sábado, 28 de junho de 2014


29 de junho de 2014 | N° 17844
FABRÍCIO CARPINEJAR

Separações líquidas

Casar virou namorar, namorar virou ficar, ficar virou provar.

Acredito que todo mundo casa fácil porque é também muito fácil se separar.

Nos anos 70, o casamento era medido por décadas. Mesmo quando um casamento fracassava, durava no mínimo duas décadas.

Nos anos 80, o casamento era medido por anos. Mesmo quando um casamento desmoronava, durava no mínimo cinco anos.

O casamento hoje é por dia. Como se fosse hotel.

Agora, o matrimônio cobra diária. Todo dia é dia de se separar. E por qualquer coisa.

Las Vegas do divórcio é aqui.

Você pode sair de manhã, eufórico e confiante, extremamente disposto, seguro do romance, e quando voltar à noite não encontrar mais ninguém ao seu lado.

Se cometeu uma falha, nem terá oportunidade de se explicar. Se não errou, nem terá chance de entender e desfazer confusões.

É tão simples se divorciar que ninguém mais pretende se estressar. Não há nem o civilizado e educado aviso de despejo. É dar as costas, largar o passado e seguir adiante. Quebrou o amor, troca! Quebrou o amor, compra outro! Quebrou o amor, não vale investir consertando!

Os casais não brigam mais até cansar para, então, se separar. Não brigam mais até esgotar as possibilidades para, então, se separar. Não tentam durante semanas e semanas expor as dores, as feridas e a raiva para, então, se separar. Não recorrem ao choro, à histeria, ao perdão, ao abraço, ao exorcismo, aos centros religiosos, aos amigos, aos parentes para, então, se separar.

A separação vem antes. A separação é a regra. A separação é o hábito. A separação é seca, definitiva, sem explicações.

As pessoas se separam primeiro para depois discutir. As pessoas se separam primeiro para depois conversar. As pessoas se separam primeiro para depois desabafar o que incomoda.

Elas arrumam todas as malas, esvaziam os armários, realizam a limpa no apartamento e depois, se houver vontade, se encontram e sentam frente a frente para resolver as diferenças.

São uniões interrompidas com silenciadores, distante de estampidos e gritos.

Ninguém se separa de fato, todo mundo deserta, todo mundo abandona a convivência.

É uma irresponsabilidade extraordinária com o outro, é uma indiferença tremenda ao que foi construído com o outro, é um desprezo ao que foi sonhado a dois.

E os motivos podem ser os mais loucos e insignificantes. O desenlace não ocorre mais por justificativas duras como adultério e deslealdade.

Há gente que se separa por incompatibilidade de gênios (expressão que denuncia megalomania, o correto seria incompatibilidade de burros).

Há gente que se separa porque não suporta o medo de ser traído.

Há gente que se separa porque estava muito feliz e não aguentava tamanha pressão.

Há gente que se separa porque se viu entregue ao relacionamento e estava perdendo a identidade.

Há gente que se separa porque não sabia mais o que estava fazendo da vida.

Há gente que se separa porque não esperava que fosse assim.


Atualmente entra-se numa relação e não se fecha a porta – a porta permanece encostada o tempo inteiro.

29 de junho de 2014 | N° 17844
MARTHA MEDEIROS

Coraçãozinho

Quem viaja para um país exótico sempre acaba provando algum prato estranho, fora do seu costume. Nem que seja para fotografar e postar numa rede social com a legenda: sobrevivi.

Escorpião frito em Cingapura, morcego à caçarola no Vietnã, cérebro de macaco na África, sopa de cachorro na Coreia do Sul, ou mesmo uma iguaria chique e nem tão exótica, como o escargot francês – lesma, em bom português. Nada disso mata, mas produz muita cara feia. Minto: algumas refeições matam, sim – o baiacu venenoso da cozinha japonesa, por exemplo. Por mais bem treinados que sejam os chefs que se habilitam a preparar esse peixe, ainda assim 20 pessoas por ano dão adeus à vida depois de ingeri-lo.

