domingo, 30 de outubro de 2011


DANUZA LEÃO

Coisas que nos unem

No verão do Rio, até a Quarta-Feira de Cinzas ninguém vai querer saber se o ministro caiu ou não

Na última quarta-feira, fui ao banco pagar meus impostos e, quando cheguei ao caixa, o funcionário -que eu nem conhecia- me contou a novidade, sorrindo: "O ministro sai hoje, acabei de ouvir no rádio".

Houve logo uma espécie de confraternização; as pessoas que estavam na fila atrás de mim também tinham ouvido e começaram a comentar, uns falando com os outros, como se fosse gol do Brasil numa final de Copa.

O clima ficou animado como nunca é, numa fila de banco, e lembrei de uma cena inesquecível e parecida, acontecida há muitos anos, aqui no Rio. Eu estava no centro da cidade, quando surgiu no céu um arco-íris tão colorido, tão nítido, tão alegre, tão perfeito, que as pessoas na rua falavam umas com as outras, apontavam com o dedo e perguntavam "você viu que lindo?" Uma cena não tem nada a ver com a outra, mas no fundo tem.

Quem ficou mal na foto? Em primeiro lugar, Lula -"político tem que ter casca grossa"-, e em segundo, a própria Dilma, que poderia ter um pouco mais de autoridade e fazer o que seu instinto manda, e instinto não lhe falta; ou ela tinha alguma dúvida sobre o fim dessa história?

A presidente não desperta grandes simpatias, mas é preciso separar as coisas: gostar ou não de alguém, quando esse alguém é uma figura pública, não tem nada a ver com o reconhecimento de suas qualidades e defeitos.

Apesar de Dilma ter trabalhado tanto tempo com Lula, deu para acreditar que ela pudesse ser diferente: no caráter, na aversão aos "malfeitos", no seu aparente desconforto com a corrupção em geral, na coragem de tomar uma atitude.

É verdade que ela já fez rolar várias cabeças, mas sempre de maneira vacilante, deixando as coisas chegarem ao limite, evitando dar um murro na mesa. Hoje ela deve estar feliz, pois talvez possa fazer (em breve) aquilo que mais gosta: nomear outra mulher para seu ministério.

Mas voltei a pensar na queda do ministro e no arco-íris, e no que une as pessoas que nem se conhecem: geralmente as grandes alegrias e as grandes tragédias. E de pensamento em pensamento -já que neles a gente não manda- pensei em uma coisa bem banal, que não é nenhuma novidade, mas importantíssima para os cariocas: o verão está chegando; devagarzinho, mas está.

No Rio, quase todos os dias do ano são de sol, o céu é sempre azul, as praias estão sempre cheias, mas isso não tem nada a ver com o verão de verdade. Quando ele chega, se percebe pela água do mar, que muda de cor, pelo cheiro da maresia, pelo canto das cigarras, pelo comportamento das pessoas.

Os homens se tornam mais atrevidos, e as mulheres acolhem esse atrevimento cheias de alegria; há meses elas se preparam -fazendo ginástica, passando fome, cuidando do novo guarda-roupa- para o acontecimento mais esperado do ano que é o verão, onde tudo pode acontecer, e geralmente acontece.

É a temporada da democracia, quando as diferenças de classe desaparecem, com homens e mulheres usando as mesmas sandálias Havaianas, as mesmas camisetas, tomando a mesma água de coco, tudo baratinho; com um top de paetês comprado no camelô, a festa já está pronta .

Assim foi, é e será todos os anos, e até a Quarta-Feira de Cinzas ninguém vai querer saber se o ministro caiu ou não, porque nada é mais importante, no grande balneário que é o Rio, do que o verão.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 29 de outubro de 2011



29 de outubro de 2011 | N° 16870
NILSON SOUZA


Hora roubada

Como ocorre todos os anos nesta esquina do hemisfério, o horário de verão desperta simpatias e rancores. Tem gente que odeia acordar uma hora mais cedo, mas também tem quem prefira contar com um dia maior para curtir, ou para fazer mais coisas, caso dos carregadores de piano – categoria em que, na maioria das vezes, me incluo.

Sou um fazedor de coisas. Uma vez na vida, outra na morte, tento tocar uma sonata no teclado do computador, mas nem sempre as letras me obedecem. Então, o mais sensato é acordar cedo e compensar a inspiração escassa com o suor farto. Às vezes, uma simples frase, desavisado leitor, me toma horas. Daí por que resolvi escrever sobre a hora perdida deste início de primavera.

A novidade da mudança de horário este ano é que a mexida nos ponteiros chegou acompanhada de uma pesquisa publicada pela Harvard Business Review que sentencia: os madrugadores são mais produtivos e os notívagos são mais criativos.

Claro que também aqui há exceções. Mas faz sentido: as pessoas que começam a operar de madrugada costumam chegar ao fim do dia com a lista de tarefas zerada. Já para os dorminhocos, que saem da cama nas primeiras horas da tarde, a noite é inspiradora, até mesmo porque eles estão com o cérebro em plena atividade quando ela chega.

Como diz o Eclesiastes, há tempo para todo propósito debaixo do céu – inclusive tempo de mexer nos marcadores de tempo, com o pretexto de poupar energia, ainda que isso possa alterar relógios biológicos e humores. Tempo de amar e tempo de odiar, registrou de forma premonitória o texto bíblico, prevendo a reação dos contemporâneos do horário de verão.

O tempo é uma invenção da morte, dizia o poeta Mario Quintana, complementando o pensamento com fina ironia: os anjos ficam espantados quando alguém acorda para a vida eterna e pergunta “que horas são?”. Deve ser mesmo engraçado. Mas nós, os não poetas, somos escravos do relógio – esse tirano inflexível que devora vidas. Por isso, sentimos tanto quando uma decisão política nos rouba uma hora, mesmo com a promessa de devolução.

No dia 26 de fevereiro de 2012, vence essa fatura. Se o mundo não terminar, como profetiza aquele insistente pastor norte-americano, a hora confiscada por decreto presidencial nos será devolvida com todos os seus minutos e segundos, mas sem juros e correção temporária para compensar o contratempo das noites maldormidas.

Até lá, colegas madrugadores e irmãos notívagos, teremos bastante tempo para pensar na melhor maneira de aproveitar a hora recuperada.

nilson.souza@zerohora.com.br

quarta-feira, 26 de outubro de 2011



26 de outubro de 2011 | N° 16867
MARTHA MEDEIROS


O Caso Rafinha

Soube do caso Wanessa Camargo x Rafael Bastos pela imprensa escrita. Não havia assistido ao programa CQC em que ele disse “Comeria ela e o bebê”. Li essa frase numa matéria. Num primeiro momento, achei que o cara merecia mesmo o repúdio público.

