sábado, 26 de fevereiro de 2011



27 de fevereiro de 2011 | N° 16624
MARTHA MEDEIROS


Som e fúria

Será mesmo necessário saber xingar, berrar e dizer palavrões para ser considerada o que se chama por aí de normal?

O filme O Discurso do Rei pode ser apreciado tanto por seus diálogos espirituosos como pelo desempenho de Colin Firth e Geoffrey Rush, ambos impecáveis, mas o filme me tocou principalmente por seu aspecto psicológico, ao demonstrar o valor terapêutico de se exprimir raiva.

Uma das razões que levou o rei George VI a sofrer de uma gagueira aparentemente incurável foi o fato de passar por alguns constrangimentos na infância e sofrer tudo calado, como se fosse natural obrigarem um menino canhoto a escrever com a mão direita ou a conviver com uma babá que o deixava sem comer.

Sobrevive-se a coisa muito pior do que isso e nem todos se mantém reprimidos, e muito menos se tornam gagos, mas de uma forma ou de outra a ausência de voz na infância cobra seu preço, que pode ser alto ou nem tanto. A minha repressão infantil saiu mais em conta do que a do rei da Inglaterra, e mais produtiva também.

Não venho de uma família real e tampouco sofri qualquer abuso que me travasse a vida, mas exprimir raiva, decididamente, nunca foi um esporte incentivado lá em casa. Dizer que não havia motivos seria inocência demais de minha parte: claro que havia, sempre há.

Todo ser humano se rebela contra a autoridade – no caso, os pais. Mas eu não expressava em voz alta o que me incomodava, não xingava, não berrava, não dizia palavrões, não saía do sério – nunca. Vontade não faltava. Foi então que fiz minha voz sair não pela boca, e sim pelos dedos.

Não me tornei uma escritora maldita, mas, secretamente, passei a exorcizar alguns demônios através da poesia. Já que não mostrava as garras em casa ou na rua, procurei deixar nas folhas dos livros uma impressão mais realista de mim mesma, aquela que não possui nenhum sangue azul.

Achei que bastaria, mas não.

Só recentemente, de uns anos pra cá, me senti verdadeiramente convocada pra guerra. Aprendi a apresentar minhas armas e externar minha agressividade latente. Meio desajeitada no papel, admito, mas as tentativas não foram totalmente mal sucedidas: cheguei um pouco mais perto da natureza selvagem que caracteriza a todos. Às vezes custo a entender o que isso traz de bom, além de evitar gagueiras reais ou metafóricas.

Será mesmo necessário saber xingar, berrar e dizer palavrões para ser considerada o que se chama por aí de normal? A vida sem controle se torna mais intensa, concordo, mas só quem conhece o pavor que tenho de barracos pode imaginar o quanto me é desconfortável protagonizar cenas de brigas e insultos.

Não nasci pra coisa, prefiro continuar usando a escrita silenciosa para elaborar meus conflitos, mas ao menos aprendi que não irei pra cadeia se, eventualmente, soltar a fúria através da voz, e que não perderei a majestade se, em vez de cisnes brancos, povoar o lago do meu castelo com alguns cisnes negros também.

Mas isso já é outro filme.

Ruth de Aquino

“O mundo é masculino e assim deve permanecer”

A lei Maria da Penha é um conjunto de regras diabólicas. Se essa lei vingar, a família estará em perigo. Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher. As armadilhas dessa lei absurda tornam o homem tolo, mole.

O mundo é masculino e assim deve permanecer. No caso de impasse entre um casal, a posição do homem deve prevalecer até decisão da Justiça, já que o inverso não será do agrado da esposa.

Releia o parágrafo acima, mas agora entre aspas. O autor dessas palavras é o juiz mineiro Edílson Rumbelsperger Rodrigues. Ele disse exatamente tudo isso em sentença, em 2007, ao julgar homens acusados de agredir e ameaçar suas mulheres. A Lei Maria da Penha existe desde agosto de 2006.

Ela aumenta o rigor a agressões domésticas. Seu nome é uma homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia. Após duas tentativas de assassinato pelo marido em 1983, ela ficou paraplégica. O marido, Marco Antonio Herredia, foi preso após 19 anos de julgamento e ficou só dois anos em regime fechado.

Em novembro do ano passado, o juiz Rodrigues foi suspenso por dois anos pelo Conselho Nacional da Justiça por suas “considerações preconceituosas e discriminatórias”. Na última terça-feira à noite, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, cancelou a punição.

Defendeu a liberdade de pensamento dos magistrados. Para Marco Aurélio, a opinião de Rodrigues é “uma concepção individual” e “suas considerações são abstratas”. Segundo o ministro, não é preciso concordar com o juiz, mas a punição seria um exagero.

