sábado, 28 de fevereiro de 2015


01 de março de 2015 | N° 18088
MARTHA MEDEIROS

Os charmosos do contra

Todos vão para Machu Picchu? Eu embarco para Porto Príncipe. Todos estão lendo o novo livro do Chico Buarque? Nem abro. Show do Paul McCartney de novo? Ele pode vir 46 vezes ao Brasil que não vou. Prefiro o Guri de Uruguaiana.

O que? O Guri de Uruguaiana está lotando teatros? Desisti, não vou mais.

E assim ele vai sedimentando seu caráter. Ele, o homem que se recusa a fazer o que todos fazem. Ou ela, a que se recusa a seguir o rebanho. Pode ser tanto ele como ela. Os que formatam sua personalidade protestando contra o senso comum.

Fico dividida diante dessas criaturas. Por um lado, reconheço sua autenticidade como virtude e os admiro pela perseverança em sempre buscar aquilo que quase ninguém viu, quase ninguém leu, quase ninguém escutou falar a respeito. Eles sustentam os mercados independentes e de quebra atraem para si o charme dos aventureiros e desbravadores. São homens e mulheres únicos. Não foram produzidos em série.

Como não se apaixonar por uma criatura dessas? Criei aqui uma figura hipotética e já estou quase o convidando para jantar.

Por outro lado, acho que deve ser meio cansativo buscar sempre aquilo que é estranho, diferente, inédito, escondido, inabitado, marginal, esquisito. Ainda mais nesses tempos de conexão tecnológica, em que praticamente não existem mais segredos. O novo permanece novo por muito pouco tempo. O Mr. Autêntico tem que ser rápido.

Tem outra questão: o autêntico não quer conhecer o Rio de Janeiro, seria uma viagem óbvia. Não foi assistir a Birdman porque ganhou o Oscar. Nunca leu um livro que tenha ganhado segunda edição. Odeia ceviche sem nunca ter experimentado. Perdeu grandes festas. Valerá mesmo a pena ser um anti-herói?

Outro dia conversava com um exemplar dessa espécie e, mesmo extasiada com sua biografia de outsider, arrisquei uma perguntinha miúda: não dá para transitar entre lá e cá? Se você quer ir até a Groenlândia, pega mal fazer um pit stop em Ibiza? Não dá para infiltrar alguma literatura norte-americana em meio a sua coleção de poesia indígena? Posso pedir um filé com fritas em vez de sopa de capivara? Se eu for conhecer uma pousada no meio do mato que não está no Booking.com, encontrarei um vaso sanitário no banheiro ou isso é um luxo pequeno burguês?

Transitar entre lá e cá. Ser um pouco da urbe e um pouco da selva, um pouco curioso e um pouco rendido, ter histórias alucinantes para contar e outras bem triviais, é possível?

Então o milagre se deu. Ele disse que estaria disposto a conhecer o Rio de Janeiro (desde que pudesse dar uma passada antes em algum lugarejo com menos de 50 habitantes, sem luz elétrica). O convidei para jantar na mesma hora. Não pedi filé com fritas para não provocar. E ele não pediu sopa de capivara porque não tinha.

Ser um pouco da urbe e um pouco da selva, um pouco curioso e um pouco rendido, é possível?



01 de março de 2015 | N° 18088
ANTONIO PRATA

Fábulas monterrosianas

O burro, a mula, o jegue e o jumento se reuniram numa assembleia para redigir um manifesto contra o cavalo. Era intolerável que eles trabalhassem tanto ou mais do que o nobre colega equino, mas só no nobre colega equino ficasse hypado. “Alguém aí já viu burro em propaganda de cigarro?”, “E mau aluno com chapéu de cavalo?”, “E por que nunca criam uma mula unicórnio?”. Redigiram um manifesto a oito cascos exigindo a imediata distribuição do sucesso cavalar para a totalidade da classe equestre e uma maior equanimidade (atenção: trocadilho) na divisão internacional do trabalho.

No dia seguinte, o burro, a mula, o jegue e o jumento foram ao pasto, entregar o manifesto. O cavalo os olhou, mal-humorado, mascando um capim, com sua pinta de Charles Bronson. “Que foi?”. “Nada, nada”, responderam, trêmulos, e desistiram de entregar o documento.

Voltando do encontro, o burro, a mula, o jegue e o jumento avistaram a zebra, bebendo água num lago. Correram até lá, a cercaram e lhe deram uma surra de coices e pinotes. “Zebra vagabunda!”. “Quem você pensa que é?!”, “Não trabalha! Não faz nada! Passa o dia de pijama!”, “Vergonha da classe equina!”.

Era uma vez um gato rajado, velho e gordo que fingia ser filhote de tigre. Ele chegava a uma cidade, entrava no primeiro bar e batia no balcão: “Barman, bourbon! Eu sou filhote de tigre! Se você não me der bourbon, eu volto aqui quando crescer e te como no café da manhã!”. Todo mundo caía na gargalhada. O poodle na mesa de sinuca tirava o cigarro da boca e provocava, “Eu sou filhote de urso!”, a mariposa do lustre gritava, “Eu sou um B-52!”, o macaco, jogando dardos, emendava, “Eu sou um bonsai de King Kong!”, e o gato rajado, velho e gordo seguia para a próxima cidade.

O vírus tinha inveja da bactéria, que tinha inveja do ácaro, que tinha inveja da pulga, que tinha inveja do besouro, que tinha inveja do rato, que tinha inveja do gato, que tinha inveja do puma, que tinha inveja do tigre, que tinha inveja do leão, que tinha inveja do leão mais jovem, que tinha inveja dos leões mais jovens de antigamente, que, dizem os leões mais velhos, eram muito mais fortes, mais livres e não tinham inveja de ninguém.

“Segundo a assessoria de imprensa do time dos macacos, o lateral direito Prego, 29, não descarta processar a torcida das hienas que, durante uma cobrança de escanteio, atirou relógios, óculos e escovas de dentes em sua direção”.

A cascavel entra a milhão no Pronto Socorro: “Mordi a língua! Mordi a língua!”.

Três lesmas muito machas se reunem pra brincar de roleta russa. No meio da roda, uma caixinha de Tic-Tac com seis balas dentro. Cinco, na verdade: a sexta, idêntica às outras, é uma pedra de sal.