Pois o Brasil está tendo a chance de, simpaticamente, dar o troco. Nunca recebeu tantos estrangeiros de uma só vez como no período da Copa, e essa gente toda, de tantas partes do mundo, precisa se alimentar. A caipirinha cai no agrado de todos, mas como eles estarão enfrentando os sólidos? Vatapá não mata, só nocauteia. Buchada de bode dizem que também não mata, mas duvido. E farofa de formiga costuma ser confundida com farofa de amendoim, ou seja, os gringos não devem estar passando muito trabalho no Norte e Nordeste, ao menos nada que se compare com a cena que vi de uns australianos, aqui no Sul, encarando seu primeiro coração de galinha.

“Vocês comem coração de galinha???? Oh, my God!”

Dizer a eles que chamamos carinhosamente de coraçãozinho não minimizou o asco. Entendo: eu também não ficaria comovida se me servissem um filezinho de cobra. Mas cobra é um réptil repugnante, viscoso, traiçoeiro, já a galinha é uma criatura doméstica, pacífica, rechonchuda. Mais arisca do que dócil, é verdade, mas nunca fez mal a ninguém, logo, é tenro seu coraçãozinho.

Tentaram. Mas foi como se estivessem de frente para um olho de cabra, um rabo de camundongo, o músculo de um gambá. Demonstraram absoluto pavor em comer um coração, algo que ainda estava batendo dias atrás, símbolo da paixão e da vida – mesmo de uma galinha.

Uns não tiveram coragem, outros tiveram e fizeram caretas tão repugnantes e sofridas que chegou a me dar pena: coitados, não estava sendo uma experiência cultural, e sim uma tortura impiedosa. Ok, acabou a brincadeira, vamos pedir hot dog para todo mundo – e que ninguém venha comentar as minúcias da fabricação de salsichas.


Dias atrás teve churrasco aqui em casa e vi meus dois pequenos sobrinhos devorarem um quilo de coração sem dó, com uma gula de centroavantes. Por que eles não questionam o que comem? Porque a gente só reluta diante do desconhecido. Se fosse servido um canguruzinho a vapor (que os australianos, aliás, adoram), aí teria que ter preleção antes – e nem gosto de imaginar as caretas.

sábado, 21 de junho de 2014


22 de junho de 2014 | N° 17837
MARTHA MEDEIROS

Morri

É uma das gírias do momento: Morri (mas dizem que já começa a cair em desuso, fenecendo ela própria).

“Morremos” quando ficamos impactados por algo, quando um acontecimento nos tira o ar, quando não acreditamos no que estamos vendo, ou seja, quando parece que fomos para o céu. Sem fatalismo, é apenas uma gracinha.

Tenho simpatia pelo uso corriqueiro e desestressado de tudo que invoque a palavra morte. Na mesma proporção, sinto um certo desprezo pela reverência aterrorizante que prestam a ela. Qual o problema, morrer?

Não tenho medo da morte porque já morri muito.

Não apenas em momentos quando cabia o uso da gíria (durante minha música preferida num show, quando me deparei com uma praia paradisíaca, quando ouvi algo que eu esperava escutar havia tempo), mas, muitas vezes, no sentido fúnebre mesmo: morri todas as vezes em que me frustrei, morri quando deixei a infância, morri quando deixei a puberdade, morri quando passei por finais de amor, morri quando passei adiante apartamentos em que vivi, morri por todas as minhas desistências, morri diante de cada tarefa terminada, morri quando machuquei algumas pessoas sem querer, morri nas inúmeras vezes em que fui machucada, morri tanto por ferimentos leves quanto por balaços à queima-roupa.

E morri em solidariedade à morte dos outros, morri diante de tragédias que não foram comigo que aconteceram, morri pelas estatísticas, morri de vergonha alheia, morri pelo que passou raspando. Tudo o que acontece de triste a qualquer outro ser humano, passa rente a nós.

Morri por excesso de sensibilidade e às vezes por um rigor desmedido, mesmo que, em termos genéricos, procure ver alguma graça em tudo.

Agorinha mesmo, 10 minutos atrás, morri um pouquinho. Coisa de nada. Já voltei.

Sem morte, não há vida. Quem não morre, não renasce, não volta mais atento, não volta mais amoroso, não volta mais experiente, não volta. Vira cadáver já na primeira morte, que pode ter acontecido aos cinco anos, aos 12, aos 16: quando você morreu pela primeira vez?