Então intuí que poderia haver algo de injusto nesse julgamento sumário e entrei no YouTube para assistir à cena que deu origem ao estardalhaço. E, de repente, ficou muito claro: o comentário foi cretino, mas estava totalmente de acordo com o espírito do programa.

Se ele tivesse dito o que disse numa entrevista para o Jornal Nacional ou durante o sermão da missa, teria sido chocante, mas cumprindo seu papel de Rafinha Bastos no CQC, foi mais uma baboseira coerente com a pauta do programa.

O que nos traz ao assunto desta crônica: o contexto.

Fora do contexto, não temos como fazer uma avaliação isenta. As frases ditas por celebridades, destacadas entre aspas em seções de jornais e revistas, recebem quase sempre um grau de importância desproporcional ao contexto em que foram pronunciadas. O que parece uma ofensa era só uma ironia. O que parece definitivo era apenas uma especulação. O que parece uma confissão era uma brincadeira.

Não sei qual é a audiência do CQC, mas sou capaz de apostar que 95% das pessoas que palpitaram sobre a polêmica não assistiram ao programa: souberam através de blogs, sites, redes sociais e matérias de revista. E, como sempre, a frase impressa sobressaiu de forma mais contundente do que deveria.

Não tiro o direito da cantora de se ofender, ainda mais que sabemos que toda mulher grávida se sente sacralizada por sua condição, mas partir para um processo é um exagero evidente.

Como muitos, desprezo esse humor que humilha, que é deselegante, cafajeste, coisa de guri bobo e arrogante. Sinto saudade do humor inteligente de um TV Pirata, por exemplo, que fazia a gente rir sem precisar apelar.

Mas o que eu gosto ou desgosto não importa. O humor do CQC, do Pânico e de outros programas afins é uma tendência mundial que tem milhões de fãs. Rafinha Bastos é um expoente desse humor canalha e está fazendo o trabalho dele. Podemos torcer o nariz? Podemos.

Mas convém levar o contexto em consideração. O caso Wanessa me parece bem menos grave do que a alusão a um comercial de uma empresa de telefonia, em que o humorista comparou Fabio Assunção a um traficante. Porém, pouco se debateu a respeito, até porque o próprio ator não levou tão a sério, e acabou virando notícia de segundo escalão.

Seja a declaração que for, é sempre bom não perder o contexto de vista. Sem isso, corremos o risco de superdimensionar um comentário idiota e relevar os desaforos verdadeiramente sérios que perpetuam preconceitos.

terça-feira, 25 de outubro de 2011



25 de outubro de 2011 | N° 16866
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sobre o vinho

Uma amiga me presenteia com um Chardonnay Viognier e logo me desperta lembranças da infância. Meu pai nunca deixava de acompanhar o almoço e o jantar com uma garrafa de bom vinho. Aos adultos era servida a taça inteira. Para nós, as crianças, reservava-se sempre uma pequena dose.

Cresci tomando vinho, em especial o daqueles barriletes enviados por eleitores da Serra, onde eram fabricados. Para prová-los era mister aspirar o precioso líquido com um sifão, de onde descia belo, inebriante, desejável.

Depois, meus pais se foram e já não havia mais vinho à mesa. Isso não impediu que guardasse a memória daquele prazer, provando um cálice sempre que pudesse. Não estou só nessa devoção.

Ainda agora, Veja traz belo ensaio de Jerônimo Teixeira sobre um livro do filósofo inglês Roger Scruton, que recorda que o vinho é a própria civilização. “A distinção entre os países civilizados e incivilizados” – afirma ele – “é a distinção entre os países onde se bebe e onde não se bebe”. E evoca que o vinho foi a bebida dos banquetes filosóficos gregos, das saturninas romanas, da Eucaristia cristã. Em verdade, a videira já era cultivada 6 mil anos antes de Cristo.

Anacreonte, no século 6 a.C., dizia: “Enquanto bebo o alegre vinho, os meus desgostos adormecem”. E nos Salmos se lê: “O vinho alegra o coração do homem”. Omar Kháyyám, no século 12, ensinava: “Não abandones nunca o mágico que tem o condão de conduzir-te ao doce país do esquecimento” .

E o grave Lutero pregava: “Quem não gosta de vinho, mulher e canção fica um tolo ao longo da vida”.

Rabelais era positivo: “Nunca homem nobre desdenha um vinho bom”.

Victor Hugo era definitivo: “Deus só fez a água, mas o homem fez o vinho”.

Voltemos agora a Roger Scruton.

Sobre a fruição estética de um cálice de vinho, observa que não é a mesma que temos diante de um quadro, um poema, uma sinfonia.

Mas o vinho está longe de oferecer um entorpecimento vulgar: o inebriamento não seria mero efeito do álcool, mas estaria associado a todas as sensações que a bebida provoca sobre o olfato e o paladar, no momento em que a tomamos. Há uma dimensão ritual no consumo do vinho, que remete ao culto grego de Dionísio e, é claro, à Eucaristia cristã.

E nada mais disse, nem nada lhe foi perguntado.

liberato.vieira@zerohora.com.br


25 de outubro de 2011 | N° 16866
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Enem era para tanto?

No passado fim de semana, mais uma prova do Enem, Exame Nacional do Ensino Médio, nascido para ser um diagnóstico da situação dessa tão incompreendida etapa da educação formal. Para essa finalidade diagnóstica, o exame tem sentido e tem todo o direito de ser focado mais em competências abstratas do que em conteúdos concretos, com questões que exigem mais raciocínios, conexões, ilações etc, e menos memorização, interpretação de dados ou contas.

Mas o MEC resolveu que esse pato merecia ser ganso, e inventou que o exame passaria a ser o exame vestibular, de ingresso ao ensino superior. O prezado leitor entende a diferença?

Uma coisa é aplicar uma prova para saber se está funcionando o Ensino Médio – preparar engenheiros e técnicos, criar leitores de literatura, inventar cientistas criativos etc–; bem outra é aplicar uma prova para dizer quem são os mais destacados na escala que se adotar para medir o desempenho.

Ora, faz uns 50 anos que as universidades elaboram exames para escolher seus alunos mediante provas pensadas e testadas com ciência e paciência. O leitor, que é um ingênuo, vai deduzir que o MEC usou essa vasta experiência para fazer seu Enem. Certo? Errado: o MEC passou ao largo disso, porque considerou que era tudo “conteudista”, palavra que os pedagogos no poder consideram um crime pior do que bater na mãe.

