quarta-feira, 30 de dezembro de 2009



30 de dezembro de 2009 | N° 16201
MARTHA MEDEIROS


Carta para 2010

Seja bem-vindo, Ano-Novo. Que você seja tão bonito quanto o número que traz, redondo. Eu disse redondo, não gordo, tá? Tente ser um ano magro. Não estou sugerindo que nos prive de ter apetite, e sim que seja magro no sentido de leve, diáfano, onírico.

Que seja um ano para se passar de pés descalços, espírito aberto, consciência limpa e sorriso licencioso. Não pese.

Inevitável que algumas más notícias virão. Tsunamis acontecem, tragédias sísmicas, epidemias, e algum maluco há de provocar um crime chocante. Nem ouso pedir que você evite essas calamidades, mas que elas sejam raras, raríssimas, e que não atinjam nosso epicentro emocional. Mantenha os horrores afastados.

Por perto, apenas os amigos de boa conversa, os filmes que entrarão para a nossa lista dos 10 mais, os dias de praia sem uma única nuvem no céu e encontros amorosos, gloriosos e numerosos – de preferência com a mesma pessoa, aquela que nos fará acreditar em cartomantes: as cartomantes sempre dizem que o amor está para chegar.

Caso já tenha chegado, que não se vá.

Sendo um ano de eleição, nos inspire a votar com discernimento, sem nos deixar levar por promessas requentadas e sensacionalistas: que a gente saiba perceber quem são os homens e as mulheres que podem fazer diferença.

Na categoria das coisas não tão sérias, mas igualmente bem-vindas: 2010, entre para a história como o ano em que pichadores e depredadores do patrimônio público se darão conta do quanto são tolos, em que os prazos de validade dos produtos serão impressos num tamanho maior, em que os vinhos terão seus preços reduzidos nos restaurantes e em que a gente aprenderá a responder “não” quando alguém perguntar “posso ser sincero?”. Ensine a gente a dizer “não”, 2010. Para sobrar mais tempo pro sim.

E ensine também as pessoas a serem mais gentis no trânsito e fora dele, a não tomarem tanto medicamento por conta própria, a respeitarem seu corpo e sua mente, a não insistirem na infantilização de seus atos e a não se sentirem insultadas pela felicidade dos outros.

Se essa última solicitação for utópica demais, então que todo mundo aprenda a viver bem, a seu modo, que assim ninguém contaminará a humanidade com seu mau humor.

2010, seja um ano poético, vibrante, desencanado, musical, livre de vaidades, menos tecnológico, mais humano, solidário, natural, energético, romântico. Um ano hippie, ao melhor estilo paz e amor. Andamos saudosos.

Mas não tão bicho-grilo que nos faça esquecer que a prática de exercícios físicos é de primeira necessidade, que viajar é a melhor terapia que existe e que flores frescas em casa são um luxo que todos deveriam se permitir. Então, 2010, em todos os sentidos (econômicos, sociais e afetivos): não seja sovina. Crise não é mais desculpa.

Uma excelente quarta-feira último dia úitl do ano. Aproveite pois 2009 se despede e vem ai a passos largos 2010

terça-feira, 29 de dezembro de 2009



29 de dezembro de 2009 | N° 16200
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Para não esquecer

Recebo de presente uma foto do Château d’Eau e com ela uma torrente de lembranças. Para quem não sabe o que esse nome francês significa – a tradução literal é Castelo d’Água – esclareço que designa o principal dos símbolos de Cachoeira.

Nova York tem o Empire State Building, Paris tem a Tour Eiffel e minha terra tem o Château d’Eau. Para descrevê-lo em poucas linhas, direi que é outra torre, no centro do que é uma das mais belas esplanadas urbanas do Rio Grande do Sul. Não sei se existe algo sequer parecido em qualquer outra cidade gaúcha, para ficar apenas dentro de nossos limites.

Em síntese, é um monumento que se ergue sobranceiro no âmago de três praças – uma delas a sua própria. É cercado por altas palmeiras em um primeiro círculo. Logo, mais à distância, pela Catedral, pela velha Prefeitura, que é de 1864, pelo antigo Fórum e pelas duas outras praças, uma delas contendo o busto em bronze de meu pai.

Há algo de majestoso em toda a construção, a começar pelo lago que a cerca, pelas quatro pontes que o atravessam, pelas estátuas das Musas dispostas ao seu redor e pela do deus Mercúrio, bem ao alto, erguendo seu tridente para o infinito.

Algumas de minhas mais inesquecíveis recordações da infância confluem para o Château d’Eau. Aqui estou eu com meses lançando um olhar sonhador quem sabe para os peixes, que em uma época eram sonolentas carpas, que em outra se travestiram de vermelho e de dourado. Aqui estou eu com pessoas que há séculos já me disseram adeus.

Aqui estou eu com meus filhos, talvez tentando explicar-lhes o que aquela torre representava para mim.

E há este instantâneo da adolescência, em que apareço junto a uma namorada. Há algo de levemente solene na cena. Minha amada senta-se na grama e a cerca seu vestido bordado. Há em seu rosto um traço de tênue apreensão. Será um rompimento? Será uma simples declaração de amor?

Não sei dizer. Sei tudo sobre estas praças e os caprichosos desenhos de seus gramados. Sei tudo sobre a Prefeitura, personagem de um conto meu. Sei tudo sobre a estátua de meu pai, sobre o Fórum, sobre o prédio da escola onde antes havia um teatro ancestral que desabou. Sei tudo sobre a Catedral, e os atentados que se cometeram contra a riqueza de seu interior.

Só nada sei sobre o instantâneo do gramado. Vai ver que a cena era apenas como um raio em céu sereno.

Uma linda terça-feira para vc. Esta que é a última de 2009. Aproveite

sábado, 26 de dezembro de 2009



27 de dezembro de 2009 | N° 16198
MARTHA MEDEIROS


Nunca imaginei um dia

Até alguns anos atrás, eu costumava dizer frases como “eu jamais vou fazer isso” ou “nem morta eu faço aquilo”, limitando minhas possibilidades de descoberta e emoção. Não é fácil libertar-se do manual de instruções que nos autoimpomos. Às vezes, leva-se uma vida inteira, e nem assim conseguimos viabilizar esse projeto. Por sorte, minha ficha caiu há tempo.

Começou quando iniciei um relacionamento com alguém completamente diferente de mim, diferente a um ponto radical mesmo: ele, por si só, foi meu primeiro “nunca imaginei um dia”. Feitos para ficarem a dois planetas de distância um do outro. Mas o amor não respeita a lógica, e eu, que sempre me senti tão confortável num mundo planejado, inaugurei a instabilidade emocional na minha vida. Prendi a respiração e dei um belo mergulho.

A partir daí, comecei a fazer coisas que nunca havia feito. Mergulhar, aliás, foi uma delas. Sempre respeitosa com o mar e chata para molhar os cabelos, afundei em busca de tartarugas gigantes e peixes coloridos no mar de Fernando de Noronha. Traumatizada com cavalos (por causa de um equino que quase me levou ao chão quando eu tinha oito anos), participei da minha primeira cavalgada depois dos 40, em São Francisco de Paula. Roqueira convicta e avessa a pagode, assisti a um show do Zeca Pagodinho na Lapa. Para ver o Ronaldo Fenômeno jogar ao vivo, me inflitrei na torcida do Olímpico num jogo entre Grêmio e Corinthians, mesmo sendo colorada.

Meu paladar deixou de ser monótono: comecei a provar alimentos que nunca havia provado antes. E muitas outras coisas vetadas por causa do “medo do ridículo” receberam alvará de soltura. O ridículo deixou de existir na minha vida.

Não deixei de ser eu. Apenas abri o leque, me permitindo ser um “eu” mais amplo. E sinto que é um caminho sem volta.

Um mês atrás participei de outro capítulo da série “Nunca imaginei um dia”. Viajei numa excursão, eu que sempre rejeitei essa modalidade turística. Sigo preferindo viajar a dois ou sozinha, mas foi uma experiência fascinante, ainda mais que a viagem não tinha como destino um país do circuito Elizabeth Arden (Paris-Londres-Nova York), mas um país africano, muçulmano e desértico. Aliás, o deserto de Atacama, no Chile, será meu provável “nunca imaginei um dia” de 2010.

E agora cometi a loucura jamais pensada, a insanidade que nunca me permiti, o ato que me faria merecer uma camisa-de-força: eu, que nunca me comovi com bichos de estimação, adotei um gato de rua.

Pode colocar a culpa no espírito natalino: trouxe um bichano de três meses pra casa, surpreendendo minhas filhas, que já haviam se acostumado com a ideia de ter uma mãe sem coração. E o que mais me estarrece: estou apaixonada por ele.

Ainda há muitas experiências a conferir: fazer compras pela internet, andar num balão, cozinhar dignamente, me tatuar, ler livros pelo kindle, viajar de navio e mais umas 400 coisas que nunca imaginei fazer um dia, mas que já não duvido. Pois tem essa também: deixei de ser tão cética.

Já que é improvável que 2010 seja diferente de qualquer outro ano, que a novidade sejamos nós.

Um lindo domingo para você e uma gostosa semana, a última de 2009.

Diogo Mainardi

A chapa cabocla

"Uma chapa formada por José Serra e Marina Silva embaralharia a campanha de 2010, pegando o PT no contrapé e enterrando de vez a desastrada candidatura de Dilma Rousseff"

Os dois juntos, na mesma chapa. Quem? José Serra e Marina Silva. Isso mesmo: José Serra, presidente, e Marina Silva, vice-presidente.

A ideia ainda é embrionária. Só é debatida no interior de um grupelho do PSDB. Mas ganhou impulso na semana passada, depois que Aécio Neves renunciou à candidatura presidencial e assoprou para a imprensa petista que rejeita terminantemente uma vaga de vice-presidente na chapa de José Serra - a chamada chapa puro-sangue.

Apesar de todos os apelos do PSDB, Aécio Neves repetiu aos seus interlocutores que pretende candidatar-se ao Senado e dedicar-se integralmente à campanha para eleger seu sucessor em Minas Gerais, Antonio Anastasia.

Uma chapa presidencial formada por José Serra e Marina Silva - a chapa cabocla ou, melhor ainda, a chapa mameluca - embaralharia a campanha de 2010, pegando o PT no contrapé e enterrando de vez a desastrada candidatura de Dilma Rousseff.

O plano petista de contrapor Lula a Fernando Henrique Cardoso - o único atributo que, depois de muito empenho, os marqueteiros conseguiram arrumar para Dilma Rousseff - iria para o beleléu, considerando que Marina Silva, por mais de cinco anos, também fez parte do governo Lula.

E a impostura bolivariana de que o PSDB defende o interesse dos ricos e o PT defende o interesse dos pobres seria imediatamente desmascarada. Em matéria de pobreza, ninguém pode competir com Marina Silva.

José Serra e Marina Silva saíram do armário duas semanas atrás, em Copenhague, na COP15. Um elogiou o outro, um apoiou as propostas do outro. Eles conseguiram até deter o aquecimento global, congelando o Hemisfério Norte e matando de frio algumas dezenas de poloneses. José Serra já está com a campanha presidencial pronta. O que ele representa é a "continuidade sem continuísmo".

Para o eleitorado, ele manterá as conquistas de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, e ainda poderá dar um passinho adiante. Apesar de atemorizar os banqueiros, José Serra é capaz de sossegar o lulista mais conservador. Se Marina Silva concordasse em se unir a ele, sua candidatura ganharia também um aspecto mais moderno, um caráter mais inovador.

