sábado, 31 de março de 2018


31 DE MARÇO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Universo familiar


Recentemente, dois espetáculos levaram pais e filhos para o mesmo palco. Começando por Caetano Veloso, que tem se apresentado pelo Brasil com os seus garotos Moreno, Zeca e Tom num belo show que não tive a sorte de ver ao vivo, só através de pequenos vídeos postados nas redes sociais. Mas a Casa Ramil eu assisti.

Vitor Ramil e seus irmãos Kleiton e Kledir se apresentam numa espécie de roda de samba (mas que comporta milongas e outros gêneros) com seus filhos Ian e João e os sobrinhos Thiago e Gutcha - os sete como se estivessem na sala da casa do Laranjal, em Pelotas, onde nasceram e se criaram. Trocam conversa fiada em frente à plateia e tocam, afinados, canções de todas as épocas: desde Almôndegas até as composições dos mais jovens do clã. Experiência e experimentalismo juntos. Comovente.

Minhas avós, nos anos 30, não trabalhavam fora, não tinham acesso à pílula anticoncepcional, não tinham escolha a não ser fundar uma família pra cuidar: tiveram quatro filhos cada uma. Ou seja, tanto meu pai quanto minha mãe tiveram três irmãos e uma vivência rica em temperamentos a conciliar. Então, um dia eles se conheceram, casaram em 1960 e tiveram apenas dois filhos, que quando adultos também tiveram dois, cada um. A maioria das minhas amigas, idem, tem dois filhos. Algumas, apenas um; outras, nenhum. As pessoas passaram a ter mais o que fazer, e assim o universo familiar foi perdendo o formato de tribo e resumindo-se a uns gatos pingados.

Então, o que se vê no palco da Casa Ramil, além de um esbanjamento de talento musical, é o resgate de algo que não existe mais: o muito. Muitas histórias de vida abrindo-se para a renovação, muito passado em comum e muito futuro particular, muitas diferenças e semelhanças sendo administradas para o bem de uma convivência que nunca é fácil, muitas mulheres e muitos homens, muitos sobrinhos e netos, muitos cabelos, muitos estilos, muito ensinamento de pai pra filho e muito questionamento de filho pra pai.

Muitos sobrenomes iguais, muitos agregados somados à família nuclear, muito afeto segurando os desentendimentos, muita gente trabalhando pra coisa não desandar, muitos instrumentos pra cada um se manifestar, muitos endereços com uma mesma casa da infância pra lembrar, sinas diversas regidas pelo mesmo DNA. A potência da quantidade, do grupo, da massa. Muitos compondo um todo poderoso - deus virando parente, no meio deles, sem se fazer notar.

Casa Ramil é uma missa. É um banquete. É um réquiem que homenageia os familiões que estão desaparecendo e dando lugar às familinhas enxugadas por orçamentos curtos e lares apertados.

Casa Ramil é concentração antes do jogo. E é também o jogo jogado. E, por fim, é a celebração da vitória - eles vencem de 7 x 1. Nosso gol de honra é poder assistir a esse olé tão de perto.

Dia 5, quinta, às 19h, na Saraiva do Moinhos Shopping, estarei lançando meu novo livro de crônicas, Quem Diria que Viver Ia Dar Nisso. Minha família é pequena, então conto com vocês ; )

MARTHA MEDEIROS

Não existe alma gêmea

Eu sei que você quer que exista. Ficaria muito mais bonito eu fazer um texto bonito aqui, dizendo que existe alma gêmea, que em algum lugar a pessoa certa está te esperando. Uma pessoa que seja amor à primeira vista e que seja o preenchimento de todo o vazio emocional que você sempre sentiu. Uma pessoa que te complete e que faça isso de forma natural, não forçada, meio mágica. Essa pessoa não existe.

Vou dizer o que existe. Existe você bem e feliz e tão radiante que várias pessoas estão interessadas em você. Existe um ou outro hormônio, uma ou outra substância que funciona como mensageiro fisiológico, existe coincidência de encontros, cheiros e conversas que te deixam ainda mais feliz e confiante. De vez em quando, acontece. Mas não existe alma gêmea.

Porque nossa alma gêmea um dia acorda com cabelo desarrumado e um bafo terrível. Você descobre que a sua alma gêmea odeia sua série favorita, não gosta de viajar e tem nojo de sushi. E como pode ser sua alma gêmea se não gosta de voz e violão em bar? E você começa a pensar que talvez aquela ali não seja sua alma gêmea. Meu deus, minha alma gêmea está em algum lugar e eu aqui, com esse entulho!

Mas não existe. As almas se tornam gêmeas. Elas não nascem assim. Você vai abrindo mão de umas coisas, e a alma da outra pessoa abre mão de outras. Um aprende a comer comida japonesa, outro começa a simpatizar com música ao vivo. Um começa a acordar cedo pra tomar café da manhã junto, outro aguenta até meia-noite pra assistir filme abraçado. 

Um vai lendo os mesmos livros do outro. Um vai concordando com aquilo que você disse outro dia sobre aquela coisa que eu discordei na época. Um vai ficando meio parecido com o outro. Um vai pegando coisa do outro, outro vai pegando coisa do um. Tem vezes que dói um pouquinho, mas as almas vão ficando parecidas.

Vão ficando tão parecidas. Tão parecidinhas. Que coisa. Parece até que são gêmeas.
PIANGERS



31 DE MARÇO DE 2018
CLAUDIA LAITANO

velhos camaradas

Bromance é aquele tipo de palavra que nomeia algo que sempre existiu, mas, por algum motivo, nunca havia sido batizado antes. Neste caso, o laço de afeto e lealdade que une dois ou mais homens.

O termo é atribuído ao editor de uma revista de skate americana que, nos anos 1990, teria usado a expressão para descrever a amizade entre skatistas que passavam muito tempo juntos em um ambiente exclusivamente masculino. Nos anos 2000, a palavra caiu no gosto de jornais e revistas e acabou no cinema, virando uma espécie de subgênero de comédias hollywoodianas repletas de festas (de arromba), garotas (anônimas), cerveja (muita) - e rapazes dizendo bobagens, claro.

Enquanto o termo "sororidade", muito popular nos dias de hoje, encerra um sentido político evidente - união das mulheres em torno de causas comuns e apoio mútuo em situações de conflito -, ninguém associa a palavra bromance com conversa séria ou textão. Não procure no bromance reflexões sobre as diferentes formas de excercer a masculinidade ou pautas coletivas (direitos iguais para homens e mulheres na hora de calcular a aposentadoria ou decidir a guarda dos filhos, por exemplo). 

O bromance existe principalmente para celebrar a camaradagem e a liberdade para negar, ou adiar, os compromissos da vida adulta. O fato de algumas dessas comédias abusarem dos clichês de uma masculinidade meio bobalhona não parece incomodar os homens. E isso não porque todos sejam iguais ou tenham um fraco por comédias hollywoodianas de segunda linha, mas porque a ideia de uma visão distorcida ou simplória do gênero masculino não é um assunto que desperte muito o interesse, ou a indignação, dos rapazes. Significa.

O diretor Richard Linklater, que ficou conhecido pela trilogia Antes do Amanhecer, emprestou alguma densidade ao gênero com o filme Jovens, Loucos e Mais Rebeldes (2015). Com muitos elementos autobiográficos, o filme retrata a rotina de um grupo de universitários que aguarda o início das aulas, em um alojamento coletivo, no início dos anos 80 - uma espécie de "continuação espiritual" de Jovens, Loucos e Rebeldes (1993), ambientado nos anos 70 e no último ano da escola. Estão lá as festas, as garotas e a cerveja - e os rapazes dizendo bobagens -, mas também as sutilezas e os jogos de poder que vêm à superfície quando muitos homens dividem o mesmo espaço durante muito tempo. Digamos que o filme está para a amizade masculina assim como Antes do Amanhecer está para o primeiro amor: fácil de gostar e de se identificar.

