domingo, 31 de janeiro de 2021


27 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

A principal razão do sucesso do Inter 

Ontem conversei com o Fernando Carvalho, que você deve conhecer como o maior presidente da história do Inter, mas que era meu amigo antes disso. Falamos, obviamente, sobre o clube, virtual campeão brasileiro de 2020. E concordamos em um ponto central: entre as razões do bom sucesso do time, a principal é a estrutura do meio-campo. O tripé de volantes.

Essa formatação, com Rodrigo Dourado, Edenilson e Patrick, vem de longe, como diria Brizola. Vem dos tempos do velho Odair Hellmann. Era essa a base: três homens fortes, de marcação e movimentação, que combatem o jogo inteiro, preenchendo o núcleo da equipe. Dourado é melhor marcador do que os centromédios que o antecederam. Não tem a mesma capacidade física de antes da sua grave lesão, mas compensa com um posicionamento quase impecável e uma precisa bola aérea. Edenilson é um abnegado, um Tinga, os antigos diriam que é um "mouro". E Patrick, além de ajudar nas monótonas tarefas de contenção, virou um ponta-esquerda irritante, daqueles que tenta tanto que acaba conseguindo.

Para completar, Abel encontrou um quarto volante. Porque é assim que joga Praxedes, não se iluda: é um volante, também. No Sala de Redação de segunda-feira, comparamos Praxedes com Jean Pyerre, que, aparentemente, são da mesma função. Eu, das sombras da minha modéstia, disse a frase definitiva a respeito do tema, pode usar, se quiser:

- O Jean Pyerre tem muito mais futebol do que o Praxedes, mas o Praxedes sabe jogar muito mais futebol do que Jean Pyerre.

É que futebol não é só uma atividade física, você sabe. É mental, é espiritual, é emocional.

Todos os times vencedores do Inter, da época de Bodinho e Larry para cá, tiveram três volantes. Todos.

Nos anos 70, era essa a discussão. Quem deveria jogar com Falcão e Carpegianne: Escurinho ou Caçapava? Lembro de um dia ter visto um comentário do Hugo Amorim na TV. As novas gerações não saberão quem foi Hugo Amorim. Era um comentarista identificado com o Inter, que devia estabelecer contraponto ao Paulo Sant?Ana. Pois nesse comentário, feito depois de algum revés colorado, o Hugo Amorim estava emocionado, teceu um discurso contra a escalação de Caçapava e encerrou com uma frase, dita em voz embargada, que jamais esqueci:

- Ou o Internacional acaba com o tripé, ou o tripé acaba com o Internacional.

Eu era um guri, mas já gostava de ler e sabia que ele estava fazendo um arremedo da famosa frase do biólogo francês Saint-Hilaire: "Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil".

Espantou-me o tom comovido do Hugo Amorim, aquilo ficou na minha cabeça, tanto que recordo agora, séculos depois.

Não tenho muitas lembranças do Hugo Amorim. O que mais me chamava a atenção, acerca do seu trabalho, é que ele gostava de abreviar as palavras. Em vez de Porto Alegre, escrevia "P. Alegre". Tanto que os colegas o chamavam de Agá Amorim. Depois, trabalhando na Zero Hora, testemunhei uma violenta discussão entre ele e o Paulo Sant?Ana, no começo dos anos 90. Por causa de futebol, evidentemente. Tinha havido um Gre-Nal no dia anterior e os dois se desentenderam a propósito de sei lá que lance do jogo. Ofenderam-se aos berros, no meio da redação. Todo mundo parou de trabalhar e ficou olhando. Alguns editores conseguiram apartá-los e os dois saíram, cada um para um lado, jurando vingança, prometendo que viriam armados no dia seguinte. Durante uma semana, pelo menos, houve certo temor de tiroteio no jornal, mas os ânimos foram arrefecendo com o tempo, o tempo promove essas curas.

Não sei se o H. Amorim estava certo nesse contencioso, mas sei que estava errado no seu veto ao tripé, como Saint-Hilaire no seu medo da saúva. A saúva e o Brasil estão aí, juntos. Já aquele velho tripé levou o Inter ao seu primeiro Campeonato Brasileiro, enquanto novo o levará para o seu último.

DAVID COIMBRA

27 DE JANEIRO DE 2021
ARTIGOS

A PANDEMIA QUE NÃO TEM VACINA 

No Brasil de extremos, a violência contra as mulheres se tornou uma bandeira ideológica. Como se apenas um grupo de pessoas tivesse autoridade para falar sobre o machismo, desconsiderando que os casos de agressões não escolhem raça, classe social ou mesmo nível de escolaridade.

Os números são estarrecedores: de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pelo menos 648 mulheres foram assassinadas no Brasil por motivação relacionada ao gênero somente no primeiro semestre de 2020.

Em um ano de pandemia do coronavírus, em que mulheres foram obrigadas a conviver mais tempo com seus agressores, a epidemia do feminicídio se tornou ainda mais evidente. Enquanto se discute a eficácia do tratamento precoce para a covid-19, pouco se avança no combate à violência de gênero. Estamos longe de uma vacina que nos deixe em segurança ante homens que se sentem donos dos nossos corpos e acreditam ter direito de nos agredir até as últimas consequências.

Para ilustrar essa triste realidade, somente entre os dias 24 e 25 de dezembro do ano passado, quase que simultaneamente, em cidades diferentes, seis mulheres, mães, foram assassinadas pelo marido ou ex-companheiro.

O último estágio da violência gera impactos em toda a família e atinge especialmente as crianças. Como impedi-los? Denunciando. Expondo seus perfis de comportamento e mostrando para essas mulheres que elas não estão sozinhas.

Não podemos silenciar diante de tanta brutalidade, tampouco sermos coniventes com a impunidade. Precisamos reagir e cobrar medidas efetivas para o fim da violência contra as mulheres em nosso país.

Não basta formar meninas que exijam seus direitos, é fundamental educar as novas gerações de meninos para que eles reconheçam a igualdade como base sólida de seus relacionamentos e contribuam para a superação de preconceitos.

Não há imunização, mas pode existir tratamento. E ele começa quando entendemos que todas estão sujeitas ao risco. Não importam as preferências políticas. Basta apenas ser mulher.

GILKIANE CARGNELUTTI


27 DE JANEIRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

LIBERALISMO DA BOCA PARA FORA

O pedido de demissão de Wilson Ferreira Junior da presidência da Eletrobras, frustrado pela falta de perspectiva concreta de privatização da empresa, é mais um sinal eloquente do abandono da agenda liberal pelo governo federal. A promessa de uma massiva desestatização e menor intervenção na economia mostra-se cada vez mais um discurso que foi eleitoralmente conveniente, mas que, dia a dia, não encontra respaldo nas ações. Enquanto se inicia o terceiro ano de gestão de Jair Bolsonaro, nenhuma estatal foi repassada à iniciativa privada e, pelo contrário, uma nova empresa pública foi criada.