Marina Silva, por outro lado, como candidata a vice-presidente poderia dar um sentido prático à sua plataforma ambiental, coordenando essa área no futuro governo José Serra. Reinaldo Azevedo, em seu blog na Veja on-line, disse que Marina Silva, mais do que candidata a presidente, é candidata a santa.

Cruzei com ela recentemente e confirmo: ela levita. Elegendo-se na chapa de José Serra, ela teria a possibilidade de, finalmente, voltar a pisar no chão.


O valor do patrimônio finito

O uso dos recursos da natureza começa a entrar na contabilidade real das companhias

Renata Moraes e Carlos Eduardo Freitas
Divulgação
CORREDORES ECOLÓGICOS



A Suzano planta vegetação nativa entre os eucaliptos de modo a resolver o problema da monocultura

Desde meados do século XVIII, com a máquina a vapor que extraía água das minas de ferro e carvão na aurora da Revolução Industrial, o crescimento econômico sempre esteve atrelado à transformação de recursos naturais em matéria-prima para a manufatura dos produtos.

A exploração indiscriminada desses recursos, no entanto, deixou de ser a solução para o avanço tecnológico para tornar-se um problema de ordem prática. Como o capital natural – os recursos obtidos na natureza e usados para a produção de bens de consumo – é esgotável, preservá-lo passou a ser prioridade para as empresas que dependem dele para sobreviver.

"O capitalismo produz riqueza a partir da estrutura disponível na natureza, que nem sempre pode ser reposta pelo homem", definiu o ambientalista americano Paul Hawken, um dos primeiros a tratar do tema na década de 90, em seu livro Capitalismo Natural, Criando a Próxima Revolução Industrial. "Destruir a natureza significa inviabilizar o desenvolvimento econômico da humanidade." Para ele, o capitalismo industrial é uma aberração temporária. "Não por ser capitalismo, evidentemente, mas por destruir sua fonte de recursos."

A preservação do capital natural virou regra nas empresas ecologicamente responsáveis. Todo novo empreendimento passa antes pelo crivo de seu potencial poder de destruição do estoque de recursos naturais. Tratá-los com respeito, e incluí-los no planejamento fi-nanceiro, é compulsório. Os limites para o desenvolvimento econômico neste século provavelmente serão ditados pela disponibilidade dos recursos naturais.

De que servirão as melhores tecnologias para a pesca sem os cardumes? Ou as refinarias sem o petróleo? O panorama é ruim. A Avaliação Ecossistêmica do Milênio, projeto coordenado pela Organização das Nações Unidas entre 2001 e 2005, revelou o péssimo estado em que se encontram as principais reservas de recursos naturais do planeta. Entre os 23 itens analisados – como qualidade do ar, oferta de alimentos, diversidade de remédios naturais, regulação hídrica e climática –, 60% estão sendo deteriorados.

Conservar o meio ambiente significa preservar a viabilidade do próprio negócio. Uma pesquisa realizada com executivos de 200 corporações associadas ao World Business Council for Sustainable Development, em 35 países, revelou que esses profissionais já de-monstram alguma preocupação com o impacto que as mudanças climáticas podem ter sobre seu negócio. De acordo com a pesquisa, 13% temem a escassez de matérias-primas e 17% se assustam com o impacto de novas regulamentações ambientais.

A longevidade de uma empresa está intimamente relacionada à sua capacidade técnica para usufruir a natureza sem esgotá-la. "O impacto ambiental deve ser incluído no cálculo do custo das operações", afirma Rachel Biderman, pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas. Um dos exemplos mais emblemáticos da filosofia do "preservar para produzir mais" é a Natura, a líder brasileira no mercado de cosméticos, fragrâncias e higiene pessoal.

Quando ela foi criada, há quarenta anos, seu modelo de gestão já associava crescimento econômico e consciência ambiental e social. Alguns anos mais tarde, essa passou a ser a marca indelével dos produtos vendidos pela empresa.

A rede de cosméticos O Boticário, fundada na década de 70, aposta na mesma direção e também é outra referência no uso responsável de insumos naturais. As espécies raras de flor selecionadas para a composição das fragrâncias são envolvidas por uma cúpula de vidro e os componentes do aroma captado são então analisados e reproduzidos sinteticamente.

Outra de suas estratégias para diminuir o impacto ambiental foi a redução do emprego de matérias naturais na composição dos produtos. Atualmente, 80% da matéria-prima que a empresa utiliza é de origem sintética, uma forma de reduzir os danos a espécies nativas.

Estar próximo da natureza impõe atenção. A Suzano, o principal fabricante de papel do país, adotou medidas de proteção ao capital natural que utiliza. Com um estoque de mais de 500 000 hectares de floresta, ela produz 2,5 milhões de toneladas de papel e celulose.

Para recuperar características da mata nativa, prejudicada pela monocultura de eucalipto (árvore que fornece matéria-prima para a produção de papel), a empresa criou corredores ecológicos. A técnica consiste em plantar vegetação nativa entre os eucaliptos. Com isso, o microclima local melhora, enquanto a evasão dos animais silvestres e o risco de pragas diminuem.

A empresa controla também a diversidade dos pássaros que habitam as planta-ções. As aves são um bom indicador de mudanças de temperatura e umidade que afetam a produção dos eucaliptos. "A qualidade do meio ambiente é um termômetro da saúde do nosso negócio", explica Luiz Cornacchioni, gerente de relações institucionais da Suzano. Trata-se, no jargão da contabilidade, de equiparar o capital natural aos outros três de qualquer empresa – o financeiro, o humano e o imobilizado.

A face mais visível do cuidado com o capital natural é a preocupação com os recursos extraídos da natureza, como os minérios (veja o quadro abaixo). Mas cresce o interesse pelos chamados "serviços ambientais", como a água das nascentes, as chuvas e a estabilidade climática produzida pelas florestas.

Atribui-se, hoje, valor a isso, de modo que o preço dos produtos embuta o custo desses serviços. A receita amealhada pelos fabricantes que bebem dessas fontes é usada para preservar o ambiente. Um exemplo é a cobrança pelo uso da água, já em vigor em algumas regiões do Brasil.

Nessa mesma direção, brotou uma nova expressão – a "externalidade", no jargão da economia. Isso ocorre quando, devido a imperfeições do mercado, uma empresa deixa de considerar em seus custos certos fatores sem preço definido nem propriedade clara, e eles acabam transferidos para toda a sociedade, ou mesmo para as futuras gerações. Funciona assim com o lixo.

Desde que os clientes estejam dispostos a pagar pelo custo da embalagem, o fato de a mercadoria implicar maior ou menor produção de lixo não acarreta impacto algum para a economia do fabricante, e os gastos com resíduos – embalagens usadas, por exemplo – são transportados para o bolso do consumidor.

No Uruguai, já existem projetos de lei que taxam os fabricantes cujas peças, depois de usadas, produzem detritos, anulando assim a externalidade. São as novas regras do mercado ético.
Lee Jin-Man/AP
VAI ACABAR?



Minerais como o tântalo, usado em celulares, ainda têm um século de sobrevida


O Natal da avó deste garoto

por Paulo Nogueira | Amanda Knox, O.J.Simpson, sean goldman

Um menino amado e disputado

VI A COBERTURA enviesada e patriótica que a mídia dos Estados Unidos deu ao caso do garoto Sean Goldman, amado e consequentemente disputado na justiça pelos dois lados de sua família, representados pelo pai americano e pela avó brasileira.

Descarto aqui o padrasto brasileiro, peça relevante no tabuleiro legal mas secundária na rede de afetos de Sean. Foi a segunda vez, em pouco tempo, que me chamou a atenção a parcialidade nacionalista dos jornalistas americanos.

A outra foi a maneira como cobriram o julgamento, em Perúgia, da estudante americana Amanda Knox, 22 anos. Bonita como uma estrela, cínica a ponto de rir durante o julgamento e ao perceber as câmaras fingir choro e compunção, Amanda foi condenada a 26 anos de cadeia pela morte da estudante inglesa Meredith Kercher, 21 anos.

Elas rachavam, com outras duas estudantes, o aluguel de uma casa em Perúgia, um centro universitário de alto nível ao qual acorrem jovens do mundo inteiro. Eram múltiplas as evidências contra Amanda, de seu DNA no cabo da faca ensanguentada encontrada ao lado do corpo de Meredith às múltiplas mentiras que ela contou, entre elas a incriminação do dono do bar em que ela trabalhava, para não falar numa confissão que depois ela desautorizou.

O momento mais cômico e trágico da cobertura americana se deu num programa de televisão em que uma dupla de jornalistas chamou, para reforçar seu ponto, uma juíza, e ela, para surpresa indignada de ambos, defendeu a lógica da sentença contra Amanda.

Não percebi no amplo espaço dedicado ao tema pela mídia americana uma única menção de lamento pela morte tão cedo e tão violenta de Meredith, objeto de estupro e de facadas que a deixaram com o pescoço aberto e a fizeram agonizar por pelo menos duas horas, segundo os legistas. Amanda, na mídia americana, parece mais vítima que Meredith.

O comentário mais inteligente que vi sobre a patriotada americana nessa caso foi o de um leitor na Inglaterra que notou que, no fundo, Amanda teve sorte em ser julgada na Itália, a começar pela razão de que em 15 estados americanos vigora a pena de morte.

Mais uma vez, o patrotismo exacerbado derrotou o jornalismo sóbrio no tom geral que se deu nos Estados Unidos ao caso de Sean, afinal entregue ao pai biológico. A justiça brasileira foi desqualificada como suspeita no decorrer do processo e acusada de se vergar à influência do padrasto de Sean, um homem oriundo de uma família tradicional nos meios jurídicos nacionais. Também a justiça italiana fora ridicularizada no julgamento de Amanda.

Como se a único reduto da ética jurídica fossem os Estados Unidos, o berço dos advogados espertalhões e dos processos irracionais, e também a terra onde foi dado o veredito de inocente a O.J. Simpson. Ora, era legítimo e natural que os familiares brasileiros quisessem ficar com o garoto que cresceu entre eles, longe do pai. Estranho seria se, morta a mãe, o menino fosse despachado para os Estados Unidos no primeiro avião.

Quem teria agido de forma muito diferente, ainda mais considerada a visão sobre o pai, oriunda da mulher que se separou dele? Não se sabe o quanto distorcida ou não a versão dela pode ter sido, mas era ela a fonte de informação que a família tinha. De resto, sou pai e teria feito tudo pela guarda desde o primeiro dia. Não espanta que a história tenha ido parar na justiça.

O.J. Simpson recebeu da justiça americana o veredito de inocente

É um caso de amor incondicional, e assim deve ser entendido. Que tenha se arrastado tanto tempo é sinal da complexidade da decisão e do empenho posto pelas duas partes em ficar com Sean, por abundância e não escassez de amor. Confio também que afinal tenha sido tomada a decisão mais acertada.

(É possível ver no Youtube o julgamento no canal do Supremo Tribunal Federal.) Carimbar o episódio como sequestro é um absurdo, tanto quando descrever a avó como uma vilã, ou uma granfina manipuladora e fria. Ela é, sim, vítima do amor, das perdas e do desespero. E, provavelmente, da convicão de que o neto ficaria melhor no Brasil. Lutou não por dinheiro, não por bens materiais, mas pelo neto.

E perdeu. Sean é muito amado, e isso vai ajudá-lo a superar não apenas a orfandade tão precoce mas, mais que isso, a divisão que se estabeleceu entre os dois lados da família em torno dele. Tem, além do mais, o vigor copioso da juventude para se restabelecer no correr dos longos dias. Não é o caso da avó, que perdeu a filha numa ocasião que deveria representar festa, um parto, e agora vê o neto partir para longe.