Se Jovens, Loucos e Mais Rebeldes é sobre amigos descobrindo o mundo no início da vida adulta, A Melhor Escolha, filme mais recente de Linklater, em cartaz em Porto Alegre, é sobre a revisão do passado. Apesar do ponto de partida melancólico - o reencontro de três veteranos de guerra para enterrar o filho de um deles -, A Melhor Escolha de certa forma também celebra a camaradagem masculina. Mesmo quando a vida adulta e suas dores tornam as baladas mais raras, as garotas menos disponíveis e a cerveja mais controlada, a memória e o afeto são os últimos a sair da festa.

CLAUDIA LAITANO



31 DE MARÇO DE 2018
JJ CAMARGO


QUANDO A DISCRIMINAÇÃO MACHUCA

Georgina tinha 76 anos quando foi internada com derrame pleural, e os exames confirmaram a disseminação de um câncer de rim que tinha operado cinco anos antes.

Esse achado significava que houvera disseminação do tumor por via sanguínea e que nenhum tratamento local, como cirurgia ou radioterapia, poderia ajudar. No final dos anos 1990, o tumor de rim estava sempre no topo da lista dos cânceres que não respondiam à quimioterapia. Não tínhamos como saber se ela sabia disso, mas havia uma resignação e uma tristeza no olhar que sugeriam que sim.

Convivi com Georgina durante quase um ano e, nesse tempo, nunca ouvi uma queixa que fosse. Tinha trabalhado a vida toda como cozinheira em um hotel de luxo e não escondia o orgulho ao citar a lista de famosos que tinha alimentado. Sempre terminava relembrando a surpresa ao ser interrompida na cozinha pelo empresário Antônio Ermírio de Moraes, que não resistira a cumprimentá-la "porque nunca tinha comido um risoto tão gostoso".

E aí seguia explicando como fazia para dar o sabor com tomate seco e, no final, o queijo ralado para gratinar. Havia tanto orgulho em cada relato que se poderia supor que a culinária era a marca definitiva, e única, da sua vida modesta.

Mas ela tinha um trunfo guardado a muitas chaves: um filho, que conseguira formar com imenso sacrifício e que agora era engenheiro-chefe de plataforma na Petrobras em Campos. Fiquei muito surpreso com a existência dele, porque ela era a imagem da solidão e, com exceção de uma prima que aparecia a cada duas semanas, nunca se comentou de nenhuma visita.

Só soube da existência desse filho quando surgiu um porta-retrato na mesa de cabeceira, justo naquela fase triste em que os cuidados paliativos apontavam para o fim, a falta de ar se tornara insuportável, e o aumento da oferta de oxigênio, inútil.

"Não quero que meu filho me veja morrer. Ele que fique com a lembrança do tempo em que eu tinha saúde, para ser a mãe e o pai, que ele nunca conheceu. Eu só tinha 17 anos, e o senhor nem imagina o quanto era lindo meu alemão!"

Quando ensaiei o discurso do quanto era injusto privar um filho do convívio final com a sua mãe, ela me interrompeu: "Não é nada disso, doutor, ele não viria de qualquer jeito!".

"Mas por que não?"

"Ah, doutor, ele sempre me escondeu. No início, isso me magoou muito, mas depois aceitei, e acabei achando que ele tinha razão: não ajudaria nada um branquelo bonitão como ele ter uma mãe negra como eu!"
JJ CAMARGO


31 DE MARÇO DE 2018
LYA LUFT

Uma gorda amada

O nome era Meg, mas nós a chamávamos de Gorda. Pela própria raça, tendia a ser roliça. Era mansa, preguiçosa, carinhosa, sempre atrás de mim pela casa. Deitava-se invariavelmente do meu lado esquerdo quando eu ia para o computador. Na sala, à direita da minha poltrona, onde eu podia fazer-lhe carinho e conversar com ela. Quando a comprei, há uns nove anos, era minúscula, com aquela carinha comovente de pug, olhos grandes, focinho achatado, rabinho enroscado. Com o tempo, cresceu mais do que o esperado, ficou difícil carregar no colo.

Quando tinha uns quatro anos, comprei-lhe uma irmã: Melanie, a spitz, ou lulu-da-pomerânia, uma raposinha mignon que se aninhou no meu pescoço quando a peguei na pet, e me seduziu imediatamente, incondicionalmente. Era em tudo diferente da Gorda: focinho fino, olhos de gazela. Melanie é uma raposinha que finge ser um cachorro, que pensa que é gente. 

Eram uma dupla engraçada, mas muito amigas: instalavam-se lado a lado na poltrona vermelha da sala, às vezes Melanie atormentava a pug com suas brincadeiras, puxando-lhe orelhas e rabo, ou acabavam dando suas corridinhas pela casa. Meg era a minha gorda melancólica, com aquele ar enternecedor da sua raça; Melanie, uma pluma de pelos longos sempre querendo colo.

No último ano, a minha Gorda amada começou a ter sérios problemas de saúde: respiração difícil, já não conseguia subir na poltrona vermelha, alergias fortes e resistentes a quase todos os muitos remédios, problemas em um ouvido, que por fim levaram a uma cirurgia delicada e longa. Era inevitável: mais de um veterinário consultado, melhor pet, melhor clínica, mas meu coração de mãe estava inquieto. Passou alguns dias numa excelente clínica, onde a gente a visitava. 

Todos estavam otimistas, a Gorda acabou voltando para casa, sacudindo aquele seu improvável rabinho enrolado. Mas não era mais a mesma. Muito cansada, pouca fome (antes, devorava o que lhe déssemos), sem vontade de brincar. Queria ficar perto da gente. Dormia, às vezes, no tapete junto da minha cama, cabeça sobre minhas Havaianas. Nós, preocupados e impotentes.

No sábado à noite, parecia mais cansada do que de costume. Quando fui ao seu quarto na manhã de domingo, meu peito gelou: não conseguia levantar mais. Tomei-a nos braços, ainda pesada, chamei socorro, voltou para a clínica, de onde seguidamente ligavam com notícias de que estava estável, no soro, e ficaria tudo bem.

Na noite desse mesmo domingo, Melanie, a raposinha, correu duas ou três vezes ao quarto da irmã e voltou nos encarando com seu focinhinho atento. Queria nos dizer alguma coisa, ela está sempre dizendo coisas. Na manhã seguinte, o telefonema da veterinária. Nem precisou dizer: "A Gorda morreu". Morreu de madrugada, parada cardíaca, tudo rápido, sem drama nem alarido, do jeito que sempre foi: mansa, quieta. Não sei se existe um céu de cachorros, de bichos, mas algo daquela sua energia bondosa continua por aí e pela casa. Vai ser cremada, vamos enterrar a urninha em algum lugar bucólico.

São muito humanos esses bichos de estimação criados conosco. Talvez alguns de nós devêssemos nos tornar mais caninos: sem tanta raiva e rancor, tanto conflito e neurose, mas com o amor incondicional e a paz que eles, os nossos pets, nos trazem.

LYA LUFT

sábado, 24 de março de 2018


24 DE MARÇO DE 2018
LYA LUFT

Ônus e bônus da vida


Hora de escrever esta coluna. Geralmente, é só sentar e brotam as tantas ideias que giram na minha cabeça nessas horas de ócio, talvez criativo, que cada vez mais me permito. Na mão, um bom livro (ainda curto mais os de papel), na frente, uma bela paisagem, um dos bônus que a vida me concedeu, e nuvens, e árvores começando a se colorir, cada vez de outra cor. Agora as paineiras logo vão se derramar como creme de morango (sempre gulosa) sobre as outras árvores do parque.