Na sexta-feira, tentei entrevistar Rodrigues. Por meio da assessoria da Associação dos Magistrados de Minas Gerais, ele informou que não vai falar sobre o assunto até o julgamento final do Supremo. Ditou uma nota aos assessores: “Meu pronunciamento pessoal seria mais prudente depois da decisão definitiva do STF, na qual evidentemente confiamos”. Rodrigues já conta com a solidariedade do ministro Marco Aurélio. Um sinal de que poderá ser definitivamente reabilitado.

Por muito tempo, Rodrigues sentiu-se perseguido. “Fui mal interpretado”, disse na ocasião, em 2007. Explicou que não ofendeu ninguém e, em sua sentença, citou até “o filósofo Jesus”. Mas admitiu achar a Lei Maria da Penha um “monstrengo tinhoso”, que leva a um “feminismo socialmente perigoso”.

Segundo Rodrigues, alguns colegas concordam com ele, mas não têm coragem de dizer isso publicamente. Ele se considera um defensor do gênero feminino: “A mulher não suporta o homem emocionalmente frágil, pois é exatamente por ele que ela quer se sentir protegida”.
A frase do juiz língua solta nos leva a refletir sobre os limites da liberdade de expressão

O caso do juiz língua solta de Sete Lagoas, Minas Gerais, nos leva a refletir sobre os limites da liberdade de expressão. Podemos pensar o que der na telha. Falar é mais complicado. Especialmente quando ocupamos um cargo importante e representamos uma instituição.

Mais delicado ainda é um juiz ter uma “concepção individual” que contrarie uma lei instituída. Digamos que, em casa, no domingão com a família, ou nos bares de Sete Lagoas, o cidadão Edílson desça o sarrafo na Lei Maria da Penha. Tudo bem. Mas usar sua convicção de superioridade masculina para julgar e proferir sentenças o torna pouco confiável para avaliar processos de agressão no lar. Ou não?

Gafes de pessoas públicas têm um preço. A presidenta Dilma repreendeu o general José Elito por ter declarado que os desaparecidos na ditadura militar são “um fato histórico”. O general foi obrigado a pedir desculpas.

O papa Bento XVI repreendeu o bispo britânico Richard Williamson por negar o Holocausto. Williamson pediu perdão. A presidenta do Flamengo, Patricia Amorim, repreendeu o ex-goleiro Bruno por perguntar, em defesa de Adriano: “Qual de vocês, casado, nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher?”. Bruno pediu desculpas. Ele está preso, acusado de agredir e fazer sumir a ex-amante e mãe de seu filho Bruninho.

Todos os acusados – juiz, general, bispo, goleiro – se disseram “mal interpretados”. Queria saber se o juiz Edílson Rodrigues repetiria tudo o que pensa diante de Dilma. Algo me diz que ela tem apreço pela Lei Maria da Penha e não acha o mundo masculino.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011



23 de fevereiro de 2011 | N° 16620
MARTHA MEDEIROS


A vontade de um povo

Mais forte que o amor, mais forte que o medo, mais forte que tudo: ninguém pode contra a vontade. O dia em que a gente compreender a magnitude disso, ninguém poderá conosco também. A Tunísia e o Egito mostraram a força da sua vontade recentemente, e fizeram escola, inspiraram outras nações.

As consequências, boas ou ruins, a história dirá, mas o que se pode confirmar dessas experiências políticas é que, quando se deseja verdadeiramente alguma coisa, as paredes somem, ninguém mais está preso.

Uma vez escrevi sobre a diferença entre querer e querer mesmo. Querer, apenas querer, todos querem: um país mais justo, uma vida mais excitante, só que fica tudo no plano dos sonhos. Ah, se um dia Deus olhasse aqui pra baixo...

Querer mesmo é diferente. Os que querem mesmo são considerados “eleitos”, porém não são tão sortudos assim. É um grupo de pessoas extremamente determinadas, que colocam uma coisa na cabeça e a perseguem até alcançar.

Teimosos? Às vezes são, e correm inclusive o risco de serem chatos. Mas, quando atingem seus objetivos, a teimosia se justifica e ganha o status de heroísmo.

A nação brasileira não é heroica, não nesse sentido. Pode ser heroica na luta pela sobrevivência individual, mas, coletivamente, é uma pátria sem vontade. Fazemos piada com a nossa desgraça, reclamamos muito em mesas de bar, mas dificilmente trocamos a praia por uma assembleia, o sofá por uma manifestação de rua.

É do nosso caráter acreditar que alguém fará o que tem que ser feito, não precisamos participar. Um a mais, um a menos, não fará diferença.

Quem dera nos mobilizássemos pelo que é sério assim como nos mobilizamos pelo que é alegre e descompromissado. Invadimos as ruas de um bairro inteiro para seguir um trio elétrico, batemos recordes de telefonemas para eliminar um BBB, vamos em bando ao saguão de um aeroporto para dar boas-vindas a um centroavante que acaba de ser contratado, mas a vontade não é tanta quando está em jogo algo que pode mudar nossas vidas.

Somos solidários na calamidade, fazemos doações, mas passeata para pressionar governantes a tomarem atitudes permanentes de prevenção do caos e da corrupção? Ah, nunca dá em nada. Garçom, mais um chope.