Um dos argumentos para criminalizar o “conteudismo” tem cabimento: trata-se de condenar o ensino imbecil que promove apenas memorização, sem incentivar raciocínio nem invenção. Por acaso as escolas e os vestibulares das universidades eram sempre assim? Claro que não.

O MEC generalizou e, dispondo de dinheiro para pressionar as universidades, transformou seu Enem “anticonteudista” em vestibular geral do país. Professores de Ensino Médio estão em desespero porque ficaram com o ônus do imbróglio, tendo diante de si o aluno que quer passar no Enem mas sem disporem da regra do jogo, jogado lá em Brasília.

Sabe quem é que resiste a esse poder, ainda? Por acaso, quatro das cinco maiores universidades do Brasil: USP e Unicamp, além da nossa valorosa UFRGS e da UFMG, que o adotam com grande parcimônia (a UFRJ se entregou totalmente, este ano). Alguma coincidência nisso? Ou será que as quatro resistentes têm alguma sólida razão para evitar o Enem? Que é que o leitor acha?

fischerl@uol.com.br

sábado, 22 de outubro de 2011



23 de outubro de 2011 | N° 16864
MARTHA MEDEIROS


Nadir, Euripedes e Yuri

O Nadir poderia ter feito isso, assinado “Um abraço do Nadir”, e eu não teria passado a vergonha de ter mandado uma resposta iniciando com “Querida Nadir”

Quando acontece de eu receber um e-mail sem ter certeza se quem assina é homem ou mulher, geralmente descubro uma pista dentro da mensagem mesmo. Ou a pessoa diz sou sua fã ou termina enviando um abraço do.... O Nadir poderia ter feito isso, assinado Um abraço do Nadir, e eu não teria passado a vergonha de ter mandado uma resposta iniciando com Querida Nadir.

O Nadir, meu leitor, ficou bravo comigo. Disse que eu deveria saber que Nadir é um nome árabe masculino. Desculpe, Nadir. Mas é que há muitas Nadir também. Anos atrás, quando a Luiza Brunet pensou em se dedicar à carreira de atriz, ela fez um personagem de novela que se chamava Nadir. Tem coisa mais inquestionavelmente mulher do que a Luiza Brunet?

As Nadir e os Nadir talvez passem por esse tipo de engano com alguma frequência quando o contato não é visual. Por telefone, onde não raro confundimos voz de mulher e de homem, deve ser uma bola fora atrás da outra. Na hora de preencher cadastro, também. Como assim, Nadir, 1m89cm, 97 quilos, treinador de jiu-jitsu e casado com a Leila? Mas quem garante que uma Nadir não possa ser alta, forte e casada com uma moça? Ah, os tempos modernos. De qualquer forma, os pais, ao registrarem seus filhos, podiam ser mais facilitadores.

Eurípedes concorda. A dona Eurípedes. Ela conta que seus três filhos já ouviram muita piada por terem como pais Roberto e Eurípedes. E a Donizete fica furiosa quando não reconhecem seu nome como sendo de mulher. Diz que a família das “etes” não deixa dúvida: Elizabete, Claudete, Bernadete, Janete. Pelo visto ela nunca ouviu falar daquele jogador que chegou à Seleção e foi campeão brasileiro pelo Botafogo.

A Yuri, que é cabeleireira, também não gosta de dar explicação, mas se conformou. Sabe que existiu um Yuri Gagarin que foi mais famoso do que ela. As Yuri passaram a ser confundidas com os rapazes.

Nomes estrangeiros, uma sinuca. Kim Novak, Kim Basinger, Kim Kardashian: várias gerações de Kim glamurosas, e aí surge o belo Kim Ricelli, filho da Bruna Lombardi, pra mostrar que é tão Kim quanto. Se for nome francês, então. Pergunte a um Renê ou a uma Ettienne. Ou a uma Renê e um Etienne.

Sasha, todos sabem, é filha da Xuxa, e não filho, mesmo com um nome russo masculino. E admito, envergonhada, que a primeira vez que ouvi falar de George Sand, nome expressivo da literatura francesa do século 19, nem me passou pela cabeça que pudesse ser mulher.

Chamava-se na verdade Amandine-Aurore, mas passou a assinar seus livros como George Sand e assim ficou eternizada. Diferentemente do Nelson Rodrigues, que publicou alguns folhetins como Suzana Flag, mas que nunca chegou a ser tratado por “senhorita”.

Do que se conclui que assinar e-mail com Abraço, Nadir é provocação. Do Nadir, da Nadir. E assim seremos todos felizes.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011



21 de outubro de 2011 | N° 16862
ARTIGOS - Maira Caleffi*


Se não fizer por você, faça por mim

Estima-se que perdemos 30 mulheres por dia no Brasil, por câncer de mama, de acordo com dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca). Por esse motivo, a Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama) está realizando no Brasil mais uma edição do Outubro Rosa.

Assim, cada prédio e monumento que for iluminado de rosa neste mês, em cada canto do país, servirá para que a população se lembre de tantas mães, filhas e amigas que faleceram da doença nos últimos anos.

Nesta edição do Outubro Rosa, o mote da campanha da Femama é “Faça por mim”, que tem como foco a importância do exame de mamografia para a detecção precoce da doença e é dirigida às mulheres e às pessoas que convivem com elas. Temos que lembrar que o exame de mamografia detecta com grande margem de segurança um tumor no seio antes que se possa sentir o nódulo. Assim, se realizado na fase inicial da doença, aumenta em aproximadamente 95% as chances de cura.

Com o conceito “Mamografia. Se não fizer por você, faça por mim”, a campanha tem como principal meta romper mitos e barreiras em relação à mamografia. Entretanto, não adianta fazermos toda essa movimentação, em todo o país, se não alertarmos também a população e o poder público sobre as reais condições de saúde no Brasil.

Segundo o Ministério da Saúde, dos 1.514 mamógrafos que realizam exame de mama pelo SUS, apenas 85% estão em funcionamento no país. Ou seja, 223 equipamentos estão sem uso, 111 não têm produção, 85 apresentam defeito e 27 ainda estão na embalagem. A região sul do país, de acordo com o mesmo levantamento, possui 287 mamógrafos, sendo 130 deles no Estado do Rio Grande do Sul.

Desses, 114 estão em uso e 11 estão sem produção. Outros quatro apresentam defeito. Mas como esses mamógrafos, que custam tão caro aos cofres públicos, podem estar parados, enquanto tantas mulheres precisam fazer o exame de mama, com urgência?