Décadas atrás, era impensável um ouriço transgênero. Hoje, veja só, para todo lado que se olhe percebe-se – azuis, violetas, rosadas – a grande quantidade de anêmonas


ps. Estes textos são descaradamente inspirados no livro A Ovelha Negra e Outras Fábulas, de Augusto Monterroso, Cosac Naify, tradução de Millôr Fernandes.

01 de março de 2015 | N° 18088
FABRÍCIO CARPINEJAR

Superpoder

Todo mundo é super-herói. Todo mundo tem um poder especial. Uma característica que transforma a existência.

Pode ser uma virtude disfarçada de defeito. Pode ser algo de que você não gosta em si.

Quando conheço alguém, sei que estou desvendando um superpoder por detrás da aparência e da normalidade, uma vida multiplicada por um talento.

No jardim de infância, tinha a Bárbara, que odiava sua boca carnuda. Recebeu o apelido de flor carnívora. Mas foram justamente os lábios desenhados com volúpia que fizeram com que virasse modelo de sucesso. Recordo também de Daniel, na adolescência, com dificuldade de se expressar em público. Abominava sua timidez, gaguejava quando pressionado. Pois sua retração fascinava as mulheres, que o rodeavam e falavam por ele. Não existiu um garanhão igual na faculdade.

Conservamos um trejeito em particular que revela nossa personalidade. Já vi muita gente simples com o superpoder da esperança, capaz de enfrentar diagnósticos terríveis e a morte próxima. Ou com o superpoder da paciência, desarmando brigas com uma voz mansa e calma, sem jamais levar o desaforo para o lado pessoal. Ou com o superpoder da fé, cumprindo quilômetros de joelhos em nome de uma promessa.

Há feirantes com o superpoder do grito, atraindo compradores à distância. Há ambulantes com o superpoder do tempo, farejam pela cor da nuvem ou pela arruaça dos pássaros se choverá dentro de quinze minutos e se devem levantar a barraca. Há quem tenha o superpoder de localização, de tanto andar de ônibus, e palmilham a cidade de olhos vendados.

Minha empregada Cleonice, por exemplo, tem o superpoder da risada. A casa está tensa, acabrunhada, e ela aparece cortando a atmosfera com seu bom-dia risonho. Abre as janelas e as portas ao arejar os humores. O filho Vicente mantém o superpoder dos cílios enormes. Observa de um modo tão misterioso, com aquele olhar de árvore, que logo precipita a eloquência dos familiares – sempre está em vantagem na captura de segredos. Já Mariana guarda o dom da irreverência: dramática, passional, intensa, ela sente o mundo duas vezes mais do que a média. Dela, receberá as mais bonitas, sinceras e corajosas declarações.

O ideal é que seja amado pelo seu superpoder. Descobrir alguém que identifique sua fraqueza, e a reconheça como estimulante, apesar de ser um empecilho no entendimento da maioria.


Se bem que o amor torna qualquer um poderoso.

01 de março de 2015 | N° 18088
MOISÉS MENDES

Os exterminadores

Aeconomia foi a desculpa pública para a formação da União Europeia. Mas o que os europeus queriam mesmo era livrar-se das guerras e salvar suas almas. A UE era a tentativa de cura dos horrores do nazismo e do holocausto.

O sociólogo alemão Ulrich Beck lida com os tropeços desse esforço em A Europa Alemã (Paz & Terra, 126 páginas), publicado originalmente em 2012 e só agora editado no Brasil.

Beck é o teórico da sociedade de risco, que vê o mundo sob ameaças permanentes. Valores (inclusive os da família) são fragmentados ou perdem importância. Sob a hegemonia do individualismo, o mundo estaria sempre em espasmos ou à espera de crises econômica, social, ambiental, terrorista.

A Europa Alemã trata da crise do euro e do endividamento de Grécia, Irlanda, Itália, Portugal e Espanha, que transformaram a Alemanha em guardiã moral da ideia de unidade. É a isso, à Alemanha como consciência econômica e ética da Europa, que Beck se dedica.

O país que saiu de duas guerras abatido militar e moralmente passa a se impor, pelo poderio econômico, como orientador das vidas dos vizinhos arruinados. A receita é a austeridade, rejeitada pelos gregos, que recentemente elegeram um governo de esquerda.

Austeridade é cortar gastos, inclusive sociais, em nome de um equilíbrio contábil que favoreça a União. A subtração de benefícios e o empobrecimento das populações, mostra Beck, tem, na mesma medida, o favorecimento do sistema financeiro. Austeridade significa fortalecer os bancos e impor mais miséria aos que já não têm quase nada.

A Alemanha é a fiadora da tática do arrocho. O país que meio século atrás emergia de escombros impõe-se como tutor da Europa que não soube se comportar. Os alemães são “os pregadores morais de uma Europa alemã”, cercados por “um bando de países preguiçosos”, que devem ser convencidos de que precisam se reeducar, cortar despesas e restabelecer responsabilidades.

A tutela que protege credores e massacra devedores, em nome do socorro financeiro aos endividados, faz com que a própria Alemanha se reapresente involuntariamente como “a imagem do inimigo”, da qual os alemães e a UE pretendiam se livrar.

Todos são acossados, não pela Alemanha bélica, mas pela nação mais poderosa do continente, avalista de qualquer gesto feito em nome da União.

O moralismo econômico produz a indignação dos que se sentem usurpados em seus direitos. Salvar a União Europeia deveria ser preservar os sonhos e os empregos dos jovens, diz Beck, que escreveu: “Está na hora de virar o jogo, não precisamos de mais bailouts (injeção de dinheiro) para os bancos, e sim de um mecanismo de salvação social para a Europa das pessoas, dos indivíduos”.

O sistema financeiro que suga os europeus tem seus equivalentes em todo o mundo. No Brasil da estagnação, seus lucros aumentam até 25% ao ano.

Beck morreu em janeiro. Testemunhamos por ele a resposta que os gregos começaram a dar, pela democracia, ao sistema que finge socorrê-los e os deixa ainda mais miseráveis.


A Europa livrou-se do nazismo, mas ainda não sabe se um dia poderá livrar-se do que o sociólogo definiu como as catedrais sagradas e intocáveis do sistema financeiro global. As aberrações da sociedade de risco do século 21 também sabem produzir extermínios.