Mas, hoje, duas sombras além da maior de todas que ainda empalidece meus dias: um Supremo estranhíssimo (perdoem se sou ignorante nos assuntos de Justiça), deixando boquiaberta boa parte do país, insegura, perplexa, entristecida.

Outra notícia, ainda não muito divulgada: uma grande rede de livrarias (não é a Cultura, graças a Deus) suspendendo pagamentos às editoras, deixando-as alarmadas. Terão de renegociar ou cancelar contratos, reduzir ainda mais as edições e as traduções, reprogramar suas vidas já difíceis em tempos tão difíceis. Todos sentiremos os ônus.

Quem comenta por aí que a crise passou? Podemos ser ignorantes, alguns de nós ou a maioria, em assuntos de economia e política, mas nosso bolso, meu bolso, não se engana. Consigo errar cálculos na calculadora, e recorro a meu marido engenheiro ou a algum filho ou neto mais iluminado do que eu nesses assuntos, mas a conta bancária, a carteira, não erram. Então, estes são dias estranhos, repito seguidamente nesta coluna e em Whats ou e-mails (quase não usamos mais e-mails, já notaram?).

Mas o jardineiro me manda vídeos daquela família de bugios fazendo artes nas nossas árvores do bosque, a turma crescendo, seguidamente filhotes agarrados às costas da mãe. Uma vizinha me conta que rasgaram a tela da janela do seu quarto, e me ouço dando uma risada.

Além do mais, hoje (estou escrevendo na sexta-feira, naturalmente), recebo no Renascença, com os queridos colegas e amigos Faraco, Aldyr e Deonísio, o Prêmio Açorianos pelo conjunto da obra.

O coração se alegra, por mais que eu seja avessa a cerimônias, homenagens e premiações. Loucura minha, eu sei, mas, em tantos anos de carreira, já pedi mais de uma vez que alguém recebesse o prêmio por mim. Coisas que nem anos de terapia resolveram.

Mas este aceitei, e vou receber, com satisfação, sobretudo pelo carinho que representa, pelos meus muitos longos anos de labuta, pelo trabalho, e estima, de Luciano, Sergius, toda a equipe de Cultura de Porto Alegre, e, afinal, porque é uma honra mesmo.

Saio brevemente do meu recolhimento para curtir o bônus dessa noite, resultado de várias décadas em que, em cada página, cada parágrafo de livro ou artigo, procurei dar o melhor de mim: o leitor merece. E eu também.

LYA LUFT


24 DE MARÇO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Qualquer corda


Quando menina, nunca olhava embaixo da cama a fim de conferir se havia algum monstro aguardando que eu apagasse a luz para só então me atacar. Bicho-papão era coisa que não me apavorava, mas eu tinha um medo absurdo de areia movediça, como se isso fosse um perigo menos fantasioso do que monstros embaixo da cama. Ficava em pânico quando via cenas de filmes em que alguém caía numa poça melequenta e, sem conseguir nadar, ia sendo tragado aos poucos para o fundo. Help, um salva-vidas! Não havia. Até que, subitamente, alguém surgia com uma corda e resgatava a vítima que, a essa altura, estava apenas com as duas mãos para o lado de fora.

Aí eu cresci. E admito, encabulada, mesmo grandinha ainda passei boa parte da vida me perguntando: quem é que vai aparecer com a corda?

Porque tem hora que você se sente bem assim: num lodo, enterrada até a cintura, sem ninguém por perto para puxar você pelo braço, para te alcançar uma boia, para jogar um cipó. Como é que você foi parar nesse lamaçal? Ah, pois é.

Sabe como é que foi, seu moço, eu conto: vinha correndo naquela direção, no meio da mata fechada, assustada por achar que estava sendo perseguida por algum animal selvagem, e então corri, corri tanto que quando vi, tchibum, caí nesse areal movediço desgraçado, e a margem, que seria facilmente alcançável com duas braçadas, ficou longe demais das minhas possibilidades. Estou imobilizada pela força sugadora desse buraco maligno.

Quantas vezes isso já nos aconteceu? Metaforicamente, é claro. Sabe como é que foi, seu moço, eu conto: vinha fugindo da minha verdadeira identidade, sem coragem para ser uma pessoa mais original e livre, assustada por achar que não daria conta de viver fora dos padrões, e então corri, corri tanto que, quando vi, tchibum, caí nessa rotina movediça desgraçada, e o meu sonho de ser eu mesma, que seria facilmente alcançável com duas braçadas, ficou longe demais da minha realização. Estou imobilizada pela força sugadora das minhas escolhas covardes.

Ou. Sabe como é que foi, seu moço, eu conto: vinha correndo na direção oposta a um amor que me exigiria muita dedicação e entrega, corri evitando todos os desejos que tentavam tomar posse do meu corpo, assustada por achar que não daria conta de tanta intensidade, de tanto sentimento, e então corri, corri tanto que, quando vi, tchibum, caí nessa mesmice movediça desgraçada, e a minha grande paixão, que seria facilmente alcançável com duas braçadas, ficou longe demais da minha realidade. Estou imobilizada pela força sugadora dos convencionalismos.

Tudo o que a gente quer é agarrar em alguma coisa para sair de uma vida atolada. Um novo amor. Um novo projeto. Uma viagem. Religião. Astrologia. Terapia. Curso tântrico. Uma corda. Qualquer corda.

MARTHA MEDEIROS


24 DE MARÇO DE 2018
CARPINEJAR

A mesa sobrenatural dos meus avós


Na mesa de sala da avó havia gavetas. Só descobrimos quando ela começou a feder. Não reparávamos porque a toalha na hora de almoçar e jantar cobria os seus segredos.

Mas, um dia, durante as nossas férias, o vô tratou de investigar o que estava acontecendo. Passávamos o janeiro inteiro com os pais da mãe em Guaporé: eu e os três irmãos. Acredito que seja a época em que os pais ficavam sozinhos para namorar em Porto Alegre. Ou para discutir sem que aumentássemos o som da televisão para não ouvirmos os gritos. Nunca tínhamos certeza se o barulho do quarto deles era de amor ou de briga.

A avó brincava que existia um gambá morto no assoalho, suspeita descartada em longa varredura.

O cheiro impedia a recepção de visitas. Não se tratava de odor de madeira podre ou de fungos. Vinha um azedume que dificultava a permanência no espaço.

A mesa acabou mandada a um marceneiro, que decifrou o mistério da minha infância e da guerra suja no momento de comer.

Os irmãos, para ganhar a disputa comigo pelas polentas, frangos, bifes com queijo na chapa e bolinhos de chuva deliciosos da avó, escondiam a comida nas pequenas gavetas. O que explicava o sumiço meteórico da refeição das bandejas. Em 10 minutos, não havia mais nada. Eu não me servia de novo e perdia o campeonato de quem comia mais. Sempre padecia com o último lugar do pódio.

Eles debochavam da minha lentidão - e tampouco digeria mentalmente como conseguiam tamanha rapidez com os dentes.

Eu pedia para que eles abrissem a boca para conferir se não estavam me trapaceando e não enxergava coisa alguma.

As gavetas se transformaram em geladeiras de crianças, em um frigobar sem tomada. Eles se empanturravam com o que podiam e guardavam mantimentos para depois. Aproveitavam o guardanapo de pano no colo para disfarçar os furtos. Assim que ninguém olhava, abriam os esconderijos. Às vezes esqueciam lá as porções roubadas, que formavam, com o tempo, lixo orgânico irreconhecível.