Mesmo que Ferreira tenha atribuído a decisão aos posicionamentos dos principais candidatos ao comando do Senado e da Câmara, uma vez que a privatização da Eletrobras tem de passar pelo Congresso, o pouco esforço pessoal de Bolsonaro também foi citado como motivo para sua descrença. Os favoritos para vencer a eleição nas duas casas legislativas, é preciso lembrar, são apoiados pelo Planalto. É fato que a alienação da Eletrobras enfrenta resistência de parlamentares, mas, ao mesmo tempo, é inegável que o governo não se move para levar o processo adiante, a despeito das promessas do ministro Paulo Guedes.

Falando ontem a investidores, Bolsonaro disse que privatizações e reformas serão prioridades em 2021. O problema é que acenos genéricos como esses foram feitos às mancheias pelo governo e, até agora, quase nada andou, a não ser a mudança das regras da Previdência, mais por dedicação do Congresso do que do Executivo. A prática tem sido em sentido oposto às medidas liberalizantes. Ainda em dezembro, Bolsonaro garantiu que a Ceagesp - central de abastecimento de alimentos de São Paulo - não seria privatizada, apesar de ele mesmo ter assinado o decreto que incluiu a empresa no programa nacional de desestatização. Outra amostra do verdadeiro pendor de Bolsonaro veio da tentativa de intervenção no plano de reestruturação do Banco do Brasil, no início do mês. Também começa a preocupar o mercado a defasagem dos preços dos combustíveis em relação às cotações internacionais. No ar, novos temores de ingerência política na empresa.

O irretorquível, como dito antes, é que nenhuma estatal foi até agora privatizada, a não ser subsidiárias. O R$ 1 trilhão prometido por Guedes é hoje motivo apenas de chacota, assim como o compromisso do ministro, assumido no início de julho do ano passado, de quatro grandes vendas em até 90 dias. Abertura comercial e fim de uma série de desonerações ineficientes, da mesma forma, foram esquecidas. A palavra tantas vezes empenhada em vão foi fatal para a credibilidade do outrora superministro, o que é péssimo para qualquer encarregado de função semelhante em qualquer país do mundo.

Mais do que culpar o tal "establishment", como repete o ex-secretário especial de Desestatização Salim Mattar, que pediu o boné no ano passado, também frustrado, o governo precisa mostrar na prática o desejo de levar adiante privatizações e reformas. Caso contrário, apenas se consolidará a percepção predominante de um liberalismo da boca para fora. Nota-se até agora preocupação muito maior em não enfrentar corporações por temor de perda mais acentuada de apoio, de olho em 2022. É um erro clássico de populistas. A fatura costuma ser cobrada da população, em forma de baixo crescimento, desequilíbrio fiscal, crises incessantes e desemprego.


27 DE JANEIRO DE 2021
MÁRIO CORSO

Uma vida maiúscula 

Não posso reclamar da minha saúde. Conheci hospital como paciente aos 60, para operar um pé machucado jogando futebol. Primeira experiência com muletas e acessibilidade.

Na época, usando Uber, algo saltava aos olhos. Quem já tinha passado pela condição de pós-operado era mais solícito do que os outros. Incrível o número de homens que já sofreram fratura. Geralmente por futebol ou motocicleta. Estes estacionavam mais perto, abriam a porta, ajeitavam o banco. Para os que não tinham passado por isso, eu era um cliente comum. As muletas não os comoviam. Somos assim, raramente desenvolvemos empatia fora da experiência.

Minha memória não me ajuda a saber onde li sobre uma experiência, que julgo instrutiva. Denomino-a de: "A Casa do Gigante". A receita é simples, é um local construído simulando uma residência normal, só que nele um homem médio se sente como se tivesse o tamanho de uma criança de um ano e pouco, quando começamos a caminhar. Ou seja, temos de volta a vivência esquecida de quando podíamos olhar uma mesa apenas por baixo, e o resto está fora do nosso olhar e alcance.

O pessoal de Gramado e Canela, sempre inventando, poderia fazer uma. O propósito é ressuscitar a experiência infantil para nos darmos conta da fragilidade original de cada um. Sentir outra vez o que é ser pequeno em um mundo de gigantes.

Mas esta conversa toda é para falar que existem os que são forçados a passar a vida na terra dos gigantes. Terminei de ler um livro imperdível para quem se preocupa com a questão da acessibilidade: E Fomos Ser Gauches na Vida (Editora: Pubblicato 2020). No qual Lelei Teixeira conta sua vida e as dificuldades que passou por causa do nanismo.

Os problemas nunca foram da condição em si, para tanto existe a acessibilidade, mas da insensibilidade alheia. Ela teve a sorte de ter uma família inclusiva, já o nosso mundo nunca cessou de lhe enviar a mensagem de que só existe um tamanho para se ter quando se é adulto.

Acessibilidade é item raríssimo em nossos lugares públicos, dos antigos nem se fala, os novos só fazem o que a lei obriga, mínimo dos mínimos para garantir o alvará. Recém estamos percebendo a obviedade das pautas que preconizam coisas simples, como rebaixamento de calçada, vagas para cadeirantes, sinalização para deficientes visuais e outros tantos itens que as pessoas que convivem com essas dificuldades podem apontar. Uma cidade inclusiva é uma mudança de paradigma, certamente sinal de que evoluímos um pouco como comunidade.

O livro é leve, ela não se apresenta nem como vítima, nem como heroína. Mas é um depoimento de como ter força para seguir adiante quando o vento é contra. Como ter uma vida rica apesar da falta de empatia da maioria. Como ter uma vida maiúscula sendo pequena.

MÁRIO CORSO

26 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

A vingança do príncipe Charles 

Até sentia certa simpatia pelo príncipe Charles, mas mudei de ideia quando assisti à série The Crown. Aliás, uma obra-prima. A precisão com que a história é contada, a dose exata entre dramaticidade e realidade, as interpretações surpreendentes dos atores, uma perfeição do início ao fim.

A atriz que faz a Lady Di adquiriu até os trejeitos da triste princesinha morta sob a Ponte de l?Alma. A Margaret Thatcher tem um desempenho poderoso, chega a assustar. Mas o príncipe Charles acaba mesmerizando o espectador devido à sua personalidade atormentada, cheia de conflitos e contradições.

Primeiro, você sente pena de Charles, um rapaz que tenta inutilmente extrair amor de uma família que só se permite sentimentos protocolares. Aos poucos, porém, ele mostra que mesmo a necessidade de afeto fica subalterna à vaidade. Charles quer ser rei, e isso vale inclusive sua integridade espiritual.

No seriado, ele maltrata Diana, sente inveja do carisma e da popularidade dela e não lhe dá espaço para ser feliz entre os gélidos Windsor. Ele vai se transformando em um pequeno monstro, à medida que suas frustrações aumentam.