01 de março de 2015 | N° 18088
COMPORTAMENTO OS 40 DE OUTRAS ÉPOCAS

OS NOVOS SESSENTÕES

A cada ano, cerca de 650 mil brasileiros chegam aos 60 anos. Para a Organização Mundial da Saúde, é aí que começa a terceira idade, quando, oficialmente, eles podem ser chamados de idosos. Na prática, a palavra gera desconforto.

Conhecidos como baby boomers (nascidos entre 1945 e 1960), os sessentões de hoje estão longe da ideia de aposentados que encaram a fase como o fim das atividades úteis. Alguns se preparam para encerrar o ciclo do trabalho formal, mas descansar não é um plano viável: para eles, chegar aos 60 significa abandonar a idade cronológica e aproveitar o momento para realizar sonhos que tinham ficado para trás. É chegada a hora de conquistar a vida que queriam ter. E o que define a vida dos sessentões são liberdade e autonomia: 65% das mulheres nessa faixa etária vivem sozinhas – eles são apenas 31% –, e 71% dos idosos brasileiros têm independência financeira.

– Há alguns anos, pensar na velhice era algo que acontecia só dentro das famílias, era algo privado. Hoje, há uma atenção cada vez maior para a qualidade do envelhecimento. Finalmente, o idoso é considerado um ator político, um importante consumidor com espaço maior na sociedade – afirma Guita Grin Debert, professora de antropologia na Universidade Estadual de Campinas.

Hoje, há 23 milhões de pessoas com mais de 60 anos no Brasil. Esse número é 50% maior do que na década passada. Proporcionalmente, as regiões Sul e Sudeste concentram a maior parte dessa população. De acordo com o último Censo, das 20 cidades com maior proporção de pessoas com mais de 60 anos, 18 são gaúchas.

– Os 60 são os novos 40. A OMS encara esse grupo como idosos e isso tem suas vantagens e desvantagens. É bom porque garante direitos a um público que não era muito assistido. Ao mesmo tempo, é ruim porque eles enfrentam preconceito. São vistos como velhos, mas estão mais preocupados com a saúde, mudaram o estilo de vida porque querem viver mais e ainda têm pique para continuar trabalhando – explica Newton Terra, diretor do Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS.

Segundo o IBGE, 27% dos idosos brasileiros continuam trabalhando – e isso inclui os setentões e os longevos (pessoas com mais de 80 anos). A “cronologização” da vida mudou. Para Guita, a idade é um sistema que padroniza a hora de iniciar a escola e de se aposentar, por exemplo, mas que hoje exige flexibilização.

– Estou com 63 anos e me preparando para a aposentadoria. Não é o fim da vida útil, apenas quero ter mais tempo, depois de tantos anos de produção intensa, para aproveitar outras experiências. Antigamente, a idade tinha conotação de perda, de declínio. Hoje, são os ganhos que têm destaque na vida das pessoas mais velhas – comenta a antropóloga.

Nas próximas páginas, você vai conhecer as histórias de Maria Odete, Nanete, Sergio e Milton (nas fotos, da esq. para a dir.), representantes dos novos sessentões gaúchos.


GREYCE VARGAS | ESPECIAL

01 de março de 2015 | N° 18088
ARTIGOS | DIANA LICHTENSTEIN CORSO

A VIDA EM CINZA

Imagine que você fabrique um produto qualquer: uma esponja de aço, por exemplo. Seu sonho de empresário seria tornar-se Bombril, que em nossa língua é sinônimo desse objeto. Agora imagine que os amantes almejassem o mesmo: ser tão perfeitos um para o outro, que suprimissem a concorrência. Esse é o segredo de Christian Grey e Anastasia Steele, protagonistas de um amor absoluto em Cinquenta Tons de Cinza, escrito pela norte-americana Erika Leonard James.

Respeitosos às leis do mercado, os amantes da história reúnem-se em torno de uma mesa de negociações para acertar detalhes de seu contrato. Não se trata de um casamento, mas, sim, de um código de comportamento sexual, submissão e domínio. O acordo não é pacífico, há escaramuças e desentendimentos, como em qualquer novela romântica, mas é para apimentar o final feliz, que se dá ao cabo de três volumes e filmes.

Numa cartada só, a senhora James conseguiu suprimir a maior parte das interrogações e tormentos que nos preenchem e ocupam. Gastamos a existência a indagar qual nosso valor e o que gostaríamos de conquistar, o que é ser um homem e o que é ser uma mulher. Além disso, atrapalham- nos para amar as lembranças infantis do prazer e do terror de sermos subjugados e protegidos. Para Christian e Anastasia, está quase tudo resolvido.

Eles são virgens, ela de corpo e ele de coração. Ele é riquíssimo, jovem e belo. Sim, os príncipes ainda existem. E, como as Cinderelas também, esse cobiçado solteiro fica mesmerizado quando pousa os olhos na desmilinguida universitária que aparece para entrevistá-lo para um jornalzinho de faculdade. O que ocorre entre os dois é um desejo incontrolável à primeira vista, que logo se transforma em juras de amor.

Rapidamente a relação torna-se o negócio mais importante para ele e o projeto de vida prioritário para ela. Ele quer subjugar-lhe o corpo, mas acaba entregando-lhe a alma. Ela cobiça possuir a alma dele, mas entrega seu corpo com um prazer minuciosamente descrito. Apesar dos chicotes, cintos e palmatórias próprios da cena sadomasoquista, o livro difere das clássicas publicações do gênero ao dedicar grande espaço à exploração do corpo e dos prazeres femininos, dos quais Anastasia goza amarrada e amordaçada.

Pense bem nas suas dúvidas: você nunca sabe direito o que quer nem o que precisa para ser desejável. Além disso, sente-se ambivalente quanto aos prazeres da carne, nos quais sempre fantasia um tanto a mais do que realiza. Como as mulheres nunca tiveram um destino em aberto, o recato era imprescindível e as escolhas restritas, o leque dessas vacilações era para elas menos explícito. Com a liberdade, ganharam o benefício e o inferno das dúvidas. E. L. James tem a resposta para todos esses males: não enxergue cores, atenha-se ao cinza e viva uma vida Bombril.

01 de março de 2015 | N° 18088
L. F. VERISSIMO

Escavações

É conhecida a história dos arqueólogos que, depois de anos de escavação, descobriram o que parecia serem restos de uma civilização antiga, até então desconhecida. Estavam prestes a anunciar a descoberta que os consagraria, quando apareceu, no meio das ruínas, um paliteiro de plástico. E os arqueólogos ficaram no seguinte dilema: reconhecer que não tinham descoberto civilização desconhecida nenhuma ou revelar um fato espantoso, o de que a matéria plástica era muito mais antiga do que se supunha.