É bonito ver uma população se unir para defender um projeto comum, e assustador também, porque sempre há o componente da violência, seja pelo vigor do ataque ou da repressão. De forma alguma, é fácil. Mesmo quando pacífica, uma manifestação é sempre um barril de pólvora, bastam dois ou três elementos destoantes.

Então, pelo sim e pelo não, o brasileiro vota, enquanto for obrigatório, e o resto deixa a cargo do tempo, que é quem resolve tudo mesmo. Garçom, a saideira e a conta.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011



22 de fevereiro de 2011 | N° 16619
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Como eram os domingos

Essa história de que os domingos de ontem eram parecidos com os de hoje não é bem assim. Havia muitas diferenças, e nem sei te dizer se para pior ou para melhor.

Para princípio de conversa, o dia começava, nas famílias de classe média remediada, com um ritual obrigatório: a missa, acompanhada de confissão, comunhão e jejum absoluto. Depois servia-se o almoço, que no geral se compunha de um cardápio em que não costumavam faltar a salada de batatas, a massa e a galinha assada.

E aí estendia-se, risonha e franca, a tarde. Era um programa de múltipla escolha. Você podia eleger as matinês daquela multidão de cinemas espalhados pelo Centro – da Rua 7 de Setembro à Avenida Borges de Medeiros.

Desejava ver um filme romântico? As opções eram muitas, dos dramas sentimentais do Imperial, do Guarani ou do Victoria, à atmosfera europeia do Ópera ou do Cacique. Preferia um policial ou um suspense?

Era simples: bastava inclinar-se pelo Capitólio ou pelo Continente. E havia ainda a livre opção, já fora do Centro, pelo Marabá, o Avenida, o Ipiranga, o Colombo, o Orfeu e mais uma dezena de salas espalhadas pelos bairros.

Mas se a tua inclinação não fosse a chamada Sétima Arte, sobrava o apelidado Esporte Bretão. Ainda peguei em grande forma o Estádio dos Eucaliptos e nele vi jogar Tesourinha.

A cidade tinha sete times disputando o campeonato local: Internacional, Grêmio, Cruzeiro, Renner, Nacional, São José e Força e Luz. Fui apresentado a eles num embate entre Inter e São José, gloriosamente vencido pelo primeiro, numa goleada memorável. Também gloriosa foi a inauguração do Beira-Rio, que conheci ainda em seus alicerces.

Hoje já não existem cinemas, desses com bilheterias abertas para as calçadas. O Estádio dos Eucaliptos, segundo me informam, será transformado num shopping. Mas restará o Beira-Rio, renovado e pronto para uma Copa do Mundo.

E restarão minhas lembranças de um tempo em que eu segurava ternamente as mãos de minha amada nas matinês do Cine-Teatro Imperial.

sábado, 19 de fevereiro de 2011



20 de fevereiro de 2011 | N° 16617
MARTHA MEDEIROS


O que quer uma mulher?

Uma mulher quer ser egoísta, mas também quer colocar comida na mesa, ter filhos, ser amada e cada dia mais feliz

Uma mulher quer que suas unhas não quebrem nem descasquem. Uma mulher quer se sentir atraente com o peso que tem. Uma mulher quer ver seu trabalho valorizado. E quer ganhar dinheiro com ele. Uma mulher quer ser amada. Quer viver apaixonada. E quer se divertir.

Poderíamos encerrar a questão neste primeiro parágrafo, mas como a página necessita ser preenchida, avante.

Uma mulher quer ter filhos. Ou já quis um dia. Uma mulher com filhos quer ter mais tempo pra ela. E uma mulher com tempo de sobra quer uma rotina mais agitada. Uma mulher só não quer o tédio.

Uma mulher quer um cabelo que não precise ser constantemente pintado, arrumado, escovado. Um mulher quer conversar. Uma mulher quer ficar em silêncio. Uma mulher quer que lhe telefonem de surpresa e lhe digam coisas que a façam ficar sem palavras. Uma mulher quer deixar um homem maluco. E ter, ela mesma, o direito de enlouquecer.

Uma mulher quer aprender a ser mais egoísta. Quer, ao menos uma vez na vida, pensar só nela e em mais ninguém.

Uma mulher quer inspirar um poema. Quer ser musa. Mas não quer ser confundida com mulher que não controlam a própria vaidade e pagam mico nas páginas das revistas.

Uma mulher quer colocar comida na mesa e que as crianças raspem o prato, uma mulher quer seus filhos saudáveis e felizes, uma mulher quer que eles durmam a noite toda, de preferência em casa.

Uma mulher quer desligar a tevê.

Uma mulher quer sexo. Uma mulher quer devorar um pão de meio quilo sem culpa. Uma mulher quer sair bonita na foto. Uma mulher quer dormir mais cedo. Uma mulher quer ser reparada na festa.