Vale ressaltar que o problema não está na quantidade de equipamentos, mas, sim, na concentração regional e na baixa produtividade dos mamógrafos – o indicado é que cada equipamento faça até 25 exames por dia, mas o número não chega a 10, segundo o Tribunal de Contas da União. No Brasil, estima-se que ocorram até o final deste ano quase 50 mil novos casos de câncer de mama, segundo o Inca. Mas precisamos mudar essa história.

Por esse motivo, convidamos a população gaúcha a iluminar todo o Estado em mais uma edição do Outubro Rosa. E, a cada nova luz rosa acesa, esperamos que mais pessoas se iluminem e sejam contagiadas com essa energia. Que essas mesmas pessoas saibam convocar suas amigas, mães e vizinhas a consultar seus médicos regularmente e, se for necessário, apoiá-las a fazer o exame de mamografia, alegando: se não fizer por você, faça por mim.

*Presidente da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011



20 de outubro de 2011 | N° 16861
CELSO GUTFREIND


Disparada

A canção se chama Disparada. É do Geraldo Vandré, mas ficou célebre na voz de Jair Rodrigues. A imagem serve para esta crônica sobre a criança, que também se vale da música materna para fazer o seu nome. E, quanto mais eficaz for a melodia, mais anônima ficará a mãe e conhecido, o filho.

“Prepare o seu coração/ Pras coisas/ Que eu vou contar.” A criança tornou-se capaz de narrar. Deve mesmo ter havido, lá no começo, aquela mãe cantando em tal sintonia, que o filho não precisa ser bonzinho. Pode ser verdadeiro. E acrescenta: “posso não lhe agradar...”.

Ele vai longe na arte, mas a vida não é fácil e vem mais um solavanco: “Aprendi a dizer não/ Ver a morte sem chorar”. Os versos sugerem falta de choro, liberdade para expressar-se. Mas a barreira maior vem a seguir: “A morte e o destino, tudo/ Estava fora do lugar/ Eu vivo pra consertar...”.

Freud foi pioneiro ao detectar o quanto as crianças nascem para resolver a vida de seus pais. Quando já se idealizava a infância, teve a coragem de dizer que o desejo de ser mãe e pai não começa nobre. Trata-se, no início, de uma vontade de não morrer e outra de que o filho resgate o que os pais não puderam ser. Ou seja, viva pra consertar.

Felizmente, a vida nem sempre dispara. Ela também dá um tempo para que os pais, verdadeiros responsáveis pelos consertos, possam rever seus desejos. O começo egoísta volta-se aos poucos para o outro até se tornar capaz de dizer: – Meu filho, podes ser tu mesmo e viver a tua própria história.

O processo parece complicado e é, porque se chama amor.

Na canção, ele acontece: o bebê crescido precisa assumir a boiada de um boiadeiro que morreu, mas tem a liberdade de fazê-lo só depois de aproveitar a infância. E reinar. E sonhar: “Seguia como num sonho/ E boiadeiro era um rei...”.

Seus pais entenderam uma noção afetiva fundamental: “gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente...”.

Sim, com gente é diferente: convém dar muito na largada para separar-se no meio, poder reencontrar-se durante e estar junto, por dentro, até o final. É preciso deixar ser para poder ser verdadeiro. Disparada canta: “Não canto pra enganar”.

Haja talento de ficar tão próximo, permitir crescer e depois partir a ponto de ficar maior do que a gente: “Por qualquer coisa de seu/ Querer ir mais longe/ Do que eu...”.

Para o próprio Freud, era impossível. Mas a prática também o superou. Volta e meia, vemos filhos capazes de sonhar. E serem livres para a disparada de pegar a viola e cantar mais forte noutro lugar.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011



19 de outubro de 2011 | N° 16860
MARTHA MEDEIROS


Quando menos se espera

Quando alguém se queixa de que não encontra sua cara-metade, que procura, procura, procura e nada, os amigos logo lembram o queixoso de que o amor só é encontrado ao acaso. Justamente no dia que você vai à locadora todo esculhambado para devolver um DVD, poderá esbarrar na mulher da sua vida.

E naquela noite em que você sai de pantufas do apartamento só pra descer até a garagem do prédio e desligar a droga do alarme do carro que disparou, é então que o Cupido poderá atacar, fazendo com que o príncipe dos sonhos divida com você o elevador.

Não acredita? Eu acredito. Nas vezes em que saí de casa preparada pra guerra, voltei de mãos vazias. Todos os meus namoros começaram quando eu estava completamente distraída. Mas não vale se fingir de distraída, tem que estar realmente com a cabeça na lua. Aí, acontece. O amor adora se fazer de difícil.

Pois foi meio assim que aconteceu com a universitária que foi parada numa blitz semana passada. Ela se recusou a fazer o teste do bafômetro, então teve a carteira recolhida e prestou algumas informações. Voltou pra casa e pouco tempo depois recebeu um torpedo de um dos agentes perguntando se ela estava no Facebook ou se podia dar seu MSN, porque ele gostaria de conhecê-la melhor.

Vibro com essas conspirações do destino, que fazem com que duas pessoas que estavam absolutamente despreparadas para um encontro amoroso (um trabalhando na madrugada, outra voltando de uma festa) se encontrem de forma inusitada e a partir daí comece um novo capítulo da história de cada um. Claro, levando-se em conta que ambos tenham simpatizado um com o outro, que a atração tenha sido recíproca.

Não foi o caso. A universitária não se agradou do rapaz. Acontece muito. O Cupido passa trabalho, não é fácil combinar os pares. Nesses casos, todo mundo sabe o que fazer: basta não responder ao torpedo, ou responder amavelmente dizendo que não está interessada, ou mandar um chega pra lá mais incisivo, desestimulando uma segunda tentativa.

A universitária desprezou essas três opções de dispensa. Inventou uma quarta maneira para liquidar o assunto: deu queixa do rapaz aos órgãos competentes. Dedurou o cara. Não perdoou que uma informação confidencial (o número do seu celular) houvesse sido utilizada indevidamente por um servidor público.

É duro viver num mundo sem humor. Uma cantada, uma reles cantada. Se fosse num bar, seria óbvia. Tendo sido após uma blitz, foi incomum. No mínimo, poderia ter arrancado um sorriso do rosto da garota que deveria estar pê da vida por ter a carteira apreendida.

Depois de um fim de noite aborrecido, ela teve a chance de achar graça de alguma coisa, mas se enfezou ainda mais. No próximo sábado, é provável que esteja de novo na balada, cercada de outras meninas e meninos, a maioria se queixando de que o amor não dá mole.

terça-feira, 18 de outubro de 2011



18 de outubro de 2011 | N° 16859
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Relendo Machado

Passei a semana relendo Machado de Assis. É provavelmente a vigésima vez que o faço, sempre com igual prazer e admiração. Agora, coloquei de lado os romances – como Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro, ambos merecedores de um lugar de honra na literatura universal – para me fixar nos contos.