Há uma metáfora aí, em algum lugar. Seu significado talvez seja que no fim todas as sociedades são julgadas pelas suas exceções, pelos seus extremos e pelos seus detalhes, e a História e a sociologia estão sempre ameaçadas por dados incompletos.

Por exemplo: sempre se pensou que a população de Pompeia tivesse sido surpreendida pela chuva de cinzas do Vesúvio, e que a maioria morrera dormindo. Hoje se sabe que o Vesúvio entrou em erupção dias antes, tremores de terra e explosões anunciaram a catástrofe que viria e a população já abandonara a cidade condenada quando as cinzas a encobriram, para serem desencavadas anos depois.

Mas o mais impressionante em Pompeia são as estátuas dos mortos. Encheram de gesso os buracos deixados na cinza solidificada pelos cadáveres decompostos e cada espaço moldou um corpo branco, na posição em que estava na hora da sua morte.

Mas, se a maioria da população já tinha fugido das cinzas, isso significa que as tétricas estátuas brancas são de mortos excepcionais. São de céticos que duvidaram da catástrofe anunciada, curiosos que queriam ver como seria, aventureiros e megalomaníacos dispostos a desafiar a Natureza, suicidas, bêbados ou simplesmente distraídos. Enfim, são estátuas dos que ficaram.

Durante anos, todos os estudos e todas as teorias sobre Pompeia presumiram que os fantasmas conservados em gesso eram exemplos de habitantes comuns da cidade e do seu fim em comum, quando eram dos seus excêntricos. A amostragem, que incluía dos mais científicos aos mais burros, não representava a imensa gama que existia entre os dois extremos.


As novas revelações sobre o que realmente aconteceu em Pompeia naquele ano de 79 d.C. acabaram com mitos românticos, como o da suposta descoberta, sob as cinzas, de um casal abraçado, surpreendido pelas emanações do Vesúvio no ato do amor. Especulou-se muito sobre o que o casal estaria fazendo no fim, mas de uma coisa se pode ter certeza: o orgasmo, sob as cinzas ainda mornas do vulcão, foi maravilhoso.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015


26 de fevereiro de 2015 | N° 18085
DAVID COIMBRA

Cuidado: o PT quer defender a Petrobras

Os petistas estão quase me convencendo de que a Petrobras tem de ser privatizada. Eu era figadal, intestinal e cerebralmente contra a privatização, mas eles estão me abrindo os olhos. Imagine você, estupefato leitor, que um grupo de petistas botou camisas vermelhas e saiu por aí, gritando “em defesa” da Petrobras. Mas como? Os petistas defendendo a Petrobras? Contra quem?

Juro que fiquei confuso e, quando fico confuso, apelo para a matemática. Faço uma espécie de teorema para tentar entender o assunto. Então, vamos lá. Temos um problema a resolver, resumido na seguinte pergunta: contra quem a Petrobras deve ser defendida? Os dados concretos:

1. A Petrobras está sendo mesmo roubada. Isso está provado de sobejo.

2. A revelação do roubo prejudicou a empresa, o valor de suas ações despencou e ela está sendo olhada com desconfiança por investidores. Isso também é fato.

3. Conclusão: a Petrobras precisa realmente de defesa.

Com o que, voltamos à questão original: quem são os responsáveis? Talvez o roubo venha desde a década de 50, quando Getúlio Vargas discursava no São Januário e dizia que o petróleo era nosso. Talvez tenha havido roubo quando Ernesto Geisel foi presidente da Petrobras, quando Shigeaki Ueki anunciou a descoberta de petróleo no mar do Rio de Janeiro, quando Sarney, Collor e Fernando Henrique foram presidentes da República. Talvez. Se esse roubo pretérito for comprovado, que sejam manchadas as memórias dos ditadores Vargas e Geisel e que sejam punidos os vivos.

Só que há mais de 12 anos a Petrobras está sendo controlada por governantes do PT. E são 12 anos de roubo comprovado. E as investigações apontam que, nesses 12 anos, o roubo foi sistematizado, tornou-se um roubo orgânico e metódico.

Doze anos... Transforme esse tempo em bilhões de dólares, tente imaginar o tamanho do que foi subtraído do país e se assombre.

Doze anos... Vamos acreditar que nenhum petista tenha posto a mão em qualquer centavo sujo nesse tempo todo. Vamos acreditar que a corrupção não serviu ao projeto de eternização no poder do PT. Sejamos crédulos: os outros roubaram; eles, não. Mas, em 12 anos, eles não viram nada? Eles estavam no comando da Petrobras, e não perceberam nem um único bilhãozinho sendo desviado? Neste caso, o PT foi de uma incompetência retumbante, coisa nunca vista na história da administração pública mundial.

Pensando nessa óbvia, clara e corrosiva incompetência, não em desonestidade ainda não julgada, concluo que os petistas não têm moral para sair à rua em defesa da Petrobras. Os petistas dizem que algo tem de ser feito com a Petrobras? Faça-se o contrário. Petistas gritam que a Petrobras não pode ser privatizada? Opa! Aí está uma forte indicação de que a Petrobras talvez tenha de ser privatizada. Porque a Petrobras tem de ser defendida, sim. Defendida de quem a rouba e de quem a comanda e não vê quem a rouba. Defendida do PT.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015


25 de fevereiro de 2015 | N° 18084
MARTHA MEDEIROS

Plano-sequência

Uma das peculiaridades de Birdman, ganhador do Oscar, é ter sido filmado num plano-sequência, com apenas alguns poucos subterfúgios para cortar o filme sem dar esta impressão, então o que vemos é uma ação ininterrupta, tal qual a vida real, que não tem corte também, não existe, por exemplo, uma corrupção que começou de repente, em determinado dia, com a entrada de determinado partido no poder.

A corrupção tem estado em cena persistentemente desde que o Brasil foi descoberto, ainda que ela tenha encontrado terreno fértil nos últimos anos, e o mesmo acontece com a questão do aborto, discussão que se ampara em um sentimentalismo barato, mulher nenhuma levará uma gestação adiante se ela não quiser, nenhuma jamais levou, nossas avós abortavam, nossas bisavós abortavam, e a mulher de amanhã também abortará, sendo crime ou não.

