante e original, quando, na verdade, vivemos sob o tacão do passado com raras oportunidades de sermos de fato criativos. E, para quem valoriza sossego, é melhor que seja assim, pois qualquer sinalização de novidade já provoca uma compreensível reação, às vezes francamente destemperada, dos que seguem a cartilha relaxante da mediocridade e não toleram comparações pretensamente humilhantes.

Então, se assumimos que somos meros copiadores dos modelos disponíveis, sem arroubos de genialidade desgastante, é importante que atentemos para os exemplos que passamos aos nossos filhos que, por afeto, proximidade e descendência, são os nossos plagiadores naturais e instintivos.

Pode ser que o modelo de afeto que dispensas aos teus pais não seja suficiente para sensibilizar teus filhos nos cuidados desvelados dos avós, mas não tenha dúvida de que esse modelo será ressuscitado no futuro quando tocar a eles decidirem que apreço merecerás na velhice. E não há nada de espetacular neste comportamento. É só a roda da vida que também não se preocupa em ser original.

Fiquei com pena quando visitei a dona Carolina, com 82 anos, boa saúde, alojada num cubículo improvisado numa extensão da garagem, com um ventilador pequeno e insuficiente no canto da parede, uma TV de tubo com imagem e chuvisco, e uma amostra escassa de céu espremida entre muro alto e um varal de roupas ao vento. Na estante, uma Bíblia de capa de couro marrom, Contos Fluminenses, de Machado de Assis, um livro de palavras cruzadas sem capa e uma cestinha com incontáveis prendedores de cabelo. 

De plástico barato. A nora que pedira a consulta, advertira que a dita alegava uma dor no tórax, mas que não levava muita fé nessa queixa porque ela tinha um raio-x de tórax do ano anterior que fora normal e, além disso, já não andava mais dizendo coisa com coisa. “De qualquer maneira, é melhor ter certeza que não tenha nada grave, ainda que estejamos preparados. Porque, nesta idade... o que esperar? É a roda da vida e ninguém vive para sempre, não é, doutor?”. Pois é.

O exame físico era normal e ela nem lembrava de queixa nenhuma, mas queria mesmo era conversar, e como conversamos. Com uma memória prodigiosa e um senso de humor apurado, foi uma das entrevistas para não esquecer. Com espírito leve e debochado, não guardava nenhuma mágoa e só lamentava que todas as suas amigas preferidas já tivessem morrido e da pouca paciência que tinha de conquistar novas entre essas velhas estranhas que gostavam de Big Brother. Se pudesse fazer um pedido, seria o de trocar a TV velha sem imagem por um rádio. Se era para curtir só o som, que fosse sem o maldito chiado. Mas se prometera que esta seria uma negociação para o próximo Natal. Se houvesse.

Quando saí, a nora mais velha quis saber o que achara da velha insuportável e ficou visivelmente chateada quando confessei que me apaixonara pela vózinha doce e bem-humorada.

E descarregou a irritação no filhote de uns 12 anos que brincava na terra, no jardim: “Carlos Eduardo, já para dentro! Não espere eu te pegar pelas orelhas, entendido?”.

“Não enche, tá?” foi a resposta. Bati o portão convencido de que aquela roda estava começando a girar. À distância, até fiquei com a impressão que ouvira um rangido.



30 de janeiro de 2016 | N° 18430 
NÍLSON SOUZA

O FEITIÇO DO TEMPO


– Siga comigo o caminho das nuvens – convida a moça do tempo, mostrando um mapa multicolorido do Brasil com desenhos de sóis e chuviscos espalhados por todas as regiões.

O apelo é irresistível. A previsão meteorológica virou uma atração mundial da televisão desde que os programadores se deram conta do interesse das pessoas pelas variações climáticas. Todos duvidam, todos desconfiam, todos ridicularizam os previsores, mas não há quem não preste atenção.

Por quê? Minha tese: acompanhar o vaticínio é uma maneira de darmos uma espiadinha no futuro. Mais do que isso, quando conferimos se o dia de amanhã será ensolarado ou nublado, estamos antevendo um cenário do qual seremos protagonistas. Não se trata simplesmente de programar a roupa que iremos vestir no dia seguinte ou se teremos de carregar guarda-chuva. Trata-se, isto sim, de apostar que estaremos presentes no futuro para conferir o prognóstico.

E para criticar. Os meteorologistas mais prudentes não se cansam de avisar que é previsão – e não precisão –, mas ninguém perdoa quando eles erram. O percentual de acertos atualmente chega a 90%, mas os 10% de equívocos costumam ser superdimensionados pelos profetas do acontecido, que somos nós. Ainda que o clima planetário seja reconhecidamente caótico, a culpa é sempre do previsor, nunca da própria natureza.

Mesmo assim, esses arautos das intempéries conquistam prestígio e admiração. Alguns se transformam em verdadeiras celebridades. E as emissoras de televisão investem no quadro, criando cenários cinematográficos e apostando em personalidades diferenciadas. Como essa moça bonita e simpática, que me convida a seguir com ela pelo caminho das nuvens.

Sigo, com o espírito crítico aguçado, pensando que no dia seguinte terei a oportunidade de cobrar-lhe coerência. Doce ilusão. Amanhã, como uma Sherazade moderna, ela contará outra fábula do tempo e todos acreditaremos, encantados pela profecia sobre desconhecido.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016



27 de janeiro de 2016 | N° 18427 
MARTHA MEDEIROS

Um tanque paz e amor


Acompanhei pelas redes sociais uma convocação para que artistas e psicodélicos em geral se reunissem junto ao tanque que esteve exposto na Avenida Ipiranga, em Porto Alegre, a fim de dar a ele um aspecto mais lúdico: pintá-lo, colori-lo, forrá-lo de flores. Gostei. Seria uma manifestação crítica, porém pacífica, e de quebra enfeitaria a cidade.

Mas nem todos aprovaram a iniciativa. Alguns consideraram que o ato seria desrespeitoso com o Exército Brasileiro e muitos reclamaram de que há coisas mais urgentes às quais se dedicar.