Uma mulher quer que seu carro não a deixe na mão. Uma mulher quer ser escutada. E quer escutar os homens, que pouco se abrem.

Uma mulher quer fazer algo pela sociedade. Quer ajudar quem precisa. Quer ser útil. Em troca, quer que a ajudem com as sacolas. E que a amparem na dor.

Uma mulher quer ter o gostinho de dizer não para os cafajestes. Por mais que ela queira dizer sim.

Uma mulher quer morrer de rir.

Uma mulher quer que não a levem tão a sério. Quer batalhar por seus ideais sem se embrutecer. Uma mulher quer de vez em quando demonstrar seus dotes de atriz. Uma mulher quer brilhar no escuro.

Uma mulher quer paz. Uma mulher quer ler mais, viajar mais, conhecer mais. Uma mulher quer flores. Quer beijos. Quer se sentir viva. E quer viver pra sempre, enquanto for bom. Está respondido, doutor Freud. Não somos assim tão complicadas.

A colunista Martha Medeiros está de férias e retorna na semana que vem. Esta coluna foi publicada originalmente em 6 de março de 2005.


19 de fevereiro de 2011 | N° 16616
NILSON SOUZA


O gordo vencedor

Ronaldo fez o Brasil inteiro chorar com ele ao se despedir de uma carreira esportiva tão brilhante quanto acidentada. Poucos atletas no futebol viveram de forma tão intensa a glória e a desgraça. Ele foi campeão mundial pela primeira vez aos 17 anos – sem ter tocado na bola, é verdade –, e oito anos depois conquistou novamente o título mais importante do principal esporte do planeta, desta vez com todos os méritos.

Fez bem mais: tornou-se o maior artilheiro em Mundiais e foi três vezes reconhecido pela Fifa como melhor do mundo. Também teve uma trajetória internacional extraordinária, nos clubes mais badalados da Europa e participando pelos dois lados das maiores rivalidades da Espanha e da Itália.

Seu currículo é incomparável.

Suas dores também. Operou o joelho quando atuava pelo PSV, teve uma convulsão na Copa da França, rompeu o tendão patelar na Inter de Milão, teve problemas musculares no Real Madrid, estourou o outro joelho com a camisa do Milan e passou a ter lesões sucessivas até o fim de sua carreira, no Corinthians. Mas sempre deu a volta por cima. Caiu e levantou tantas vezes, que fez jus ao apelido de Fenômeno. Só não conseguiu superar um adversário inflexível e, às vezes, indriblável: a balança.

Tornou-se um gordo. Talvez por efeito dos anabolizantes receitados pelos clubes europeus para dar-lhe massa muscular, talvez pelo distúrbio de tireoide revelado em tom de habeas corpus na entrevista derradeira como atleta, provavelmente pela conjugação das duas coisas e também por um certo descuido com o preparo físico, o fato é que se tornou um gordo. E os gordos, como todos sabemos, sofrem restrições de todo tipo, ainda mais no futebol.

O gordinho da pelada de rua, no máximo, vai para o gol. O gordo da turma carrega todos os apelidos e vira protagonista de anedotas e brincadeiras nem sempre delicadas. O gordo da tropa fica para trás e paga apoio na frente dos outros. O gordo anônimo é referência na arquibancada. E a gordinha da festa nem sempre acha par para dançar.

Apesar dos padrões de beleza atuais, na maioria das sociedades, privilegiarem os magros, os gordos podem ser muito felizes, sim, se tiverem saúde e boa cabeça, principalmente para encarar preconceito e incompreensão. O importante é que se sintam bem consigo mesmos e que, como Ronaldo, saibam erguer-se ainda mais fortes das inevitáveis quedas da existência humana.

Uma daquelas lágrimas do craque, tenho certeza, foi um desagravo a todos os gordos discriminados pela vida.

Gostoso sábado para você e um lindo fim de semana.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011



15 de fevereiro de 2011 | N° 16612
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um canto do Centro

De tanto morar no mesmo lugar, começo a desconfiar de que as coisas me conhecem. Habito há tantos anos este trecho de Porto Alegre, que antes ficava na Rua João Manoel e agora se localiza na Rua Duque de Caxias, uma distante da outra não mais que alguns metros, que me sinto um pouco parte da paisagem.

É um lindo cenário. À esquerda fica o Jardim dos Chaves Barcellos, hoje infelizmente transformado num imenso estacionamento. À direita se contempla o parque do Solar dos Câmara, com suas árvores mais do que centenárias. E um pouco adiante se situa a Praça da Matriz. Para arrematar, conto com a vista dos que talvez sejam os mais antigos jacarandás desta mui leal e valorosa. Sem falar no espelho líquido do Guaíba.

Não imagino paisagem melhor. Duvido que na Capital haja panorama mais inspirador.

Mas de tanto viver por aqui, suspeito que ruas, árvores, jardins, parques, praças me conheçam tão bem quanto eu os identifico. Sou como uma parte do palco, um senhor levemente envelhecido, embora ainda em bom estado de uso.