Ou seja, criminalizar é apenas uma forma de punir essa mulher, obrigá-la a procedimentos clandestinos, uma hipocrisia a mais num país que se recusa a deixar a religião de lado para pensar de forma menos passional e mais sintonizada com seu tempo, mas não adianta, é assim desde sempre, ato contínuo, somos os campeões do prolongamento do nosso atraso, e outra prova disso é a questão de adoção de crianças por casais homoafetivos, a cena se estende, considera-se absurdo alguém ser criado com amor por dois homens ou duas mulheres.

Muito melhor o orfanato, a desatenção, a moral empoeirada, melhor salvar os bons costumes e deixar a criança se ferrar em seu abandono, e lá vamos nós dar continuidade a um jeito mascarado de existir, faz de conta que as instituições são mais importantes que as pessoas, faz de conta que a figura etérea de Deus é mais importante que a felicidade de cada um, faz de conta que existe eternidade e que isso aqui é só um aperitivo, um unhappy hour antes de irmos todos para um lugar melhor, mas que ninguém sabe onde é, como é.

E assim, cultivando crendices, superstições e ignorâncias seguimos perpetuando uma vida surreal, seguimos tapando os olhos para o evidente em detrimento do que se supõe, seguimos enaltecendo as ilusões em detrimento da realidade, a vida é simples, a vida não precisa de tantos mandamentos, não precisa de tanto além, de tanto mistério, de tanta mentira, de tanto apego ao sobrenatural a fim de não enfrentar o que é natural – o desejo –, mas não, o mundo está caindo de podre e a câmera segue filmando.

É um plano-sequência, todos cultivando problemas a fim de valorizar sua trajetória, todos, como os personagens de Birdman, desesperados diante da própria desimportância, recusando-se a entender que só serão livres quando desapegarem do ego, não querendo enxergar que o poder é uma ilusão patética, que dogmas não são boias salva-vidas, que o mundo pode ser mais leve e alegre do que é, e que somos todos iguais nesta caminhada rumo a um final em aberto.


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015


24 de fevereiro de 2015 | N° 18083
FABRÍCIO CARPINEJAR

Todo cão é fiel

Tenho um irmão amado que mora em Faxinal do Soturno: Miguel, juiz, pai do Murilo e casado com Milena.

É o caçula de casa, o único que se dá bem com toda a família e o mais quieto e sábio, talvez porque foi o último a chegar nas brigas e descobriu que eram insolúveis e não valeria a pena perder tempo com elas.

Ele cuida de dois cachorros. O mais novo, um salsicha, o Mandi, foi atropelado na frente do Miguel. Escapou de um passeio vigiado na residência e se animou a atravessar a rua de repente.

Diante do estrondo das rodas, do rasgo do freio e do latido esganiçado, Miguel correu para socorrê-lo. Mesmo abatido, mesmo morrendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver seu dono.

Destroçado, encolhido na frieza das pedras, fez um esforço colossal de mexer o rabo para festejar as mãos de Miguel em sua cabeça. Apesar de ferido e sangrando, alheio a sua condição agonizante, mexeu o rabo, esta mão prodigiosa que o cachorro tem além das patas, esta antena do coração, esta risada do corpo.

Mesmo soltando seu último suspiro, mesmo desesperadamente doendo, o cachorro mexeu o rabo ao ver o Miguel próximo. Mesmo no pior momento de sua vida, ele encontrou um instante de felicidade e ternura, e acenou com o rabo, quis demonstrar para Miguel que o amava.

Mexeu o rabo de agradecimento. Mexeu o rabo de comoção. Mexeu o rabo, como sempre mexeu o rabo, quando Miguel chegava do trabalho e perguntava pelo seu nome pelos corredores. Nada mudaria seu hábito de mexer o rabo. Nada arrancaria dele o gesto puro e repetido dia a dia.

Nem o fim impediu sua declaração. Nem a falta de ar, o medo, a angústia de não estar mais entre nós para sempre. Ficou mais feliz de ver Miguel do que triste de morrer. Ele é um exemplo de como não ser tragado pela infelicidade.

O quanto não devemos nos afundar na angústia, seremos maiores do que as fatalidades e os reveses, pois poderemos agradecer o que somos e o que recebemos.

Ainda que nossa vida esteja perdida, temos uma chance de eternizá-la ao nos entregar para a amizade do outro.

Miguel mexeu os olhos em resposta. Sem ter certeza se estava rindo pelo carinho surpreendente de seu cão naquele momento ou chorando pelo acidente trágico.


As lágrimas escorriam, ao mesmo tempo, de contentamento envergonhado e de dor exagerada. Não conseguia separar os sentimentos. Isto é a grandeza do humano, a imprevisibilidade do amor, que também mora na alma dos cachorros.

24 de fevereiro de 2015 | N° 18083
EDITORIAL Zh

TESE INSUSTENTÁVEL

Mais importante do que saber quando começou a corrupção na Petrobras é contê-la. E os governos petistas tiveram 12 anos para fazer isso.

Com base numa declaração do ex-gerente-executivo de Serviços da Petrobras, Pedro Barusco, setores do Partido dos Trabalhadores desenvolveram a tese diversionista de que a corrupção na estatal teria começado no governo Fernando Henrique Cardoso e que deveria ter sido investigada antes, impedindo sua ampliação. Até mesmo a presidente Dilma Rousseff, em recente manifestação, fez questão de enfatizar esse detalhe, como se ele atenuasse a responsabilidade do seu governo no triste episódio. De tão ridícula, essa tese chega a ser ofensiva.

Realmente, em depoimento prestado à Polícia Federal no dia 21 de novembro de 2014, o referido delator confessou que começou a receber propina em troca da aprovação de contratos entre os anos de 1997 e 1998. No mesmo depoimento, garantiu que o PT recebeu, entre 2003 e 2013, entre US$ 150 milhões e US$ 200 milhões, como comissão pelos contratos superfaturados. Apontou o tesoureiro do partido, João Vaccari Neto, como intermediário dos pagamentos, que seriam destinados às campanhas eleitorais de candidatos petistas.