Quanto ao Exército Brasileiro, não vi razão para que a instituição se sentisse agredida pela pintura de um blindado inoperante. Tanque é um veículo bélico. Mesmo quando em missão de defesa, não deixa de ser uma arma. Colori-lo não significaria extingui-lo. Seria apenas uma maneira divertida de lembrar que o espírito da cidade deveria combinar mais com paz do que com guerra.

Quanto ao fato de haver coisas mais importantes a serem focadas, nem se discute. Ou melhor: se discute à exaustão, como estamos fazendo em relação à segurança do Estado. É fundamental essa pressão para que o governo reverta o quadro de criminalidade, mas apenas se queixar não adianta. Já que segue massiva a resistência à legalização das drogas, que talvez contribuísse para a diminuição da violência, que tal se os consumidores parassem de usá-las a fim de enfraquecer o tráfico, que tem influência determinante no assunto? Utopia, eu sei, mas, quando não há recursos, é preciso investir em ideias, mesmo que delirantes.

Voltando às prioridades: colorir muros, por exemplo, é mais importante do que colorir um tanque, ok. Consertar calçadas, sinalizar ruas, pavimentar rodovias, mais ainda. Equipar postos de saúde, construir escolas, alimentar crianças, muito mais, muito mais. Na escala hierárquica dos problemas, um tanque na esquina é fichinha. Mas essa tendência de desprestigiar uma determinada mobilização só porque deveríamos canalizar nossa energia para outra de maior relevância é um convite à paralisação – acaba que ninguém faz nada.

Lutar pela despoluição do Guaíba é mais grandioso do que organizar um mutirão entre amigos para limpar a areia da praia, assim como inaugurar uma biblioteca é mais eficaz do que deixar um livro num banco de praça para que outra pessoa o leia, mas importante mesmo é deixarmos de ser tão patrulheiros e pararmos de depreciar a boa vontade de quem escolheu um gesto, mesmo que pequeno, para fazer a sua parte por um mundo menos ordinário.

sábado, 23 de janeiro de 2016



24 de janeiro de 2016 | N° 18424 
CARPINEJAR

Quando a alegria chora

Faz tempo que não choro de alegria. Aquele choro que é melhor do que uma risada, que é uma gargalhada com lágrimas, que mistura o passado com o presente.

Não o choro da tristeza, não o choro envergonhado, não o choro sozinho trancado no quarto, não o choro disfarçado do chuveiro, não o choro de um filme ou de um livro, não o choro induzido por uma cena ou uma frase, não o choro da saudade ou da promessa, não o choro emprestado, não o choro agudo e vertical do luto, não o choro do sofrimento da separação ou da doença – estes choros são comuns.

Mas o choro da surpresa, da gratidão, do reconhecimento. O choro que não escondemos o rosto com as mãos. O choro em que os braços ficam descansados, só o peito geme. O choro em que a água não escorre pelas faces, e sim jorra das pálpebras – a lágrima começa a voar. O choro em que inchamos as bochechas tal criança que roubou brigadeiro antes do parabéns e colocou inteiro na boca.

O choro em que somos elogiados. O choro em que somos vingados de ternura. O choro em que somos finalmente vistos e destacados. O choro acompanhado, público, com direito a abraço e desconcerto da companhia, que não saberá o que falar diante da comoção.

Faz tempo que não choro assim: com soluços inacreditáveis e os olhos avermelhados de crepúsculo. Choro da Nona Sinfonia de Beethoven, da cegueira enxergando.

Choro absurdo de felicidade, quando alguém arma uma homenagem imprevisível, quando recebe uma gentileza após suportar um longo tempo de indiferença, quando ganha um presente que não acreditava, quando vem uma notícia que muda a sua vida para o bem, quando diz sim para o casamento, quando sela as pazes com um amigo brigado, quando seu filho passa no vestibular ou lança o canudo para cima, quando abre uma carta e reconhece a letra, quando supera um desafio difícil, quando escuta uma declaração que esperava ardentemente em segredo.

Como desejava chorar de alegria outra vez, quando descubro que eu me amo e vejo também que sou amado.


24 de janeiro de 2016 | N° 18424 
MARTHA MEDEIROS

O dia em que sonhei ser vilã


Recebi o e-mail de uma moça (que não conheço) avisando que um jornalista (que também não conheço) andou me citando num texto. A moça, além de me transcrever o texto dele, mandou junto o e-mail do sujeito para que eu o agradecesse.

Li o texto. Ele elogia o bairro em que moramos e, no final, celebra a possibilidade de me ver caminhando pelas ruas. Sujeito simpático.

O que uma vilã faria? Nada muito maquiavélico. Simplesmente tocaria a vida. Anda atarefada, não conhece nem a moça nem o jornalista e há outros assuntos pendentes. Mas não sou vilã. Sinto obrigação de dar retorno, então mando um e-mail pra moça agradecendo o contato e outro e-mail para o cara agradecendo a citação. Feito. Levou cinco minutos para ser educada.

Passa uma hora e a moça volta a escrever dizendo que avisou o jornalista de que eu havia respondido pra ela, porém ele disse que não havia recebido nada. Ué. Respondo pra ela que vou reenviar o e-mail pra ele, e reenvio.

Daqui a pouco entra um e-mail dele agradecendo meu agradecimento. Ótimo. Acho que agora posso continuar a trabalhar.

Em 15 minutos, ele escreve de novo pedindo meu endereço pra mandar um livro de sua autoria. Recebo cerca de cinco livros por semana e o dele entrará para o depósito onde guardo tudo que levarei para minha cela quando pegar uma prisão perpétua, mas mando o endereço.

Mais um pouquinho, ele escreve de novo dizendo que soube que a editora dele já havia me mandado o livro, não recebi?

Seria a hora de dar minha paciência por encerrada e me transformar, finalmente, numa vilã bem pérfida, mas não consigo e esconjuro meus pais pela maldita criação que me deram. Levanto, vou dar uma olhada nos milhares de livros empilhados pela casa, levo um século fazendo a busca e encontro o exemplar. “Sim, de fato, seu livro está comigo. Obrigada, um abraço”.

Já é noite, nem tinha reparado. Na manhã seguinte, abro minha caixa de e-mails e há uma mensagem do rapaz pedindo opinião sobre um conto dele. Devo ler? Sou cria de Madre Tereza. Leio. E não gosto.