Minha relação amistosa com a morte vem justamente do exagero de amor que tenho pela vida, pela profunda capacidade de regeneração que me trouxe até aqui, habilitada para extrair alegria das mínimas coisas e êxtase das maiores. É por já ter morrido muito que vibro quando o telefone toca, quando o dia amanhece com sol, quando vejo os amigos, quando pratico exercícios, quando aprendo uma atividade nova, quando acerto, quando sorrio, quando comemoro.

Não é só a iminência de uma morte definitiva que nos faz valorizar cada dia respirado, mas também as sucessivas mortes pontuais, aquelas que nos dão o passe para finalizar a próxima jogada com mais êxito.

Morreu? Nasce um novo começo.



22 de junho de 2014 | N° 17837
FABRÍCIO CARPINEJAR

Tempo parcelado em 30x sem juros

Eu ponho o alarme do celular e acordo antes do primeiro toque. Odeio aquele barulho.

Meu relógio biológico é suíço, não erra, pontual desde que nasci.

Você deve estar perguntando por que ponho o alarme se não preciso dele.

O alarme é uma espécie de segurança, para despertar em caso de morte ou coma.

Brincadeiras à parte, desperto cinco minutos antes do horário programado pelo prazer de desativar aquela bomba-relógio do meu dia. Já estou competindo com o que eu mesmo programei. Não tenho conserto, minha vida é criar rivalidades.

A questão é que sou cricri, colono, caxias. Não faço nenhum adiamento.

Tocou, acordei. Não negocio prazos com o meu corpo. Não viro para o lado fingindo que não é comigo.

Seja no inverno, seja no verão, seja cama quente, seja cama fria, não irei ronronar e babar no travesseiro por mais alguns instantes.

Para um poeta, sou bem prático. É manhã, acabou a mamata, tenho a obrigação de levantar e a responsabilidade de seguir meu trabalho.

Só que coço meu cotovelo em reverência aos preguiçosos.

Como queria ser aquele que arma o alarme e faz trinta sonecas até seu despertar. Trinta!

E não vê nenhum trabalho de pegar o alarme, responder o chamado e esperar tocar de novo.

É como atender trinta telefonemas no meio do sossego, e não se irritar, não xingar e não soltar um desaforo.

É gostar excessivamente de descansar. Não chamaria de descansar, o ato está mais próximo de hibernar.

Eu não consigo, talvez nem entenda, para mim não é mais sono, e sim contagem regressiva, ano novo, explosão de fogos.

Minha alma é de cachorro - perco a tranquilidade com barulhos estridentes.

Não recupero a fantasia com facilidade.

Por absoluta incompetência, o que me resta é invejar os ninjas do relógio.

A cada cinco minutos, o bichinho uiva e o dorminhoco não acorda, graceja, mexe no celular e fecha os olhos sucessivamente.

Que superioridade auditiva, que soberba onírica.

O trim trim trim não incomoda, a dormência não perde sua força de vontade.

É alguém que nasceu com Valium no sangue, com Rivotril no sangue.

É alguém com alto poder de concentração ou de alienação.

O aparelho tocará próximo ao travesseiro durante duas horas, numa espécie de pânico ritmado, e o sujeito somente ficará mais alegre.

Alegre, incrivelmente alegre.

A pessoa raciocina: ainda tenho uma hora para dormir, ainda tenho meia hora para dormir, ainda tenho vinte minutos para dormir, ainda tenho dez minutos para dormir, ainda tenho cinco minutos para dormir.

São pequenas esperanças inventadas de um desespero. O que era castigo torna-se bônus.

Na minha lógica, ela está acordando trinta vezes. Na lógica dela, está dormindo trinta vezes.

Na minha lógica, acordar é ruim é ela não cansa de repetir. Na lógica dela, dormir é bom e ela não cansa de repetir.


Enquanto eu pago o tempo à vista, ela parcela o tempo em trinta vezes sem juros.

quarta-feira, 18 de junho de 2014


18 de junho de 2014 | N° 17832
MARTHA MEDEIROS

Cangurus e tamancos

Nesta quarta-feira foi preciso decidir entre acordar holandesa ou australiana – não concebo presença num estádio sem torcer para alguém. Estarei às 13h no Beira-Rio, e mesmo não sendo meu time que entrará em campo, torcerei. Mas para quem? Holanda ou Austrália? Com que roupa eu vou?

Eu tinha pouca idade – quatro, cinco anos? – e já sentia fascínio pela Holanda, um país do qual eu nada sabia, a não ser que tinha nome de mulher e sobrenome de Chico Buarque. Assim iniciou minha simpatia. Holanda, 1 x 0.