Um Almoço ou Um Homem Superior, sem esquecer Miss Dollar e dezenas de outros caberiam sem favor numa antologia internacional do gênero. Até hoje não são reconhecidos.

Os organizadores dessas seleções preferem os autores do Primeiro Mundo, como bem agora o Prêmio Nobel foi parar nas mãos de um absolutamente desconhecido Tomas Tranströmer, um poeta sueco que foi incensado por suas “imagens condensadas”. As únicas coisas que conheço condensadas são os livros das Seleções do Reader’s Digest e o Leite Moça.

Tudo bem. Não defendo uma láurea post-mortem para Machado de Assis, mesmo porque isso não existe. O que existe é uma lenta, desconfiada apreciação de sua obra em universidades europeias e norte-americanas.

Ainda assim, algo modesto, quase recôndito, como se a Academia se achasse incapaz de julgar a obra do maior dos escritores brasileiros. De vez em quando pipocam elogios, como os de Woody Allen, mas é tudo.

Parece que o Hemisfério Norte, lá onde fica a chamada civilização, ainda não perdoou o gênio de um mulato epilético que teve a ousadia de ombrear-se, ou até mesmo de ultrapassar, os grandes autores reconhecidos pelo Circuito Elizabeth Arden.

Ninguém como ele retratou a complexa sociedade do Rio de Janeiro nas últimas décadas do século 19 e na primeira do século 20. Ninguém como ele pintou as contradições, os amores, a hipocrisia de uma metrópole tropical. Ninguém como ele desenhou o caráter, os mistérios, a beleza das mulheres que foram suas personagens.

Há uma ampla galeria de nulidades que são hoje estudadas e enaltecidas pelos donos da verdade. O gênio de Machado de Assis ainda espera a sua vez.


18 de outubro de 2011 | N° 16859
CLÁUDIO MORENO


Verdadeiro demais

É incomparável o legado que a Grécia nos deixou na literatura e na escultura; da obra de seus pintores, contudo, não nos restou praticamente nada, a não ser o título e o tema de alguns quadros famosos. Pela descrição de seus contemporâneos, dá para ver que ainda estavam presos a um ingênuo realismo, exigindo do pintor uma fidelidade quase fotográfica aos objetos retratados.

Isso fica bem claro no clássico incidente entre Zêuxis e Parrásio, dois mestres admiradíssimos, que se defrontaram num concurso para ver quem era o melhor pintor. Quando Zêuxis descerrou sua tela, que representava um cesto com belas uvas maduras, vários pássaros entraram no recinto, atraídos pelas frutas.

Orgulhoso desta aprovação inesperada, Zêuxis voltou os olhos, curioso, para a tela de Parrásio, que ainda continuava coberta, exigindo que abrissem a cortina para ver o que continha – quando então percebeu, abismado, que aquilo que ele tinha tomado, desde o princípio, por tecido, era na verdade a pintura que o rival tinha feito. Zêuxis, com nobre humildade, proclamou-o então vitorioso, porque, se as suas uvas haviam iludido os passarinhos, a cortina havia iludido a ele próprio, um pintor experiente.

O mesmo Zêuxis, anos depois, pintou um menino com um cacho de uvas na mão; novamente os pássaros vieram voltejar em torno do quadro, atraídos pelas frutas, o que arrasou nosso pintor. Desolado com a própria incompetência, declarou, solenemente, que estava limitado a ser apenas um bom pintor de uvas, pois, se também fosse bom com a figura humana, os pássaros, com medo do menino, não teriam tido a coragem de se aproximar da tela.

Com o passar dos séculos, no entanto, o pintor foi se tornando um verdadeiro artista, preocupado em expressar um modo único de enxergar a realidade; não sei o que os pássaros diriam de Van Gogh, mas sei que ele mudou para sempre nossa maneira de ver um simples canteiro de girassóis. À destreza da mão que maneja o pincel vieram se juntar o olho e a alma do pintor, e à história de Zêuxis podemos contrapor a de Velazquez, que pintou, em 1650, o papa Inocêncio X.

Quando o pontífice viu, no retrato pronto, a expressão tensa de seu próprio rosto, o cenho franzido, os olhos quase ferozes, ficou desconcertado; Velazquez havia captado com tal maestria o lado oculto de sua personalidade que exclamou, numa crítica que se tornou o melhor elogio: “Troppo vero”. Era fiel demais.

sábado, 15 de outubro de 2011



16 de outubro de 2011 | N° 16857
MARTHA MEDEIROS


Artistas anônimos

Uma carreira sólida (não os 15 minutos de fama) se constrói também com um fator aleatório que faz toda a diferença: sorte

Ter um espaço para escrever em jornal e uma editora para publicar meus livros é uma sorte, e não apenas consequência do talento. Cada vez que leio um texto num blog, que vejo uma pintura de alguém que expõe na rua ou ouço um cara tocando num boteco sombrio, sei que é quase certo que eles não encontrarão mercado para expandir seu público, não terão a chance de viver do seu dom. E, inevitavelmente, penso na loteria que é essa tal de vida artística.

Assisti dias atrás ao filme Riscado, de Gustavo Pizzi, que já recebeu alguns prêmios em festivais. É a história de uma atriz, interpretada pela ótima Karine Teles, que sobrevive de bicos na noite de uma metrópole.

Ora ela interpreta Marylin Monroe cantando Happy Birthday para octogenários, ora ela se fantasia para distribuir panfletos em bares, ora canta na calçada para atrair fregueses para um salão de beleza, ora faz telegramas ao vivo. Tudo muito digno – e deprimente. Ela é uma atriz. Uma boa atriz. Mas como saberão que ela é uma boa atriz? No filme, ela integra o elenco de uma peça precária, a que só os amigos foram assistir.

O seu palco, mesmo, é na festinha dos outros, onde ela faz uma breve aparição e depois some sem que ninguém mais lembre dela. Terminado o “expediente”, ela acende um cigarro e vai para a fila do ônibus, enquanto aguarda o telefone tocar com alguma proposta mais animadora, que a tire desse mundo da figuração.

Até o dia em que surge a oportunidade de trabalhar numa produção internacional, com papel fixo e importante. Mas será que existe mesmo conto de fadas?

Há os que poderiam bailar lindamente, se pudessem frequentar uma escola. Os que poderiam cantar, pintar, ser atletas, estilistas ou músicos, não tivessem que se dedicar a um “trabalho normal” para ajudar nas despesas da casa.