Há outros pontos da cidade que também me seduzem, a começar pela quadra da Fernando Machado, logo abaixo da escadaria do belvedere, que parece sequestrado de Londres. Nisso se parece com o quarteirão da Félix da Cunha, construído à sua imagem e semelhança.

Admiro igualmente todo o belo espaço da Hidráulica dos Moinhos de Vento e de algumas ruas próximas, como a Santo Inácio e a Barão de Santo Ângelo. Percorro com prazer a Floresta, com particular agrado pelas redondezas da Igreja de São Pedro.

Perdi a conta das vezes em que fui caminhar, de manhã cedo, pelas alamedas do Parque da Redenção. Nunca esqueci as ocasiões em que trilhei as travessas tranquilas da Cidade Baixa.

Porto Alegre é rica em paisagens. É também uma terra de mulheres bonitas.

A combinação não poderia ser melhor.

Mas se eu tivesse que escolher a minha região preferida, não hesitaria em optar por este canto do Centro Histórico onde decidi viver.

Aqui árvores, muros e árvores, casas e pássaros, céus e calçadas parecem me conhecer pelo nome. E eu me sinto tão próximo deles como se fossem meus irmãos.

Ainda que com previsões de chuvas e ventos, uma linda terça-feira pra você.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011



08 de fevereiro de 2011 | N° 16605
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A era da inocência

Falei esses dias dos trens de passageiros que ligavam Porto Alegre a Cachoeira e das belas lembranças românticas que me despertavam. Hoje, quero tratar dos bondes que escalavam bem aqui diante do edifício onde moro. Nunca pensávamos na época que era um meio de transporte em extinção.

Bem ao contrário, toda a Porto Alegre era cortada pelos veículos amarelos, movidos a eletricidade, que faziam mais ou menos os mesmos trajetos que hoje cumprem nossos poluentes ônibus, que se adonaram de suas rotas.

Mas o que os ônibus de agora jamais terão é o charme daqueles vagões, que podiam ser vistos aqui e nas principais cidades do mundo. Os Estados Unidos – salvo San Francisco – estão órfãos há décadas de seus primos da Carris. Mas a Europa, com sua sabedoria milenar, aprendeu a conservá-los.

Dirigi um bonde em Bremen, trafeguei em outro em Frankfurt, peguei vários em cidades da França. Não eram iguais aos nossos. Eram tranquilos, silenciosos, civilizados. Muitos tinham vários vagões, olimpicamente conjugados.

Não sei por que não temos algo semelhante em nossa Porto Alegre. Ao invés de corredores monótonos, teríamos um ar de cultura urbana. Ao invés de ruas e avenidas contaminadas pela fumaça de milhares de ônibus, teríamos um ar mais liberto de poluição. Ao invés do desafio do concreto, teríamos a ordenada geografia dos trilhos.

O bonde que passava aqui onde moro era o Duque. Tão familiar se tornou para todos nós, que os passageiros, os fiscais, os cobradores se conheciam e se cumprimentavam.

O nosso bonde era como uma grande família e percorria não só a rua de que tomava o nome, mas a Marechal Floriano – a parada da Casa Masson era famosa –, a Praça XV, a Sete de Setembro, a Rua da Praia, a Vasco Alves, com seu gingado sereno e apaziguador.

Mas havia dezenas de outras linhas, como o Gasômetro, o Petrópolis, o Independência, o Partenon, mais um punhado de outras que cruzavam o mapa da cidade. Muitos namoros começavam entre uma estação e outra e não poucos culminavam em troca de alianças.

Guardo uma nostalgia profunda dos bondes de minha cidade. Eles são como um símbolo da era da inocência, que terminou para não voltar nunca mais.

sábado, 5 de fevereiro de 2011



06 de fevereiro de 2011 | N° 16603
MARTHA MEDEIROS


Você, modo de usar

Negativismo, raiva, frustração, nada disso colabora com nosso metabolismo. É aí que pequenas atitudes podem fazer diferença

Quando caminho pelas ruas da cidade, ou mesmo quando circulo de carro, reparo em pequenos pontos comerciais em construção e na hora penso: tomara que seja uma livraria, tomara que seja uma papelaria, tomara que seja uma galeria de arte, tomara que seja um bistrô, tomara que seja uma floricultura. Vou acompanhando a obra com expectativa, até que um dia os tapumes são retirados e shazam: é mais uma farmácia.

O filme Amor e Outras Drogas dá uma amostra de como os laboratórios movimentam fortunas e estimulam o consumo de medicamentos de forma impulsiva e muitas vezes desnecessária. Remédio não é sorvete, não é banana, não é pãozinho. Mas o povo se acostumou a ingerir goela abaixo o que lhe sugerem, sem receita, sem critério, e a indústria farmacêutica prospera.

Conversava outro dia com uma amiga endocrinologista, e falávamos justamente sobre como tantas doenças poderiam ser prevenidas através da simples mudança de hábitos.