Aí ganhei de uma tia um par de tamancos de madeira. Ela havia retornado de uma viagem por aquele país que parecia tão feminino na minha imaginação, enquanto que da Austrália eu ainda não tinha notícias. Holanda, 2 x 0.

Então, virei adolescente e comecei a trocar cartas (cartas!) com uma neozelandesa que, por ser vizinha dos australianos, poderia ser considerada como tal. Foi por causa dela, da Michelle, minha primeira amiga além-mar, que comecei a simpatizar com cangurus também. 2 x 1.

Mas a Holanda tinha tulipas, e desde muito cedo desenvolvi o apego por flores, por todas elas – um apego que se mantém até hoje – e a Holanda marcou de novo: 3 x 1.

A Austrália tinha praias, era um país jovem, a longa distância me induzia a pensar que era um destino para quem não tinha outro objetivo a não ser a boa vida. Mas, afora esse saudável oba-oba, me fazia falta alguma informação mais consistente. Eu seria capaz de citar um pintor australiano? Àquela altura, já havia aprendido a gostar de arte e uma reprodução caprichada de Van Gogh inspirava a família na parede de casa. Holanda, 4 x 1.

E chegou o dia de viajar para o Exterior pela primeira vez. Europa, meu foco. Quando desembarquei em Amsterdã, aluguei uma bicicleta, tomei algumas Heineken e me entortei a fim de homenagear a bebedeira arquitetônica das casas que margeiam seus canais, umas escoradas nas outras, como quem volta de uma noitada forte. Pirei com (e em) Amsterdã. Já era uma goleada: 5 x 1.

Quando a Austrália parecia irremediavelmente humilhada, eis que assisto a um filme com um ator australiano que eu nunca vira antes. Ele se chamava Hugh Jackman e me causou boa impressão. A Austrália descontou com categoria: 5 x 2.

Eis a lógica matemática da Copa. Ao menos a lógica de uma fan (farrona) do esporte, que não entrou em nenhum bolão, não entende profundamente de futebol nem de nada, que não sabe muito bem para quem torcer quando não é a seleção do seu país que está em campo, mas que faz questão de acompanhar o entusiasmo da festa com a irreverência permitida pela ocasião. Para quem torcer, Van Gogh ou Wolverine? E para qual resultado?


5 x 2. É justo. Afinal, o que se quer é gol para tudo que é lado. E Van Gogh gostava de girassóis.

sábado, 14 de junho de 2014


15 de junho de 2014 | N° 17829
MARTHA MEDEIROS

A casa do vizinho

Muitas situações provocam estranhamento, e uma das mais inquietantes é entrar no apartamento de um vizinho de prédio. Está ali a mesma sala, do mesmo tamanho que a sua, com a mesma orientação solar, a mesma disposição das paredes, a mesma cozinha, os mesmos quartos e banheiros mas nada, nada é o mesmo.

A parede que na sua casa é cor de marfim, na do vizinho está pintada de vermelho, o que muda a atmosfera do ambiente, faz com que pareça menor. Você, que adora plantas e coleciona bugigangas trazidas de viagens, entra cautelosa naquele apartamento gêmeo ao seu, porém totalmente despojado de humanidade, mais parece um show room.

Onde você tem um aparador lotado de porta-retratos, o vizinho colocou um espelho do teto ao chão. Você deixa um sofá branco e confortável virado em direção à sacada, enquanto seu vizinho têm duas chaise longue de aço cromado e couro preto que ficam paralelas uma a outra, voltadas para uma parede onde ele possui uma televisão do tamanho de um aquário do Sea World.

Ao entrar na cozinha dele, imagina que está dentro de uma nave espacial, tudo é cinza chumbo e imaculadamente limpo, enquanto sua cozinha tem uma fruteira de papel machê trazida da Bahia e armários de madeira.

O lavabo dele é revestido com um papel de parede austero e elegante, o seu se manteve como a construtora entregou, com azulejos sem graça, e você nem trocou a torneira original, simplesinha – a dele deve ter sido transplantada de algum castelo francês, é um colosso. Se você tivesse um lavabo igual, é lá que receberia as visitas. Aí você lembra que tem um igual, só que o seu parece um banheiro de rodoviária.