E há os que, mesmo frequentando perifericamente o mundo em que sonham entrar, como a personagem do filme, mantêm-se à margem até o fim dos dias, sem um minuto de protagonismo, sem jamais ver seu nome nos créditos.

O que é que define a trajetória de um artista? Levando-se em conta que ele entende mesmo do riscado (daí o título do filme) e que é um sujeito responsável e de caráter, o que mais precisaria acontecer? É uma pergunta que milhares de candidatos ao reconhecimento se fazem, mas não há uma resposta exata.

Uma bailarina do Faustão será chamada um dia para o elenco de um musical? E estando nesse musical, evoluirá depois? A primeira vez que vi Claudia Raia, ela tinha 16 anos e dançava na montagem brasileira de A Chorus Line.

Acabou virando uma grande estrela. Pelo talento, óbvio, e por conspirações cósmicas que ninguém explica. Uma carreira sólida (não os 15 minutos de fama) se constrói com carisma, perseverança, presença de espírito, facilidade de se relacionar, inteligência, dedicação, disponibilidade, bagagem cultural e com um fator aleatório que faz toda a diferença, mencionado lá no início do texto: sorte. A sorte de alguém colocar o olho em você e apostar.

Loteria.


15 de outubro de 2011 | N° 16856
NILSON SOUZA


Inesquecíveis

Voltamos à escola, eu e outros colegas de ofício selecionados pela editoria de Educação, para relatar aos leitores o que mudou da nossa época de iniciação escolar para agora. Foi mais uma alegria do que uma tarefa. Os relatos, que os leitores deste jornal puderam acompanhar no decorrer da semana, evidenciam a satisfação dos ex-alunos em regressar ao cenário de uma das mais gratificantes experiências da infância, que é o convívio com colegas e professores.

Pelo retorno que temos recebido, acredito que conseguimos passar bem a magia do primeiro contato com as letras e que muitas pessoas ligaram os nossos relatos com suas próprias experiências. Quem não sente saudade da sua primeira escola? Quem não tem lembranças saborosas daquele período encantado da meninice? Quem não tem uma professora inesquecível na parte mais protegida do coração?

Essa talvez tenha sido a tarefa mais difícil: eleger uma mestra ou um mestre que marcou para sempre a nossa vida. Todos, de alguma forma, deixam tatuagens afetivas na alma das crianças. As professoras – vamos, por justiça histórica, tratá-las no gênero feminino – celebram hoje o seu dia, confrontadas com as carências de sempre e com dificuldades agravadas pelo descaso das autoridades e das famílias.

Recebem salários insuficientes, trabalham muitas vezes em instalações precárias e, mesmo nas escolas melhor aparelhadas, convivem com crianças e adolescentes sem muitos limites. A violência escolar tornou-se uma triste rotina dos nossos dias.

Ainda assim, as professoras – e os professores, vamos fazer uma concessão a quem chegou depois – têm algo a comemorar neste dia especial: o orgulho pela escolha profissional que fizeram. Elas optaram por preparar muitos futuros que provavelmente não conhecerão. Elas abraçaram altruisticamente a missão de plantar sementes para que outros colham os frutos.

Lá no recôndito de suas almas, porém, elas guardam uma certeza que compensa toda a abnegação. Elas sabem que conquistaram para sempre os corações e as mentes das crianças que ensinaram. Só elas têm o poder, fora do ambiente familiar, de se tornarem inesquecíveis para os meninos e meninas que um dia responderam à chamada do conhecimento.

Professoras – e professores, vá lá –, os que foram tocados pela vossa magia vos agradecem.

RUTH DE AQUINO

Vida pedestre

A morte sobe à calçada em carros potentes e desgovernados, dirigidos por irresponsáveis

Rosany Calazans foi casada com Rudolf Lessak por duas décadas. Ela tem 49 anos e acorda tarde, às 9 horas. Ele tinha 80 anos, acordava às 6 horas da manhã, era faixa preta de judô, fazia trilha e natação, tinha 1,92 metro de altura e 90 quilos.

Ele está no passado porque se foi abruptamente deste mundo quando caminhava na calçada com a mulher, no Itanhangá, perto do condomínio Floresta, um lugar muito verde no Rio de Janeiro, para onde o casal se mudara havia nove anos em busca de sossego.

Uma picape Nissan Frontier 4x4 subiu a calçada e capotou, arremessando Rudolf a quase 10 metros de distância. Ele morreu na hora. Seu corpo salvou sua mulher. Rosany caiu sem respirar direito, mas as dores físicas já passaram.

A dor da alma é que não passa. O carro, quase um trator, de 2 toneladas, atingiu seu marido pelas costas, virou de lado e encalhou fumegante. A avenida é uma reta. A velocidade máxima permitida, 40 quilômetros por hora.

Juliana Vilela, de 26 anos, morena bonita de cabelos compridos, dirigia o Nissan Frontier de R$ 80 mil que pertence ao pai, militar da Marinha. Ela não tem carteira de habilitação. Eram 8h30 de uma manhã ensolarada no domingo passado, Juliana estava vestida com minissaia curta preta, blusa escura e salto alto. Saiu do carro sem ferimento.

Telefonava freneticamente no celular, não para chamar os bombeiros ou a ambulância, mas para avisar mãe, irmão, amigos. Perguntou a testemunhas: “Morreu alguém?” Quando confirmaram, Juliana jogou o sapato no carro e saiu correndo descalça para o condomínio em que mora com os pais.

“Ela está fugindo”, Rosany escutou. E correu atrás da atropeladora. Juliana entrou no prédio e voltou ao local do acidente de figurino matinal: shortinho, camisa listrada e chinelo baixo. Só sete horas depois, na 32ª DP, da Taquara, Juliana se submeteu a “um exame clínico para constatação de embriaguez”.

Não passa de um teste de reflexos e equilíbrio. Ela fez o “quatro”, abaixou, levantou. Deu negativo. É brincadeira. Só no Brasil. Não é preciso ser médico para saber que esse exame não prova nada após sete horas. Já para o delegado que preside o inquérito, Mauricio Mendonça, “depende do organismo de cada pessoa”. Ah, sim. Como anda mesmo a Lei Seca no Rio?

Perguntei ao delegado se a atropeladora fez exame de sangue para detectar álcool ou outras substâncias no organismo. “Não”, disse, “porque ela se recusou.” Usou um direito constitucional, mas, ao agir assim, reforçou a suspeita de que voltava de uma balada.