Não alimento raiva de meus irmãos, não há como qualificar a ocorrência como trauma, não é assunto espinhoso de terapia. Restou admiração. Estranhamente, um sorriso de admiração. Às vezes, me pego rindo sozinho da lembrança. Eu apenas concluo que eles foram geniais: uma sacanagem de primeira grandeza. Como não pensei nisso antes?

CARPINEJAR

24 DE MARÇO DE 2018
PIANGERS

Isso foi ontem


E você me disse que me odeia e que preferia não ter nascido. Isso foi ontem, quando você fez 18 anos. E um pouco antes eu disse que não ia emprestar o carro, que apesar de estar com o papelzinho da autoescola aquilo ainda não era a sua carteira de motorista. E você disse que estava muito nervosa no teste e não sabia se tinha passado. E você disse que estava feliz com a nova escola, já tinha feito umas amigas. Isso foi ontem, quando a gente se mudou de cidade.

E você disse que tinha adorado a festa, mesmo que a gente tivesse pouco dinheiro pro vestido de 15 anos. Eu senti que você estava só sendo educada. E você disse que a prova tinha sido impossível e que a professora não ensinava nada e só jogava a matéria no quadro. Isso foi ontem, quando você me falou que pegou recuperação. E você disse que ia brincar um pouco mais lá embaixo e ia fazer a lição de casa amanhã de manhã. Isso foi ontem, e até agora nada.

E você me disse pelo telefone que estava com saudade, e eu me senti o pior pai do mundo porque não estava com você no seu aniversário de 11 anos. E você veio correndo me mostrar mais um dente que tinha caído, e eu peguei o dente e guardei no bolso da minha camisa e esqueci ele lá. E você odiou quando a gente passou seu aniversário em Recife, longe de todas as suas amigas, sem festa e sem presente. Isso foi ontem, quando você fez nove anos.

E você disse que agora não precisa mais sentar na cadeirinha do carro. E eu te dei um celular bem baratinho, porque não conseguia me imaginar longe de você sem poder me comunicar. Na escola tinha aquele menino que te chamava de "menina do celular", porque você era a única menina com pais tão neuróticos. Isso foi ontem, no primeiro dia de aula da primeira série.

E eu e a sua mãe choramos escondidos com uma pena de você, quando sua irmã nasceu e sentimos que você não seria mais nossa princesinha. Iria ter que dividir o reino com um novo bebê. Isso foi ontem à noite, depois que você dormiu. E você insistiu para dormir na minha cama porque estava com medo do escuro e me chutou a noite inteira. Isso foi ontem, e agora eu estou todo dolorido. E você me disse que me amava pela primeira vez, provavelmente só repetindo o que eu te digo todo dia. Isso foi ontem. E eu estava nervoso e atrapalhado. Sua mãe tranquila e feliz. Viramos a noite no hospital, ontem, quando você nasceu. Tentando entender como cuidar de você. Um dia, a gente aprende.

PIANGERS


24 DE MARÇO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

O OPOSTO DO ÓDIO

Se fosse personagem de novela, a desembargadora Marília Castro Neves seria aquelas vilãs quase engraçadas de tão caricatas - do tipo que tortura a mocinha durante 200 capítulos e depois acaba louca, escabelada e falando sozinha. Em comentários recolhidos de postagens antigas, descobriu-se, nos últimos dias, que a desembargadora já havia ofendido negros, gays, mulheres, pessoas com Síndrome de Down - tudo isso antes de chamar atenção fazendo acusações falsas contra uma pessoa que ela não conhecia e que acabara de ser assassinada algumas horas antes.

Mas a desembargadora do Rio de Janeiro não é de mentirinha, muito menos louca ou excepcional - no sentido de rara. Ela é apenas uma pessoa comum que, por caso, ganhou notoriedade expressando-se de uma forma que não é estranha para ninguém que frequente a internet. De onde ela veio, há milhões de anônimos pensando e escrevendo da mesma forma. De todas as idades, classes sociais e perfis ideológicos. "Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia", nas já clássicas palavras do ministro Luís Roberto Barroso. Gente que encontrou um canal de expressão, uma linguagem e uma ética própria: para os meus, tudo; para os outros, paredão.

Odeio, logo existo, é uma forma de estar no mundo e de se relacionar com as outras pessoas cada vez mais comum. Pode ser aplicada a embates de todos os tipos, dos mais graves aos mais inofensivos: política, religião, estilo de vida, gostos musicais, dieta. O ódio define, situa, agrupa.

Trata-se de um desdobramento de certa forma inesperado daquela que parecia ser a vocação original da internet: diminuir distâncias, aproximar estranhos em torno de interesses comuns, criar comunidades. Formaram-se agrupamentos, é verdade, mas não apenas em torno de afinidades positivas. O ódio mostrou-se um catalisador igualmente poderoso e sedutor. Diante de uma plateia de pessoas que odeiam as mesmas coisas - também conhecida como "bolha" - mostrar-se arrebatado e radical é uma forma de destacar-se no meio da multidão. Não importa o quão incompatível o discurso se mostre em relação aos valores que a pessoa pareça estar defendendo, porque coerência não é uma mercadoria muito valorizada nesse ambiente de extremos. Ódios extremos, irracionalidade extrema, necessidade extrema de atenção e reconhecimento.

A cultura do ódio é o tema de um livro que está saindo do forno nos EUA, The Opposite of Hate ("o oposto do ódio", em tradução literal), da comentarista política Sally Kohn. A autora se coloca entre os liberais americanos, a turma que se opõe a Donald Trump e a tudo que ele significa. Ainda assim, Kohn defende o resgate da capacidade de ouvir e de aceitar o outro, como caminho para interromper a escalada da intolerância e possibilitar o diálogo. A autora conversou com cientistas e pesquisadores, investigando as raízes evolucionárias e culturais do ódio, para mostrar como uma simples falta de civilidade pode abrir caminho para coisas muito piores.

CLÁUDIA LAITANO

sábado, 17 de março de 2018



17 DE MARÇO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

A SEDUÇÃO DA MENTIRA


Ashley Flores tem 13 anos e está desaparecida há duas semanas. Ela foi deixada na porta de casa pelos pais de uma amiga, mas eles foram embora antes de ver se a menina tinha realmente entrado em casa. Desde então, ela nunca mais foi vista. Os amigos e a família estão mobilizados. O pai é um engenheiro conhecido na cidade. Quanto mais gente souber do caso, mais chances Ashley tem de ser encontrada.

Tomei conhecimento do drama de Ashley e de sua família através de um grupo de amigos em uma rede de troca de mensagens. Com uma rápida pesquisa no Google, o caso foi solucionado. Ashley não estava desaparecida, e talvez nem mesmo tenha existido de verdade. Essa é mais uma daquelas histórias que rolam na internet já há alguns anos e de tempos em tempos reaparecem nas redes sociais.

Mais rápida do que a pesquisa no Google que resolve o problema é a descarga emocional que uma notícia desse tipo provoca no coração de pais, mães, tios, avós. A notícia falsa vem acompanhada da foto de uma menina que podia ser nossa filha, sobrinha, vizinha. Os sentimentos de aflição e empatia são imediatos. E quanto mais intenso for o sentimento mobilizado por uma história ou uma notícia - raiva, nojo, compaixão... -, maiores a chances não apenas de acreditarmos no que está sendo contado, mas de passarmos a mensagem adiante. É por isso que Ashley está condenada a vagar pela internet até o fim dos seus dias, e dos nossos, como um zumbi adolescente que apavora e comove ao mesmo tempo.

A revista científica Science publicou há alguns dias um dos mais completos estudos sobre o poder de sedução das notícias falsas nas redes sociais. Depois de analisar exaustivamente todo o conteúdo publicado no Twitter entre 2006 e 2017, os pesquisadores do MIT chegaram a algumas conclusões interessantes. A primeira delas é que as pessoas parecem gostar mais de compartilhar as notícias falsas do que as verdadeiras. 