Mas preciso fazer uma ponderação: e se a história fosse contada a partir do ponto de vista dele, Charles? Alguém poderia dizer, por exemplo, que o príncipe foi fiel ao seu amor a vida inteira. A mulher com quem está agora, Camila, foi a única que ele realmente amou. Mas a família não queria que se casassem, porque ela tivera outros homens. Então, deram um jeito de mandar Charles para a marinha, ele ficou fora por quase um ano e, neste período, Camila casou-se com outro. Ainda assim, Charles não a esqueceu e, quando pode, ficou com ela em definitivo.

Há traços de bom caráter aí. Outros poderiam ser colhidos, se Charles contasse a sua versão. E é aí que queria chegar. Nesse tempo em que as pessoas tornam públicas suas vidas privadas, a todo momento há um antagonismo para ser julgado, a todo momento há um litígio em análise. Quem está certo? Quem errou? Quem é o canalha?

As pessoas estão sempre apontando a canalhice de alguém, mas quem nunca foi canalha aqui? Quem garante que nunca mais será canalha outra vez? Fernando Pessoa, em seu imortal Poema em Linha Reta, pergunta:

"Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos".

Ninguém haverá de confessar. Só que as pessoas cometem vilezas, às vezes até sem querer, por distração ou fraqueza eventual. Porém, antes do mundo interligado, uma pequena vileza, um descuido e mesmo certos erros de bom tamanho acarretariam perdas, de fato, tão somente aos que tivessem contas públicas a prestar. Hoje, não mais. Hoje, o verdureiro anônimo pode ser condenado à execração comunitária por um deslize verbal ou por uma irritação momentânea. Hoje, todos estão sob julgamento. O homem do povo não desaparece mais na multidão, não está mais protegido pela própria insignificância. Não é, de alguma forma, uma vingança do príncipe Charles e de outras pessoas públicas? Não são mais apenas elas as possíveis vítimas do ressentimento, da maledicência e do ciúme, qualquer desconhecido tem chance de virar réu por crime comportamental.

Por isso, cuidado quando for apontar o dedo para alguém na rua. Um dia, os dedos podem estar apontados para você.

DAVID COIMBRA

26 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

A vingança do príncipe Charles 

Até sentia certa simpatia pelo príncipe Charles, mas mudei de ideia quando assisti à série The Crown. Aliás, uma obra-prima. A precisão com que a história é contada, a dose exata entre dramaticidade e realidade, as interpretações surpreendentes dos atores, uma perfeição do início ao fim.

A atriz que faz a Lady Di adquiriu até os trejeitos da triste princesinha morta sob a Ponte de l?Alma. A Margaret Thatcher tem um desempenho poderoso, chega a assustar. Mas o príncipe Charles acaba mesmerizando o espectador devido à sua personalidade atormentada, cheia de conflitos e contradições.

Primeiro, você sente pena de Charles, um rapaz que tenta inutilmente extrair amor de uma família que só se permite sentimentos protocolares. Aos poucos, porém, ele mostra que mesmo a necessidade de afeto fica subalterna à vaidade. Charles quer ser rei, e isso vale inclusive sua integridade espiritual.

No seriado, ele maltrata Diana, sente inveja do carisma e da popularidade dela e não lhe dá espaço para ser feliz entre os gélidos Windsor. Ele vai se transformando em um pequeno monstro, à medida que suas frustrações aumentam.

Mas preciso fazer uma ponderação: e se a história fosse contada a partir do ponto de vista dele, Charles? Alguém poderia dizer, por exemplo, que o príncipe foi fiel ao seu amor a vida inteira. A mulher com quem está agora, Camila, foi a única que ele realmente amou. Mas a família não queria que se casassem, porque ela tivera outros homens. Então, deram um jeito de mandar Charles para a marinha, ele ficou fora por quase um ano e, neste período, Camila casou-se com outro. Ainda assim, Charles não a esqueceu e, quando pode, ficou com ela em definitivo.

Há traços de bom caráter aí. Outros poderiam ser colhidos, se Charles contasse a sua versão. E é aí que queria chegar. Nesse tempo em que as pessoas tornam públicas suas vidas privadas, a todo momento há um antagonismo para ser julgado, a todo momento há um litígio em análise. Quem está certo? Quem errou? Quem é o canalha?

As pessoas estão sempre apontando a canalhice de alguém, mas quem nunca foi canalha aqui? Quem garante que nunca mais será canalha outra vez? Fernando Pessoa, em seu imortal Poema em Linha Reta, pergunta:

"Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos".

Ninguém haverá de confessar. Só que as pessoas cometem vilezas, às vezes até sem querer, por distração ou fraqueza eventual. Porém, antes do mundo interligado, uma pequena vileza, um descuido e mesmo certos erros de bom tamanho acarretariam perdas, de fato, tão somente aos que tivessem contas públicas a prestar. Hoje, não mais. Hoje, o verdureiro anônimo pode ser condenado à execração comunitária por um deslize verbal ou por uma irritação momentânea. Hoje, todos estão sob julgamento. O homem do povo não desaparece mais na multidão, não está mais protegido pela própria insignificância. Não é, de alguma forma, uma vingança do príncipe Charles e de outras pessoas públicas? Não são mais apenas elas as possíveis vítimas do ressentimento, da maledicência e do ciúme, qualquer desconhecido tem chance de virar réu por crime comportamental.

Por isso, cuidado quando for apontar o dedo para alguém na rua. Um dia, os dedos podem estar apontados para você.

DAVID COIMBRA

26 DE JANEIRO DE 2021
ARTIGOS

LITERATURA E O HINO DO RIO GRANDE DO SUL 

Em 1967, Roland Barthes publicou o ensaio "A morte do autor", em que defende que as intenções de um escritor não são lá muito importantes para a interpretação de uma obra literária. Sabe aquela aula de literatura em que você estudava a biografia de um autor para compreender o trabalho dele? Pois é. Para Barthes, isso não é importante: a interpretação de um texto literário é fundamentada, basicamente, na língua em que ele é escrito.

Em outras palavras, se existem palavras, e elas estão organizadas de acordo com um sistema linguístico, a interpretação que um texto permite derivar é suficiente para que ele seja, bem, interpretado. Não foi isso que você quis dizer, autor? Que pena. Se o texto permite uma interpretação, não há nada que você possa fazer.

Antes de Barthes, em 1916, foi publicado o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure. Nele, são apresentados os conceitos de diacronia e sincronia. Enquanto a diacronia compreende o estudo de uma língua através do tempo, isto é, sua evolução, a sincronia compreende seu estudo em um dado momento. Para Saussure, mais importante era a sincronia, pois o falante de uma língua não tem registrada em sua memória as mudanças pelas quais ela passa.

Na pedagogia, por exemplo, há quem critique a palavra "aluno" porque, suspostamente, significaria, no latim, "aquele que não tem luz". Ainda que isso seja verdade, é com esse significado que a palavra hoje é usada?

Apresento essas visões na tentativa de colocar alguma luz sobre a questão do racismo no Hino do Rio Grande do Sul. Muito se tem buscado a História para se elucidar essa questão, mas será que não devemos lembrar que nosso hino é poético? Que a palavra escravo é polissêmica? Que, ainda que se possa confirmar uma origem racista, ele não necessariamente deve assim ser interpretado?