Um ser humano de boas intenções que mata alguém por fatalidade até exigiria exame de sangue para provar que não estava alcoolizado ou drogado.
A morte sobe à calçada em carros potentes e desgovernados, dirigidos por irresponsáveis

Primeiro, Juliana disse aos policiais que tinha cochilado ao volante. Mas, como era esquisito dormir dirigindo de manhã ao sair “para comprar pão” – como consta em seu depoimento oficial –, a versão escrita ficou mais sofisticada, atribuindo a culpa a um terceiro que ninguém conhece, ninguém viu.

“Uma van fez uma manobra irresponsável e a fez perder o controle, subindo na calçada”, disse o delegado. “Mentira”, disse a viúva. Agora, o advogado de Juliana marcará data para novo depoimento.

Rosany ainda não tem advogado. Enquanto Juliana se preparava para escapar de seis anos de prisão por matar um pedestre, na calçada, sem direito de dirigir, Rosany cuidou de burocracia e luto. Enterrou o marido no cemitério junto ao sítio do casal, na serra de Nova Friburgo. Ele estava com seu quimono e a faixa.

Eram os desejos dele, mas o de Rosany era que o marido chegasse aos 100 anos com saúde. “Era mais do que amor”, disse. Ela não tem filhos e não consegue mais nem pensar se deseja comer. Não acredita em justiça porque a família da atropeladora é poderosa no local, tanto que as testemunhas lhe disseram que adorariam depor, mas têm medo.

Tentei falar com Juliana. Atendeu sua mãe. “Ela não está.” Eu me identifiquei como jornalista. “Ela não vai falar.” Por quê? “Porque não. Vocês distorcem tudo.” Disse a ela que o telefonema estava sendo gravado. “Ótimo”, respondeu com arrogância, “adorei.”

Segundo o Denatran, que só registra mortos no local, atropelamentos matam 6.303 no Brasil por ano. Nos cálculos do Ministério da Saúde, o total sobe para 8.522, o que significa um atropelado morto por hora no país. Cada vez mais a morte sobe às calçadas em carros potentes e desgovernados, dirigidos por irresponsáveis.

Em São Paulo, numa noite de sábado no mês passado, um motorista alcoolizado invadiu a calçada em frente ao Shopping Villa-Lobos e matou mãe e filha. Difícil chamar isso de “acidente”.

Juliana não tem medo. Nada vai acontecer com ela. Nem mesmo perder o que já não tinha, a carteira de habilitação.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011


Jaime Cimenti

Steve Jobs, Duquesa de Alba, Rainha Elizabeth II, Rainha Silvia e todos nós

Steve Jobs, que era discreto e franciscano, faleceu e, no mesmo minuto, o mundo ficou sabendo de muita coisa sobre o visionário pelos instrumentos de comunicação que ele mesmo criou ou desenvolveu. De um lado a privacidade acabou.

De outro, todo mundo pode falar tudo, toda hora e em todo lugar, para o bem e para o mal e ficar sabendo de tudo, todo segundo, de todos. Tomara que o saldo seja positivo, que esse monte (excesso) de comunicação seja para o bem.

A mídia mundial, mais ou menos no mesmo período, noticiou o terceiro e fulgurante casamento da guapa Duquesa de Alba, 85 anos, com Alfonso, de 60. Dizem que o rei da Espanha e os filhos da noiva estavam contra, mas ela, que se veste muitas vezes com roupas informais tipo hippie e que é uma boa católica, resolveu oficializar a união.

Doou alguns bens para os filhos para dar uma acalmada, o noivo assinou um documento abrindo mão de direitos e, ao fim e ao cabo, parece que está tudo dando certo. A duquesa se expressa, fala mal publicamente da nora, vai à praia e procura mostrar que o amor é o que mais lhe interessa, acima das dezenas de títulos nobiliários e dos bilhões de euros que acumulou.

A rainha Elizabeth II está com 85 anos, é rainha há 59, é uma das mulheres mais ricas do mundo e está casada há 64. Procura ser discreta, fleugmática, mas a internet, os filmes e tudo mais invadem sua privacidade e todo mundo fica sabendo de muita coisa.

A rainha Silvia da Suécia procura viver, ao que parece, num equilíbrio entre a publicidade e a vida familiar privada, dentro, aliás, dos padrões austeros de seu país. Não me atrevo a pensar em quem está mais certo ou errado ou se divertindo de mais ou de menos.

Ou se mostrando de mais ou de menos. Isso é coisa, decisão de cada um. Ou de terceiros que ficam espalhando tudo por aí, pelos vários meios. Tenho procurado lidar com o excesso de informação, com a privacidade. Não sou muito curioso.

Só leio uns cinco ou seis jornais por dia e umas quatro revistas por semana, além de livros, bulas, guias telefônicos, fôlderes e outros. Só fico algumas horas por dia na internet. Redes sociais e Twitter, por enquanto, estou fora, resistindo. Enfim, o negócio é tentar se expressar na maneira e na quantidade razoáveis, com as devidas pausas para os silêncios e respirações.

Querer saber sobre a vida alheia? Bom, isso é mais velho que a Sé de Braga e andar a pé. Fui, já falei demais por hoje. Obrigado pela atenção.

Jaime Cimenti

Romance traz grande mosaico de nossa vida campeira

A literatura gaúcha sempre contou com grandes romances sobre nossa história, nossa cultura e nossos usos e costumes. Erico Veríssimo, Cyro Martins, Josué Guimarães, Tabajara Ruas, Dyonélio Machado, Luiz Antonio de Assis Brasil e muitos outros escreveram páginas importantes e imorredouras.

Atado de ervas, alentado primeiro romance de Ana Mariano, poeta e contista gaúcha, natural de Porto Alegre mas com infância passada no interior de São Borja, se inscreve perfeitamente nessa tradição essencial.

Acima de outras qualidades, a narrativa de Ana, autora do belo livro de poemas Olhos de cadela (finalista do Açorianos de Literatura) é, antes de tudo, um grande mosaico da vida campeira, a partir do galpão de estância até a sala de jantar.

Tomando como pano de fundo episódios reais e figuras históricas como Getúlio Vargas e João Goulart, dezenas de personagens desfilam nas páginas da autora em meados do século XX. Notícias de rádio, em especial, sinalizam as profundas mudanças no campos e nas cidades no período. Luzia, a protagonista, registra, meticulosamente, no Livro da Fazenda, os acontecimentos cotidianos: nascimento de terneiros, desaparecimento de cavalos e fatos marcantes da saga de quatro gerações de estancieiros e seus agregados.