Histórias como a da pobre menina Ashley tendem a se espalhar com muito mais velocidade do que as notícias de verdade. Isso vale para tudo, da política à tecnologia, dos negócios às lendas urbanas. Os robôs até ajudam a ampliar um boato - como aconteceu por aqui, com a criminosa campanha contra a exposição Queermuseu -, mas a adesão real é decisiva para que uma história falsa se espalhe.

Diante desses dados, o MIT tentou investigar que traço da natureza humana torna as pessoas tão suscetíveis às fake news, e a conclusão é de que temos um fraco por tudo que é novo, surpreendente e terrível - como uma menina sequestrada na porta de casa. A boa notícia, em ano de eleição, é que a pesquisa do MIT coloca em xeque a ideia de que uma porção de notícias inventadas pode virar o jogo contra ou a favor de um candidato. As mentiras são apenas uma parte de tudo que consumimos na internet, e não necessariamente a maior parte.

Ninguém gosta de viver cercado de mentiras por todos os lados. Desenvolver uma visão crítica com relação ao que se lê e ao que se compartilha nas redes - e em casa, nas escolas e nos grupos de mensagens - é tão urgente quanto foi, em determinada época, eliminar o analfabetismo. Viver em rede exige um novo tipo de alfabetização para a informação. E nessa matéria estamos todos levando bomba .

CLÁUDIA LAITANO

17 DE MARÇO DE 2018
PIANGERS

Especial


Estou aqui para promover a gravação do meu especial sobre paternidade, que poderá ou não passar em algum desses serviços de streaming que vocês conhecem (na verdade, garanto que você pensou apenas em um serviço de streaming, aquele com logotipo vermelho, já que todos os outros estão muito atrás em termos de usabilidade e conteúdo, não é?). Enfim, espero que meu especial seja veiculado nesse serviço de streaming que você pensou.

Vamos gravar três apresentações no Teatro Carlos Gomes, em Blumenau, neste sábado e domingo. Enquanto você está lendo isso, eu devo estar no calor de Blumenau, correndo para um lado e para o outro, ouvindo ordens agressivas do diretor de gravação, que irá colocar câmeras por todos os lados e luzes ameaçadoras no meu rosto. Quando você assistir a um especial gravado de qualquer pessoa deve levar em conta o nervosismo, as luzes no rosto, a maquiagem obrigatória e o diretor que diz pra você fazer exatamente o que ele quer que você faça. E ele ainda dirá para parecer natural.

Acho que vai rolar choradeira. Tem rolado choradeira em todas as palestras. Quando falamos sobre família, estamos falando sobre nossos sentimentos mais íntimos. Nossas marcas emocionais vieram da nossa infância, de como nossos pais nos trataram, da presença e da falta que fizeram. Costumo chorar no palco e acho isso pouco profissional. Vou me esforçar para ser mais profissional e agradar ao diretor de imagens desta vez. Se me emocionar, fingirei que não passa de um cisco no olho. Colocarei a culpa na luz, que arde meus olhos.

Gravaremos as histórias de mães e filhos, de lembranças e tristezas, de alegrias e superação, de pais de coração, de famílias adotivas e não convencionais, gravaremos aprendizados sobre paternidade e as histórias de outros pais que estiverem no teatro. Faremos todos juntos um álbum de família coletivo. Uma fotografia do nosso tempo, quando acreditávamos que o mundo poderia ser um lugar melhor, se nos dedicássemos a isso. Alguém dirá, provavelmente, que estávamos sendo ingênuos. Tenho certeza que, quem estiver lá, achará especial.

PIANGERS

17 DE MARÇO DE 2018
CARPINEJAR

Curso de noivos


Quem ama pensa que sabe tudo. Quem ama confia que sabe tudo. Pois o coração transborda, soberbo, cheio de esperança e promessas. Aquilo que foi assimilado na vida parece certo, definitivo e incontestável.

Prestes a me casar com Beatriz na igreja, ainda precisava enfrentar o curso de noivos, item obrigatório da documentação para assegurar a data do altar. Eu não queria, achava que era absolutamente dispensável. Seria uma sessão de moralismo, sermão e tortura em grupo. Eu trataria de fingir que estava presente, apenas para conseguir o pré-requisito.

Fui arrastado pela minha atual esposa para as aulas. Um raro final de semana de folga perdido, eu concluí.

No fundo de uma paróquia, sentamos em cadeiras com mesinha, distribuídos em duplas. Somávamos 20 casais envergonhados.

Retornava à comunhão, mas agora adulto e cético. Para me constranger ao máximo, a descontração começou com roda de música, todos de mãos dadas. Eu não canto nem no banheiro. Minha mulher, noiva na época, me beliscava para ouvir a minha voz.

Matava o tempo e mantinha a mente ocupada entre cafés, lanches e confissões. Aproximava-me de outras histórias e romances, vendo que os problemas são similares e o quanto o medo é democrático.

Até que o professor me perguntou por que eu estava casando. Respondi que casava por amor. Simples, ora bolas. Ele me encarou, como um pai emprestado, e me corrigiu: não é suficiente. Eu gelei, só faltava ser reprovado no curso de noivos. Já me imaginava sendo expulso da classe, carregado por coroinhas e sacristãos para fora do prédio.

- Como assim não é suficiente?

- Amar não resolve incompatibilidades, divergências, ambição profissional, traumas antigos. Amar é um começo. Conviver junto requer lealdade e cumplicidade, nunca esconder os pensamentos e as fraquezas.

O diálogo marcou a minha índole. Entendi que não havia encontrado algo importantíssimo para a vida a dois: humildade. Humildade para viver o que não sonhei, para o momento em que o meu plano naufragasse. Eu casava com a idealização de que tudo daria certo, de que seríamos sempre felizes e prósperos. Casar é ficar junto quando tudo ainda dá errado. Casar é enfrentar o luto de um familiar, a doença, o desemprego, é não culpar o outro e ter a coragem de pedir ajuda, colo, ombro.

Demonstrava arrogância não desejando estar ali, desde o princípio me sentindo completo e superior. Eu me reinventei naqueles dois dias de retiro. Juro que cantei alto e desafinado no fim dos encontros. E belisquei a minha mulher para entoar o refrão comigo.

CARPINEJAR

17 DE MARÇO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

ERRATA



E agora? Teve gente que leu minha coluna As minúcias, de três domingos atrás, e me acusou de estar defendendo a extinção do bate-papo. Logo eu, boa conversadeira que sou. Talvez eu tenha sido muito resumida nos exemplos que dei (já que não queria chatear ninguém). Tentarei esmiuçar, então, pra ficar mais claro.

Imagine que você está numa festa e cruza no corredor, a caminho do banheiro, com uma conhecida. Cumprimentam-se, simpaticamente. E como você ouviu dizer que ela é louca pelo único neto, de três anos, pergunta: "E o Murilinho?".

Você não poderia adivinhar.

"O Murilinho está cada dia mais fofo." Você sorri e já ensaia um "Que ótimo. Adorei te ver, aproveite a noite", mas ela continua. "Só que caiu do escorregador na pracinha do maternal". Você: "Puxa, que pena, se machucou?". Ela: "Calma. Vou te contar tudo".

Essa é a situação. Ela vai contar TUDO no meio de um corredor de uma casa em festa.

"Ele estava subindo a escadinha e havia mais dois colegas maiorzinhos atrás dele, esperando. Um inclusive é neto daquele advogado que defendeu sua prima no caso do desfalque do marido dela, sabe quem, né?"