Ora, mais importante do que saber quando começou a corrupção na Petrobras é contê-la. Os governos petistas tiveram 12 anos para fazer isso, inclusive durante o período em que a própria presidente, na condição de ministra de Lula, ocupou a presidência do Conselho de Administração da estatal, entre 2003 e 2010. Será que só agora, entre o final do primeiro mandato e o início do segundo de Dilma, é que o Ministério Público e a Polícia Federal conquistaram independência suficiente para proceder à investigação?

A desculpa de que “foram eles que começaram” até pode fazer sentido no debate ideológico entre militantes dos dois partidos que vêm se revezando no poder, mas fica patética na boca da presidente da República. Dela, o país espera uma explicação mais consistente e mais responsável sobre a leniência administrativa que levou a Petrobras ao desastre e sobre a participação dos partidos que lhe dão apoio no deplorável episódio.


Mais do que isso: da presidente da República, os brasileiros esperam menos discurso ideológico e mais ação para combater a corrupção, incluindo- se aí o repúdio inequívoco aos corruptos e corruptores, independentemente de suas ligações partidárias.

24 de fevereiro de 2015 | N° 18083
ECONOMIA APOSENTADORIA

SE DEPENDER DO MINISTRO, É O FIM DO FATOR

FÓRMULA QUE SOMA a idade e o tempo de contribuição, já em discussão no Congresso, poderia ser adotada para substituir regra atual

A defesa do ministro da Previdência, Carlos Gabas, de trocar o fator previdenciário para dar lugar a um novo sistema de cálculo para a aposentadoria, a fórmula 85/95, desencadeou reações contraditórias entre especialistas e líderes sindicais.

Criado no governo Fernando Henrique Cardoso em 1999, o fator surgiu com o objetivo de desestimular as aposentadorias precoces – os trabalhadores estavam se aposentando, em média, com 51 anos de idade. Acabou ganhando a antipatia dos cidadãos por reduzir benefícios e prejudicar quem começou cedo na labuta.

Desde então, a revogação da medida é uma das principais bandeiras das entidades que representam trabalhadores no país. Em 2003, o senador Paulo Paim (PT-RS) chegou a apresentar projeto de lei para extinguir o mecanismo. A proposta foi aprovada no Senado, mas está empacada na Câmara até hoje.

Lá, recebeu um complemento do deputado e relator Pepe Vargas (PT-RS), hoje ministro da Secretaria de Relações Institucionais do governo Dilma, aderindo à nova regra. A ideia, discutida desde então, é condicionar a aposentadoria integral, para homens, a 95 anos (somando idade e tempo de contribuição) e 85, para mulheres.

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de ontem, o ministro da Previdência Social, Carlos Gabas, reconheceu o fracasso do atual modelo por descumprir o papel de retardar as aposentadorias. Gabas disse defender a fórmula 85/95 “como base de partida” para um debate mais amplo. O ministro ressaltou ontem, em entrevista à rádio CBN, que se trata de “opinião pessoal”.

Fonte de polêmica entre estudiosos (leia na página ao lado), a defesa causou furor nas centrais sindicais, embora nenhum detalhe tenha sido divulgado.

PARA SINDICALISTA, IDEIA É DESVIAR FOCO

No Estado, o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT-RS), Claudir Nespolo, saudou a decisão e disse se tratar de “um bom início de conversa”. Cético, o presidente da Força Sindical no Estado, Clàudio Janta, adotou outra linha, mais dura. Ele suspeita de que o ministro esteja apenas tentando desviar o foco das medidas negativas adotadas recentemente – entre as quais a redução de direitos trabalhistas.

– O governo Lula já havia sentado com as centrais sindicais e dado ok para a mudança, mas, desde que Dilma assumiu, a coisa não andou – afirma Janta.

Há ainda os que se opõem à alteração proposta, como Atnágoras Lopes, integrante da executiva nacional da Central Sindical e Popular Conlutas. Lopes argumenta que a nova fórmula obrigará as pessoas a trabalhar mais.

– O que queremos é fim do fator e ponto – destaca Lopes.


juliana.bublitz@zerohora.com.br

sábado, 21 de fevereiro de 2015


22 de fevereiro de 2015 | N° 18081
FABRÍCIO CARPINEJAR

Meus filhos cresceram, e agora?

Jamais envelhecemos reparando em nossa idade.

O costume é nos perdoar, esticar as rugas com o riso, desprezar a falta de fôlego e os ossos estalando. Ainda guardamos dentro da gente a vitalidade do pensamento, mesmo que o corpo não acompanhe.

Relevamos as pontadas, o cansaço e a vontade de sentar logo ao entrar em uma sala. Não achamos que é sério. Costumamos explicar que é apenas uma indisposição temporária ou uma noite mal dormida ou o excesso do calor.

Não chamamos nunca a velhice pelo nome, está cheia de sinônimos.

O único jeito de encarar o peso dos anos é pela idade dos filhos. Eles nos denunciam. Eles nos entregam. São delatores de nossa data de nascimento. Representam um cartório sempre aberto dentro de casa.

Não tem como pintar o cabelo, estender pano de prato com calendário antigo ou fingir que não é conosco.

Meus pais esqueceram que já estão com 76 anos. Nem as cartelas vazias do remédio no café da manhã são alarmes de suas fragilidades. Mas lembrarão imediatamente do longo percurso se avisá-los que o caçula Miguel tem quarenta anos e que todos os seus filhos passaram das quatro décadas.

Eu me vejo como um guri, capaz de empreender indiadas e emendar noites trabalhando. Por mim, não sofreria abalo psicológico, não experimentaria crise de lobo, raposa, cachorro, hiena. Não me percebia velho. Nenhuma festa acentuava a passagem do tempo.

Até o momento em que comemorei o aniversário de 21 anos de minha filha. Mariana completou a maioridade. Sou pai de uma mulher de 21 anos. Minha menina é uma mulher.

Assim como o Vicente, que parecia um eterno bebê, acaba de pisar na adolescência com os dois pés. Fez 13 anos na última sexta. Meu piá tem 13 anos. A voz é de um homem, fala grosso e chiado, bate a porta do quarto com força exigindo privacidade.

Eu considerava que ambos demorariam séculos imaginários para alcançar a fase adulta. Não estou preparado para ter filhos adultos e abandonar o termo “minhas crianças”. Como se despedir da infância pela segunda vez?

É o medo de perder a paternidade mais pura, a confiança cega e incondicional de seus pequenos, e também o medo de não estar mais aqui para ver a sequência da família.