Ninguém renega a importância de uma campanha de prevenção contra o uso do crack, mas há um número ainda maior de pessoas se viciando em gordura, evitando legumes, se entupindo de refrigerante, não dando a devida atenção aos produtos orgânicos, abusando do sal, do açúcar e das frituras. Seria igualmente progressista uma campanha que alertasse: comer errado, nem pensar.

Esse é só um exemplo de como a falta de qualidade de vida pode adoecer e até matar. A causa de óbitos geralmente é infarto, câncer, infecção generalizada, falência múltipla de órgãos, mas algumas dessas doenças tendem a iniciar décadas antes, por meio de uma rotina de muito stress, ansiedade, angústia emocional e neuroses não tratadas. Negativismo, raiva, frustração, nada disso colabora com nosso metabolismo.

É aí que pequenas atitudes podem fazer diferença, como praticar atividades físicas, buscar algum recurso para relaxamento (ioga, meditação, terapia, religião, massagem), cultivar amigos, dormir bastante, usar filtro solar, cuidar da postura, beber muita água, controlar o peso, não fumar, não beber em excesso, fazer check ups periódicos – e não se drogar, lógico. Os médicos têm batido nessa tecla com insistência, mas ainda há quem considere esse blablablá improdutivo ou politicamente correto demais.

Tem nada a ver com politicamente correto, e sim com inteligência. E inteligência não se vende em frascos.

Farmácias comercializam produtos de primeira necessidade. Sem elas, não teríamos acesso a medicamentos fundamentais para nossa saúde mental e física, devidamente prescritos, mas precisamos de tantas?

Creio que teríamos uma sociedade bem mais saudável se a população contasse com inúmeros pontos de venda de livros, sucos, flores, livros, discos, bicicletas, livros, frutas, bolas de futebol, raquetes de frescobol, instrumentos musicais, sapatilhas, livros, livros e, claro, livros.

Ruth de Aquino

Um Congresso “transparente

Renato Cozzolino é um dos 41 deputados suplentes que fizeram um sacrifício pela nação. No calorão de janeiro, em recesso parlamentar, esses políticos abnegados, em vez de sair de férias com a família, substituíram titulares na Câmara.

Num mês de mandato-tampão, sem o Legislativo funcionar, essa turma conseguiu gastar R$ 298 mil com “consultorias, trabalhos técnicos e locação de veículos”. Investigamos por que Cozzolino, do PDT do Rio de Janeiro, pagou R$ 20 mil de sua cota a uma empresa de contabilidade.

O repórter Leopoldo Mateus, de ÉPOCA, foi ao escritório dessa empresa, a Star Serviço Técnico Contábil, citada no tópico “Transparência” do site da Câmara. O endereço fica no centro movimentado de Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense. É um prédio verde de quatro andares, em cima de várias lojas. Quando você sai do elevador e vira para a direita, dá de cara com um aviso: “Escritório do Dr. Jairo. Entre sem bater”.

Há uma porta branca, com barras de ferro. Pilhas de processos em cima das mesas, pintura desbotada... e a moça grita para dentro: “Pai, tem um rapaz querendo falar com você”. Questionado sobre o serviço prestado a Cozzolino, Jairo de Souza Vieira afirmou: “Qualquer grande escritório no Rio cobraria R$ 150 mil pelo serviço que fiz para o Cozzolino.

Vou cobrar quanto para fazer um estudo desses? Dois, três mil reais? Não. Eu vou cobrar R$ 20 mil. Não trabalho de graça. Não fico dando recibo frio para ninguém, não. Fiz um estudo de umas quatro ou cinco laudas sobre o Estatuto da Mulher. O Cozzolino disse que ia fazer uma apresentação num programa de rádio”. Dr. Jairo não quis mandar as laudas por e-mail: “É sigilo profissional”.

Cozzolino tinha o direito de gastar em janeiro uma verba extra de R$ 26.800. Gastou R$ 21.776,77. O grosso foi para o Dr. Jairo. “Ele fez num mês um reestudo de minha vida política, que vou encaminhar a alguns parlamentares no momento oportuno”, disse Cozzolino ao telefone. O deputado, suplente de Brizola Neto, se disse orgulhoso de sua atuação como parlamentar por ter questionado os ingredientes da Coca-Cola: “Quem conhece alguém viciado em Guaraná?”.

Acreditamos em duendes, por isso achamos as despesas de Cozzolino normais. Não sabemos como os outros 40 deputados suplentes gastaram em janeiro a verba a que tinham direito, fora o salário de R$ 16.500 (agora catapultado para R$ 26.700). Eles apresentaram nota.

Deveríamos investigar. Afinal, o dinheiro é nosso.

Acreditamos em duendes, por isso achamos as despesas de deputados como Cozzolino normais

“Não temos lições de transparência a receber”, disse José Sarney em defesa do Congresso. O discurso do eternizado presidente do Senado soou auspicioso: “Nosso trabalho exige jamais aceitar qualquer arranhão nos procedimentos éticos”. Sarney disse que sua “honorabilidade” jamais esteve em questão e afirmou estar fazendo um “sacrifício”.