Diz o dicionário Michaelis sobre a palavra escravo: "Condição de falta de liberdade; submissão a uma autoridade despótica; condição daquele que se encontra sob o domínio ou na dependência de uma droga, paixão, ou de qualquer vício".

Nessa questão, talvez fosse mais sábio lembrarmo-nos de Barthes: "O nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor".

GIAN FRANCO MORETTO

26 DE JANEIRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

Municípios desafiados 

Quase ao fim do primeiro mês de gestão, período que proporciona ter-se uma melhor noção do quadro financeiro e das perspectivas da administração, a realidade começa a bater à porta dos novos prefeitos e mesmo daqueles que se reelegeram. Reportagem publicada na edição de ontem de Zero Hora aponta que, entre os 10 mais populosos municípios do Estado, sete vislumbram queda na arrecadação ou projetam manutenção dos valores, corrigidos pela inflação. Mesmo entre os que oficialmente calculam receita superior à de 2020, há a percepção de que os números podem ser revistos para baixo. Nem todas as soluções para esses desafios estão ao alcance dos Executivos municipais, mas há medidas que podem ajudar na busca pelo equilíbrio no curto prazo, especialmente na ponta da despesa.

Maior arrecadação, na maioria das vezes, significa crescimento. Embora se espere retomada da economia ao longo do ano, é impossível saber em que ritmo. Por outro lado, as prefeituras por certo não contarão em 2021 com a providencial ajuda financeira do governo federal, decisiva para fazer frente ao tombo das receitas. Ao mesmo tempo, a tendência é de maior busca por serviços pela população, em áreas como saúde, educação e assistência social, por exemplo, devido à continuidade da pandemia ao menos nos primeiros meses do ano, à necessidade de recuperar o tempo perdido no ensino e aos reflexos do desemprego alto.

Se os recursos serão escassos, é essencial buscar maior eficiência para a máquina pública, fazendo mais com menos. Produtividade e racionalidade dos gastos devem ser um mantra. Reformas administrativas que persigam esses objetivos são aconselhadas. O capital político do primeiro ano de mandato é sempre uma oportunidade para levar adiante temas que podem ser espinhosos, mas necessários para o equilíbrio também no longo prazo. O cuidado para evitar corrupção e desvios precisa ser redobrado. O inchaço da administração e mesmo tentações de ceder a pressões para aumentos de gastos com a folha têm de ser evitados, em nome do bem público.

Um crescimento mais robusto da economia vai depender do curso da pandemia. Nas maiores cidades, o setor de serviços, o mais afetado pela crise sanitária, é também o de maior peso. Mas, por enquanto, ainda está longe de recuperar o dinamismo de anos anteriores. Localmente, o que melhor podem fazer os gestores é serem incentivadores de comportamentos responsáveis para evitar o agravamento da covid-19 e assim a necessidade de novas rodadas de restrições a atividades como ocorre agora em São Paulo.

É preciso ainda um esforço para acelerar a vacinação. Diante da inépcia do governo federal, noticia-se que empresas privadas estariam tratando da importação de vacinas, buscando o aval do governo para a ideia. Metade seria doada ao SUS. Mesmo que possa ser uma iniciativa controversa e encontre dificuldades para avançar, é algo que pode ser melhor debatido. Uma das premissas deveria ser garantir que não estariam concorrendo com a União. Outra seria de alguma forma dar preferência aos grupos já estabelecidos como prioritários. Qualquer ação para aumentar o número de vacinados é melhor do que a omissão. Faz bem ainda o governo gaúcho, ao lado de outros Estados, em partir para a negociação direta para a compra de vacinas. Se a imunização em massa é hoje a única esperança de debelar a pandemia, é o que deve ser perseguido, por todos os meios possíveis.

OPINIÃO DA RBS

26 DE JANEIRO DE 2021
NÍLSON SOUZA

A mulher da minha vida 

O secretário municipal da Saúde da cidade goiana de Pires do Rio furou a fila de idosos e deficientes para arranjar um lugarzinho para a mulher da sua vida. Na verdade - deixando para o final a metáfora náutica -, o que ele fez foi dar um jeitinho de separar uma das raras vacinas contra a covid-19 no seu município para imunizar a própria esposa, que não fazia parte do grupo prioritário. Virou escândalo e exoneração, evidentemente.

O homem, que também é pastor de uma igreja local, reconheceu o erro, pediu desculpas e se justificou com uma verdadeira declaração de amor conjugal: "Foi com intuito de resguardar e preservar a saúde e a vida da mulher da minha vida. Sou capaz de dar minha própria vida por ela".

Bonito, né? Mas não deixa de ser desonesto e imoral, ainda que muita gente esteja fazendo o mesmo por motivos menos nobres. E não só no Brasil. Casos de furadores de fila vêm pipocando em várias partes do mundo, inclusive em países de reconhecida tradição civilizatória. Um dos mais rumorosos é o do chefe do Estado-Maior da Espanha, general megaestrelado, que pediu demissão do cargo depois de ser flagrado na esperteza.

Na hora do salve-se quem puder, é mesmo difícil ser forte, aguerrido e bravo, como recomenda nosso polêmico hino. A inspirada Clarice Lispector deixou registrado que coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante da vida. No contexto da pandemia, os furadores de fila não merecem clemência. Pode até parecer que o pastor de Pires do Rio foi menos egoísta do que o militar espanhol, pois não pensou apenas em si próprio, e sim na mulher de sua vida.

Mas desconsiderou que aquela dose de vacina surrupiada pertencia a alguém que também é o amor da vida de outro alguém.

Opções para o Titanic: a) Você fica no navio com a orquestra até o naufrágio total. b) Empurra os mais frágeis e pega um lugar no bote. c) Salta na água e tenta nadar até cansar.

Como se vê, esperar pela nossa vez na fila da vacina não é tão angustiante assim.

PS: E, se você quiser saber sua chance de sobrevivência no Titanic, independentemente da decisão tomada, consulte gzh.rs/3sWHOKg.

NÍLSON SOUZA

25 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Arbitragem prejudicou o Grêmio, mas isso importa?

O ruim de escrever sobre um Gre-Nal como o deste domingo é que é muito arriscado. O leitor sempre fará uma leitura emocionada do texto. Mas, exatamente por a leitura ser emocionada, é muito bom escrever sobre esse tipo de Gre-Nal. Porque o texto não será anódino.

Então, o melhor é entrar logo no meio da polvadeira, da troca de manetaço e de pernada: a arbitragem prejudicou o Grêmio. O pênalti de Kannemann não ocorreu e, antes disso, houve um pênalti em Ferreirinha que poderia ter sido marcado. O árbitro, inexplicavelmente, nem conferiu no VAR. Outro erro foi o juiz ter encerrado a partida antes do tempo de prorrogação que ele próprio definira, como, aliás, aconteceu no primeiro Gre-Nal que ele apitou, quando o Grêmio venceu por 4 a 1.