"Sei, sei."

"O Murilinho é pequeno, não tinha como subir correndo, mas os coleguinhas foram uns malvados, ficaram apressando o coitadinho."

"Criança é foda". Droga, escapou.

"O Murilinho ficou nervoso, naturalmente. Os meninos eram maiores que ele, já falei, né? E a professora não percebeu a situação. Inclusive a minha filha, mãe do Murilinho, está pensando em entrar com uma ação contra a escolinha."

"Foi sério assim?"

"Calma."

Começou a tocar Maroon 5, e a festa inteira foi pra pista, mas você está monopolizada no corredor que leva ao banheiro, o Murilinho ainda está no terceiro degrau da escada e você começa a se dar conta de como é irritante o uso exagerado de diminutivos.

"Quando o Murilinho chegou lá em cima do escorregador, um dos meninos, não o filho do advogado da sua prima, o outro, que é enteado de uma uruguaia, subiu também e deu uma empurradinha nas costas do meu neto."

"Ufa, desceu o Murilinho!"

"Não, ele travou e começou a chorar. A chorar muito. Ainda bem que eu não estava lá pra ver a cena. Aí veio a tonta da professora ou da cuidadora do pátio, não sei bem, e tentou tirar ele lá de cima, mas ele estava tão assustadinho..." Você está quase fazendo xixi nas calças. "...que ele se jogou em cima dela e os dois se desequilibraram e caíram no chão. Ele ralou o joelhinho. Pracinha tinha que ter grama e não cascalho, você não acha?"

Era a isso que eu me referia. Minúcias. Numa festa. Entre duas criaturas que mal se conhecem. Sobre um assunto terrivelmente banal. Olha o que fui obrigada a fazer para me defender: entrei em miseráveis detalhes. Mas o que importa é que Murilinho passa bem e podemos trocar de assunto. Ou ir dançar.

MARTHA MEDEIROS

sábado, 10 de março de 2018



10 DE MARÇO DE 2018
PIANGERS

A culpa é sua

"Reatei meu relacionamento com a minha filha. A culpa é sua!", me escreveu um pai de Minas Gerais. Eu estava em Lisboa no ano passado lançando meu livro, ele fotografando a Praça Luís de Camões no saudoso Chiado, me olhou e reconheceu de algum lugar. "Você?", gritou de um lado da rua. "Sim!", respondi, imaginando que ele achava que eu era quem eu realmente sou, não o Nando Reis.

Nós nos encontramos novamente na noite do lançamento. Dei meu livro pra ele, ele tirou fotos do evento, depois me mandou por e-mail. Nunca mais ouvi dele, até essa semana. "Reatei", escreveu. "A culpa é sua!". Não há nada que me aumente o coração mais do que isso. Um pai que se flagra da importância de estar perto dos filhos.

Um homem de aspecto bruto começou a chorar no lançamento em Curitiba. "Quero só agradecer porque eu nunca brincava com a minha filha porque meu pai nunca brincava comigo", disse na frente de toda a plateia. "E não sabia que eu estava perdendo! Hoje brinco todos os dias, deixo-a me maquiar. É a melhor coisa do mundo! Obrigado por mudar a minha visão de paternidade", completou.

Em Criciúma, eu falava sobre a importância de passar mais tempo com a família e menos preocupado com o trabalho. Um senhor de idade pediu o microfone e chorou na frente de mil pessoas. "Ouçam isso com atenção. É isso mesmo!", disse. "Presenteei meu pai com seu livro e o vi chorar pela primeira vez", me escreveu um filho de Blumenau. "Seus textos e vídeos me ajudam a aguentar as dificuldades de ser mãe solteira", me escrevem todos os dias no Instagram. 

"Meu filho viu seu vídeo e mandou ?eu te amo? pra toda a família", me disse uma mãe em Florianópolis. "Estava indo me suicidar e dei de cara com seu texto no jornal", me escreveu um pai. O texto se chamava A Vida É Longa. "Ia deixar sozinho meu filho de oito anos", escreveu. Uma menina, morta por um câncer fulminante, escolheu meu texto Não é uma Tragédia pra ser lido no enterro.

Quando comecei a escrever nunca imaginei nada disso. Quando ficava de frente pra uma tela branca, imaginava muito mais as agressões, os julgamentos, os comentários maldosos que viriam. Escrever abrindo o coração é uma vulnerabilidade que sempre me amedrontou. Hoje, recebo mensagens bonitas demais, muito mais do que eu mereço. Por ironia, todas essas mensagens me ajudaram também a ser um pai melhor. A passar pelos momentos difíceis. A encontrar felicidade nas coisas simples. A culpa é de vocês.

PIANGERS



10 DE MARÇO DE 2018
CARPINEJAR

A cadeirinha amarela de praia

Meu pai mantinha uma poltrona reclinável no meio da sala, um trono suntuoso e confortável, mas não chegava perto em importância e realeza à da cadeirinha amarela de praia da mãe.

A mãe funcionava com aquela cadeirinha que abria e fechava. Carregava-a para todos os cantos. De manhãzinha, pedia licença para as oliveiras e escrevia poesia debaixo de suas sombras. De tardezinha, colocava na frente da porta, na varanda, para tomar o seu chimarrão e ver as pessoas passarem.

Quando recebia uma porção de visitas, deixava o sofá para os outros e plantava o seu assento predileto ao lado.

Sua cadeirinha franciscana, barata, simples, que não ocupava espaço, que ficava num prego na garagem, representava a sua personalidade sempre em movimento, acompanhando os filhos, protestando, aumentando o tamanho da casa.

Ela botava a cadeirinha no porta-malas do carro e ia ao mundo. Participou de greve do magistério com a cadeirinha. Encampou plantões da Defensoria Pública com a cadeirinha. Realizava passeios na orla do Gasômetro com a cadeirinha. Transportava o seu berço na vida, não cobiçava o cantinho de ninguém, não padecia de inveja, não desejava que alguém se levantasse para sentar.

A cadeirinha era a sua gaita de revoluções. Um Piazzolla de noite, um Borghetti de dia. Para a alegria e a tristeza. Para o tango e a canção gaudéria. Recusava o luxo e preferia a mobilidade.

E não morávamos numa cidade litorânea, o que aumentava o impacto da cumplicidade. Transgrediu a função de mar pelo infinito de suas tarefas em Porto Alegre.

Quando prestei concurso vestibular para Jornalismo, tenho certeza de que fui aprovado porque ela rezava lá fora.

Durante as cinco horas da prova, permaneceu parada na frente da escola, sentada em sua modesta cadeirinha de praia, desfiando o terço sem parar, do crucifixo às pedras, das pedras ao crucifixo. Não arredou o pé dali até aparecer com os canhotos das respostas. Eu lembro que a xinguei, que não era mais criança, que não tinha cabimento ela aguardar tanto tempo no tédio, mergulhada no nada, que podia esperar na comodidade de casa, que dava no mesmo, que aquela vigília apenas aumentava a minha ansiedade.

Mas, no fundo, fazer o teste acompanhado dobrou a minha resistência emocional. Não estava sozinho para perder, muito menos para ganhar. Formamos uma equipe imbatível naquela manhã: ela empunhando o rosário, eu equilibrando o lápis, dois instrumentos da fé.

O que eu queria dizer é que a minha mãe não precisa de lugar no céu, ela levará a sua própria cadeirinha.