Aí faço um teatrinho, que é o mais perto que consigo chegar da vilania. “Olha, ando sobrecarregada, tenho vários textos para entregar, minha filha foi expulsa do colégio, minha mãe foi hospitalizada, meu cão está deprimido, a empregada fugiu com o porteiro, você entende, não é?”. Significa que não me manifestarei nem nesta, nem na próxima encarnação.

Ele responde dizendo que entende e que aguardará ansioso pela minha opinião, ou seja, em breve receberei outro e-mail dele, cobrando a leitura.

E assim a gente constrói uma carreira de boazinha, mesmo sabendo que as vilãs é que são espertas. Toda essa trabalheira porque um cara que não conheço me vê caminhando de vez em quando pelas ruas. Acabo de voltar do mercado da esquina. Adivinha.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016



20 de janeiro de 2016 | N° 18420 
MARTHA MEDEIROS

Por que falamos tanto?

Que aflitivo é falar. Através da fala, tentamos nos comunicar com aqueles que nos cercam, desde desconhecidos até pessoas que amamos. Com os estranhos é menos difícil, basta que a distância se mantenha. Os sentimentos não se infiltram no diálogo. Quanto custa? Xis. Este lugar está vago? Não. Onde fica a rua tal? Seguindo reto, terceira à direita.

Mas é só haver alguma intimidade, mínima ou máxima, para que as conversas se desenvolvam através de frases entrecortadas, de subentendidos e de resumos que nunca atingem a exatidão do que queremos dizer.

Pobres de nós. Nós, que somos povoados por fantasias, atrações, pavores, carências, entusiasmos, tudo tão, tão indizível. No entanto, é imperativo se comunicar, e lá vamos nós, impulsionados por expressões que vêm à mente sem nenhum rigor, sem nenhuma poesia, às vezes até sem nenhum sentido. São tantas as palavras à nossa disposição, tantas. E, ao mesmo tempo, tão poucas. Como não falhar diante das tentativas de oralidade?

Eu não quis dizer isso (mas ao mesmo tempo, quis). Não é isso que sinto (mas um pouco, é). Eu estava brincando (mas no fundo, não).

É angustiante estar à mercê de mal-entendidos e de tudo que tentamos expressar com alguma sensatez, mas que soa tão bobo diante da grandiosidade da nossa emoção. Quais são as palavras certas? Existem palavras certas? Como é que eu me traduzo? Como traduzo o humano em mim?

Não basta eu estar presente. É preciso que eu me manifeste, que eu opine, que eu responda às perguntas, mesmo as automáticas, principalmente elas. Eu não sei como verbalizar meus medos, não sei como dar voz à criança que ainda sou, não sei como reagir diante de uma ironia, não sei pedir para que os outros se calem para que eu me escute. Tudo tem um som: nossa tristeza, nossa excitação, nossa respiração, nossa dor. Mas insistimos em falar, em ser mais eloquentes do que o silêncio.

Viver é uma tarefa para gigantes, não para seres frágeis como nós.

Eu não estou escrevendo esta crônica sozinha. Toda essa divagação foi inspirada pela peça Os Realistas, que está em cartaz no Rio – se você passar por lá, programe-se. No palco, quatro atores espetaculares, que honram o teatro com T maiúsculo. Debora Bloch, Emilio de Mello, Mariana Lima e Fernando Eiras são os quatro protagonistas que interpretam nossa grandeza e nossa pequeneza, esse antagonismo que nos constitui e que nos exaspera. 

Como fazer para que o tanto que somos (tão dúbios, tão sensíveis, tão bem-intencionados, tão confusos) encontre correspondência no tanto que articulamos (tão verborrágicos, tão sedutores, tão ríspidos, tão enrolados)? Na maioria das vezes, estamos apenas falando por falar.

Não estará mais do que na hora de nos aquietar?

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

19 de janeiro de 2016 | N° 18419 
CARPINEJAR

Apaixonado

Se estou apaixonado, eu aparo a barba, ajeito o cabelo, dobro as borrifadas do perfume, visto roupa nova, engraxo os sapatos, escolho a melhor cueca, reviso as meias para não usar nenhuma com furo, escovo os dentes seis vezes ao dia, volto à academia, largo o terapeuta.

Se estou apaixonado, não basta me arrumar, eu tenho que deixar a casa prendada. Pago faxineira, retiro as tralhas dos fundos, conserto a maçaneta frouxa há um ano, troco o chuveiro frio, compro incenso e aromatizador, seleciono velas com cheiro, gasto em ridículos sabonetes coloridos, descarto toalhas velhas e esfarrapadas, seleciono novos lençóis e roupa de cama, passo na feira para escolher as melhores frutas, forro a geladeira de cerveja.

Limparei ainda o carro coberto da poeira da estrada, esvaziarei o lixo do chão, aplicarei cera na carcaça para renovar o brilho.

Se estou apaixonado, não basta me arrumar e arrumar a casa e arrumar o carro, eu me preocupo com o interfone do prédio que não funciona direito, com as luzes apagadas do corredor, com a porta emperrada da saída da garagem. Peço providência pessoalmente ao zelador e por escrito ao condomínio. Posso virar síndico somente para dar um jeito logo e impressionar quem desejo. 

Eu me antecipo a contratempos e adversidades. Não pretendo que nada atrapalhe o que estou sentindo. Serei jardineiro, mecânico, pedreiro, todas as profissões de muque. Buscarei também sofisticação em tutoriais do YouTube: aprenderei receita de risoto siciliano, decorarei passos de forró, assistirei a degustações de vinhos.

Se estou apaixonado mesmo, não basta me arrumar e arrumar a casa e arrumar o carro e arrumar o edifício onde moro, eu começo a escrever ao Dmae para corrigir vazamento na rua, telefono para a Secretaria de Obras para melhorar a iluminação da praça, peço que cortem a grama dos canteiros em meu bairro, incomodo para que seja pintado o meio-fio apagado. Eu me transformo em vereador voluntário, em prefeito de graça. Não me importo em suar, trabalhar, penar, cansar. A vadiagem acabou. Quero deixar tudo bonito para o meu amor passar.

Se estou apaixonado de verdade, sou capaz de fazer em uma semana tudo o que adiei a vida inteira.