O que significa isso, ao fim e ao cabo? Nada. A vitória foi decretada, o Inter somou três pontos e é o virtual campeão brasileiro de 2020. Melhor: com méritos. No campeonato e no jogo.

O jogo teve duas propostas diferentes: no lado do Grêmio, a estratégia; no lado do Inter, a proposição. O Inter jogou o tempo todo para vencer; o Grêmio, para segurar o empate por algum tempo e, depois, tentar a sorte em algum lance isolado.

Curiosamente, pode-se dizer que ambas as ideias funcionaram. O jogo foi parelho no primeiro tempo, com poucas chances para os dois adversários. No segundo, o Inter pressionou por 15 minutos e quase marcou. Não conseguiu. Então, o Grêmio se reequilibrou, passou a dominar a partida e marcou seu gol. Só que o Inter insistiu. No upa-pupa, no abafa, no levantamento quase aleatório para a área, insistiu. E acabou obtendo o resultado que praticamente lhe dá o título.

Foi um clássico muito parecido com o Gre-Nal do Século, de 1989: Abel de técnico, virando o jogo e subindo para a ponteira do Campeonato Brasileiro nas últimas rodadas.

Mas uma partida dessas guarda outros significados. Para o Inter, é o recomeço. Um time com um goleiro seguro e um centroavante perigoso. Entre eles, um meio-campo forte. Ou seja: existe uma coluna de aço a sustentar a equipe. Os melhores? Patrick e Yuri Alberto, sem dúvida. Eles jamais deixam o adversário descansado, eles estão eternamente fustigando a zaga inimiga.

Para o Grêmio, os sinais são mais sombrios. Em primeiro lugar, repete-se a extrema incapacidade do time em decisões, nos últimos anos. Afinal, o Grêmio vencia aos 38 minutos do segundo tempo, e permitiu a virada, mais ou menos como se deu diante do River, na semifinal da Libertadores. Some-se esses jogos aos fiascos contra Santos e Flamengo, à derrota para o Athletico Paranaense em 2019 e ao constrangimento da final do Gauchão, contra o Caxias, e vê-se aí um time que fraqueja na hora mais importante. Um time que vacila.

É bastante óbvio, também, que algumas peças não funcionam mais. Diego Souza fez duas tentativas de arrancada angustiantes. Parecia que estava em câmera lenta, parecia um pesadelo. Mas ele é um jogador de 35 anos, grande e pesado. E Jean Pyerre, de 22, que, da mesma forma, não ganha na velocidade de ninguém e não dá mostras de se importar com isso? E Pepê, que, diria Felipão, perdeu a "alegria das pernas"? E o goleiro Vanderlei, que botou um tiro de meta no pé do centroavante do Inter? E Maicon e Geromel, que ficam mais em tratamento do que em campo? E Alisson, que é como se não estivesse lá?

O Grêmio tem de mudar. E muito.

O Inter ao contrário. O Inter não tem de mudar nada. Basta não mudar para ser o luzidio campeão do ano da vacina.

DAVID COIMBRA

25 DE JANEIRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

O BRASIL E A FILA

Mesmo que se tratem, pelo que se sabe até agora, de desvios pontuais, é fundamental que sejam esclarecidas imediatamente as denúncias de que a fila de vacinação não está sendo respeitada em alguns municípios do Rio Grande do Sul. Reportagem publicada por Zero Hora no fim de semana revelou que pessoas em desacordo com os critérios de prioridade estariam recebendo a imunização. Como se isso não bastasse, em alguns casos, registrados não apenas no Estado, mas em todo o país, indivíduos que se julgam acima da ética e da lei postaram fotos com certificados nas redes sociais, ostentando um privilégio ao qual não teriam direito e uma atitude da qual deveriam se envergonhar. 

É o que se viu em Manaus, onde duas irmãs recém-formadas, filhas de um homem com influência na política local, publicaram as imagens delas mesmas sendo vacinadas, enquanto o sistema de saúde da cidade colapsava, sem oxigênio e com filas de pacientes à espera de leitos em UTIs.

Diante desse e de outros descalabros, a reação foi exemplar. No Rio Grande do Sul , o Ministério Público (MP-RS) se mobilizou rapidamente. Por meio do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, da Saúde e da Proteção Social, investigações foram iniciadas juntos às prefeituras que, eventualmente, teriam descumprido as regras que estabelecem a ordem de vacinação. Cabe ressaltar que estes critérios foram construídos com base em indicações científicas e não podem ser maculados pela tentativa de levar vantagem ou de privilegiar poderosos e amigos do poder.

Garantir que os grupos mais vulneráveis, compostos, entre outros, por idosos e profissionais da saúde, sejam os primeiros a receber proteção contra a covid-19 levará a uma queda significativa no números de internações e óbitos, ao mesmo tempo em que evitará baixas entre médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas e demais integrantes das equipes da linha de frente do combate à pandemia.

Tão importante como levar à punição eventuais descumprimentos das regras, a ação do MP-RS tem a missão de zelar pela credibilidade de todo um sistema que, mesmo quando funciona bem, sofre ataques de negacionistas e de adversários da ciência, alguns deles alojados nas entranhas do próprio governo federal.

Furar a fila da vacinação é um ataque injustificável ao bom senso e à lei. É inadmissível que os brasileiros tenham de enfrentar mais esse absurdo, enquanto acompanham os dados sobre o recrudescimento da covid-19 no país, fenômeno turbinado pela falta de planejamento e de ação das autoridades de Brasília. Não sabemos quando haverá vacinas em número suficiente, enquanto outros países do mundo caminham céleres para a imunização em massa das suas populações e, com isso, para a retomada da normalidade social e econômica. De fato, o Brasil, por culpa própria, ficou para trás no ranking das nações que se organizaram para sair da crise sanitária. E nem adiantaria tentar furar essa fila. Quando o assunto é a saúde da população, o jeitinho, a politicagem, o radicalismo ideológico e a falsa esperteza não costumam dar bons resultados.

OPINIÃO DA RBS

Pátria 

Assisti com alguns meses de atraso àquela que pode ter sido uma das melhores (e menos comentadas) minisséries de 2020.

Pátria, uma produção da HBO Europa com colaboração da HBO América Latina, é baseada no livro homônimo do escritor espanhol Fernando Aramburu (Intrínseca, 512 páginas, R$ 64,90). Estreou em setembro, mas ainda dá tempo para correr atrás do prejuízo: os oito episódios da série estão disponíveis para assinantes da HBO Go e do Now.

A história começa em 10 de janeiro de 2011, dia do anúncio do cessar-fogo "permanente, geral e verificável" da organização nacionalista basca ETA - responsável por mais de 3 mil atentados e centenas de mortes ao longo de mais de quatro décadas de atuação na Espanha. Através de flashbacks, que recuam até o início dos anos 1990, a série mostra como duas famílias muito próximas, de um pequeno povoado do País Basco, foram marcadas pela violência do terrorismo e das forças de repressão.