Apartamento de vizinho causa desconforto porque inevitavelmente será mais bem cuidado ou mais desleixado que o seu, mais escuro ou mais claro, mais atraente ou mais insosso. A disposição dos móveis parece incorreta, tudo sugere uma grande transgressão, e você não se sente acolhido, tem vontade de sair correndo daquele lugar que foi concebido de um jeito estranho a fim de confrontar você. É isso. O apartamento do vizinho lembra que há outras formas de viver, enquanto você julgava que só havia uma: a sua.

Cada um de nós concebe a vida de uma determinada forma, decora a seu modo os dias e noites, colore suas paixões com suavidade ou desespero, dá um revestimento aos seus traumas ou os deixa a nu, expõe suas esquisitices ou as joga para baixo do tapete.


Cada um de nós recebe o mesmo espaço para existir e o arranja, inventa, traduz, transforma e recria de acordo com uma identidade que será sempre única, particular. Quando você tiver um ataque de petulância e achar que só o seu jeito de viver é que é certo, dê um pulo no apartamento do vizinho. E assombre-se com a quantidade de novos mundos que existem nas portas ao lado.

15 de junho de 2014 | N° 17829
FABRÍCIO CARPINEJAR

Choro emprestado

Tenho um péssimo hábito de não anotar o sobrenome dos meus contatos do celular. Digito rapidamente o primeiro nome e deu. Livro-me da tarefa.

Assim, quando vou telefonar para meu amigo Everton, enfrento a loteria de cinco Everton na minha lista e não sei qual é o Everton verdadeiro. Não que os outros sejam falsos, mas o Everton mais próximo está ladeado de xarás eventuais e efêmeros do mundo dos negócios.

Para falar com Everton, acumulo gafes. Como não sei sequer os primeiros dígitos de seu número, sou obrigado a perder uma manhã inteira confirmando seu telefone. É ridículo, ligo para vários intermediários para ter a certeza de um destino.

Enfrento enrascada ainda maior diante de nomes tradicionais como Ana, Maria, Pedro e Zé. Daí a roleta russa se converte em guerra ucraniana. São 15 opções de cada um para criar constrangimento, gastar lábia e pedir desculpa.

Minha preguiça sempre me coloca em situações embaraçosas. Esses dias, recebi um SMS de minha amiga Natalia, avisando que não iria para aula porque sua mãe faleceu. Aquilo me calou fundo. Encheu de lágrimas os dois copos de requeijão de meus olhos. Não questionei o contexto “Aula? Que aula?”, afinal não frequentava mais nenhum curso com ela.

Respondi apenas meus pêsames e perguntei onde seria o enterro e qual o horário.

Tinha sido colega de Natália no Ensino Médio. Foi minha confidente e conselheira inseparável. Recordava sua mãe nos servindo sanduíche de mortadela e suco de laranja quando estudávamos no quarto para as provas finais. Conservei essa terna imagem para ter o que desaguar no sofrimento.

Ao chegar no velório no São Miguel e Almas, não localizei a cabeleira loira de Natália.

O silêncio do lugar acentuava os gemidos e miados dos parentes. Cadeiras em L asseguravam ordem e fila na demonstração da dor.

Esperei sentado um pouco para ver se esbarrava em alguma lembrança. Não reconheci ninguém.

Decidi cumprimentar o homem perto do caixão. Raciocinei que era o viúvo e pai de Natália. Eu me aproximei e abracei longamente o sujeito. Chorei copiosamente em seus ombros. Ele retribuiu chorando mais alto. Dei dois socos em suas costas. Ele revidou esmagando meus braços. Eu soltei uma frase consoladora tipo “A vida é terrível!”, ele concordou soluçando.

Sozinho, ao lado da falecida, observei o vidro buscando entender se a morte tinha inchado seu rosto ou ela havia envelhecido em pouquíssimo tempo.

Depois de me desidratar no cemitério, telefonei para Natália e lamentei que não a encontrei na despedida de sua mãe.

- Minha mãe, Fabrício? Isola! Está vivíssima da silva.


Acho que chorei pelo morto errado. Fica como crédito para o próximo enterro.

sábado, 7 de junho de 2014


08 de junho de 2014 | N° 17822
FABRÍCIO CARPINEJAR

Um jeans nunca sai barato

Não tema quando sua mulher subir numa balança. A balança é de menos. A balança não é de nada.