Deus já deveria estar apaixonado pela mulher quando criou o mundo em sete dias.

sábado, 16 de janeiro de 2016



17 de janeiro de 2016 | N° 18417 
CARPINEJAR

Diferença entre apoiar e aprovar no casamento

No casamento, um dos grandes equívocos é aguardar aprovação enquanto o correto é esperar o apoio.

Aprovação é paternal ou maternal, não pode ser ritual de casados, porque cria a dependência e a submissão. Alguém se anulará pela carência. Alguém se arrependerá de sua iniciativa e de suas ideias. Alguém agirá pela ansiedade do aplauso. Alguém será permanentemente avaliado. Alguém deixará de viver as suas opiniões em nome do aval de um dos lados.

Não é agradável sofrer com a oposição, é desgastante, às vezes cansa e traz o divórcio, porém é desesperador adotar o que não se acredita só para não brigar.

Mulher e marido devem apoiar, jamais aprovar. Apoiar é respeitar a diferença. Apoiar é reconhecer o valor da posição contrária. Apoiar não é submissão, é estar junto concordando ou discordando. Apoiar é admitir o contraponto e não sonhar com o consenso entre duas personalidades diferentes.

Consenso entre dois é um disparate, o termo democrático funciona com mais envolvidos. Consenso entre dois corresponde a uma miragem de paz, é quando o primeiro manda e o segundo obedece. Consenso entre dois não é liberdade, é poder. E poder restringe a ação, não ilumina todos os caminhos. Quem tem poder tem menos liberdade. Quem tem liberdade não precisa do poder.

Há gente que não faz nada na relação se não obtém aprovação. Depende da aprovação do que vestir, depende da aprovação para receber amigos em casa, depende da aprovação para o que comer e o que beber, depende da aprovação para dormir e mexer no celular. São escravos silenciosos do amém. O sim que começou como agrado, avançou como hábito e recrudesceu em abandono do próprio pensamento.

Na simbiose da aprovação, o amor é perigosamente infantilizado e abre a guarda para o surgimento de um tirano dentro de casa. Sempre existe aquele que se beneficia da fragilidade, explora os bem-intencionados e manda e desmanda no casamento.

O desejo de agradar de qualquer jeito desemboca na obediência cega. No fim, terminará não determinando o que é realmente seu da rotina, apagará a sua identidade, não saberá escolher um canal de televisão ou uma roupa ou uma comida, de tanto que ficou sujeito ao que a sua companhia considera adequado.

Apoie, que é um gesto de igualdade, não aprove. Ninguém é melhor do que o outro para aprovar.


17 de janeiro de 2016 | N° 18417 
MARTHA MEDEIROS

Redondezas


Não é incomum homens e mulheres terminarem a vida ao lado daqueles com quem inauguraram seu currículo afetivo

Geralmente se dá assim: eu chego à cidade sem conhecer nada nem ninguém. Abro a mala no quarto do hotel, tiro de dentro as roupas que amassam, penduro, vou ao banheiro, escovo os dentes e saio pra rua, já que, um momento antes, estava imobilizada dentro de um avião e não vejo a hora de esticar as pernas. Então perambulo, vou sentindo o clima do lugar, me inteirando sobre a vizinhança, até que paro em algum bistrô simpático e faço a primeira refeição. Peço um cálice de vinho e brindo o descanso e a aventura que vêm pela frente.

Até aqui, acredito que, ao viajar, se dê o mesmo com você.

Então passam cinco dias, 10, 15, quantos forem os dias que você programou ficar fora de casa. Está chegando a hora de voltar. Você já tem a cidade estrangeira na palma da mão, fez inúmeros programas, conheceu diversos restaurantes, praias, parques, museus e agora está de malas praticamente feitas, faltam poucas horas para ir para o aeroporto ou a rodoviária, o tempo necessário para uma última refeição. Onde? Talvez aí percamos nossas afinidades. Sem que eu planeje, acabo sempre no local onde comi na cidade pela primeira vez. Sou conduzida, por sei lá que instinto, à minha primeira parada durante aquela perambulação inicial, quando eu ainda não conhecia nada.

Aconteceu recentemente e só então me dei conta de que costumo repetir o mesmo restaurante na chegada e na partida. Às vezes, faço até o mesmo pedido. É prático, pois em geral é um lugar perto do hotel, mas, se há várias outras opções nos arredores, por que justamente aquele? De novo aquele?

Fechamento de ciclo, imagino. Arremate. Uma maneira de confirmar que foi um período para ter início, meio e fim, sem fios soltos, sem reticências. Não há mais tempo para últimos prazeres, apenas para homenagear os anteriores. E para ir se acostumando com a sensação de pertencimento e continuidade: peço um cálice de vinho e brindo a rotina que vem pela frente.

Como se vê, dá pra infiltrar psicologia em tudo.

Essa reflexão me levou às histórias que escuto sobre pessoas divorciadas ou viúvas que estão com 60, 70 anos, e que, longe de aposentarem o coração, reencontram seu primeiro amor e shazam: retomam a relação da adolescência, se é que não é otimismo demais usar a expressão “retomar” depois de décadas ausentes um do outro. Mas o

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016


13 de janeiro de 2016 | N° 18413 
MARTHA MEDEIROS

A existência dos outros


Não lembro em que livro encontrei esta frase do poeta Fernando Pessoa: “Ninguém admite, verdadeiramente, a existência real de outra pessoa”. É uma afirmação incômoda. Seremos tão autocentrados a ponto de admitir apenas parcialmente a existência de quem nos cerca?

Reza a lenda que só levamos em conta aqueles por quem temos sentimentos profundos: filhos, pais, irmãos e amigos íntimos. Aos outros (amigos não tão íntimos, colegas de trabalho e conhecidos diversos) destinamos nossa simpatia. E, aos desconhecidos, devotamos no máximo nossa curiosidade, se eles a merecerem. Ou nossa indiferença, se eles a merecerem também.

Só que Pessoa não fazia essa distinção, não estava contemporizando. Ele foi claro: os outros, todos os outros, são abstrações ao redor. Convivemos com eles, nos preocupamos com eles, até mesmo os amamos, mas, ainda assim, eles gravitam em nossa órbita sem que consigamos conferir-lhes uma individualidade plena.