Recordo que os 13 anos do Vicente estavam ligados à quitação do imóvel de São Leopoldo. Era um longo financiamento, projetado para longe, numa realidade remota e absurda. O ano de 2015 soava, no contrato de 2002, como um filme de ficção científica.

Nem sonhava que esta data fosse existir. Pagava religiosamente todo mês como se fosse um dízimo perpétuo.

A ampulheta virou e perdi a contagem. Distraído com o mar, não enumerei os grãos de areia debaixo dos pés.


Pois aconteceu. Chegou esse dia que me diz que estou envelhecendo, que o futuro já é passado, onde o agradecimento e o pedido de desculpa estão soberanamente misturados.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015


17 de fevereiro de 2015 | N° 18076
FABRÍCIO CARPINEJAR

Futebolzinho inofensivo

A mulher não é contra o futebolzinho do namorado na semana. É uma lenda. É folclore. É oposição inventada.

Ela até apoia e gosta, tem um tempo livre para não ser incomodada e assistir a uma temporada inteira de The Good Wife, sem nenhuma interrupção.

O que a mulher se irrita é com a incoerência da atividade esportiva. O homem volta pior do que quando saiu. Mais demolido, mais desmoronado, desprovido de fôlego, precisando de uma injeção de glicose na veia.

Ele se despede sóbrio, de calção, regata e tênis e volta dois quilos a mais, não a menos, com a barriga proeminente, bafo de cerveja e arrotando costela e pão com alho. É uma antiginástica, uma desidratação alcoólica. Bate a porta como um touro e regressa como um porco, incapaz de enfiar a chave na fechadura.

Que futebol é este que incha e acaba com o cara? Atravessou por uma máquina de moer ogro? Abandonou o lar disposto e centrado e retorna bêbado, proferindo neologismos, enrolando a língua e derrubando objetos.

Como acreditar que foi fazer um esporte? Não está nem mais suado, e sim com rosto pálido de engov. A impressão é de que passou o rodo numa churrascaria, num boteco, num bordel, na Cidade Baixa.

Não há como imaginar depois romance, sexo, carinho, palavras de amor, nem dormir de conchinha. Homem pós-jogo é nulo e tóxico. O sujeito deve permanecer no outro lado da cama, distanciado por uma muralha de travesseiros.

Além de estar imprestável para o restante da madrugada, esqueça a companhia dele no dia seguinte, envolvido com azia, enxaqueca e gemidos involuntários.

Mas não desconfie apesar das aparências enganosas. Homem usa o jogo como pretexto para o exorcismo dos bons modos, para expulsar a educação materna e a etiqueta social. A bagunça é mais importante do que a partida, a arruaça é mais fundamental do que o condicionamento. É tão somente uma criança viking, inofensiva, brincando de se destruir um pouco, escapando do controle do colesterol e da bebida, fofocando com amigos e contando as mesmas piadas de sempre. Até correu em campo, nada de especial, meia hora de grito para que os colegas passassem a bola e muitos gols perdidos. Ele se dedicou com volúpia para a mesa e cervejada no fim da pelada – banca o atleta, mas tem alma aposentada de técnico.

Já quando está traindo, o marido chega limpo e cheiroso do banho do motel. Neste caso, pode comprar briga e vender a casa.


sábado, 14 de fevereiro de 2015


15 de fevereiro de 2015 | N° 18074
CLÁUDIA LAITANO

Martha Medeiros está em férias e retorna na edição do dia 1º de março

Espelho, espelho meu, quem sou eu?

Estamos chegando ao estágio em que rostos familiares desaparecem para dar lugar a uma máscara vagamente inspirada nos traços originais

Comparadas com os drones, a impressora 3D e as raquetes de matar mosquito, as técnicas que prometem rejuvenescimento ainda têm muito no que evoluir Donatella Versace e Mickey Rourke estão aí para provar.

Se você conhece uma pessoa que já passou dos 40 e parece muito mais nova do que realmente é, pode apostar que ela come bem, dorme oito horas toda noite e faz exercícios regularmente. Agora, se você encontrar uma pessoa que já passou dos 40 e parece uma versão alterada de si mesma – não necessariamente mais jovem ou mais bonita –, é provável que ela tenha recorrido a alguma intervenção estética que não deu muito certo.

Bocas inchadas, bochechas esticadas e olhares paralisados podem ser muito assustadores, mas de certa forma nos acostumamos a eles. Agora estamos chegando a um novo estágio, aquele em que rostos familiares simplesmente desaparecem para dar lugar a uma espécie de máscara vagamente inspirada nos traços originais. Foi o que aconteceu no ano passado com a atriz Renée Zellweger e parece ter se repetido agora com Uma Thurman. Ambas tornaram-se assunto na internet por terem ficado irreconhecíveis depois de algum tipo de procedimento exageradamente invasivo.

Sim, o povo gosta de fofocar, e o visual de mulheres famosas é aparentemente um manancial inesgotável para especulação, mas há algo perturbador nesse tipo de transformação abrupta e radical de um rosto conhecido. Deixando de lado qualquer discussão a respeito do tipo de pressão, interna ou externa, que leva uma mulher a alterar a própria fisionomia, o fato é que reagimos a essas modificações de forma visceral. O industrioso cérebro humano, treinado para reconhecer pessoas e detectar as mínimas variações de uma expressão facial, parece ter dificuldade para processar o significado dessa quebra de expectativa.

Não que nosso aspecto não mude o tempo todo. Se não fizermos nada a respeito, a natureza modificará nosso rosto como um cirurgião plástico diligente e meticuloso. Vai transformar a criança na adolescente, a mocinha na mulher, a mulher madura na mais madura ainda.

Todo dia, fará um retoque discreto, quase imperceptível, e já estará trabalhando há algum tempo quando olhamos no espelho e nos damos conta de que ela andou agindo enquanto estávamos distraídas fazendo outra coisa. Ainda assim, nenhuma mulher acorda aos 50 espantada por não ter mais o rosto que tinha aos 25. De alguma forma, a natureza nos dotou dessa mágica sensação de continuidade e identidade que muitos neurocientistas sugerem, hoje, que se trata apenas de uma ilusão.


Ilusória ou não, essa sensação de que a aparência reflete a nossa essência não está necessariamente ligada à beleza ou à idade, e portanto nem sempre poderá ser recuperada (ou descoberta) na mesa de um cirurgião plástico.