Se a causa fosse apreciada por Salomão, as duas partes renunciariam à guarda, é minha sensação, tal o zelo amoroso por Sean que emana de ambas, mesmo em meio à saraivada de acusações recíprocas. Não será um Natal feliz para a avó e a perspectiva de que seu ânimo melhore no ano novo ou depois é remota, agora que lhe foi arrancado — legalmente, é verdade — mais um pedaço.

Mas nada que mereça uma palavra de simpatia, compaixão ou simples compreensão da mídia americana. Se a família brasileira fosse tão influente assim, e a justiça brasileira tão suscetível a isso, a sentença teria sido outra. Ponto.


26 de dezembro de 2009 | N° 16197
NILSON SOUZA


Trabalho e prazer

Quando fomos sentenciados a suar pelo pão nosso de cada dia, não estava previsto que muitos de nós nos apaixonaríamos por nossas profissões. Para quem ama o que faz, trabalhar nunca foi e nem será uma maldição.

Ao contrário, será sempre um desafio prazeroso e uma alegria renovada. É pelo trabalho que expressamos o nosso poder de construir e modificar o mundo, seja com a habilidade de nossas mãos ou com as luzes de nosso intelecto. Neste sentido, todos os ofícios são dignos e gratificantes. Nada é mais compensador do que a certeza de um trabalho bem feito.

Vale para o pedreiro, que transforma tijolos em moradias. Vale para a professora, que abre as portas do conhecimento para seus alunos. Vale para o médico, que salva vidas. E vale para o jornalista, que extrai do cotidiano sua matéria-prima para contar histórias.

Um dos maiores desses contadores, o colombiano Gabriel García Márquez, definiu o jornalismo como a melhor profissão do mundo. Descontando-se o exagero, que também faz parte do nosso ofício, o autor de Cem Anos de Solidão acerta na mosca quando diz que “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”.

Amo minha profissão, acima de tudo, porque ela me permite viver cada dia como se fosse único. Só para exemplificar: nas asas do meu ofício, já tive a oportunidade de desfilar na boleia de um calhambeque de cem anos pelas ruas de Paris e de percorrer os haras de Bagé numa reportagem sobre criação de cavalos;

tive a chance de cobrir duas Copas do Mundo e de acompanhar, sob o sol incandescente do litoral gaúcho, campeonatos de futebol de praia; pude testemunhar o trabalho anônimo de professores de escola pública numa comunidade carente e de compartilhar solenidades em palácios presidenciais.

Vi muito, mas, logicamente, não vi tudo. Nesta semana que está terminando, o jornalismo me ofereceu uma nova experiência – a de desempenhar durante alguns minutos o papel de Papai Noel de shopping.

“É um mico”, me advertiram alguns colegas mais céticos. Foi uma aventura muito especial. Valeu pelo que aprendi com os verdadeiros Papais Noéis (sim, eles são de verdade, amam o que fazem e devem achar que é a melhor profissão do mundo), valeu pelo que aprendi com as crianças e valeu, principalmente, pela gratificante certeza de que fiz o meu trabalho com amor e entusiasmo.

Dá para chamar de trabalho?

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009


CARLOS HEITOR CONY

A lucidez do Natal

No início da tarde, ele atravessa a avenida ensolarada e nota que ficou sozinho na cidade

É VÉSPERA de Natal e o homem de repente descobre que está sozinho e lúcido. Até o meio-dia ele teve os colegas, recebeu e distribuiu abraços, viu amigos e inimigos levarem embrulhos e alegrias.

Ouviu queixas sobre o preço do presunto e a qualidade dos figos e soube que os vinhos nacionais andavam bons, muita gente deixou de comprar o Grandjó e o Médoc para prestigiar a vinicultura pátria.

Mas ele nem tinha do que se queixar. Tanto lhe fazia o preço do peru ou da salsicha em lata, do Chateauneuf-du-Pape ou do rascante de Nova Iguaçu. Seu Natal seria frugal e denso, como uma passa. Talvez fosse assistir a saída da Missa do Galo e depois, se fizesse calor, tomava mesmo uma Coca-Cola.

E no início da tarde, ele atravessa a avenida ensolarada e nota que ficou sozinho na imensa cidade. Duas horas antes e a multidão ali estava, histérica e feliz, sobraçando embrulhos iguais e desiguais. Foram todos para casa agora, gozar o Natal do mundo, e deixaram ao homem sozinho a tarefa de guardar a cidade e defendê-la -como um cruzado- da solidão e do vazio.

Um ou outro ônibus retardatário passa ainda, lá dentro há embrulhos e homens, mais embrulhos que homens, ou tantos homens quanto embrulhos, e ele é uma coisa só na tarde de Natal que está chegando, e vão todos para outros bairros e casas, homens se misturarão com outros homens, embrulhos serão misturados a outros embrulhos e os sinos tocarão em breve, abençoando a festa dos homens de boa vontade.

As casas comerciais estão cerrando as portas, o ferro enrugado cobre as vitrines e os cartazes com Papais Noéis gorduchos que riem, as bochechas em tecnicolor, a barba mais que branca dos velhinhos bem-intencionados. Dos bares que se fecham, saem os últimos fregueses, trocando pernas e saudações.

São quatro horas e ele não encontra quatro amigos na tarde para repartir o pão de sua solidão e o vinho de sua vontade de amar alguém.

Vai atravessar a rua pela faixa, mas para. A avenida está deserta e ele se dá ao luxo de ir pelo meio da rua, pisando confiante e impune o chão da cidade que lhe sobrou, cidade que é seu presépio, seu Natal.

Durante um mês, milhares de pessoas mais ou menos iguais a ele prepararam uma festa nas ruas e na hora do Natal foram para suas casas, gozar avaramente a felicidade lambuzada de rabanadas e doces. Ele não tem mais casa, não tem mais família, gastará sozinho e lúcido o Natal que os outros lhe abandonaram, não sabe se por castigo ou prêmio.

Vê a igreja perto de seu trabalho. Passa por ali todos os dias e nunca reparara na igreja. Mas há muito perdera a vontade de entrar nas igrejas e rezar. Perdera a fé também, quando começara a perder as coisas da vida: os pais, os irmãos, o resto.

De qualquer forma, a igreja existia ali, independente dele e de seu Natal. Tendo ou não tendo fé, pouco importava, importava é que a igreja fazia seu Natal de pedra e ele já não fazia Natal nenhum.

Mais tarde, o povo entraria para as missas da meia-noite, Mas a nave agora estará escura e o altar sem flores desnudo como sepultura. Mais tarde haverá povo e órgão tocando o "Noite Feliz", e ele poderia se misturar aos outros e gozar o Natal de luzes e dos cânticos.

Não queria, porém, gozar o Natal das igrejas. Ele velaria, sem lágrimas, até acreditar que a noite seria igual a todas as noites. Da torre batem o sino. Ele se esquecera pela cidade e aí estava, seis horas já. Breve viria a noite, noite de Natal imensa e boa agasalhando os homens de boa ou má vontade. Só ele não tinha vontade alguma e não merecia Natal.

De outras igrejas, outros sinos confundem seus ecos na tarde e nos seus olhos. Desde o meio-dia gastara seu Natal à toa. E agora, para ele, os sinos fazem seu festival anunciando que a noite chegou. É Natal no mundo. Em outros anos, era a noite das noites, as filhas botando na vitrolinha laqueada o "Adeste Fideles" de que ele tanto gostava.

E ainda está ouvindo um último sino quando entra no bar e procura esquecer o Natal, esquecer os outros e, sobretudo, esquecer-se de si mesmo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009



22 de dezembro de 2009 | N° 16194
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Entre ilhas dispersas

Quando comprei meu primeiro celular – mais por sua aparência do que por suas virtudes ocultas –,- o vendedor recitou uma longa lista de suas proezas. Mal o escutei. A certa altura o interrompi e lhe disse que só tinha duas perguntas: o aparelho falava? Recebia ligações?

Pois isso é tudo que peço de um telefone celular. Leio agora na Veja que há 100 mil usos para o inteligente engenho. Um dos modelos, por exemplo, traça rotas em cidades e estradas; faz todas as operações de uma calculadora financeira; contém 50 mil verbetes e 30 mil expressões de um dicionário médio; produz cópias como qualquer scanner;

apita quando detecta um radar nas ruas e estradas do país; cria cardápios saudáveis; permite abrir e editar arquivos; providencia uma agenda eletrônica; apresenta um game com cenário espacial; reúne as principais leis brasileiras.

São qualidades prodigiosas. Mas eu me pergunto se com tudo isso o celular não terá esquecido sua principal finalidade.

É bom conhecer os caminhos onde estamos e para onde vamos. É excelente fazer contas sem um milhão de cálculos aleatórios. É útil manter-se à distância do Houaiss e do Aurelião. É agradável rever pessoas e imagens que prezamos. É sensato verificar se estamos dirigindo devagar ou depressa demais. É ótimo consumir alimentos saudáveis. É uma vantagem dominar os segredos dos arquivos. Nunca desdenharia a importância de uma agenda eletrônica. Pouca coisa desperta mais o sonho do que um game especial. E nenhuma lei é descartável.

Tudo isso é muito bom. Mas eu torno a me indagar se, a todas essas, o telefone portátil não terá se desviado de seu objetivo maior, o da simples operação de estabelecer pontes entre ilhas dispersas do arquipélago humano.

Pois não é diversa a sua missão. O que quero de meu trivial aparelho é que ele me ponha em contato com outras criaturas, que ele transmita um simples, elementar recado.

O que desejo de suas múltiplas dezenas de aplicativos é me comunicar com pessoas, é estabelecer vínculos com meus semelhantes, é passar um pedido, uma súplica, uma mensagem. Para traçar rotas, tenho mapas; para produzir cardápios, conheço restaurantes; para percorrer códigos, recorro à minha biblioteca.

Mas jamais encontrarei melhor invenção do que o celular para transmitir uma singela declaração de amor.

Dia de folga de uma pessoinha linda. Uma ótima terça-feira para todos nós.

sábado, 19 de dezembro de 2009



20 de dezembro de 2009 | N° 16192
MARTHA MEDEIROS


Natal é amor

Natal é também o maior aliado dos casais indecisos

Uma das coisas mais aflitivas para um colunista é escrever sobre o Natal. Por quê? Porque não há tanto assim a dizer sobre Natal, não é um assunto que estimule a imaginação, que permita desenvolver um novo enfoque a respeito, não é um acontecimento que surpreenda. Nada é menos surpreendente do que o Natal.

É a repetição instituída, a paz louvada anualmente, a certeza de que o mundo pode explodir lá fora, mas o Natal estará a salvo, assim como o jingle bell, a árvore enfeitada com bolinhas, o peru, os presentes, a missa do galo e o ho-ho-ho do Papai Noel. Pode um colunista corromper essa felicidade? Pode, mas não deveria.

Essa introdução não é para recomendar que tirem as crianças da sala. Não vou corromper nada, mas é bem verdade que pretendo falar de amor de um jeito enviesado. Vou comentar sobre o papel do Natal nas separações, ainda mais agora que o divórcio ficou facilitado por lei.

Lembro que uma amiga minha e o marido decidiram se separar numa linda noite estrelada de novembro, e a primeira providência foi manter tudo como estava até que passasse o Natal. Bem pensado. Não havia razão para entristecer as crianças na véspera de uma data tão significativa. Natal é amor e família reunida, por que estragar o encanto? Tiveram sua noite feliz. Felicíssima.

Em agosto passado uma outra amiga me confidenciou que estava se divorciando. Lamentei por eles, ofereci ombro, aquela coisa toda, e aí ela me contou que iriam esperar passar o Natal para contar ao filho e se separarem de fato. Espera aí: seriam quatro meses até o Natal. E o filho tem 19 anos.