Em 2009, foram 11 os pedidos de cassação de seu mandato pelo escândalo dos “atos secretos”. Embora combalido pela idade, é o mesmo Sarney que esteve do lado da ditadura, como governador e senador pelo Maranhão, quando a Casa foi fechada, entre 1968 e 1977.

O Congresso de Dilma convive com anomalias inaceitáveis para um governo que precisa cortar gastos. No Senado, há 10 mil funcionários para 81 senadores. Na Câmara, a prioridade é erguer um anexo de R$ 130 milhões para abrigar mais parlamentares.

Do total de 513 deputados federais, 59 são réus em ações penais. E o xerife da Câmara, Dudu da Fonte, encarregado de garantir o decoro, é discípulo de Severino Cavalcanti – aquele que renunciou em 2005 para não ser cassado por causa de um esquema de propina. “Dudu aprendeu todas as lições que passei”, disse Severino.

Deve ser difícil mesmo aprender a ser deputado. A Câmara preparou uma aula para os 224 novatos com dicas sobre como votar, preparar projeto e se comportar no plenário. Romário faltou à aula. Depois, na reunião da bancada do PSB, cochilou.

Tiririca reapareceu depois de uma operação na vesícula: “Vamos aprender com os veteranos. Se Deus quiser”. Ele vai parar de ouvir a gozação popular: “E o palhaço o que é? É ladrão de mulher”. Aprenderá a ser mágico ou acrobata.


05 de fevereiro de 2011 | N° 16602
NILSON SOUZA


O rei gago

Um amigo viajante me presenteou com O Discurso do Rei, que estará na tela dos cinemas brasileiros na próxima semana e no palco do Oscar no dia 27, com nada menos do que 12 indicações para o prêmio. Já estou torcendo por ele, principalmente por alguns atores de desempenho espetacular. O filme conta o drama real do monarca britânico George VI, portador de uma gagueira paralisante.

É uma emocionante história de superação, que pega o espectador desprevenido em vários momentos. O rei gago (Colin Firth) é ótimo, mas o personagem mais fascinante é o terapeuta da fala interpretado por Geoffrey Rush – uma espécie de doutor House da fonoaudiologia. Fico por aqui, não quero estragar a surpresa de ninguém.

Mas quero comentar dois aspectos relacionados ao filme que talvez mereçam maiores reflexões. O primeiro deles é exatamente o mote da história, a gagueira, uma dificuldade de expressão que leva o portador a repetir sílabas ou a fazer grandes pausas entre as palavras. Invariavelmente, o gago é alvo de chacotas.

As pessoas acham engraçado ouvir alguém que trava na hora de dizer alguma coisa. Alguns ouvintes ficam ansiosos, tentam ajudar. É natural isso.

Tem até um caso folclórico do jornalismo esportivo que retrata bem esta angústia, embora não envolva gagueira. O locutor José Aldair, então âncora do principal noticioso da Rádio Gaúcha, costumava dar uma pausa na hora de ler a notícia sobre esportes. Com o seu conhecido vozeirão, dizia: “Essssss... portiva”.

Um dia estava lendo as notícias na presença do veterano comentarista Oswaldo Rolla, o Foguinho, que aguardava no estúdio a sua hora de entrar no Sala de Redação. Ao ver o companheiro trancar no “Essss...”, seu Rolla não teve dúvidas e completou com o seu sotaque cheio de erres:

– porrrtiva!

Os ouvintes devem ter dado boas risadas. Mas os gagos não acham a mínima graça das imitações e das anedotas de que são vítimas. A gagueira pode parecer um incômodo menor para quem não tem a dificuldade, mas é um grande problema para o seu portador.

Muitas vezes, mexe profundamente com a autoestima da pessoa, prejudica sua carreira e se torna um fator de exclusão social (e até mesmo familiar, como se vê no filme). Se não podemos ajudá-los a superar a imperfeição, como faz o irreverente terapeuta da história, o melhor que devemos fazer é procurar compreendê-los e respeitá-los.

O outro aspecto curioso, na minha interpretação, é que a maior riqueza do filme são exatamente os diálogos inteligentes – entre um rei gago e um plebeu de pouca conversa. Sinto-me tentado a ampliar o milenar aforismo: se a palavra é prata e o silêncio é ouro, a soma dos dois pode ser brilhante.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011



02 de fevereiro de 2011 | N° 16599
MARTHA MEDEIROS


Lúcifer no Fasano

Eu estava hospedada na minha avó, em Torres. Era verão de 1993. Estávamos só nós em casa naquele fim de tarde. Ela, com a autoridade de seus mais de 80 anos, chamou a moça que trabalhava pra ela, a Zaimara, abriu a carteira, tirou uma nota de R$ 10 e pediu: vai lá no Bazar Praiano e me traz uma revista Caras, por favor.