CARPINEJAR


10 DE MARÇO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

AIR BAG

O air bag pode quebrar um braço. É como receber um soco no nariz. Eram histórias assim que eu escutava. Quando passava com o carro por cima de buracos, rezava para o air bag não se confundir e saltar de dentro do volante feito um Rocky Balboa. Pensava: qual o nível de impacto necessário para o air bag disparar? Será que ele infla com rapidez suficiente? Imaginava o air bag como uma espécie de paraquedas cuidadosamente dobrado que, durante um choque violento, desabrocharia feito uma flor em fast forward mas será que dobraram direito este treco, não estará todo amarrotado, será mesmo que funciona? O tipo da pergunta que a gente prefere não conhecer a resposta.

Até que, numa manhã de segunda-feira que tinha tudo pra ser como outra (o que incluía uma ida a São Paulo à tarde para uma palestra), tirei meu carro da garagem, coloquei o cinto e dirigi até a esquina de casa, onde dei uma paradinha para entrar em uma rua de mão dupla, preferencial. Olhei para um lado, ninguém vinha, olhei pro outro, ninguém também, e comecei a dobrar lentamente à esquerda, com a minha cabeça ainda voltada para a direita - ahá. Quando me virei, na minha frente estava um carro surgido do nada, fruto de um ponto cego. Não houve tempo pra pensar. O air bag já havia estourado dentro da cabine, e a fumaça se espalhava.

Quando o cérebro voltou a funcionar, meus pensamentos eram uma maçaroca. Como estará o outro motorista, vou perder o voo, alguém desligue essa buzina irritante, o cara vai berrar comigo e vou chorar, meu cabelo tá uma droga, minha filha deve ter escutado a batida lá de casa, pra onde eu tava indo mesmo, como foi que não vi, de onde conheço esse guri me oferecendo ajuda, putz, tô chorando, alguém dá um jeito nessa buzina maldita, não machucou mesmo, moço? Tem que chamar o EPTC, tenho que avisar o pessoal de São Paulo, ufa, a buzina parou, preciso de um homem, droga de feminista que eu sou, esse para-choque é seu ou meu, de onde saiu esse copo d´água, tenho, tenho seguro, não, não sou a Martha nem conheço.

Tonta. Burra. Assustada. Aquela no meio da rua, ao lado de um carro em frangalhos, que daria em perda total, era eu mesma. Sem um único arranhão.

Se o air bag é um soco? A não ser que eu também tenha tido perda total da memória, não lembro de ter sido agredida. Fui é salva por ele, que me envolveu antes que eu entendesse o que estava acontecendo. Não cheira bem, murcha rápido, te deixa zonza. Não é a descrição ideal de um namorado, mas passamos a ter um caso de amor. Desde 2014, o air bag virou item obrigatório em todos os carros novos do país, mesmo os populares. Amém, pois quando menos se espera, a gente pode precisar dele na esquina de casa, numa segunda-feira qualquer. Entrou na minha lista das maiores invenções do século 20, ao lado do avião, do computador e do secador de cabelos. Lembrei: estava indo ao cabeleireiro.

MARTHA MEDEIROS


10 DE MARÇO DE 2018
LYA LUFT

A casa e o biombo do silêncio



Hoje, quando ainda ecoa o assunto mulher, e me avisam que, apesar de ter nascido meio órfão, meu livro A Casa Inventada está sendo abraçado pelos leitores, me permito transcrever um trechinho dele.

Num canto da sala aonde quase ninguém vai, um biombo. Nem alto nem baixo, nem sólido nem rendado, claro ou escuro. Apenas biombo. Que quase ninguém percebe, atrás do qual poucos espiam. Não se interessam, ou sentem algum receio. Porque as coisas escondidas podem ser perigosas.

Além dele, abre-se o espaço do silêncio. Esse, temido por tantos, desejado por alguns, aproveitado por poucos. Primeiro, aquele silêncio que surpreende como quando a gente entra numa sala e todo mundo está falando alto, assuntos diferentes, TV ligada com volume espantoso, alguém rindo, criança chorando, cachorrinho latindo (quem sabe um gato miando). E a gente pede: "Pelo amor de Deus, podem baixar esse volume?". Todos se calam, nos olham, alguém desliga a TV, e imediatamente todos, todos, suspiram.

Que alívio, o silêncio. Nele se desenrola o reino em que podemos escutar a nossa própria voz, ou as vozes de dentro: que nos encantam, nos assustam, nos atordoam, das quais queremos beber o segredo ou fugir em disparada.

Mas, com medo dele - porque nos faria escutar a nossa própria voz ou os ecos do nosso vazio interior -, nos rodeamos de ruídos. E por medo da quietude nos ocupamos com tarefas em geral inúteis. Temos sempre de fazer tantas coisas, e tomar tantas providências, que, se passadas por um filtro de bom senso, seriam reduzidas a menos da metade. O resto seria reservado para descansar, ver algo bonito ou bom, ler, conversar, olhar a natureza, relaxar, ser mais feliz.

Mas a gente não consegue, e sai correndo atrás do próximo trem, do próximo avião, do próximo encontro, do melhor restaurante, da obrigação mais desafiadora, pois temos de ser competitivos.

(Enquanto a gente corre, as velhinhas que tricotam dentro dos relógios não param um segundo sequer, as agulhas do tempo tecendo, tecendo... Ah, o tempo.)

O tempo no silêncio fica tão diferente. Eu, a quem chamaram desde sempre preguiçosa e amante da inércia, preciso da quietude: nela vislumbro paisagens incríveis, nuvens assombrosas, as pedras, o mar. As pessoas. Gosto do silêncio. Ali ouço coisas fascinantes que não consigo traduzir em palavras, eu que sou uma mulher das palavras. Músicas, harmonias, toda espécie de sons ou dessa ausência de sons que também ressoa.

Mas preciso que perto estejam as vozes amadas, em alguma parte um barulho de chuva, e sempre, ainda que longe, o rumor do mar. Assim como nos espelhos permanecem as figuras que um dia ali se refletiram, acredito que guardamos no nosso silêncio a memória de todas as vozes ouvidas: amorosas e sábias, cretinas ou hostis. As vozes do mundo. E a nossa voz perguntando baixinho: "Afinal, o que é tudo isso que chamamos vida - e o que estou fazendo com a minha?".

LYA LUFT

quarta-feira, 7 de março de 2018



07 DE MARÇO DE 2018
NÍLSON SOUZA

Árbitro de voto

Agora que até a caturra Fifa se rendeu à tecnologia do árbitro de vídeo, destinada a corrigir equívocos e omissões do julgamento humano no futebol, bem que podíamos introduzir na vida pública brasileira um mecanismo democrático de finalidade semelhante: o recall político. O recurso permite aos cidadãos - e não apenas aos seus representantes aferrados ao poder - interromper mandatos de governantes e burocratas inaptos ou envolvidos com a corrupção. Basta um abaixo-assinado com um número significativo e válido de assinaturas para que o político sob desconfiança seja obrigado a passar por nova aferição eleitoral, podendo ser destituído ou reconduzido ao cargo. Simples assim.

O recurso é antigo e funciona bem em alguns países de democracia consolidada. E, ao contrário do que se poderia imaginar, não fragiliza o sistema representativo nem vulgariza o impedimento de eleitos. Pelo contrário, legitima e torna mais célere os processos de afastamento, neutralizando suspeitas de manobras políticas e golpes institucionais.

A introdução desse mecanismo na legislação brasileira tem esbarrado sistematicamente na pouca disposição do Congresso para examiná-lo, como ocorreu com uma proposta relativamente recente do senador Eduardo Suplicy para a criação do chamado referendo revocatório, outro nome para o sistema. No mínimo, falta um mutirão popular semelhante ao que forçou a classe política a engolir a Lei da Ficha Limpa. Portanto, mãos às assinaturas, gente!

Na condição de árbitros de vídeo da política nacional, poderíamos transformar em ações práticas e consequentes a nossa indignação com apartamentos recheados de malas de dinheiro, assessores especiais para assuntos de propina e mandatários que mantêm relações promíscuas com corruptores de todos os calibres.