Fiquei pensando que essa história de “esperar o Natal” é o último prazo para mudar de ideia. Separar-se é uma atitude tão radical, tão difícil e tão protelada, que o Natal virou uma saída: o casal põe os pingos nos is, diz que nunca mais, que terminou, porém, sem certeza absoluta do que está fazendo, estabelece que a separação, por enquanto, vai ficar secreta, até que a passagem do Natal libere cada um para seguir nova vida.

Até lá, serão diplomáticos e honrarão as aparências, ou seja: para que os filhos não reparem, continuarão a dormir no mesmo quarto e a ser gentis um com o outro. E descobrem-se gentis como nunca foram.

Não duvide: em abril algum casal sentará na sala para ter aquela conversa difícil e definitiva, e depois de pesarem prós e contras, fazerem acusações mútuas e concluirem que não dá mais, irão dormir chorando e, no dia seguinte, avisarão parentes e amigos que o casamento acabou.

Aí é só dar um tempo para procurar outro apartamento e se acostumar com a ideia. Enquanto isso, a folhinha do calendário passará por maio, junho, julho e, chegando em agosto, ora, nada mais sensato que esperar as festas de fim de ano.

O Natal é o maior aliado dos casais indecisos.

Com carinho um lindo domingo para vc

Giuliano Guandalini

REFORÇO NO CAIXA DO PAC

Investir os recursos do FGTS em obras de infraestrutura deverá ser uma boa opção para ampliar a rentabilidade da poupança dos trabalhadores - e levantar até 5 bilhões de reais, que financiarão projetos do governo

Em 2000, o governo permitiu que os trabalhadores usassem parte dos seus saldos na conta do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para aplicar em ações da Petrobras.

Como investir na bolsa de valores é uma decisão que, apesar de potencialmente lucrativa, envolve uma boa dose de riscos, nem todas as pessoas optaram por fazer a aplicação - e até hoje lamentam a oportunidade perdida.

Quem investiu 10 000 reais na Petrobras multiplicou o valor por dez e possui hoje aproximadamente 100 000 reais. Já o poupador que deixou essa mesma quantia parada no FGTS dispõe em sua conta de pouco mais de 16 000 reais, ou 84 000 reais menos que aquele que se arriscou a apostar no mercado acionário.

Em 2002, houve também a possibilidade de usar o FGTS para investir na Vale, e a rentabilidade foi ainda mais elevada.

Agora o governo vai oferecer uma nova alternativa para que os trabalhadores consigam auferir um rendimento mais expressivo para o seu fundo de garantia. Pelo novo esquema, que ainda precisa ser regulamentado, será possível aplicar até 30% do FGTS em um fundo de investimentos que utilizará os recursos em obras de infraestrutura, como estradas e usinas de energia. A iniciativa era estudada havia anos, mas apenas agora sairá da gaveta.

Assim, o governo fará um agrado aos sindicatos e também aos 32 milhões de trabalhadores (e eleitores) que possuem emprego com carteira assinada. De quebra, poderá levantar 5 bilhões de reais para financiar as obras do Programa de Aceleração de Crescimento, o PAC, cartão de visita da presidenciável petista, Dilma Rousseff.

O FGTS proporciona, tradicionalmente, uma rentabilidade irrisória, inferior à da poupança e insuficiente até para impedir a corrosão inflacionária (veja o quadro abaixo). Por isso a novidade, apresentada na semana passada, representará uma boa alternativa para os trabalhadores.

"Será sem dúvida uma opção interessante. Mas é preciso ter consciência de que não existirá uma rentabilidade mínima assegurada e, ainda que improvável, há o risco de perder o capital investido", afirma o advogado e economista Flavio Porta, do escritório Libertuci, de São Paulo.

Que os interessados também não se iludam: é extremamente improvável que essa aplicação repita as valorizações registradas pela Petrobras e pela Vale. A expectativa é que o fundo de infraestrutura, o FI-FGTS, administrado pela Caixa, tenha uma rentabilidade ao redor de 10% ao ano. Para efeito de comparação, o FGTS renderá menos que 4% em 2009, o menor valor em seus 42 anos de história.

As regras para saque e utilização dos recursos, uma vez aplicados no novo fundo, seguirão as existentes para o FGTS. Segundo Bolivar Tarragó Moura Neto, vice-presidente de ativos de terceiros da Caixa Econômica Federal, a carteira de investimentos do FI-FGTS é bastante diversificada e flexível.

É composta de títulos públicos, papéis de dívidas de empresas e também ações. "A única exigência é que os recursos sejam usados para financiar novos projetos do setor de infraestrutura", diz o executivo. Inicialmente, serão oferecidas cotas no valor total de até 2 bilhões de reais.

Se a demanda for elevada, como se prevê, haverá novas ofertas, que deverão totalizar 5 bilhões de reais captados em 2010. Em nenhum lugar está escrito que os recursos desse fundo precisam ser necessariamente aplicados em obras do PAC, mas como todos os grandes projetos de infraestrutura fazem parte do PAC...

Em outra decisão também anunciada na semana passada, o governo autorizou que os trabalhadores utilizem o FGTS para abater dívidas com consórcios imobiliários, de maneira similar ao que já vale para o financiamento da casa própria.

As novas medidas se somam ao cada vez mais recheado pacote de bondades natalinas lançadas pela equipe do presidente Lula nas últimas semanas, que já inclui generosas (e temporárias) reduções de impostos para a compra de veículos, móveis e eletrodomésticos. Para as famílias brasileiras em ascensão social, ficou mais fácil adquirir sonhos de consumo, como uma nova casa ou um carro.

É o governo em ação na sua tentativa de edificar a candidatura Dilma, ainda mal nas pesquisas eleitorais. A conta será inevitavelmente bancada pelos contribuintes brasileiros e será cobrada pelo próximo governo.

Claudio de Moura Castro

As escolas de dona Vicky

"Praticamente sem aumentar os custos, dona Vicky conseguiu que estudantes do interior obtivessem desempenho melhor em testes do que os citadinos"
Ilustração Atômica Studio

Vicky Colbert passou pelo Brasil e não conseguiu me encontrar. Pois não é que na semana seguinte descobri que estávamos no mesmo hotel em Doha (Catar)? Eu era parte da plateia de um monumental evento sobre ensino e inovação.

Ela estava lá para receber um prêmio. Aliás, há dois anos nos encontramos na Clinton Global Initiative, em que ela ia receber outro prêmio. São muitos! Para o Banco Mundial, suas escolas estão entre as três maiores inovações no ensino, pois países em desenvolvimento podem reproduzi-las em grande escala.

Dona Vicky, uma socióloga colombiana, é a mentora das Escuelas Nuevas em seu país. O interior da Colômbia é, pelo menos, tão atrasado e pobre como o nosso. Portanto, não espanta que a qualidade da educação fosse pior do que a urbana.

De fato, é assim em todos os países. Mas na Colômbia mudou. Após a implantação da Escuela Nueva na zona rural, caíram a repetência e a reprovação. Aumentaram também os escores nos testes. Os resultados passaram a ser melhores que os das urbanas (e, junto com Cuba, os mais elevados na América Latina).

Note-se que em grande parte as escolas rurais são unidocentes, isto é, são escolas muito pequenas, nas quais um professor ensina simultaneamente em várias séries iniciais. Somam-se o atraso e o isolamento rural ao desafio extra de lidar com todas as séries em uma mesma sala e com um único professor.

Praticamente sem aumentar os custos, dona Vicky conseguiu que seus caipiras obtivessem mais pontuação nos testes do que os citadinos. A inovação se alastrou.

Hoje está em 35 países e matricula 5 milhões de alunos. No Norte e Nordeste do Brasil, há 4 000 escolas que adotaram o método, mas têm pouca divulgação e sabemos pouco dos resultados. O que fez dona Vicky para obter tão retumbante sucesso? Onde está a diferença, diante de tantas ideias redentoras que circulam por aí?

Na verdade, o principal segredo é pôr em prática uma solução integrada. São várias medidas e inovações que se juntam para fazer a diferença. De fato, não se reforma a educação com uma única providência miraculosa. É o conjunto que origina massa crítica. O mérito de dona Vicky e de sua equipe foi refinar essas providências e montar a máquina administrativa que fez tudo funcionar.

Os materiais escolares foram especialmente desenhados para o programa e se baseiam nos princípios da educação ativa. Os professores são cuidadosamente preparados para usá-los com competência, além de receberem acompanhamento permanente do projeto. Há encontros frequentes, a fim de discutir práticas de ensino.

A ampla participação da comunidade requer estratégias apropriadas, para que ela se aproxime da escola, apoie suas propostas e se incorpore aos projetos práticos dos alunos. Sem fórmulas mágicas, é um feijão com arroz bem temperado.

Porém, há diferenças. Uma delas está na ênfase na cooperação entre os estudantes e, também, na integração com a comunidade. Outra diferença são as salas de aula e as atividades ao ar livre, em que se combinam os assuntos escolares com aplicações práticas. A ênfase na leitura e na compreensão é um foco central do aprendizado.

Talvez mais surpreendente, os livros e guias são autoinstrucionais, ou seja, cada aluno estuda por conta própria, caminha em seu ritmo e toma decisões.

Nas atividades de leitura, os estudantes avaliam o desempenho uns dos outros. Em grande medida, tais soluções reduzem as clássicas aulas expositivas, liberando o professor para atender os alunos mais necessitados de apoio individualizado.

Agora que as escolas rurais têm uma fórmula consolidada, dona Vicky está adaptando o modelo para as urbanas. Ainda não foi possível avaliar os resultados, mas, segundo ela, parecem promissores. Uma segunda iniciativa é estimular a participação das empresas. Ao longo do tempo, observou-se que as mudanças políticas trazem instabilidade e perdas às escolas (não é só na Escuela Nueva!). O novo prefeito tem ideias diferentes.

Daí a procura de parceiros nas empresas privadas que queiram ajudar as escolas públicas, pois podem amortecer a volatilidade trazida pela politicagem.

Como as empresas colombianas e brasileiras têm grande protagonismo na educação pública, dona Vicky se aproxima do nosso país para prosseguir nos seus experimentos. Segundo disse, busca sócios caboclos. Alguém se habilita?

Claudio de Moura Castro é economista


Em nome de Deus

Em seu novo livro, a escritora inglesa Karen Armstrong rebate os papas do novo ateísmo, que condenaram à morte as religiões
José Ruy Gandra - Jamal Nasrallah


PERSISTÊNCIA



Peregrino muçulmano ora no Deserto do Sinai. Sua fé é um exercício de disciplina que abre portas para o território do sagrado

Ao ver Buda meditando, sentado sob uma árvore, um brâmane ficou fascinado com sua serenidade e autodisciplina. “Você é Deus?”, perguntou-lhe o monge, ao ver sua concentração transformar-se numa extraordinária paz interior. “Não”, foi a resposta. “Apenas descobri um novo potencial na natureza humana, que nos torna capazes de viver em paz e harmonia neste mundo de tantos conflitos e sofrimentos.”

O segredo, disse Buda, era não tanto crer, mas, sobretudo, praticar a meditação com afinco. “Desse modo, cada um atinge o máximo de sua capacidade, ativa partes adormecidas de sua mente, neutraliza o próprio ego e se torna um ser humano plenamente iluminado.” Por fim, ao despedir-se do sacerdote curioso, Buda disse: “Lembre-se de mim como alguém que despertou”.

É com esse episódio singelo que a escritora de origem irlandesa Karen Armstrong conclui seu mais novo livro, The case for God (em tradução livre, Uma defesa para Deus). É um fecho fiel tanto à vida de Karen quanto à essência de seu livro.