As personagens centrais são duas senhorinhas, Bittori (Elena Irureta) e Miren (Ane Gabarain), amigas outrora íntimas que acabam ficando em lados opostos do conflito nacionalista quando o marido de uma é morto pela organização terrorista à qual o filho da outra pertence. Não é toda hora que a melhor série em cartaz é estrelada por duas personagens com mais de 70 anos tão combativas e apaixonadas pelas causas que defendem como são devotadas aos filhos e ao lugar onde nasceram.

As feridas que sangram essa pequena comunidade basca têm raízes históricas que remontam à Guerra Civil Espanhola (1936-1939), mas a radicalização de um país cindido por paixões políticas aparentemente irreconciliáveis tem muito em comum com o momento que vivemos em 2021, e não apenas no Brasil. Pátria mostra até que ponto dores e ressentimentos não elaborados podem dividir uma família ou um país - e o quanto pode ser longo e árduo o processo de pacificação.

Para explodir uma ponte, basta um aloprado. Para reconstruir, é preciso um pelotão de pessoas de boa vontade.

CLÁUDIA LAITANO 

25 DE JANEIRO DE 2021
INFORME ESPECIAL

A caixa d'água da discórdia 

A novela teve final feliz. Até o final da semana, uma caixa d?água ameaçava impedir que a ampliação da pista do Salgado Filho cumprisse com a missão de possibilitar voos mais longos e com carga máxima desde Porto Alegre. O reservatório, construído em um estabelecimento comercial da avenida Sertório, vizinha ao aeroporto, foi erguido com dez metros a mais do que permite a prefeitura. Com isso, o Cindacta, 

Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo, avisou que, caso o objeto continuasse com essa altura, somente 2.880m dos 3.200m da pista poderiam ser usados, fazendo com que o trabalho da ampliação fosse perdido. A novela durou dias. A Fraport, empresa que administra o Salgado Filho, já começava a perder as esperanças quando veio o aviso: os empreendedores do estabelecimento comercial ficaram sabendo do problema e, prontamente, se comprometeram a resolver logo a situação. Foi uma aterrissagem complexa mas, no fim, ninguém se machucou e o avião está pronto para novas decolagens.

Feita a paz entre Wesley Safadão e Carpinejar

O cantor Wesley Safadão postou sábado, às 14h25min, no Twitter, como de fosse sua e sem dar crédito, uma frase do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar: "Nunca teremos tempo para nos despedir direito, capriche nos encontros imperfeitos, a vida é um sopro". Carpinejar gostou da publicação, mas estranhou o fato de Safadão, que também vive de direitos autorais, não dar o crédito ao autor. "A frase está na contracapa do livro "Família é Tudo, de 2019. Postei pela primeira vez em 2018", relembra.

O assunto chegou aos ouvidos de Safadão. Às 23:31, o cantor postou novamente a frase, acrescentando os dizeres: Créditos: @CARPINEJAR. Não foi exatamente um pedido de desculpas, mas valeu o gesto. A paz está refeita.

TULIO MILMAN

23 DE JANEIRO DE 2021
LYA LUFT

Morte em retalhos 

Na primeira vez que entrei na sala de um psicanalista, sentei-me no divã e fiz um comentário tão tolo que até hoje me envergonha:

- Imagino tudo o que foi dito aqui entre essas quatro paredes...Ele me olhou como se eu fosse uma criança (pra ele, acho que eu era) e disse:

- Mais importante do que os segredos revelados será tudo o que não foi pronunciado.

Decidi que eu seria esta que fala fala fala, ainda que por escrito, para, transbordando, reter dentro de mim o mais importante: o que jamais seria dito - e descobrir o que é.

Tenho em minha sala um quadro despretensioso, no verso do qual a autora assinou apenas seu sobrenome: "Grauben". Sei que era já de avançada idade quando começou a pintar. É uma pintura ingênua e pontilhista: um jardim com duas árvores floridas, no meio um banco onde se senta uma menina com sua boneca. Ou é uma jovem mulher com uma criança. De cada lado dessa mulher há um gato: o preto senta-se a seu lado direito no banco; o branco está no capim do lado esquerdo.

Acho, quando contemplo, que pode ser a psique nas águas turvas do inconsciente; e de cada lado dela aparece isso que somos de bom e mau, livre e prisioneiro, a força da vida e a pulsão da morte. No quadro, a "pulsão da morte" está mais próxima, sentada no banco do lado direito daquela mulher com a sua reprodução, dela parida, boneca ou criança. E estende-a um pouco afastada do corpo, como para a mostrar a nós, indagando: qual sou eu?

Certa vez, digitei "peras" em lugar de "perdas". Quando fui corrigir, achei mais interessante assim. Pois vendo aquelas frutas fora de contexto, perdidas no meio de um campo ermo, as pessoas pensariam: o que foi que ela quis dizer? Todo mundo quer entender o que devia ser apenas sentido e reinventado. E quem sabe começariam a usar sua imaginação: uma das serventias da arte.

E, quando escrevi o jardim dos "adeuses", me saiu "deuses". Por que não? Não serão eles a manejar os cordões em que nós, pobres humanos, estamos presos, em nossas aventuras e desventuras, correndo pelos cantos da construção de uma vida que sempre parece inacabada - e por mais difícil que seja, pedimos mais um tempo, um ano, um mês, uma hora, um suspiro?

Hoje falamos tanto em morte, com tanta naturalidade, 100 mil, 20 mil, que o assunto quase perdeu a gravidade, crianças brincando na beira do penhasco. E, quando a noite chega, pode ser feito uma pálpebra baixada, sonho, delírio, transfiguração - ou a voz da mãe chamando, entra que está ficando escuro! Terminamos a construção do dia, da casa da vida. Pode estar fora do esquadro, uma parede abaulada, telhado torto, jardim de pedregulhos (mas delicadas dálias e rosas) e uma escadinha encostada num muro que não separa nada de nada.

É quando entramos no jardim dos deuses. Onde reina a Dona dos Adeuses, a Senhora Morte: muito escrevi sobre ela, muito por ela chorei, quando me esmagou com os saltos cruéis de seus sapatos alados e seus ossos ferozes. Então resolvi, aqui, não falar nela, tão banalizada. (Só um fingimento, em retalhos.)

LYA LUFT

23 DE JANEIRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

A INTELIGÊNCIA DO FUTURO 

Você tomaria uma pílula que o tornaria um gênio muito acima da média? Há 20 anos, Alan Glynn escreveu um texto ficcional, The Dark Fields. O livro serviu de base para um filme, Sem Limites (Limitless, Neil Burger, 2011). Do sucesso do filme, surgiria uma série de mesmo nome. Filme e série provocaram uma mudança no livro original: com a concordância do autor, seu novo título passou a ser Limitless.