15 de fevereiro de 2015 | N° 18074
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Brigões da internet

Mário Corso, aqui na ZH, dia 27 de janeiro, enfrentou com grande êxito um tema que está na ordem do dia: por que há tanta agressividade nas redes sociais? E avança: já éramos desde antes tão agressivos, ou a internet é um meio propiciador forte?

Resumo, com algum molho pessoal, os argumentos, para tentar ir adiante. Um, somos os primeiros a usar este novo meio e não temos uma etiqueta estável para ele. Dois, não há o interlocutor físico diante de nós, o que libera a agressividade. Há também, três, a instantaneidade: não há tempo entre a reação, a escrita e o envio, que havia no tempo da carta.

Quatro, as redes proporcionam muita exposição mas pouco retorno, o que implica duas coisas – uma frustração da nossa carência de reconhecimento e uma tendência a emitir opiniões mais chocantes, mais extravagantes, mais bizarras, contra tudo e todos, para ganhar alguma visibilidade. Cinco, o gesto de escrever ali é uma caricatura de participação política, uma catarse, num tempo de intenso descrédito na representação – nem a religião, nem o partido, nem o emprego, nem o casamento, nem o sindicato, quase nada mais tem unanimidade ou duração capazes de nos dar sensação de permanência.

A síntese do Mário ajuda muito a entender. E me ocorre que há o reverso do item 5: a ascensão da esquerda, nas duas últimas gerações, foi um intenso, profundo, um quase irressitível movimento de incentivo e de incitação à tomada de consciência e à participação. E agora, que percebemos que tem cabimento participar e que todos temos que fazê-lo, a participação parece ter-se tornado irrelevante, ou é mesmo irrelevante. Por exemplo: eleição a cada quatro anos é um troço tardo demais para a velocidade da internet – aqui, aliás, outro fator, o contraste entre a velocidade da internet e a lentidão da vida.

Essa história pode ser lida em várias configurações. Numa face brasileira, temos por exemplo a figura de líderes das revoltas estudantis de 68 presos por corrupção; numa face europeia, Daniel Cohn-Bendit, que fez fama com a alcunha “Danny o vermelho” a partir de 68, expulso da universidade de Nanterre por sua ação política, ganhou um doutorado honoris-causa no fim do ano passado, na mesma universidade.

Segundo a revista Piauí, que relatou o caso, Cohn-Bendit fez alguma autocrítica (“Soubemos destruir, mas não construir”; “xingar o professor Grappin como ele havia feito de nazista foi uma besteira terrível, porque ele fora da Resistência francesa”), e apresentou como utopia forte, para agora, a construção dos Estados Unidos da Europa. Nada mais.

Na companhia histórica do Maio Francês, vieram ao mundo a Tropicália e o Seargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o Charlie agora atacado e o saudoso Pasquim brasileiro, já sepultado. A famosa Passeata dos Cem mil, um marco na história política brasileira, é descendente direta do espírito libertário do Maio (dos jovens líderes políticos de então, quantos destinos: Vladimir Palmeira, José Dirceu, Fernando Gabeira, vá fazendo a conta).

De 68 pra cá são já quase 50 anos, o tempo de duas gerações na roda geral da história. E o caso é que os sessenta-e-oitistas chegaram ao poder, em toda parte. Nem sempre os mais radicais, certo, mas todos chegaram lá. O PT no Brasil, com Lula e agora Dilma (há o imperdível livro de Airton Centeno, da Geração Editorial, Os Vencedores:

A Volta Por Cima da Geração Esmagada Pela Ditadura de 64). Há mulheres presidentes na Argentina e no Chile, o índio Evo Morales na Bolívia, o ex-guerrilheiro Mujica no Uruguai, o mulato Obama nos EUA, e assim, em versões moderadas, na Europa ocidental praticamente toda, incluindo França, Espanha, Itália, Portugal, Inglaterra, Alemanha. E na Grécia agora, talvez na Espanha do “Podemos”.


Essa conta pode ser nos levar até a ponta, ou a uma das pontas, do novelo atual, este novelo, esta novela do nosso mal-estar. Um fim de ciclo, eis o pano de fundo da coisa toda, me parece.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015


10 de fevereiro de 2015 | N° 18069
FABRÍCIO CARPINEJAR

Amizades definitivas

Amizade vai além do momento. É comum ser amigo de contextos idênticos e se distanciar com os hábitos diferentes.

Quando você está solteiro, o normal é fazer cumplicidade com quem frequenta festas e não se apega a uma relação. Quando está casado, o normal é criar laços com outros casais e privilegiar jantares e viagens. Quando está com filhos, o normal é sair com quem também está conhecendo as manhas e as longas manhãs dos bebês.

Amizade verdadeira ultrapassa a normalidade e o oportunismo do convívio.

Estas nem são amizades verdadeiras, mas afinidades circunstanciais. São colegas de uma época, de uma fase, de um estilo. Acabam unidos provisoriamente por um gosto, circunscritos a uma vizinhança etária. Desaparecem diante de nossa primeira mudança, de nossa primeira transformação de personalidade.

Permanecem quando há um interesse imediato, um arranjo benéfico do cotidiano, e somem quando não existe mais uma desculpa para se ver e se ouvir. Dependem de um pretexto para se manter próximos.

Os conhecidos da academia ficarão no passado dos halteres assim que cansarmos dos treinos. Os conhecidos da faculdade ficarão na lembrança do quadro-negro assim que nos formarmos. Os conhecidos dos cursos de idiomas ficarão nos livros de exercícios assim que dominarmos uma nova língua.

Amigo mesmo é o que não experimenta uma fase igual e permanece junto. Quebra o espelho e não se machuca com os cacos.

Amigo mesmo é o que não tem filho e vem brincar com nossas crianças, não reclama dos gritos e dos choros e não diz que “pela trabalheira, não pensa em ser mãe ou ser pai tão cedo”. Não se justifica, está lado a lado qualquer que seja o cenário.

É aquele que se separou e não amaldiçoa nossa paixão recente. É aquele que não tem emprego fixo e não inveja o nosso sucesso. É aquele que não tem nenhum problema grave e escuta com paciência e atenção as nossas lamúrias.

Não é o de empatia fácil, feita de experiências semelhantes: só porque atravessa a fossa entende a nossa fossa, só porque transborda de alegria festeja a nossa alegria.


Amigo não dá nem para contar nos dedos, pois sempre estará segurando nossa mão.