Ex-freira católica durante os trepidantes anos 1960, portadora de epilepsia, Karen perdeu a fé – para resgatá-la, décadas adiante, sob uma nova ótica, semelhante à de Buda. Para ela, o encontro de Deus deriva menos de uma crença e mais do esforço pessoal. Autora de mais de 20 títulos sobre religião, entre eles aclamadas biografias de Maomé e de Buda e uma história da própria Bíblia, Karen nunca mais retornou formalmente à Igreja Católica ou a qualquer outra. “Sou uma monoteísta free-lance”, diz ela.

Com lançamento no Brasil previsto para o final de 2010, The case for God faz parte de uma nova leva de livros que defendem a religião de ataques recentes. Fazem parte dessa leva God is back (Deus voltou), escrito por John Micklethwait e Adrian Wooldridge, jornalistas da revista The Economist, e Reason, faith and revolution: reflections on God debate (Razão, fé e revolução: reflexões sobre o debate a respeito de Deus) , do crítico literário inglês Terry Eagleton. Todos esses trabalhos partem de uma mesma constatação: mesmo sob o fogo cerrado do racionalismo ateu, a devoção a Deus e às religiões continua a se fortalecer no mundo todo.

Essa nova onda tenta revidar os ataques do grupo de pensadores conhecidos como os “novos ateus”. São autores como o biólogo inglês Richard Dawkins, cuja defesa ferrenha da teoria da evolução das espécies valeu-lhe – ou custou-lhe, depende... – o apelido de Rotweiller de Darwin; ou o jornalista anglo-americano (e colunista de ÉPOCA) Christopher Hitchens, que considera a ideia de Deus uma crença maligna e totalitária, com seus dias contados pela ciência.

A dupla, acrescida do neurocientista Sam Harris e do filósofo Daniel Dennett, ambos americanos, ficou conhecida, nos meios intelectuais, como os Cavaleiros do Apocalipse, pela virulência de seus ataques à religião. “Elas permitem que visões, que de outra forma seriam consideradas sinais de loucura, tornem-se aceitas e, em muitos casos, veneradas como sagradas”, diz Harris.

Em The case for God, Karen faz o melhor contra-ataque às teses do grupo. “Os novos ateus são teologicamente iletrados”, escreve ela. “Como os fundamentalistas religiosos, eles infantilmente concebem Deus como um ser poderoso que os homens não conseguem enxergar.” Para Karen, o engano comum a ambos é analisar os textos sagrados em sua literalidade. Uns para negar cientificamente a ideia de Deus. Outros para distorcê-la com finalidades políticas.



DEUS ESTÁ MORTO

Definitivamente, não. Embora muita gente ainda questione a relevância das religiões em sua vida, um novo debate se impôs globalmente: Deus é benéfico para o mundo?

Para os novos ateus, como Dawkins, Hitchens, Harris e Dennett, ele não passa de um delírio – e, caso de fato existisse, deveria ser executado em praça pública.

Para esse grupo, feroz e irredutível em seus argumentos, a religião é um fenômeno retrógrado e perverso, que conduz à ignorância, a disputas amargas e a guerras. Karen Armstrong se opõe a essa visão. Num extrato de seu livro, publicado na revista Foreign Policy, ela parte para o ataque.

“Os novos ateus não estão errados apenas quanto à religião e à política. Eles se enganam quanto à própria natureza humana”, diz. “Enquanto os cães, até onde se sabe, não especulam sobre sua condição canina nem se preocupam com a própria efemeridade, nós, seres humanos, mergulhamos facilmente no desespero caso não encontremos um sentido para nossa vida.” Resumindo: Deus vive.

O que não quer dizer que, figuradamente, seu óbito não possa ser atestado. “Mesmo para os que creem, Deus morre”, diz o rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil (CJB). “Mas não sua essência.

O que falece é nossa percepção sempre inacabada de sua natureza.” Para o xeque Jihad Hassan Hammadeh, um dos líderes da comunidade islâmica brasileira, o que morre são as ideias teológicas formuladas pelos homens. “Mas não ‘Ele’.

A crença em Deus é um acessório original de fábrica do ser humano, e não um item opcional. Todos nascem crendo”, diz Jihad. Para as grandes tradições religiosas e a enorme maioria da humanidade, Deus não parece estar indo a parte alguma – uma razão a mais para que encontremos um modo equilibrado e profundo de conviver com sua presença.

DEUS OPRIME AS MULHERES

Infelizmente, sim. “É verdade que nenhuma das principais religiões do mundo tem sido boa para elas”, afirma Karen. “Mesmo que, em seus primórdios, algumas tenham se mostrado generosas com as mulheres, como o cristianismo ou o islamismo, em poucas gerações os homens as transformaram num patriarcado.”

De acordo com o rabino Bonder, “todo Deus manipulado pelas ideias humanas é nocivo para as minorias, em especial as mulheres; os homens ostentam uma espécie de inveja uterina”.

Uma das maiores conquistas da modernidade ocidental foi a emancipação feminina. Mas os fundamentalistas, em sua luta contra o espírito contemporâneo, tendem a enfatizar a igualdade de gêneros como uma ameaça a repelir. Parece ter surtido efeito.

Onde quer que governantes modernizadores tenham tentado banir o uso do véu em países islâmicos, as próprias mulheres passaram a adotá-lo em maior número, com um fervor redobrado.

Em 1935, os soldados do xá Mohammad Reza Pahlavi dispararam contra centenas de manifestantes desarmados que protestavam contra o uso obrigatório de trajes ocidentais.

Desatinos desse tipo acabaram transformando o véu, cujo uso até então não era disseminado, num símbolo da integridade islâmica. Muitos muçulmanos hoje clamam que, enquanto a moda ocidental é sinônimo de riqueza e privilégio, as vestimentas islâmicas enfatizam o igualitarismo contido nos capítulos do Alcorão, conhecidos como suratas.

Bem se quiserem a íntegra desse artigo é só enviar email para o endereço que consta ai na página


19 de dezembro de 2009 | N° 16191
NILSON SOUZA


Quase Nada

Um homem passou nove meses e cinco dias preso na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul por falhas burocráticas do sistema prisional. Embora tenha cometido um delito no passado, ele estava com a pena prescrita, mas ninguém atualizou o seu registro de foragido.

Como tem problemas mentais, acabou ficando em cana até que a juíza da cidade se desse conta da irregularidade. Não chega a ser um caso raro.

De vez em quando, aparece um inocente preso, alguém que foi para a cadeia no lugar do irmão ou que tem o mesmo nome de algum delinquente. Mesmo assim, muitas pessoas defendem a pena de morte, sem considerar que, ao autorizar a execução de um só inocente, igualam-se aos piores criminosos. Mas o tema desta crônica é outro, o apelido do homem que ficou preso por engano: Quase Nada.

Nada mais emblemático nestes tempos em que tantos enjeitados perambulam pelas ruas das grandes cidades como zumbis. O que é um ser humano que dorme sob marquises, revira cestos de lixo em busca de restos de alimentos e vive para o álcool e para as drogas?

Um quase nada. O apelido não surgiu por acaso. Assim como o infeliz prisioneiro caxiense, incontáveis criaturas com sinais de insanidade habitam esquinas e praças deste país, sem que se vislumbre uma saída digna para o brete em que a vida os arremessou.

É grande e dispersa a tribo dos Quase Nada. Eles já não habitam só as áreas centrais, atraídos pelo movimento e pela perspectiva de moedas e sobras. Estão nos bairros, nas vilas periféricas, nos grotões. Antes eram raridade, viravam atração: o louquinho da zona, o ermitão da cidadezinha, o alienado da rua.

Agora são dezenas, talvez milhares. Não sei se tem a ver com a legislação que abriu manicômios ou com a disseminação de drogas destruidoras de cérebros. Mas não tenho dúvida de que vem aumentando a tripulação desta verdadeira nau de insensatos à deriva.

Não quero ser catastrófico. Sempre há quem se preocupe com os marginalizados, pessoas que providenciam alimentos e agasalhos, organizações que tentam encaminhá-los para abrigos e até mesmo órgãos públicos bem-intencionados.

Mas não temos sido capazes de conter a expansão do problema. É como esta questão da degradação do planeta. Todos vemos o que está acontecendo, mas não conseguimos evitar. Aliás, outro dia alguém disse que não são as fábricas nem os automóveis que estão condenando a humanidade: é o crescimento populacional.

Somos muitos. E somos, também, quase nada.

Um gostoso sábado e um lindo fim de semana para vc


19 de dezembro de 2009 | N° 16191
NILSON SOUZA


Quase Nada

Um homem passou nove meses e cinco dias preso na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul por falhas burocráticas do sistema prisional. Embora tenha cometido um delito no passado, ele estava com a pena prescrita, mas ninguém atualizou o seu registro de foragido.

Como tem problemas mentais, acabou ficando em cana até que a juíza da cidade se desse conta da irregularidade. Não chega a ser um caso raro.

De vez em quando, aparece um inocente preso, alguém que foi para a cadeia no lugar do irmão ou que tem o mesmo nome de algum delinquente. Mesmo assim, muitas pessoas defendem a pena de morte, sem considerar que, ao autorizar a execução de um só inocente, igualam-se aos piores criminosos. Mas o tema desta crônica é outro, o apelido do homem que ficou preso por engano: Quase Nada.

Nada mais emblemático nestes tempos em que tantos enjeitados perambulam pelas ruas das grandes cidades como zumbis. O que é um ser humano que dorme sob marquises, revira cestos de lixo em busca de restos de alimentos e vive para o álcool e para as drogas?

Um quase nada. O apelido não surgiu por acaso. Assim como o infeliz prisioneiro caxiense, incontáveis criaturas com sinais de insanidade habitam esquinas e praças deste país, sem que se vislumbre uma saída digna para o brete em que a vida os arremessou.

É grande e dispersa a tribo dos Quase Nada. Eles já não habitam só as áreas centrais, atraídos pelo movimento e pela perspectiva de moedas e sobras. Estão nos bairros, nas vilas periféricas, nos grotões. Antes eram raridade, viravam atração: o louquinho da zona, o ermitão da cidadezinha, o alienado da rua.

Agora são dezenas, talvez milhares. Não sei se tem a ver com a legislação que abriu manicômios ou com a disseminação de drogas destruidoras de cérebros. Mas não tenho dúvida de que vem aumentando a tripulação desta verdadeira nau de insensatos à deriva.

Não quero ser catastrófico. Sempre há quem se preocupe com os marginalizados, pessoas que providenciam alimentos e agasalhos, organizações que tentam encaminhá-los para abrigos e até mesmo órgãos públicos bem-intencionados.

Mas não temos sido capazes de conter a expansão do problema. É como esta questão da degradação do planeta. Todos vemos o que está acontecendo, mas não conseguimos evitar. Aliás, outro dia alguém disse que não são as fábricas nem os automóveis que estão condenando a humanidade: é o crescimento populacional.

Somos muitos. E somos, também, quase nada.

Um gostoso sábado e um lindo fim de semana para vc

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009



16 de dezembro de 2009 | N° 16188
MARTHA MEDEIROS


À Jennifer Moyer

Abri um livro e, antes de começar a lê-lo, me fixei na dedicatória da primeira página. Dizia: À memória de Jennifer Moyer, que deixou tudo melhor do que havia encontrado. É o que todos nós gostaríamos de ver escrito no nosso obituário, imagino.

Desconheço quem seja Jennifer Moyer, mas simpatizei com essa moça (garanto que ela nunca deixou de ser moça, mesmo que tenha morrido aos cem). Só as pessoas de alma jovem e sadia é que entendem que a gente não vem ao mundo para sugá-lo, para retirar dele o suco possível e deixar para trás o nosso lixo. Encontramos o mundo de um jeito, ao nascer. É uma questão de honra que ele esteja melhor ao partirmos.