Essa ausência de empatia explica por que o mundo nunca vai ser justo e pacífico. Houvesse verdadeira empatia entre os seres humanos, adeus guerras, violência urbana e corrupção. Bastaria que cada um tivesse consciência de que o outro sente, sofre, ama, deseja e pensa com legitimidade e intensidade idênticas a nossa.

Na incapacidade de desenvolvermos esse olhar abrangente, direcionamos o foco apenas aos nossos pares, acreditando que eles representam “todo mundo”. Todo mundo curtiu o post. Todo mundo sentiu a morte do David Bowie. Todo mundo está adorando o novo filme do Tarantino.

Um microcosmo de pessoas do mesmo nível social e intelectual, que cultivam os mesmos hábitos e gostos e que por isso têm a existência comprovada, tanto que, quando sofrem alguma violência, o fato parece muito mais grave do que quando acontece o mesmo com alguém que não se parece conosco e que, portanto, não é visto como parte do mundo.

Um menino de dois anos chamado Vitor foi assassinado a sangue-frio na rodoviária de Imbituba, dias atrás. Um maluco enfiou-lhe um estilete na garganta, sem mais nem menos. Vitor era um belo loirinho, filho de um renomado cirurgião e de uma psicanalista que vivem num prédio da Beira-Mar Norte, em Florianópolis.

Fosse isso mesmo, o assunto estaria na capa dos jornais e revistas, só que não. Vitor foi realmente assassinado, mas era pobre, bugre e vivia numa aldeia indígena. Estava na rodoviária com a mãe, que ali vendia artesanato.

Bastou corrigir a descrição do menino, numa simples troca de parágrafos, para a empatia retroceder e a existência de Vitor se tornar menos importante – ou mesmo nula.

Ainda temos muito a evoluir, cara-pálida. Enquanto os outros forem uma abstração, um mundo melhor também será.

sábado, 9 de janeiro de 2016



10 de janeiro de 2016 | N° 18410 
CARPINEJAR

Não faça o outro sofrer o que você sofreu


Você queria que o outro sofresse o mesmo que sofreu, que ele entendesse o que renunciou, o erro que cometeu, o que deixou de viver ao seu lado, a escolha enganada. Queria que ele engolisse de volta tudo o que ficou engasgado em sua garganta: toda a distância, toda a indiferença, todo o desprezo. Parou de atender o telefone, bloqueou as redes sociais, não garantiu o direito a uma conversa redentora, virou as costas como mais uma porta fechada de casa, recusou as apelações por cartas e a esperança da retratação rápida.

Você pode comemorar, atingiu o seu objetivo, ele hoje é um caco, um restolho, um trapo do homem que foi. Pode espalhar para as suas amigas de que se vingou perfeitamente, envaidecer-se das estratégias de guerra, pode mostrar com orgulho o quanto ele resta perdido, desorientado, solitário, que o rosto dele não esboça um riso há tempo, que as olheiras fundas são desenho a carvão, que a sua barba é de um náufrago dos ansiolíticos. 

Pode se vangloriar do fim da fé do sujeito, de sua exaustão mental, de quem acorda como quem dorme, de quem dorme como quem desmaia. Pode exibir que você conseguiu o que desejava: ele sofreu tanto como você.

Estão quites. Mas infelizmente a sua falha é devolver o que houve de ruim na relação, e não recuperar o que havia de bom. Vingança não é justiça. Vingança é pisar mais o que estava machucado. Retribuiu as feridas, as chagas, a inclemência. São duas vítimas, não mais uma: você antes, ele agora. Executou a retaliação com astúcia de xadrez. A razão é um jogo para vencer, já o amor é a arte de ceder. Não há como ganhar na razão sem sacrificar o coração.

Não previu que sofrer é perigoso. As pessoas desamam na dor. As pessoas não voltam mais a ser o que eram. Exagerou na dose, pois a raiva não segue nenhuma posologia. Ele não tem nem mais uma ponta de orgulho para voltar a lhe admirar.

O sofrimento não produz saudade, e sim mata a saudade. A saudade é cria da alegria. O sofrimento apenas traz ressentimento. Você trocou o eu te amo dele por um pedido de desculpa. Ele irá pedir perdão um dia, porém nunca será capaz de uma reconciliação. Não foi um grande negócio.

Dar o troco é perder a fortuna do amor.



10 de janeiro de 2016 | N° 18410 
MARTHA MEDEIROS

Câmbio manual


Ler é bom, simplesmente. Não precisa servir para nada

No último livro que li em 2015, o personagem Pablo tomava as principais decisões da sua vida enquanto mudava as marchas do carro. Um detalhe, apenas um detalhe. A história do livro é outra e nada tem a ver com isso. Mas a competência do autor me fez enxergar nitidamente aquele Pablo que passava de primeira para segunda quando se animava com uma ideia delirante, e de segunda para terceira quando se sentia confiante de que aquele era mesmo o caminho que deveria seguir, e que voltava para a segunda marcha quando de repente uma dúvida reduzia seu entusiasmo.

Uma vida, quando bem vivida e bem pensada, nos obriga a essas alterações de força do motor. Uma ideia puxa outra ideia, encontra a estrada livre em frente, acelera, aí surgem os obstáculos, freamos, nos adequamos à baixa velocidade novamente, até que uma fresta se abre, decidimos avançar por ela, e engatamos a segunda, a terceira, a quarta, a quinta, sentindo o êxtase da conquista: o deslizar merecido depois de uma escolha que foi feita em um único segundo, administrando racionalização e audácia. Até que se chega a algum ponto morto, e tudo começa novamente.

Isso quando não somos forçados a dar ré. A gente se desencoraja, às vezes.

Eu, como muitos, dirijo um carro com câmbio automático e acho bem prático. Acomodo o câmbio no D de Drive e é só ir. Pouco esforço. O motor se adapta às circunstâncias, o carro decide qual a potência exigida, não precisa de mim.

Emoção nenhuma. Como um pensamento sem mudanças.