Se ela pisar numa farmácia e verificar seu peso, não sofra por antecipação, não se amedronte com o resultado. Talvez sua esposa saia rindo, diga que não confia na fidelidade da máquina e que não se preocupará à toa. A ordem das coisas e da casa permanecerá inalterada.

Mas fique tomado de toda a cautela quando ela provar jeans em uma loja.

Não pense que ela está comprando apenas mais uma peça, que ela apenas desejava uma opção escura com cintura alta ou intermediária, que é uma saída de praxe ao shopping. Não entre de patinho nesta conversa furada de provador.

Verá o Apocalipse sem bainhas. Sua tranquilidade pode terminar. Seu mundo pode ruir.

A calça é a real balança da mulher. É a única medição em que ela confia cegamente.

É não entrar em seu número, é não fechar o zíper apesar dos pulinhos, é não entender a falta abrupta de sintonia entre as coxas e a bunda, é perceber os gomos saltando das pernas, que sua esposa irá enlouquecer. Não calará mais a boca dali por diante com dietas do suco, da proteína, do chá verde, do miojo, dos pontos, da sopa, da lua, do sol, de Beverly Hills, do bairro Cavalhada.

Abandonará o shopping com uma longa lista de cortes e restrições, num enxugamento alimentar jamais visto em sua residência.

Acabou o romance entre vocês. Acabou suas mordomias, suas escapadas da rotina a dois, sua pizza pepperoni.

Ela vai cancelar todos os possíveis jantares, vai anular qualquer cinema durante o mês para não comer pipoca e tomar refrigerante, vai suspender a viagem programada para Gramado, vai acabar com os passeios noturnos pelos bares (já que não deve beber).

Ou seja, ela deixará de viver. E por causa do maldito jeans que não serviu nela, você também deixará de viver.

Ninguém engorda sozinho. E, preste atenção, ninguém emagrece sozinho.


O preço de morar junto está embutido na calça.

08 de junho de 2014 | N° 17822
MARTHA MEDEIROS

A casaca

Ele, colorado fanático, era casado com uma também colorada, e tiveram dois filhos, dois meninos que obviamente torciam para o Internacional, herdando a paixão da família. Muitos pais têm uma vontade, às vezes secreta, de que os filhos sigam sua profissão, pratiquem a mesma religião, desenvolvam preferências idênticas, mas quando se trata do time de futebol, a vontade deixa de ser secreta para ser escancarada: os filhotes são induzidos abertamente a honrar a camiseta do time.

Não raro, os pais colocam a escolha futebolística do bebê já declarada na porta da maternidade. Nasceu Matias, nasceu Luciana, e ao lado do nome o distintivo doFlamengo, do Vasco, do Atlético, do Corinthians ou de qualquer que seja o clube daquela criança que não ousará transgredir uma tradição sagrada.

Mas eu estava falando do Internacional, e de um colorado casado com uma colorada com quem teve dois coloradinhos. Pois ele se divorciou da colorada. E os meninos, de nove e sete anos, ficaram morando com ela, como quase sempre acontece. A separação não chegou a ser litigiosa, mas tampouco foi um passeio num jardim florido: as pendengas de sempre sobre valores de pensão, partilha de bens, sem falar no ciúme corrosivo em relação à nova namorada com quem papai já desfila - como são rápidos esses homens.

Pois ela, a mãe, ainda sem um namorado para distraí-la, e considerando-se levemente injustiçada com a situação toda, resolveu irritar o ex-marido (“para não perder a prática”, diz ele). Virou gremista. E, claro, está catequizando os dois moleques para que virem também.

O homem está fora de si. A ex-mulher está usando todos os recursos disponíveis: hinos, uniformes, influência de amiguinhos, idas ao estádio, histórias mal contadas, chantagem emocional e vasto repertório de doutrinação. Os meninos começam a vacilar. O plano está prestes a dar certo.

Eu disse a ele que duvido que os filhos mudem de lado: um pai torcedor costuma ser invencível como exemplo. Mas ele teme pela chegada de um padrasto que desequilibre essa balança de vez.

Que drama.