Mas não é tarefa fácil. Eu desanimo quando vejo a quantidade de pessoas grosseiras que se reproduzem feito gremlins. Nem mesmo nosso chefe de Estado anda conseguindo manter a compostura.

Não é porque todo mundo fala palavrão – e todo mundo fala mesmo – que Lula precisa usar o mesmo recurso para se expressar em público. Aliás, vale para todos os que ocupam alguma hierarquia, sejam diretores de empresa, professores, pais. “Menino, vá estudar, ou quer ficar na merda pra sempre?”

Esse exemplo de elegância no tratamento é comum nos lares brasileiros, e com aval presidencial, tende a se perpetuar.

Se a gente quer que nossos netos herdem um mundo melhor, é preciso arregaçar as mangas agora e aqui, Copenhague fica muito longe. Então vamos lá: ninguém morre se caminhar três quadras em vez de usar o carro ou se procurar uma lixeira em vez de jogar a lata de refrigerante no meio da rua.

E não é só consciência ambiental que precisamos exercitar, mas também uma consciência básica sobre a arte de conviver. Não é possível que as pessoas sigam sendo tão maldosas e ariscas, sempre alfinetando os outros, sempre interpretando erroneamente os bons atos e cultivando um complexo de perseguição que mina as relações.

Ninguém mais acredita em ninguém, ninguém confia, todos vivem com a faca entre os dentes, temendo passar por otários.

E é o que acabam sendo. Se tivessem uma visão um pouco mais pacifista, iriam facilitar muito as relações humanas. Esperar o melhor dos outros é uma atitude contagiante, mas, infelizmente, esperar o pior também é. E fica essa guerra de nervos no ar.

Tenho uma visão bem individualista sobre o que torna o mundo mais habitável: cada um fazendo a sua parte já ajuda um bocado.

Não estou falando apenas de contribuir com dinheiro para entidades carentes, adotar bichos de rua, doar sangue, mas também em cuidar do nosso humor, praticar a cortesia, aplaudir, elogiar – não há submissão nenhuma em ser positivo. Mas somos acomodados e preferimos esperar por soluções estabelecidas de cima para baixo, como se a nossa colaboração fosse inexpressiva.

Dedico esta crônica à minha musa inspiradora de hoje, Jennifer Moyer, que sei lá o que fez para ser homenageada com uma dedicatória num livro, mas pouca coisa não foi:

ou ela soube transmitir aos filhos a importância de se viver sem mágoas, ou ela soube cultivar seus amigos, ou ela sempre foi justa, ou não se deixou levar por vaidades bestas, ou simplesmente sorriu mais do que praguejou. Ou tudo isso junto, o que já é um belo lote de atos revolucionários.

Uma linda quarta-feira para vc. Aproveite o dia

terça-feira, 15 de dezembro de 2009



15 de dezembro de 2009 | N° 16186
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Ler e escrever

Leio com toda a atenção as recomendações publicadas em ZH para os candidatos à prova de redação do Enem. Sensatamente, a matéria lembra que os aspirantes a uma vaga na universidade devem escrever com letra legível, de tamanho regular.

Deve haver diferenciação entre maiúsculas e minúsculas, cada parágrafo deve ter ao menos duas frases, as novas regras de ortografia são optativas, as margem precisam estar alinhadas, pode haver rasura, desde que não comprometa a legibilidade. E o principal: o texto é desconsiderado se fugir ao tema ou à estrutura de uma dissertação, ou se o autor se identificar com a sua assinatura.

Perfeito: nada mais prudente que essas observações ajuizadas. Mas ao mesmo tempo me pergunto: por que há necessidade delas? A resposta não é bonita: porque simplesmente as pessoas desaprenderam de preencher uma folha de papel com ideias coerentes.

No meu tempo de escola, compor uma redação com um começo, um meio e um fim, ligados por um vínculo de pensamento lógico, era coisa que se aprendia no primário, hoje rebatizado de fundamental. No ginásio e no colégio, era um hábito corriqueiro, que não reclamava especial engenho e arte.

A isso se somava um hábito trivial: o de ler. Comprar ou ganhar livros, tirar volumes emprestados da biblioteca eram operações quase banais. Não se lia por causa de provas ou de exames, mas singelamente porque era um costume.

E então sobreveio um desastre. Quando eu já era adulto e tinha dado adeus aos bancos escolares, uma reforma do ensino mal formulada e pior digerida torpedeou a educação humanística. O latim, a filosofia, o francês foram banidos dos currículos. O inglês foi erigido língua única e os estudantes transformados em especialistas em minúcias.

Diminuiu-se um ano do ciclo médio e aboliu-se a divisão entre curso clássico e científico. O vestibular foi transformado numa roleta de cruzinhas e não restou o menor vestígio da redação. Uma geração inteira de alunos foi divorciada da necessidade de ler.

Hoje tudo isso está mudando novamente. É saudável que um jornal dedique uma página para explicar como se elabora uma redação. Nas cidades de tradição cultural, abrem-se grandes livrarias, como é o caso da Capital.

Mas para que esse cenário se mantenha, é indispensável conservar uma receita. Ela se resume a três palavras: ler e escrever.

Uma linda terça-feira. Para quem está de folga, aproveite a folga. Para quem não está aproveite o dia.

sábado, 12 de dezembro de 2009


MARTHA MEDEIROS

Quando os chatos somos nós

Você conhece um chato. Ou dois. Ou meia-dúzia. E até gosta deles, viraram figuras folclóricas na sua vida. Talvez seja um cunhado, um amigo de um amigo, um colega de trabalho. Os chatos são bem intencionados, não se pode negar. E é justamente essa boa intenção fora da medida que faz deles... chatos.

O chato nada mais é que um exagerado. Ele é prestativo demais, ele é piadista demais, ele leva muito tempo para contar algo que lhe aconteceu, ele fica hooooras no telefone, ele se leva a sério além do razoável, ele ocupa o tempo dos outros com histórias que não são interessantes. O chato é, basicamente, um cara (ou uma mulher) sem timing.

Estava pensando nisso quando escutei alguém citando uma das coisas mais chatas que existe. Tive que concordar: colocar um filho pequeno no telefone pra falar com a dinda, com a vovó, com o titio, é muito chato.

A gente ama aquela criança – talvez seja até o nosso filho! – mas ao telefone, esquece. Tentamos entabular um diálogo minimamente inteligível e nada rola. Ou ele não fala nada que se compreenda, ou não abre o bico, e só nos resta ficar idiotizados do outro lado da linha.

Todo mundo sabe que isso é chato. Mas todo mundo que já teve um filho comete essa mesma chatice com os outros. Por que? Porque pai e mãe de primeira viagem são chatos por natureza. Ninguém escapa. Se não for chato, será considerado um sem-coração. Todos irão apontar: olha lá, aquele ali esconde o filho. Põe ele no telefone!

Outra chatice é mostrar 3.487 fotos do bebê. Dá nos nervos quando o filho não é nosso. Todos os bebês são iguais, menos para seus pais. Seja bem sincero: dá pra aguentar ver foto de bebê pelo celular? Basta perguntar educadamente pra alguém: e seu filhinho, vai bem? Pronto. Num segundo o celular ou iPhone será sacado e apontado direto para seus olhos: veja você mesmo.

A gente sabe que é chato, mas toleramos com sorrisos parcialmente sinceros porque faremos a mesma coisa quando chegar a nossa vez – ou já fizemos um dia. Se você passou dessa fase, segure a onda e compreenda os que ainda não passaram. Nada de reclamar. Aqui se faz, aqui se paga.

Outras chatices? Quando alguém pergunta: lembra de mim? Se está perguntando, é porque a chance é remota. Mas já não fizemos isso diante de alguém que gostaríamos muuuuito que lembrasse?

E esticar as letras das palavras quando se está escrevendo? E quando a gente começa uma frase com “adivinha”. Adivinha pra onde eu vou nas próximas férias. Adivinha quem me convidou pra jantar. Adivinha com quem eu sonhei hoje.

Falando em sonho, tem coisa mais chata do que ouvir o sonho dos outros? Mas você já contou os seus. Váááárias vezes.

Agora adivinha qual o próximo exemplo que vou dar (rsrs). Precisamos mesmo colocar risadas entre parênteses para que os outros entendam nossas piadinhas cretinas?

Alguns menos, outros mais, chatos somos todos.

Um gostoso domingo para voce. Aproveite o dia


O pesadelo vai voltar?

A inoperância do governo e o terrorismo sindical ressuscitam o fantasma do apagão aéreo que paralisou os aeroportos do país

Sofia Krause - Alberto Takaoka/AE - PRESENTE DE NATAL


Cenas de crianças dormindo sobre bagagens podem se repetir

Há três anos, o apagão aéreo paralisou os aeroportos na véspera do fim do ano. Voos cancelados e atrasos de até trinta horas transformaram os aeroportos numa sucursal do inferno.

Agora, com a chegada das festas e das férias, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) está tomando uma série de providências para evitar que o vexame se repita. A principal delas foi estabelecer um teto de operações de pouso e decolagem por hora no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.

A redução de 10% na movimentação do maior aeroporto do país numa época em que a demanda cresce até 30% é uma tentativa desesperada do governo de evitar um novo apagão aéreo.

Mas a medida talvez não seja suficiente. Funcionários das companhias aéreas, incluindo os pilotos e comissários, planejam entrar em greve nos dias 23 e 24 de dezembro caso não recebam aumento salarial. Se a greve for mesmo deflagrada, como ameaçam os aeronautas, o caos poderá voltar a se instaurar nos aeroportos brasileiros.

Um apagão aéreo, assim como uma tragédia no ar, nunca ocorre por causa de um fator isolado. No Brasil, a falta de investimentos vem transformando a infraestrutura precária dos aeroportos em parceira fixa do acaso. Há atualmente cinco obras em aeroportos previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Elas totalizam 2,5 bilhões de reais, mas apenas 20% foram de fato investidos até agora.

O Aeroporto de Guarulhos, por exemplo, deveria receber investimentos de 1,4 bilhão até o fim do ano que vem. Mas, no ritmo atual, a reforma só estará concluída em 2023. "Há uma total falta de compromisso com a infraestrutura aeroportuária. Numa situação-limite, como a que vivemos, qualquer problema menor pode desencadear um efeito cascata", diz o engenheiro Érico Santana, especialista em planejamento e operação de aeroportos.

Situação-limite, no caso, não é força de expressão. Uma pesquisa recente do Sindicato Nacional das Empresas Aéreas mostrou que dez dos quinze aeroportos que receberão voos para a Copa do Mundo de 2014 já enfrentam dificuldades para estacionar aeronaves.

Prova de que muito pouco foi feito é que praticamente todos os problemas identificados pela CPI do Apagão, em 2006, permanecem à espera de solução. A privatização dos terminais, medida adotada por países como Chile, México e Inglaterra, esbarra em resistências ideológicas do governo.

Além do risco de um novo apagão, as deficiências estruturais impedem o aumento da oferta de assentos – o que significa passagens mais caras.

A estratégia de impor um teto para operações de pouso e decolagem em Guarulhos deve ser expandida para outras cidades, como Brasília e Campinas, já no ano que vem. Enquanto a principal atitude do governo for impor limites ao crescimento do setor, em vez de viabilizá-lo, os brasileiros terão de conviver com o risco do apagão sempre que o fim do ano se aproxima.