Para que serve ler? Aproveitando a deixa, poderia responder que é para lembrar que usar a cabeça é um exercício estimulante, que terceirizar nossas escolhas é preguiça, que estar no comando exige responsabilidade, que é preciso saber quando avançar e quando recuar, enfim, essas coisas que fazem da troca de marchas uma bela metáfora pra vida, mas não: ler é bom, simplesmente. Não precisa servir para nada.

O livro que citei na abertura dessa coluna, o último que li em 2015, foi o genial Aventuras Provisórias, de Cristóvão Tezza. E entrei em 2016 lendo Trapo, também de Cristóvão Tezza. E oxalá Cristóvão Tezza continue comigo nessa longa jornada pela frente, me inspirando, entretendo, ensinando, divertindo, comovendo ou, se for o caso, não servindo pra nada. 

A não ser, talvez, para me fazer sentir a plenitude de engatar a primeira e assumir os riscos desta viagem – um ano que começa é sempre uma nova estrada que se pega, e quero avaliar eu mesma de quanta força vou precisar e de quais emoções não pretendo abrir mão.

Meu carro é automático. Eu, não.



09 de janeiro de 2016 | N° 18409
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O QUE CABE NUM ABRAÇO


O William era filho único de um pai rico e bem-sucedido. Sobrecarregado pela cobrança de equivalência com o sucesso do pai, fez uma série de escolhas equivocadas na tentativa vã de encontrar uma trilha própria, com reconhecimento personalizado, desapegado do modelo paterno. Quando lhe ofereceram um emprego em Londres, viu uma chance áziga de dar uma utilidade ao curso de Comércio Exterior que, até então, soava-lhe no currículo como um título abstrato. 

Mas, mais do que tudo, percebeu que a distância traria uma trégua na competição desgastante que mantinha consigo mesmo. Descobriu, então, que a vocação para o sucesso empresarial era genética e, depois de seis anos, já comandava uma importante agência no centro financeiro de Londres. Neste tempo, o trabalho obstinado restringiu a relação familiar a telefonemas rápidos e focados na saúde dos pais e à repetição exaustiva dessas frases de pseudoafeto que dizemos na ânsia indisfarçada de encerrar uma ligação amorfa.

Uma dessas chamadas foi na véspera do Ano-Novo de 2009. Era a quarta virada de ano longe da família, a mãe pareceu chorosa como sempre, mas a voz do pai, recordaria depois, parecera mais cansada e, do nada, o velho dissera: “Não sei quantos Anos-Novos ainda festejarei, mas espero que o seu Ano-Novo seja muito feliz!”. Na hora, pensou: “O velho, manhoso como sempre, fazendo seu charme!”.

E, na mesma linha de cordialidade, respondeu: “Que os seus próximos 30 anos também sejam!”. Lembrava bem desse diálogo porque, ao desligar, se dera conta de que os 30 anos oferecidos no final da conversa eram um exagero, afinal, o pai já passara dos 70. Mas o desconforto desta constatação durara poucos segundos porque a vida frenética que levava não lhe permitia abstrações. Só ficara como definitiva a percepção que o aumento do intervalo entre os telefonemas, perceptível nos últimos meses, só fazia crescer a ansiedade por encerrar a conversa seguinte. Por isso, quando a mãe lhe chamou na véspera do Natal de 2010, ele já atendeu acelerado: “Diga lá, mãe, o que há de novo?”. Houve um silêncio e um soluço. O choro antes de começar a falar era uma inversão que prenunciava notícia ruim.

E ela veio. “É o seu pai, meu filho! Estive preocupada há meses com a prostração dele. Ele escondeu de mim o mais que pôde, mas ontem me confessou que está morrendo. E pediu que não te incomodasse, mas sei o quanto ele gostaria de lhe ver, desde que você não tenha nada mais importante para fazer!”

Na última frase, toda a mágoa arquivada desde uma noite infeliz em que ele dissera: “Desculpe mãe, mas vou desligar, porque meu dia ainda não terminou e tenho coisas muito importantes para fazer!”. Decidiu voltar aproveitando o feriado de Ano-Novo, quando os negócios esfriavam e poderia dar alguma atenção ao casal de velhos carentes que agora passara a ligar quase diariamente e, se isso não bastasse, ainda terminava em mar de lágrimas.

O reencontro foi chocante. O pai muito magro, a mãe deixara de pintar os cabelos, quase não os reconheceu. Impactado pela descoberta do quanto o abandono de filho envelhece os pais, ele tentou várias vezes explicar a ausência prolongada. E o velho pai sempre interrompia, dizendo: “Não diga nada, meu filho. Eu tenho o maior orgulho de você!”.

Na véspera do Ano-Novo, ele chamou os dois e disse: “Gente, eu não tenho experiência nesta coisa de morrer, mas acho que é isto que está acontecendo comigo. Me abracem!”. Os três ficaram assim, enlaçados durante um longo tempo. Até que perceberam que o pai já não estava. O William confessou-me, tempos depois, que naquele momento descobrira que tudo o que é realmente importante cabe num único abraço.



09 de janeiro de 2016 | N° 18409 
NILSON SOUZA

APARECIDO


Estava torcendo por ele, mas perdi o entusiasmo quando o homem alegou falha no chip de registro do tempo. O mineiro José Aparecido Gonçalves, de 56 anos, chegou na 22ª posição na Corrida de São Silvestre. Completou os 15 quilômetros em 48 minutos e 42 segundos, tempo de atleta queniano. Se fosse verdade, teria deixado para trás cerca de 30 mil corredores, muitos deles jovens e preparados para superar longos percursos. O resultado logo despertou a suspeita das autoridades esportivas, não exatamente pela colocação do competidor, mas sim pela sua idade.

– Preconceito! – gritei para mim mesmo, obedecendo ao instinto de autodefesa dos sexagenários. Não apenas no esporte, mas também em outras atividades, é comum que os veteranos sejam vistos com desconfiança.

Por isso, torci para que o velhinho de São Joaquim de Bicas, município da região metropolitana de Belo Horizonte, fosse um desses fenômenos da natureza que desafiam a ciência. Como meu amigo Flávio, que tem mais de 70 anos e corre diariamente entre a Tristeza, onde mora, e a Serraria, mais do que o dobro da São Silvestre. Barbudo, ereto, queimado pelo sol, ele parece um indiano correndo a Maratona de Bombaim. Mas não compete. Corre no seu ritmo, apenas pelo prazer do movimento, para manter a saúde e para fazer amigos, pois gosta de reduzir a passada para conversar com conhecidos e desconhecidos mais lentos.