Virar a casaca é um direito, mas não deixa de ser uma traição. Quando escuto um brasileiro dizendo que vai torcer pela Argentina ou para qualquer outra Seleção que não a nossa, não consigo evitar o muxoxo. Sei que o futebol pode ser alienante, pode reforçar ou enfraquecer a imagem de governos, portanto é legítimo o protesto político em forma de torcida contra, mas sempre é incômodo ver a paixão perder para o racionalismo. Pô, de vez em quando é preciso parar de pensar e se entregar para a emoção - para não perder a prática, que seja.


Vale para adultos e mais ainda para crianças, cuja inocência não merece ficar órfã.

Não posso dizer adeus se não eu vou chorar,
Se não eu vou sofrer.
Se eu te perder de vez eu não vou aguentar.

Não espere que devolvam algo,
Não espere que reconheçam seu esforço,
Que descubram seu gênio, que entendam seu amor.





LINDO FINAL DE SEMANA ANJO AMIGO.
PASSADO PRESENTE E FUTURO.

Antes sentia uma ansiedade em resolver colocar tudo no lugar.
No momento atual fico contemplando belezas e superando as
maldades uma vez que o mundo faz com que realizemos apenas
o bem que nos é predestinado porque o futuro a Deus pertence.
O que poderemos fazer é calibrar as rodas da vida sem ambições.
Com a essência saberemos como controlar o interior.
No exterior quem controla distribui soma e diminui só Deus.
Com os nossos talentos herdados dos ancestrais apenas somos.
Mais uma encarnação à sublimar os avessos.

Sol Holme



quarta-feira, 4 de junho de 2014


04 de junho de 2014 | N° 17818
MARTHA MEDEIROS

Não pode

Nunca tinha feito uma ressonância magnética. Primeira vez. Retirei os brincos, a roupa e coloquei um daqueles uniformes azuis de doente. Sentei no banco do corredor, de frente para uma parede, e fiquei ali uns 20 minutos esperando ser chamada. Tudo prometia ser lento, até meus pensamentos se arrastavam. Quando já estava quase pegando no sono (era noite), escutei meu nome e entrei na sala. Outra dimensão. Outro ritmo. Tudo veloz. Ouvi do médico: “Deita.

Levanta as pernas no três: um, dois, três. Tá aqui os fones de ouvido por causa do barulho. Tá aqui a campainha se precisar falar comigo. Não te mexe. Não pode. Não pode”. Levou um segundo e meio para me dizer tudo isso, emendando uma frase na outra como se fosse um cantor de rap. E lá me fui cápsula adentro. Só lembrava da parte do “não pode”.

Minha respiração ficou mais profunda. Não te mexe. Não pode. Respirar podia? Percebi meu peito subindo e descendo, arfando conforme eu inspirava e expirava. Deveria trancar a respiração? Havia um som constante nos arredores, parecia o de uma máquina de lavar roupa em funcionamento. E ali, dentro da cápsula, acontecia uma rave, batidão eletrônico, deu a maior vontade de dançar.

Não pode. Não pode. Não pode.

Claro que, não podendo nada, deu também uma coceira no queixo. Eu precisava tossir. Uma mecha do cabelo me incomodava junto ao pescoço. Quase funguei. Tive duas contrações involuntárias nas pernas. O corpo inteiro dava ordens para eu subverter a situação: vai, mulher, te mexe, coça, tosse, funga. E eu ali, múmia obediente, embalsamada, petrificada, ansiosa por movimento.

Basta a gente ouvir um “não pode” para o desejo acordar.

O proibido é uma tentação, sempre foi, desde Adão e Eva. Avisem-me que “não pode” e terei vontade de pular o portão que protege um jardim privado, de entrar na sala destinada apenas aos funcionários, de estacionar na vaga para idosos, de sentar à mesa reservada para quem ainda não chegou ao restaurante, de fumar dentro do avião – e eu nem fumo.

Mas impunidade não é para qualquer um. Cidadãos honestos que pulam muros, entram em salas privativas, estacionam onde não devem, sentam no lugar destinado a outros e fumam no banheiro da aeronave certamente serão multados, advertidos, humilhados. Só se mantém inalcançável o transgressor profissional, aquele que assalta alguém, rouba um carro – esse ninguém pega.

Então, eu, bem educada e temente às ordens que me dão, não me mexo. Faço apenas aquilo que pode, aquilo que resultará num diagnóstico certeiro, sem chance de equívoco: é uma mulher que dá para se confiar.

Que vasculhem meu esqueleto à vontade, não há ressonância que revele os pequenos crimes que nunca cometi.