Fundindo aqui o livro, o filme e a série, temos uma droga nova e poderosa: MDT-48. Seu uso produz uma explosão de inteligência no usuário. O cérebro passa a associar tudo o que já foi lido ou visto e elabora soluções fulminantes para os problemas que eram insuperáveis. Você viu um documentário de madrugada aos 16 anos sobre o conceito de supercordas? Ele está lá, no fundo da sua memória, e a pílula pode trazê-lo à tona combinando com as aulas que você já viu e associações a outros conhecimentos. A droga não inventa inteligência, ela apenas permite que você utilize todos os dados possíveis e focados em uma capacidade nova de concentração e de resolução de desafios.

O diálogo, óbvio, é com um dos mais antigos mitos pseudocientíficos do mundo: nós utilizaríamos apenas 10% do total da capacidade do nosso cérebro. Existira, diz a lenda urbana, um campo enorme de 90% a explorar. Acho que isso evita a humilhação de perceber que sim, utilizamos 100% da nossa capacidade e ainda somos o que somos... Seria bom ter um gênio repousando nas cavernas inexploradas da nossa consciência.

Em 2020, li duas obras que diminuíram um pouco minha ignorância sobre inteligência e cérebro. Um foi o texto do cientista Miguel Nicolelis, pela Editora Crítica: O Verdadeiro Criador de Tudo - Como o Cérebro Humano Esculpiu o Universo Como Nós o Conhecemos. A maneira como ele analisa a evolução do cérebro humano faz pensar na maravilha e na prisão que o cérebro de cada um de nós representa. Terminei o livro com um novo conceito de subjetividade, além de tudo o que supunha até então. Fiz paralelos ricos entre a visão de Nicolelis e a de Yuval Harari no livro Sapiens.

Como criamos a visão do universo? Existe uma na caverna de Lascaux, com pinturas do homem pré-histórico. Existe outra na Capela Sistina, no Vaticano. Existe uma teoria física contemporânea explicada em desenhos da Nasa. O que elas teriam em comum? O cérebro, criador de tudo, que descreve, analisa e inventa o que pode a partir do que consegue perceber. Assim argumenta Miguel Nicolelis.

Em janeiro de 2020, recebi um presente do meu amigo Ricardo Krause, um livrinho em paper back: Life 3.0, do professor do MIT Max Tegmark. No fim do ano passado, a editora Benvirá apresentou a tradução ao público brasileiro. O subtítulo da obra é O Ser Humano na Era da Inteligência Artificial. A expressão "inteligência artificial" evoca os velhos medos da "síndrome de Frankenstein". Como no romance da talentosa Mary Shelley, seremos um dia destruídos por nossas criações? O substantivo evoca o melhor de nós (inteligência) e o adjetivo traz o medo (artificial). Sendo, por definição, "artificial", é algo que ajudará o "natural", ou seja, o Homo Sapiens ou rivalizará com ele, eventualmente o destruindo?

Tegmark destaca os problemas: a definição de inteligência e da própria ideia de consciência. Claro, não existe uma definição indiscutível de consciência. O autor da Vida 3.0 está em consonância com a ideia-chave de Nicolelis: não é o nosso universo que dá sentido aos seres conscientes, mas são os seres conscientes que dão sentido ao universo.

A inteligência artificial (IA) é um novo limiar que traz desafios e possibilidades. Tegmark imagina que seria bom discutir bastante e avançar em reflexões antes de dar todo o poder às novas tecnologias. As leis deveriam ser modernizadas, as desigualdades sociais, diminuídas e os parâmetros éticos, solidificados antes que tudo fique incontrolável. Em resumo, nossa velha e humana consciência ainda é o grande desafio, e não, exatamente, a IA. "Você quer ser alguém que interrompe todas as conversas para verificar seu smartphone ou alguém que se sinta capacitado a usar a tecnologia de forma planejada e deliberada? Deseja ser dono de sua tecnologia ou deseja que a tecnologia seja sua dona? O que você quer que signifique ser humano na era da IA?"

Em resumo, diante dos medos e esperanças de todo limiar de revolução tecnológica, precisamos trazer a síndrome de Frankenstein sempre para o debate. O ser criado pela costura de cadáveres e animado pela eletricidade não era, exatamente, o problema. A história narrada pelo capitão Robert Walton em meio ao frio polar é o drama do doutor Vitor, não da criatura. O grande problema ético ainda está na inteligência natural, e não na artificial. A nossa pretensão a ser Prometeu é um drama real, ainda que o desloquemos para as criaturas inventadas por nós. É preciso ter esperança e alguma inteligência para os novos tempos.

LEANDRO KARNAL

23 DE JANEIRO DE 2021
ENSAIO

KAFKA e o conavírus 

Estou relendo Franz Kafka (1883-1924), numa edição da Pinguim Companhia, com bela apresentação de Modesto Carone, e percebo, à medida que avanço na leitura, principalmente no conto intitulado A Metamorfose, como esse visionário previu os tempos atuais.

Kafka foi importante para a jovem estudante do Direito e das Leis, ao indicar que a "burocracia", em todos os níveis, com seus carimbos, entrava o avanço da caminhada humana, sem nunca chegar ao Castelo dos entrincheirados no Poder ou na promulgação da Justiça aos desvalidos do Processo.

Muito me marcou uma frase de sua escrita: "A lógica não pode impedir um homem que quer viver". A lógica, não como coerência das leis do raciocínio, mas sistema da burocracia e do descaso das pessoas.

Entendo que, lendo Kafka, pior do que as guerras é a burocracia da justiça tarda, da vida tarda, da fraternidade tarda. Os violentos se apressam em destruir e aviltar, e os mansos deixam para depois o que deve ser salvo e preservado. Adiam a felicidade do bem comum.

Tive a honra, já madura, então Patrona da Feira do Livro de Porto Alegre de 2018, de agradecer à República Tcheca, homenageada daquela edição da Feira, por ter dado ao mundo esse patrimônio cultural e humano que foi Kafka, que, ao morrer, delegou a seu editor a tarefa de queimar seus escritos inéditos. Max Brod ficou na história por ter salvo esses inéditos quando entendeu que os mesmos eram para o fogo da leitura de outros olhos, seus leitores futuros.

Pois bem, Gregor, o personagem do referido conto, acorda do sonho para um pesadelo real de ter se transformado num inseto. Tudo ao contrário de quando temos um alívio de despertar de um pesadelo e verificar ofegante a nossa existência livre do seu peso. Sim, estamos vivendo um pesadelo nunca previsto. Talvez anunciado pelo descuido com o nosso planeta.

Com o vírus, enquanto não vier a bem-vinda vacina, somos frágeis como insetos, mas não somos uma "nuvem de gafanhotos" que navega conforme os ventos e tem como bússola apenas o instinto selvagem. Somos comunidade, com a responsabilidade recíproca de preservar a vida, através de sábias orientações da ciência e da sociedade que partilhamos. Se, antes, algumas nações eram gregárias, agora temos o dever de ser realmente um povo unido como nação alicerçada em valores éticos e sociais. Se, antes, desfrutávamos e desperdiçávamos os recursos da terra, agora temos o dever de passar a mesma aos vindouros, que têm o direito de encontrar essa morada propícia a uma existência sadia.