Correr e trapacear não combinam. Especialmente para atletas, digamos, mais maduros, que têm plena consciência do verdadeiro sentido da corrida. Competir é para Usain Bolt. Os grisalhos não correm para chegar na frente de outros competidores. Correm para chegar na frente de si mesmos.

O médico Drauzio Varella começou a correr depois dos 50 anos e agora, também na casa dos 70, já completou várias maratonas. “Quem consegue correr 42 quilômetros enfrenta o mundo com mais otimismo e sabedoria”, ensina no seu livro sobre o tema. Não é preciso tanto. Quem consegue correr (ou caminhar) a distância que lhe faz bem já está garantindo benefícios físicos e mentais importantes.

Por isso, custo a entender a história de Aparecido, que acabou sendo desclassificado por suspeita de fraude. Ele garante que não trapaceou, mas os sensores eletrônicos não registram sua passagem por todos os pontos aferidos. Isso indica que ele encontrou algum atalho ou passou pelos locais muito antes da prova.

Que papelão, seu Aparecido! Nós, os matusaléns do movimento, podíamos iniciar o ano sem essa.


RUTH DE AQUINO
08/01/2016 - 20h02 - Atualizado 08/01/2016 20h02

Saúde!

Vivemos, na área de Saúde, uma septicemia cultivada pela incompetência


Quando brindamos, o primeiro voto é “saúde!” – e não por acaso. Só depois vem “paz, amor”. Sem saúde, o resto não é possível. Por que, então, o Brasil é tão cruel com seus doentes? Crises na Saúde não são produzidas de um dia para o outro. O caos nos hospitais do Estado do Rio de Janeiro é apenas a vitrine de um sistema falido e desumano, e o governador Pezão é um dos culpados, não o único.

O Estado brasileiro nunca deu assistência médica digna à massa da população. Jamais transformou a Saúde em prioridade. No Brasil profundo, não é novidade a falta de médicos, remédios, leitos e equipamentos. O Rio de Janeiro tem a faculdade de jogar holofote sobre mazelas nacionais – ainda mais agora, antes das Olimpíadas. Um gabinete de crise é criado, a prefeitura adota hospitais estatais, como se a escassez fosse inesperada. Não é. Vivemos, na Saúde, uma septicemia cultivada pela incompetência.

Na véspera do Natal, Pezão anunciou a dívida impagável com fornecedores na Saúde, o fechamento de hospitais e de UPAs. A ironia já está no nome: Unidades de Pronto Atendimento. Fora raras exceções, que se dane o doente de baixa renda. O governador do Rio põe a culpa na queda da arrecadação do ICMS, na queda dos royalties de petróleo. Mas isso não aconteceu de repente. Faltou preparo ao governador do Rio para escolher onde gastar na crise?

Os governos federal, estaduais e municipais empurram com a barriga, há mais tempo do que nossa memória alcança, os péssimos índices de desenvolvimento humano no Brasil. E aí se incluem também educação, saneamento e transporte. A negligência se explica. Os políticos não usam hospital público, escola pública e transporte público. Eles enriquecem muito no poder. A vida real passa ao largo de quem manda.

O PT, em 13 anos de populismo amparado pelo PMDB, nada fez para mudar o caráter do país. Nos indicadores sociais, somos um país subdesenvolvido. Não deveria ser assim numa economia que se gabava, até pouco tempo atrás, de ser a sétima do mundo.

Vivi um dia banal e deprimente no hospital municipal Rodolpho Perissé, em Búzios, o balneário mais chique e badalado ao norte da cidade do Rio de Janeiro. Chamo o incidente de banal porque nada de grave aconteceu.

Não foi nada remotamente parecido com o drama da aposentada Lúcia Caldas, que perdeu a mãe de 79 anos no dia 30 de dezembro no Hospital Albert Schweitzer, em Realengo, no Rio de Janeiro. A mãe de Lúcia ficou mais de um mês internada com fratura no fêmur. Não foi operada por falta de uma prótese. Contraiu uma pneumonia e morreu no hospital.

Cheguei ao hospital de Búzios para acompanhar meu filho, com uma dor que parecia vir do apêndice. Olhei a antessala. Uma multidão triste. Crianças, velhos, trabalhadores humildes. Quem recebe os doentes num hospital público brasileiro, na recepção ou na triagem, olha para o enfermo e seus parentes como se fôssemos adversários. Um incômodo. Especialmente perto do Natal e do Ano-Novo. Não havia sinal de celular ou de internet, estávamos isolados do mundo exterior, era impossível falar com parente ou médico de fora.

Vi um homem chegar amparado pelo irmão, todo quebrado, não havia cadeira de rodas para acomodá-lo. Vi um pai chegar aos gritos com a filha vomitando nos braços: “Sou evangélico, mas juro que vou derrubar essa porta se não atenderem minha filha agora”.

O vômito empesteou o ambiente calorento, sem ar-condicionado. As pessoas imploravam para que fosse limpo. Temiam que alguém escorregasse. E não aparecia nenhum pano para limpar. Até que surgiu um desses triângulos amarelos que dizia: “Cuidado. Caution. Piso molhado. Wet floor”. O desenho era de um boneco escorregando. No vômito?

Vi uma mulher com o bebê febril, apertando em vão a campainha do laboratório. Busquei ajuda para ela. Uma enfermeira mal-humorada passou, me olhou com tédio e disse: “Não trabalho no laboratório”. A mãe do bebê me agradeceu a atenção, com os olhos vazios, sem entender que tinha direitos. Ela provavelmente se acostumou a ser maltratada.

Doentes em nossos hospitais públicos são como vítimas de um iminente naufrágio. Dependendo da personalidade, disputam lugar ou se ajudam, organizam filas, zanzam perdidos pelos corredores, compartilham males e histórias.

Foram nove horas no hospital de Búzios e várias filas para exames desnecessários, pedidos por diferentes estagiários, até chegar diante de um médico verdadeiro, o único cirurgião. Em cinco minutos, ele descartou apendicite, receitou um anti-inflamatório. Um dia perdido por falta de médico.