– Revista o quê?

– Caras. Primeiro número.

Minha vó, muito antenada, sabia que uma nova revista estava estreando no mercado. Uma revista que trazia apenas notícias de celebridades, e quis conferir. Eu já conhecia as versões latino-americanas e não me empolguei muito. Quando a Zaimara voltou com a revista (já lida de cabo a rabo), minha vó folheou uma página, outra página, mais uma, e sentenciou: “O que eu pensei. Porcaria”.

Tarde da noite, levantei pra pegar um copo d’água e vi luz embaixo da porta do quarto da minha vó. Como não havia televisão ali dentro, e muito menos um marido, concluí que ela estaria dando uma segunda e longa espiada na porcaria. Quem resiste?

O lançamento da revista Caras foi um divisor de águas. Competente em mostrar o dia a dia (e a noite adentro) de qualquer pessoa que tenha tido seus 15 minutos de holofote, a revista sedimentou a profissão dos paparazzi e modificou a relação do público com seus ídolos.

Se antes alguém era reconhecido por seu talento em atuar, cantar ou desfilar, agora era reconhecido pelo número de separações, pelo tamanho do biquíni e pelas viagens a castelos onde se janta em traje de gala e se fazem piqueniques usando duas camadas de maquiagem. Nunca a cafonice foi tratada com tanto glamour.

Não desprezo a revista, na qual já apareci uma ou duas vezes – nunca tomando champanhe dentro da banheira e tampouco deitada sobre um tapete de zebra vestindo um longo de cetim vermelho, digo em minha defesa. Escritora aparece no máximo com uma xícara de café em frente ao computador.

O que acontece é que depois da Caras veio a Quem e tantas outras, e também alguns programas de TV especializados em fofoca, e de repente a banalização da privacidade ganhou um espaço sem precedentes. Celebridade, que podia ser uma palavra definidora de alguém notável, passou a designar qualquer um.

E qualquer um fazendo revelações constrangedoras e vulgares, desfrutando de uma fama meteórica e provocando um deslumbramento patético nos simples mortais. Aquela ali é a Ariadna? É a Geisy? Uma é a transexual que ficou uma semana na casa do Big Brother, a outra foi discriminada por usar minissaia na faculdade, é o currículo profissional delas.

Causam o mesmo alvoroço que Demi Moore e Ashton Kutcher, que por sua vez causam o mesmo frisson que o pai do Michael Jackson, que é tão famoso quanto o vlogueiro que surgiu ontem no YouTube. Se Lúcifer saísse do inferno para dar uma banda por aqui, teria mesa cativa no Fasano.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011



01 de fevereiro de 2011 | N° 16598
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Dr. Fritz

Nos tempos em que passava o mês de janeiro em Cachoeira, tinha um agradável projeto de vida: estudar a história de minha cidade. Olhando para trás, não consigo imaginar algo de mais prazeroso para o espírito do que mergulhar em velhas páginas de jornais, ler antigas atas e trocar ideias com pessoas que conheciam mais do que eu a trajetória de nosso passado compartilhado.

Uma dessas personagens partiu há poucos dias, aos 90 anos. Chamava-se Fritz Strohschoen. Era uma figura renascentista, pela amplitude e o alcance de sua cultura. Doutor em Economia, formando em Ciências Econômicas e em Ciências Jurídicas e Sociais, era também graduado em Administração e em Ciências.

Mas nenhuma dessas era a sua grande paixão. Muito além dos autos de criação, mandados de D. João VI, mapas de província, alvarás de registro e demarcação, o dr. Fritz sabia contar as pequenas grandes histórias de nossa História. Os papéis do Arquivo Municipal eram a moldura da real evolução de Cachoeira pequenina, que ele ia revelando em sua nudez e em sua natureza mais simples.

Lembro em especial um desses janeiros que passei na Granja da Penha, e no qual os encontros com o mestre aconteciam todas as tardes. O dr. Fritz me transmitia então todo um curso de História de Cachoeira, com base em sua fabulosa memória de figuras, incidentes e episódios, realçando o lado humano de cada fato.

Foi assim que fiquei sabendo da longa batalha entre um vigário e a Câmara Municipal, em torno do destino dos sepultamentos. Foi assim também que tomei conhecimento da luta que travaram duas famílias em uma longuíssima rivalidade, e que só terminou, um pouco como em Verona, quando um rapaz e uma donzela, cada um de um dos clãs, juraram amor eterno.

E foi ainda assim que me inteirei do combate de Barro Vermelho, do frio assassinato do dr. Baltazar de Bem, no auge de sua juventude e de seu prestígio, morto por um rapaz que nem sabia em quem estava atirando, e que passou o resto da vida escondido nos matos do Piquiri.

Muitas outras narrativas escutei do dr. Fritz, e sobre algumas delas ainda pretendo escrever. Por enquanto me resta a evocação do homem para quem a História, mais além dos livros, era algo de vivo e presente.