Porém, neste tempo em que estamos vivendo, com tantos exemplos de heroísmo e cordialidade, o que mais me espanta e causa indignação é que, apesar da pandemia, alguns senhores, detentores de cargos públicos portam-se como negociadores da burocracia e do espólio público. E continuam a fazer falcatruas, igualando-se a insetos salteadores na lavoura do bem comum.

Pergunto a Kafka: haverá uma vacina contra a burocracia?

Ele me responde, com um sábio aforismo para nossa meditação: "Existem dois pecados capitais, dos quais todos os outros derivam, a impaciência e a indolência. Por causa da impaciência os homens foram expulsos do paraíso, por causa da indolência eles não voltam."

Ainda podemos recuperar o paraíso terrestre e sermos sementes de uma nova geração. 

MARIA CARPI

23 DE JANEIRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

A viagem que não fiz

Fazia 7°C naquela sexta-feira de junho, e a roupa que eu havia separado para embarcar não era quente o suficiente. Despertei às 5h30min e precisava estar no aeroporto às 6h. Vesti o jeans, a camisa, as botas e a jaqueta de couro, enfiei a mochila no ombro e fui pegar a mala que já esperava fechada na sala. Chamei o Uber. Ainda estava escuro quando ele estacionou em frente ao prédio.

Gosto de voos internacionais diurnos, aproveito para ver filmes, ler, fazer anotações, mas nenhuma dessas tentativas prosperou. Não consegui passar das primeiras cenas de um blockbuster com Will Smith. Tampouco me concentrava na leitura: ao chegar na terceira página, tinha que voltar ao início do livro. Desisti. Fiquei pensando na vida e olhando fotos dela no celular. Não gosto de manter a janela do avião fechada durante o dia, mas não abri para não perturbar o sono do sujeito ao lado. Resolvi dar uma cochilada também e acabei apagando.

Ao aterrissar em Paris, minha camisa estava amarfanhada e os pés inchados. Me arrependi de não ter ido ao banheiro antes, mas o sujeito ao lado roncava e não havia como passar por cima das pernas dele. Toquei em meus cabelos, preguiça de pegar um pente. Abri a janela e vi que chuviscava.

O avião custou a abrir as portas. Os passageiros demoraram a desembarcar. Havia uma fila muito longa na imigração, outros aviões haviam aterrissado no mesmo horário, mais de uma hora em pé até alcançar o guichê e apresentar meu passaporte. Fiquei com medo de que minha mala já não estivesse na esteira e em lugar nenhum, mas ela estava lá, rodopiando sozinha. Peguei-a e corri para o banheiro mais próximo, distante uns 60 metros. Abri o zíper quase tarde demais, foi por um triz.

O combinado era nos encontrarmos no hotel, onde ela passaria uns dias comigo - não teria exigido que ela me aguardasse no Charles de Gaulle com a noite avançada. Peguei um táxi com um senegalês na direção. O tráfego estava livre e percorremos os 30 quilômetros do aeroporto à cidade com relativa rapidez. Quando chegamos, ele me ajudou com a mala. Deixei o troco, ele achou pouco. Meu coração saía pela boca.

Me aproximei do balcão do check-in sem olhar para os lados. Ela já teria se registrado e talvez até pegado no sono. Boa noite, cumprimentei com meu francês parcimonioso. Bonsoir, madame, o concierge respondeu. Foi quando escutei: "Mãe".

Assim começaria a viagem que eu deveria ter feito em junho de 2020 e não fiz. Não vejo minha filha há exato um ano. Enquanto a saudade aumenta, a imaginação me leva até a França, onde ela vive: eu a abraço forte no hall de um hotel, sem saber onde largar minha jaqueta e minha ansiedade, e o resto do roteiro eu crio um pouco a cada dia, a fim de dar algum proveito a este tempo que não passa.

MARTHA MEDEIROS

23 DE JANEIRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

O bom senso adverte: grupo de zap faz mal à saúde

Quando tudo mais falhou, só sobrou a CoronaVac, a vacina produzida pela China. Aquela que passou meses sendo desacreditada pelas autoridades, alvo das mais doentias teorias da conspiração nos grupos de zap.

Nada a estranhar, uma vez que as mesmas teorias insistem que o vírus foi criado em um laboratório chinês com vistas aos futuros, e astronômicos, lucros com a venda da vacina.

Ia esquecendo: também já se disse que o coronavírus se dissemina por meio do sinal 5G, a próxima geração da rede de internet móvel. O que explicaria o interesse da China no novo negócio da telecomunicação: vender vacina, óbvio.

Fato é que a contaminação só aumenta. E que, em vez de fazer o que deve ser feito, medidas básicas como evitar aglomerações, usar máscara e sempre lavar as mãos, o pessoal prefere tocar o terror nos grupos de zap.

Foi nesses fóruns da ignorância que tomamos conhecimento - olha a contradição em termos - dos danos que os termômetros do tipo infravermelho, esses que os shoppings e restaurantes usam para medir a temperatura dos clientes, causariam ao cérebro.

Quem acredita nisso, com todo respeito, já deve ter um dano no cérebro. Em todo caso, os estabelecimentos comerciais resolveram o assunto passando a medir a temperatura das pessoas no pulso. Fazer mal ao pulso da galera vai parecer menos grave para o zap, devem ter avaliado.

Sobre a tese de que o uso da máscara pode levar à morte pela retenção do gás carbônico, melhor nem comentar. E sobre a cloroquina e demais remédios prescritos por alguns durante essa longa pandemia, a Anvisa - que é um órgão do governo - tratou de esclarecer no domingo passado: além da vacina, nenhum outro tratamento apresenta a mais mínima eficácia. Ponto.

Nada que tenha sossegado os grupos de zap.

Entre as preocupações manifestadas por eles está a de que a CoronaVac insira um microchip no corpo do vacinado, veículo através do qual os chineses espalhariam o comunismo entre a população mundial. O contágio seria rapidíssimo, uma verdadeira loucura.

Outro temor é o de que a vacina altere o DNA humano. Já foi dito: se você virar um jacaré, é problema seu. E olha que essa declaração nem se referia à CoronaVac, mas à vacina da norte-americaníssima Pfizer.

A boa notícia é que essa parece ser uma inquietação infundada.

Analisando alguns dos escolhidos para receberem as primeiras doses da CoronaVac no Brasil, todos apresentam uma das características mais desejadamente humanas da nossa espécie: a felicidade. Bem verdade que as enfermeiras e técnicas não puderam ficar expostas aos olhares, elas que já estão novamente escondidas por camadas e camadas dos EPIs necessários para trabalhar nas UTIs que tentam atender os milhares de pacientes de covid pelo país. Isso quando não falta oxigênio.

Já a dona Eloína, de 99 anos, que mora em um lar de idosos e foi uma das primeiras a ser vacinada, deve continuar rindo embaixo da máscara.

Como diz o Macaco Simão: eu tô tão louco para tomar vacina que já acordo de regata. Frase boa para grupo de zap, aliás. Bora espalhar.

CLAUDIA TAJES