Nada demais. Quantos perdem não um dia, mas a vida ao buscar assistência médica? Saí do pesadelo olhando com tristeza e impotência para nossa gente, que escuta dizer que o problema da Saúde é a queda nos royalties do petróleo.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016


06 de janeiro de 2016 | N° 18406 
MARTHA MEDEIROS

Arte de rua


Miami sempre esteve na minha lista de cem lugares a evitar antes de morrer. Acreditava que a cidade fosse apenas um grande shopping a céu aberto, e minha paciência é curta para o entra e sai de lojas.

Até que em 2011 me convidaram para participar da Feira do Livro de Miami e meus preconceitos começaram a ruir. Feira do Livro? Em Miami? Descobri que não só se lia em Miami, como também se ia ao cinema, a concertos de música erudita e a galerias de arte – inúmeras. Aliás, em Miami acontece uma das maiores feiras de arte dos Estados Unidos, a Art Basel, que na primeira semana de dezembro atrai artistas do mundo todo. Retirei-a da minha lista de antipatias.

Dias atrás, retornei à cidade para mergulhar nas águas cálidas de South Beach, virar o ano longe das más notícias do Brasil e disposta a conhecer o bairro de Wynwood, que alcançou projeção instantânea por sua arte de rua.

Não se fala de outra coisa por lá. Era uma área de má fama, lotada de galpões abandonados. Até que um empresário chamado Tony Goldman convocou alguns artistas para juntos apresentarem uma mostra de 40 muros grafitados. Nascia o Wynwood Walls. Um museu ao ar livre. Pop. Colorido. Impactante. Estavam salvos o bairro e a reputação de Miami.

Hoje são centenas de murais, um ao lado do outro, rua após rua – uma festa para os olhos e o espírito. Ao redor, se instalaram restaurantes, ateliês, lojas conceituais, tatuadores, coffee shops, todo um comércio voltado para consumidores descolados, que rejeitam o lugar-comum.

Galões de tinta, inspiração e boa vontade: uma fórmula simples para transformar o feio em bonito, o velho em novo – ainda que me pareça um pouco estranho ver aqueles turistas todos (eu inclusive) perambulando pelas ruas como se estivessem num zoológico de paredes, fazendo selfies contra muros, marcando ponto num bairro da moda. Toda revitalização deve preservar a integridade do local, ou seja, tem que incluir os moradores. Não sei se vi os moradores da região. Ou é um projeto agregador, ou é pra inglês ver.

Não sei, não sei. Foi só uma interrogação que surgiu.

O que importa é que é cultura, é arte, é inspirador. E atenua o clichê sacoleiro que colou em Miami. Um shopping a céu aberto com um museu ao ar livre dá, no mínimo, empate.

De volta à rotina: hoje eu caminhava pelo meu bairro e quase fui sugada por um buraco da calçada. Reparei nos fios de luz que se enroscavam entre os postes. Vi uma parede pichada, que é bem diferente de um grafite. Edifícios sem personalidade. Nenhuma provocação visual, nada de cor, humor e graça pelas ruas. E me ocorreu que um viajante desavisado das nossas atrações culturais poderia muito bem incluir Porto Alegre entre as cem cidades a evitar antes de morrer.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016



05 de janeiro de 2016 | N° 18405
 CARPINEJAR

Pato ou camarão: o enigma masculino do filtro solar

Homem confunde filtro solar com pomada. O que tem de pato, ganso, cisne na praia, com camadas e camadas mal espalhadas. Ou ele passa demais, ou passa de menos. Ou exagera, ou se omite. Não existe meio-termo (e nem menciono o spray, no qual as borrifadas são engolidas pelo vento). Ou exibe uma plumagem branca, ou aparece camarão-rosa, escandalosa carne viva em alguns trechos do corpo que exigem maior elasticidade, como as costas e atrás das axilas.

O mais cômico é o macho peludo, onde o creme fica eriçado na capa do peito, dê-lhe a cantar Roberto Carlos: debaixo dos caracóis dos seus cabelos.

Há uma incompetência inata masculina que deveria ser estudada. Metade do protetor permanece entre os dedos da rapaziada. Certo que o que não queima é a palma da mão.

O problema é a má vontade que vem da infância. Não conheço amigo que comemore o uso do protetor solar – faz obrigado, contrariado, de qualquer jeito, tateando a pele às pressas, longe do espelho. A mulher já considera o ato familiar e natural, está acostumada aos mais variados cremes de pequena: antes do banho, no banho, após o banho, desde as unhas até a raiz do penteado. Não há região de que ela não cuide com perseverança e afinco.

O modo desengonçado do varão começa na pouca intimidade que tem com a retirada do produto do pote, feito na base das cuspidas esporádicas, violentas e esforçadas. O creme é espirrado no chão, na cama, nas paredes e, inclusive, no teto.

A mulher, diferentemente, vira antes o pote fechado, dá umas palmadas na bunda e retira o volume que deseja com a maior tranquilidade do mundo. Diante da facilidade, a impressão é de que trapaceou e desenroscou a tampa do furo para pegar uma quantidade generosa.

As explicações no rótulo também terminam desprezadas pelos marmanjos, escolhem o número do filtro como se fosse jogo do bicho. Não se fixam em detalhes tais UVA e UVB, essenciais na prevenção de rugas e manchas solares.

Homem é genérico, mulher é farmácia de manipulação. Homem é remédio vencido, mulher é projeto de dermatologista.

Com uma resistência ancestral, o homem coloca uma vez protetor e pensa que está protegido por todo o veraneio. Não compreende que o protetor precisa ser renovado seguidamente, que sai com o mergulho no mar e na piscina, que dura duas horas em média. Botou de manhã e confia que estará valendo no dia inteiro. Não é que confie na infalibilidade dos laboratórios farmacêuticos, é preguiça mesmo, infantilidade irreversível.

O homem é uma criança grande, imediatista, na expectativa da reprimenda materna, que não quer perder o sol lá fora e, ao mesmo tempo, vive reclamando de que não consegue dormir com as queimaduras.

No juízo final, que as esposas perdoem a nossa chatice no verão.