Lya Luft

O que devemos aos jovens

"Tratando dos jovens e de suas frustrações, falo sobre nós, adultos, pais, professores, autoridades, e em quanto lhes somos devedores"

Fiquei surpresa quando uma entrevistadora disse que em meus textos falo dos jovens como arrogantes e mal-educados. Sinto muito: essa, mais uma vez, não sou eu. Lido com palavras a vida toda, foram uma de minhas primeiras paixões e ainda me seduzem pelo misto de comunicação e confusão que causam, como nesse caso, e por sua beleza, riqueza e ambiguidade.

Escrevo repetidamente sobre juventude e infância, família e educação, cuidado e negligência. Sobre nossa falha quanto à autoridade amorosa, interesse e atenção. Tenho refletido muito sobre quanto deve ser difícil para a juventude esta época em que nós, adultos e velhos, damos aos jovens tantos maus exemplos, correndo desvairadamente atrás de mitos bobos, desperdiçando nosso tempo com coisas desimportantes, negligenciando a família, exagerando nos compromissos, sempre caindo de cansados e sem vontade ou paciência de escutar ou de falar.

Penso sobretudo no desastre da educação: nem mesmo um exame de Enem tranquilo conseguimos lhes oferecer. A maciça ausência de jovens inscritos, quase a metade deles, não se deve a atrasos ou outras dificuldades, mas ao desânimo e à descrença.

De modo que, tratando dos jovens e de suas frustrações, falo sobre nós, adultos, pais, professores, autoridades, e em quanto lhes somos devedores. O que fazem os que de maneira geral deveriam ser líderes e modelos?

Os escândalos públicos que nos últimos anos se repetem e se acumulam são para deixar qualquer jovem desencantado: estudar para quê? Trabalhar para quê? Pior que isso: ser honesto para quê, se nossos pretensos líderes se portam de maneira tão vergonhosa e, ano após ano, a impunidade continua reinando neste país que tenta ser ufanista?

Tenho muita empatia com a juventude, exposta a tanto descalabro, cuidada muitas vezes por pais sem informação, força nem vontade de exercer a mais básica autoridade, sem a qual a família se desintegra e os jovens são abandonados à própria sorte num mundo nem sempre bondoso e acolhedor.

Quem são, quem podem ser, os ídolos desses jovens, e que possibilidades lhes oferecemos? Então, refugiam-se na tribo, com atitudes tribais: o piercing, a tatuagem, a dança ao som de música tribal, na qual se sobrepõe a batida dos tantãs. Negativa? Censurável? Necessária para muitos, a tribo é onde se sentem acolhidos, abrigados, aceitos.

Escola e família ou se declaram incapazes, ou estão assustadas, ou não se interessam mais como deveriam. Autoridades, homens públicos, supostos líderes, muitos deles a gente nem receberia em casa. O que resta? A solidão, a coragem, a audácia, o fervor, tirados do próprio desejo de sobrevivência e do otimismo que sobrar.

Quero deixar claro que nem todos estão paralisados, pois muitas famílias saudáveis criam em casa um ambiente de confiança e afeto, de alegria. Muitas escolas conseguem impor a disciplina essencial para que qualquer organização ou procedimento funcione, e nem todos os políticos e governantes são corruptos. Mas quero também declarar que aqueles que o são já bastam para tirar o fervor e matar o otimismo de qualquer um.

Assim, não acho que todos os jovens sejam arrogantes, todas as crianças mal-educadas, todas as famílias disfuncionais.

Um pouco da doce onipotência da juventude faz parte, pois os jovens precisam romper laços, transformar vínculos (não cuspir em cima deles) para se tornar adultos lançados a uma vida muito difícil, na qual reinam a competitividade, os modelos negativos, os problemas de mercado de trabalho, as universidades decadentes e uma sensação de bandalheira geral.

Tenho sete netos e netas. A idade deles vai de 6 a 21 anos. Todos são motivo de alegria e esperança, todos compensam, com seu jeito particular de ser, qualquer dedicação, esforço, parceria e amor da família.

Não tenho nenhuma visão negativa da juventude, muito menos da infância. Acho, sim, que nós, os adultos, somos seus grandes devedores, pelo mundo que lhes estamos legando. Então, quando falo em dificuldades ou mazelas da juventude, é de nós que estou, melancolicamente, falando.


Por que nós os amamos

Mesmo que, em troca, eles apenas nos suportem. É difícil resistir ao encanto dos gatos, ao vivo ou no YouTube. E existe até uma explicação científica: eles usam o "fator fofura" para nos dominar

Suzana Villaverde - Jill Johnson/divulgação

Quem entrar no YouTube e digitar "gatinhos" terá material suficiente para passar umas sete vidas assistindo a vídeos de aventuras protagonizadas pelos seres mais graciosos do planeta. Nem os adoráveis cães, os mais populares animais de estimação, nem os poderosos leões, o símbolo universal da vida selvagem (embora sejam, basicamente, uns gatos grandes), competem com os felinos domésticos em matéria de acessos.

Conhecidos pelo distanciamento filosófico que mantêm em relação ao mundo dos humanos, os bichanos têm se mostrado celebridades bem acessíveis: tocam piano, enfiam-se em lugares impossíveis, atacam impressoras e demais objetos semoventes com total naturalidade diante das câmeras.

Com a proliferação dos vídeos e dos admiradores – no Brasil, são 16 milhões de bichanos de estimação –, o negócio de gatos também exibe fôlego. Uma de suas variantes mais bizarras, embora igualmente irresistível, é a dos gatos de peruca: você pega uma cabeleira falsa, implora que o bicho condescenda em participar e, nos poucos segundos que se passam antes que o acessório voe no ar, fotografa-o.

A americana Julie Jackson, 45 anos, foi pioneira do ramo. Há dois anos, criou um site de fotos de gatos de peruca em cores engraçadas. Hoje, vender perucas para gatos é fonte de renda. "Sempre gostei de fotografar gatos. As perucas vieram naturalmente, para ficar mais engraçado", diz Julie, que comercializa as peruquinhas a 50 dólares cada uma e tamanho único ("tamanho de gato"). Nesta época do ano, com o Natal chegando, as vendas aumentam.

"Gatos são vaidosos e adoram saber que estão lindos. Mas nem todos aceitam a brincadeira." Dos que aceitaram, 25 foram selecionados como modelos para o livro Glamourpuss.

"Três ficaram de fora porque não entenderam a ideia", brinca Julie, dona de dois gatos com personalidades opostas: Boone, exibido, está na capa do livro e também dentro, de peruca encaracolada e óculos quadrados; já Tito "não quis aparecer por ser muito tímido". A propósito: Chicken, o carismático bichano de peruca rosa, com presença comparável à de uma Naomi Campbell, já não está entre nós – foi para o céu felino antes mesmo do lançamento do livro.

Os gatos fascinam os humanos, e não é apenas pela aura de mistério (ou, na definição de Jorge Luis Borges: "Por obra indecifrável de um decreto / divino, te buscamos inutilmente / mais remoto que o Ganges e o poente / tua é a solidão, teu é o segredo").

Com olhos grandes e puxados, cara pequena, focinho achatado e corpo macio, eles se encaixam num conjunto de características chamado de "esquema bebê" pelo biólogo austríaco e prêmio Nobel Konrad Lorenz, que nos anos 40 traçou e explicou pela primeira vez a semelhança.

O "fator fofura", como é chamado, é formado por um conjunto de feições que lembram as de um bebê e que, por ditames autoexplicativos da sobrevivência da espécie, apareça onde aparecer, sempre desperta nos humanos imediata sensação de afeto e impulsos protetores.

"O cérebro humano responde de maneira positiva a essas feições. Estejam elas num bebê, num gato ou num filhote de panda, todos vão estimular proteção e cuidados", explica a bióloga Melanie Glocker, especialista em neurociência social do Instituto de Biologia Comportamental da Universidade de Münster, na Alemanha. Por desencadear reações irresistíveis, o "fator fofura" desponta em toda parte (inclusive naquelas que envolvem o uso de cartões de crédito) e vai além de um simples conjunto de feições.

"Qualquer objeto ou mesmo uma palavra fofinha ativa o sistema de recompensa do cérebro que libera dopamina e imediatamente nos faz sentir bem. É uma felicidade instantânea", diz a bióloga alemã. É esse princípio que comanda as reações positivas diante de coisinhas miúdas (e caras) como o Beetle, da Volkswagen, ou o 500, da Fiat.

Em nenhum outro país o apego à fofurice chegou tão longe quanto no Japão de Pokémon e Hello Kitty (esta, por sinal, uma gatinha). O conceito de kawaii, nome dado a tudo o que é fofo e meigo, é a mola propulsora da inesgotável cultura pop japonesa.

"Quando a pessoa se torna adulta no Japão, existe muita pressão social. A cultura kawaii, o fascínio pelas coisas fofas, as mascotes, tudo o que é colorido, permite esquecer um pouco a realidade e prolongar a infância", avalia a bailarina Akemi Matsuda, que morou no Japão até os 18 e hoje vive em São Paulo, sempre guiada pela fofurice.

Nada mais normal, portanto, que felinos japoneses dominem o YouTube. Maru, o gato que fica entalado numa embalagem de latas de refrigerante, entre outras estripulias, tem mais de 100 vídeos. E seu próprio site, é claro.

É difícil resistir ao ser descrito como "pequeno imperador sem orbe, conquistador sem pátria, mínimo tigre de salão, nupcial sultão do céu das telhas eróticas", nas fascinadas palavras do poeta chileno Pablo Neruda em sua Ode ao Gato, citada na ponta da língua por todos os felinomaníacos. A elegância, a agilidade e a capacidade de se meter em todo tipo de situação absurda – e sair dela com ar de solene superioridade – alimentam o star power dos gatos.

"São bichos extremamente curiosos que desenvolvem várias manias e, por isso, são tão engraçados de observar", diz a veterinária Luciana Deschamps, dona de uma clínica especializada em felinos e anfitriã, em casa, de nove bichanos. "Gatos dificilmente aprendem truques, porque são muito independentes. Se fazem alguma coisa, é porque querem", explica. A quem assiste, resta se render e achá-los a coisa mais fofa do mundo.

Estrelas do YouTube

Alguns dos vídeos mais populares protagonizados por felinos
Fotos divulgação

A PIANISTA
O dono diz que não é truque – desde pequenininha, Nora "toca" piano quase todo dia. Já foi vista por 16 milhões de pessoas

O EMBRULHADO
Maru tem mania de se enfiar em embalagens. Foi visto por 5,4 milhões

O SONOLENTO
Durante 28 segundos, tudo o que se vê é um gatinho persa pegando no sono. Visto por 9,5 milhões de pessoas

O SEDENTO
Woody bebe água na torneira aberta e ao mesmo tempo faz o impensável: toma uma ducha. Visto por 1,5 milhão de pessoas

O MANHOSO
Quando o cafuné para, ele abre as patas pedindo mais. Visto por 10 milhões

PROFESSOR SABICHANO

Freud disse que os donos de gatos os escolhem na tentativa inconsciente de adquirir suas características. Aqui, dez coisas que podemos aprender no convívio com eles, apontadas pela veterinária e gatófila Luciana Deschamps

1 Relaxar "Gatos adoram uma preguiça e sabem aproveitar cada minuto em que ficam sem fazer nada"

2 Aproveitar o momento "Gatos fazem coisas divertidas mesmo quando não têm plateia"

3 Explorar "Eles querem saber tudo, ver tudo, mexer em tudo, e assim descobrem o que preferem"

4 Ter autossuficiência "Para o gato, ser independente não significa amar menos o dono, mas apenas não ser radicalmente dependente dele"

5 Mover-se "Não há andar mais elegante no reino animal que o jeito silencioso e suave dos felinos"

6 Alongar-se "Saber se esticar é fundamental para quem quer desbravar o espaço ao seu redor"

7 Comer com prazer "Gatos aproveitam ao máximo o alimento. Cheiram, brincam e só depois comem. É o gosto de experimentar coisas novas"

8 Ocupar espaços "Por que se deitar num cantinho, se você pode ocupar a cama inteira?"

9 Observar "Humanos acham que eles não prestam atenção, mas quase tudo o que os gatos aprendem é observando os donos"

10 ter vontade própria "O gato não se submete. Deve pensar: ‘Pobre bípede, acha que vou fazer isso só porque ele quer’. E não faz"


Por que nós os amamos

Mesmo que, em troca, eles apenas nos suportem. É difícil resistir ao encanto dos gatos, ao vivo ou no YouTube. E existe até uma explicação científica: eles usam o "fator fofura" para nos dominar

Suzana Villaverde - Jill Johnson/divulgação

Quem entrar no YouTube e digitar "gatinhos" terá material suficiente para passar umas sete vidas assistindo a vídeos de aventuras protagonizadas pelos seres mais graciosos do planeta. Nem os adoráveis cães, os mais populares animais de estimação, nem os poderosos leões, o símbolo universal da vida selvagem (embora sejam, basicamente, uns gatos grandes), competem com os felinos domésticos em matéria de acessos.