Mais: a população poderia examinar, a qualquer tempo, a postura de detentores de mandatos não apenas em relação à probidade, mas também quanto à eficácia dos serviços públicos. Cidade esburacada, água com mau cheiro, atraso no salário dos servidores, sítios e apartamentos mal havidos, tudo isso pode ser gatilho para o mecanismo revocatório.

Voltando à analogia esportiva, não se trata de substituir governante como se troca técnico de futebol, apenas por paixão ferida ou desencanto com os resultados. Trata-se, isto sim, de garantir aos cidadãos o direito de escolher, vigiar e julgar seus representantes a qualquer tempo - e não apenas de quatro em quatro anos, como prevê a atual legislação.

Agora mesmo, estamos na antevéspera de mais um processo eleitoral e a impressão que se tem, diante das alternativas conhecidas, é de que o nosso voto pode ser uma autocondenação a outro longo período de decepções. Seria bem mais tranquilo votar se tivéssemos a certeza de que, a qualquer momento, poderemos juntar os dedos indicadores, desenhar uma tela de televisão no ar e pedir o nosso voto de volta.

NÍLSON SOUZA


07 DE MARÇO DE 2018
MÁRIO CORSO
Samba do internauta sem noção

Lévi-Strauss foi um antropólogo que viveu muitos anos entre os índios, especialmente no Brasil. Ele tem uma obra maravilhosa dedicada ao pensamento aborígine. Mas dona Sara, sua mãe, vivia dizendo: esse negócio de índio não dá dinheiro. Pensa em uma lojinha para ti. Olha o exemplo do teu tio Moishe, que ficou rico vendendo roupas.

Vocês pensam que ele ouviu? Que nada, teimou e seguiu com a carreira universitária. Um dia, já sem dinheiro, lembrou de sua sábia mãe. Usou a experiência de viver na floresta para produzir uma calça que aguentasse o tranco. Assim surgiram as calças jeans de Lévi-Strauss. Ele ganhou muito dinheiro e a dona Sara mesmo assim não ficou feliz. Pois ele perdeu muito tempo antes de fazer algo sério. Moral da história: esses intelectuais só mostram seu valor na vida prática.

Pablo Picasso foi um entusiasta da revolução cubana. Sua fase cubista é um apoio artístico a Fidel Castro. Mas, inteligente que era, se deu conta de que aquela experiência se transformaria em uma ditadura marxista e rompeu com a revolução, ainda na década de 1940. Por isso que a arte moderna é tão comunista, o cubismo está na origem dessas obras que andam por aí. Mas o que eles não lembram é que o próprio Picasso renegou essa fase de sua obra. Depois disso, esqueceu a fase vermelha e inaugurou a fase azul, que é a marca de seu gênio.

O casal mais popular, e ao mesmo tempo a grande fofoca do fim do Império, excetuando a família real, eram Capitu e Bentinho. Casal modelo, diria que eram o William Bonner e a Fátima Bernardes da época. Porém, uma suspeita assolava o marido: Capitu era fiel? Por que seu filho Ezequiel era tão parecido com seu amigo Escobar? Agora desvendou-se o segredo. Capitu realmente traiu Bentinho: exame de DNA dos restos mortais prova que o filho não era dele. A família impede divulgação da verdade para proteger a pérfida antepassada.

Não, caro leitor, não tive um surto psicótico. Esses disparates acima são um exercício mental. Ajustei meu cérebro para a profundidade, seriedade e sabedoria dos comentaristas da internet. Dei corpo a tolices que eu encontrei na rede. Todas essa bobagens foram em algum momento referidas como sérias pela intelligentsia da web. Apenas emprestei vida e trama a mal-entendidos proferidos. Confusão entre duas personalidades históricas distintas, alucinações semânticas em torno da palavra cubismo e confundir personagens literários de Machado com pessoas reais são apenas uma ponta das mil possibilidades.

Deveria haver um concurso para as besteiras mais relevantes. Mas, sinceramente, não acho graça, vivo-as como se fossem minhas. Tenho vergonha por quem não a tem, decididamente isso não me faz bem. Assim são os humanos, sem retorno para a enormidade de sua ignorância. Fico pensando em qual será a minha.

*O colunista David Coimbra está em férias. - MÁRIO CORSO

sábado, 3 de março de 2018


03 DE MARÇO DE 2018
LYA LUFT

Fugir do caos



Lendo um livro que me emociona, do pensador canadense professor Jordan Peterson: 12 Rules for Life, An Antidote for Chaos. Parece que está por ser publicado no Brasil. Corram e leiam! Não é autoajuda, apesar do título, que talvez nos induza ao erro. É um ensaio muito agradável de se ler, misturando filosofia, mitologia, psicologia, antropologia, política: revoluciona um pouco o conceito de democracia e liberdade, quando beiram a bagunça e o caos.

Naturalmente, não o resumirei aqui, mas comento algumas de suas ideias de que compartilho inteiramente. Uma delas, o conceito ilusório de liberdade como aquela cenoura na frente do jumento para que ele ande. Liberdade como penso que deve ser, que nos faz crescer, conviver, eventualmente progredir, construir e atingir certo grau disso que chamamos "felicidade", num meio-termo entre o caos e a rigidez.

Rigidez, jamais. Nem mesmo a rígida ideia de liberdade como ausência de regras, de disciplina, de concessões, de limitações. O ser humano, como os outros animais, necessita de regras e ordem. Não para se punir ou mutilar, mas para que veja alguma luz, enxergue algum caminho, e se sinta bem progredindo enquanto ser humano.

No começo de minha carreira, traduzi um livro de uma psicóloga americana (esqueci, nesse longo tempo, nome e título) sobre crianças criadas praticamente sem limites. Um menininho tanto atormentou a mãe, que certa vez ela lhe deu uma palmada no traseiro. Para horror de certos educadores ultramodernos, o menino suspirou aliviado, abraçou a mãe e disse algo como "até que enfim você prestou atenção em mim". Sem limites, sem regras, seremos piores do que os animais selvagens, que se guiam pelo instinto. 

Nós, que tanto falamos em natureza, andamos bem longe dela, nossos instintos se embotaram, e nem todos servem para conviver no mundo moderno: matar, devorar o outro que nos incomoda, não são atividades que se prezem. No fundo de cada um de nós, sobrevive um predador atávico, que precisa de algumas regras para poder criar sua personalidade, sua vida, seu mundo. Este mundo, em que se possa viver em paz. O caos conduz ao caos, provoca profunda angústia, causa destruição e morte, e eventualmente loucura. E não me refiro a um mítico caos total, mas a um nível preocupante de desordem, violência, agressividade, zero empatia.

Então, como tantas vezes nesses anos todos escrevendo em revista ou jornal, ou falando nas palestras, que hoje raramente aceito, repito aqui, incansável e convicta: tudo começa em casa. A educação, a formação, as bases de uma vida feliz, conforme o sonho ou a possibilidade de cada um. 

Viver decentemente, conquistar algumas coisas positivas, sentir-se bem na própria pele exige que se fuja do caos, que pode parecer interessante para alguns visionários ou ideólogos obstinados, mas é feio, burro, e pobre. E se não recebermos desde pequenos algum senso de ordem, regras, conceitos de vida, passaremos o resto da nossa lutando talvez de maneira inglória para não sermos selvagens detestados ou temidos.

Assim que o livro do doutor Peterson sair no Brasil (ou pela Amazon para quem lê no idioma original), procurem por ele: faz bem à alma, abre a cabeça, e de certa forma conforta saber que nós, que apreciamos alguma ordem, não estamos sozinhos.

LYA LUFT