Conhecidos pelo distanciamento filosófico que mantêm em relação ao mundo dos humanos, os bichanos têm se mostrado celebridades bem acessíveis: tocam piano, enfiam-se em lugares impossíveis, atacam impressoras e demais objetos semoventes com total naturalidade diante das câmeras.

Com a proliferação dos vídeos e dos admiradores – no Brasil, são 16 milhões de bichanos de estimação –, o negócio de gatos também exibe fôlego. Uma de suas variantes mais bizarras, embora igualmente irresistível, é a dos gatos de peruca: você pega uma cabeleira falsa, implora que o bicho condescenda em participar e, nos poucos segundos que se passam antes que o acessório voe no ar, fotografa-o.

A americana Julie Jackson, 45 anos, foi pioneira do ramo. Há dois anos, criou um site de fotos de gatos de peruca em cores engraçadas. Hoje, vender perucas para gatos é fonte de renda. "Sempre gostei de fotografar gatos. As perucas vieram naturalmente, para ficar mais engraçado", diz Julie, que comercializa as peruquinhas a 50 dólares cada uma e tamanho único ("tamanho de gato"). Nesta época do ano, com o Natal chegando, as vendas aumentam.

"Gatos são vaidosos e adoram saber que estão lindos. Mas nem todos aceitam a brincadeira." Dos que aceitaram, 25 foram selecionados como modelos para o livro Glamourpuss.

"Três ficaram de fora porque não entenderam a ideia", brinca Julie, dona de dois gatos com personalidades opostas: Boone, exibido, está na capa do livro e também dentro, de peruca encaracolada e óculos quadrados; já Tito "não quis aparecer por ser muito tímido". A propósito: Chicken, o carismático bichano de peruca rosa, com presença comparável à de uma Naomi Campbell, já não está entre nós – foi para o céu felino antes mesmo do lançamento do livro.

Os gatos fascinam os humanos, e não é apenas pela aura de mistério (ou, na definição de Jorge Luis Borges: "Por obra indecifrável de um decreto / divino, te buscamos inutilmente / mais remoto que o Ganges e o poente / tua é a solidão, teu é o segredo").

Com olhos grandes e puxados, cara pequena, focinho achatado e corpo macio, eles se encaixam num conjunto de características chamado de "esquema bebê" pelo biólogo austríaco e prêmio Nobel Konrad Lorenz, que nos anos 40 traçou e explicou pela primeira vez a semelhança.

O "fator fofura", como é chamado, é formado por um conjunto de feições que lembram as de um bebê e que, por ditames autoexplicativos da sobrevivência da espécie, apareça onde aparecer, sempre desperta nos humanos imediata sensação de afeto e impulsos protetores.

"O cérebro humano responde de maneira positiva a essas feições. Estejam elas num bebê, num gato ou num filhote de panda, todos vão estimular proteção e cuidados", explica a bióloga Melanie Glocker, especialista em neurociência social do Instituto de Biologia Comportamental da Universidade de Münster, na Alemanha. Por desencadear reações irresistíveis, o "fator fofura" desponta em toda parte (inclusive naquelas que envolvem o uso de cartões de crédito) e vai além de um simples conjunto de feições.

"Qualquer objeto ou mesmo uma palavra fofinha ativa o sistema de recompensa do cérebro que libera dopamina e imediatamente nos faz sentir bem. É uma felicidade instantânea", diz a bióloga alemã. É esse princípio que comanda as reações positivas diante de coisinhas miúdas (e caras) como o Beetle, da Volkswagen, ou o 500, da Fiat.

Em nenhum outro país o apego à fofurice chegou tão longe quanto no Japão de Pokémon e Hello Kitty (esta, por sinal, uma gatinha). O conceito de kawaii, nome dado a tudo o que é fofo e meigo, é a mola propulsora da inesgotável cultura pop japonesa.

"Quando a pessoa se torna adulta no Japão, existe muita pressão social. A cultura kawaii, o fascínio pelas coisas fofas, as mascotes, tudo o que é colorido, permite esquecer um pouco a realidade e prolongar a infância", avalia a bailarina Akemi Matsuda, que morou no Japão até os 18 e hoje vive em São Paulo, sempre guiada pela fofurice.

Nada mais normal, portanto, que felinos japoneses dominem o YouTube. Maru, o gato que fica entalado numa embalagem de latas de refrigerante, entre outras estripulias, tem mais de 100 vídeos. E seu próprio site, é claro.

É difícil resistir ao ser descrito como "pequeno imperador sem orbe, conquistador sem pátria, mínimo tigre de salão, nupcial sultão do céu das telhas eróticas", nas fascinadas palavras do poeta chileno Pablo Neruda em sua Ode ao Gato, citada na ponta da língua por todos os felinomaníacos. A elegância, a agilidade e a capacidade de se meter em todo tipo de situação absurda – e sair dela com ar de solene superioridade – alimentam o star power dos gatos.

"São bichos extremamente curiosos que desenvolvem várias manias e, por isso, são tão engraçados de observar", diz a veterinária Luciana Deschamps, dona de uma clínica especializada em felinos e anfitriã, em casa, de nove bichanos. "Gatos dificilmente aprendem truques, porque são muito independentes. Se fazem alguma coisa, é porque querem", explica. A quem assiste, resta se render e achá-los a coisa mais fofa do mundo.

Estrelas do YouTube

Alguns dos vídeos mais populares protagonizados por felinos
Fotos divulgação

A PIANISTA
O dono diz que não é truque – desde pequenininha, Nora "toca" piano quase todo dia. Já foi vista por 16 milhões de pessoas

O EMBRULHADO
Maru tem mania de se enfiar em embalagens. Foi visto por 5,4 milhões

O SONOLENTO
Durante 28 segundos, tudo o que se vê é um gatinho persa pegando no sono. Visto por 9,5 milhões de pessoas

O SEDENTO
Woody bebe água na torneira aberta e ao mesmo tempo faz o impensável: toma uma ducha. Visto por 1,5 milhão de pessoas

O MANHOSO
Quando o cafuné para, ele abre as patas pedindo mais. Visto por 10 milhões

PROFESSOR SABICHANO

Freud disse que os donos de gatos os escolhem na tentativa inconsciente de adquirir suas características. Aqui, dez coisas que podemos aprender no convívio com eles, apontadas pela veterinária e gatófila Luciana Deschamps

1 Relaxar "Gatos adoram uma preguiça e sabem aproveitar cada minuto em que ficam sem fazer nada"

2 Aproveitar o momento "Gatos fazem coisas divertidas mesmo quando não têm plateia"

3 Explorar "Eles querem saber tudo, ver tudo, mexer em tudo, e assim descobrem o que preferem"

4 Ter autossuficiência "Para o gato, ser independente não significa amar menos o dono, mas apenas não ser radicalmente dependente dele"

5 Mover-se "Não há andar mais elegante no reino animal que o jeito silencioso e suave dos felinos"

6 Alongar-se "Saber se esticar é fundamental para quem quer desbravar o espaço ao seu redor"

7 Comer com prazer "Gatos aproveitam ao máximo o alimento. Cheiram, brincam e só depois comem. É o gosto de experimentar coisas novas"

8 Ocupar espaços "Por que se deitar num cantinho, se você pode ocupar a cama inteira?"

9 Observar "Humanos acham que eles não prestam atenção, mas quase tudo o que os gatos aprendem é observando os donos"

10 ter vontade própria "O gato não se submete. Deve pensar: ‘Pobre bípede, acha que vou fazer isso só porque ele quer’. E não faz"


34,8% dos brasileiros já acessaram a internet

Pesquisa do IBGE revela o crescimento do acesso à web no Brasil, principalmente entre os jovens. E-mail e sites de relacionamento são os serviços mais usados
Redação Época, com Agência Estado

O número de brasileiros que já usaram um computador com acesso a internet cresceu quase 15 pontos percentuais entre 2005 e 2008. Uma pesquisa divulgada nesta sexta-feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que a quantidade de internautas com dez anos ou mais de idade já chegou a 56 milhões - o equivalente a 34,8% da população nessa faixa etária.

O aumento no acesso a web se deu tanto para os homens (de 21,9% em 2005 para 35,8% em 2008) quanto para as mulheres (de 20,1% para 33,9%). As regiões Sudeste (40,3%), Centro-Oeste (39,4%) e Sul (38,7%) registraram os maiores porcentuais de usuários, e as regiões Norte (27,5%) e Nordeste (25,1%), os menores.

Entre os Estados, Distrito Federal (56,1%), São Paulo (43,9%) e Rio de Janeiro (40,9%) tinham os maiores porcentuais de pessoas que acessaram a internet, enquanto Alagoas (17,8%), Piauí (20,2%) e Maranhão (20,2%) apresentaram os menores porcentuais.

O crescimento foi maior entre os mais jovens. O grupo de 15 a 17 anos registrou o maior porcentual (62,9% da população dessa idade) de pessoas que acessaram a rede e teve o maior aumento em relação a 2005, quando era de 33,7%.

A partir dessa faixa etária, o porcentual de usuários diminui com a idade, chegando a 11,2% das pessoas de 50 anos ou mais. Esse grupo representava, em 2008, 24,8% da população total, mas correspondia a apenas 8% do total dos internautas.

A proporção de pessoas que acessaram a internet no grupo de 10 a 14 anos de idade (51,1% da população dessa faixa etária) ficou acima das porcentagens de usuários em todas as faixas etárias a partir de 25 anos, em todas as regiões.

Hábitos

Segundo o IBGE, o ambiente doméstico ainda é o local mais utilizado para acessar a internet: 57,1% das pessoas que acessaram a web pelo menos uma vez afirmam ter usado um computador em casa. As lan houses vêm em seguida com 35,2%, seguidas pelo local de trabalho.

O principal motivo apontado para uso da internet é a comunicação com outras pessoas, por e-mail ou sites de relacionamento. De acordo com a pesquisa, 83,2% dos brasileiros que já acessaram a internet usaram ou usam serviços desse tipo.

O segundo motivo mais citado foi o lazer, com 68,6%. A educação ficou em terceiro lugar (65,9%), embora tenha registrado uma queda de quase seis pontos percentuais em relação a 2005.

A pesquisa aponta ainda que os usuários são mais escolarizados (10 anos de estudo em média) que aqueles que nunca acessaram a internet (5,5 anos de estudo), e a porcentagem de internautas é proporcional à escolaridade.

No entanto, o crescimento no número de usuários entre 2005 e 2008 foi mais intenso na população com menos escolaridade, o que pode indicar uma tendência de democratização do acesso.