Patrões, empregados, padres atormentados, uma astuciosa benzedeira, um comunista desencantado e uma romântica costureira, entre outros, são desnudados habilmente pela autora, mostrando as almas e como se vivia e se morria em uma típica estância gaúcha, em um passado não muito distante dos dias tumultuados que vivemos. Cada personagem tem sua linguagem própria, mas os temas são universais.

Amor, trabalho, idealismo, traição, conflitos familiares, apego à terra e tradição, entre outros, estão no caudaloso romance, igualmente baseado em longas pesquisas da autora.

Os modos de vida e o espírito da época são, igualmente, protagonistas da prosa rica e engenhosa da escritora, que retrata o sol, o céu, a natureza e até a locomotiva Maria Fumaça que circulava pela estação de São Borja, nos idos dos anos quarenta e presenciou cenas comoventes de despedida. L&PM Editores, 400 páginas, www.lpm.com.br.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011



12 de outubro de 2011 | N° 16853
MARTHA MEDEIROS


Pensamentos repetitivos

Minha geração cresceu buscando liberdade, bem diferente dos adolescentes de hoje, que trocaram o idealismo por um notebook. Um jingle da época dizia que liberdade era uma calça velha, azul e desbotada, mas isso era apenas uma metáfora para uma liberdade que significava morar sozinho, trabalhar e tomar as próprias decisões – os alicerces para a independência.

O tempo passou e nossa independência se adequou às responsabilidades da vida adulta. Casamento, profissão, paternidade: nos mantivemos livres, pero no mucho. A liberdade plena passou a ser exercitada apenas em área restrita: dentro da nossa cabeça. Ainda podemos pensar o que quisermos. Nosso poder de criatividade segue intacto. E incentivo para exercitar o cérebro nunca faltou: livros, jornais e uma rede de informações que cresce a cada dia.

No entanto, em vez de usar o cérebro como uma forma de libertação, ficamos escravizados por ele. Muitos preferem segurança à liberdade, e então criam um pacote de pensamentos repetitivos ao qual se agarram por décadas, sem nem questionar, sem nem se dar conta de que talvez já não pensem mais daquela maneira.

“Nunca vou conseguir fazer isso”, “Não fui feito para tal coisa”, “Jamais financiarão essa minha ideia maluca”, “Meu pai não me perdoaria”, “Fulana não vai mudar” são pensamentos recorrentes que impedem que arrisquemos.

Não passa pela nossa cabeça que o pai perdoaria, sim, e que ideias malucas podem encontrar incentivadores, e que só é impossível conseguir aquilo que não ousamos tentar. Mas você topa pensar diferente do que pensava antes? É esse o acordo.

Ninguém vai virar um Einstein ou um Steve Jobs por desamarrar-se de suas crenças imutáveis. Mas há um ganho real em ser capaz de abandonar os pensamentos de estimação, mesmo que considere estar traindo a si mesmo. Ora, se as pessoas não conseguem nem mesmo manter suas juras de amor eterno ao parceiro, por que precisam manter juras de amor eterno a um pensamento estagnado?

Pode-se viajar pelo mundo, ir para um lado, para o outro, mas quem continua pensando sempre igual, quem não reavalia suas convicções, permanece imobilizado.

Abandonar uma postura, reposicionar-se, experimentar. Esse é o verdadeiro espírito de liberdade que Steve Jobs deixou como herança, e esse espírito é mais importante que a invenção de iPods, iPhones e iPads, ferramentas modernas, mas que também são manuseadas por gente travada. Pensar diferente não é criar ou usar tecnologia: é recriar-se e usar-se. E isso é possível a qualquer um.

terça-feira, 11 de outubro de 2011



11 de outubro de 2011 | N° 16852
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma perdida fé

Estou eu posto em sossego, lendo Machado de Assis, em meio à calma da manhã de domingo, quando irrompem os sons vigorosos dos sinos da Catedral. Já perdi a conta dos anos em que os escuto, eu, que sempre fui habitante destas vizinhanças da Praça da Matriz.

Sei que foram importados da Europa, talvez da Alemanha ou da Holanda. Mas isso não importa tanto. O que conta é a sintonia de suas harmonias, sempre pontuais, sempre emprestando a plenitude de seus acordes a todas as horas do dia.

Esses sinos me acompanham desde que eu era adolescente. Todas as fases de minha vida, desde então, foram ritmadas pelas melodias de seus timbres.

Me bate uma espécie de suave nostalgia ao recordar as épocas em que, aos 17 anos, acordava com seus sons para preparar o vestibular de Direito. Me vem uma doce lembrança ao lembrar os tempos de namoro. Me persegue uma terna evocação das épocas em que chegava tarde do jornal que garantia o meu sustento.

Salvo na infância, nunca fui um visitante frequente da Catedral. Quando menino, me distraía da missa observando os pássaros que pousavam nas esquadrias brancas do que viria a ser a cúpula da igreja. Mais tarde, assistia à missa das nove horas, que era o prelúdio de um domingo que incluía passeio pela Praça da Matriz, almoço com massa e galinha assada, matinê, jogo de futebol.

Depois, fui me distanciando da Catedral, embora não faltasse nunca às cerimônias da Semana Santa, com as imagens cobertas de roxo e as preces e cantos em bom e velho latim. De uma delas, me ficou o perfil da mais bela garota que já vi, com seu véu e seu rosário, numa atitude de oração que jamais esquecerei. Nunca descobri quem era, castigo apropriado para quem, ao invés de rezar, ficava observando as moças.

Então me afastei dos cultos, que só retomei em templos como o da Notre Dame de Paris.

Mas os sinos de cada manhã e tarde não me deixam esquecer que sou católico, ao menos na denominação.

Talvez algum dia volte a frequentar a Catedral de Porto Alegre e ver renascer em meu coração uma antiga, perdida fé.


11 de outubro de 2011 | N° 16852
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Cinco anos

Terça passada estive em Veranópolis, para a Feira do Livro de lá (que se combina com um Festival de Mágica – excelente ideia!), junto com o Humberto Gessinger, o engenheiro de poucas vogais, gente muito fina e parceiro de vários encontros com leitores.

Mal chegamos, fomos apresentados ao patrono do evento, “um velho professor”, disseram, “de 91 anos”. Só esse número já dá o que pensar; sendo professor, então, nem se fala. Era o irmão marista Herbert Wildner.

Apertamos as mãos e ele, com um ar de mistério, me olhando com um meio sorriso, tirou do bolso um envelope, de onde saíram algumas fotos recentes. Tomou uma delas e me perguntou se eu conhecia um certo senhor que ali aparecia.

Claro: era meu pai, Bruno. (Em outra foto também minha mãe estava estampada.) A foto era de uma festa pelos acho que 60 anos de formatura de uma turma de Contabilidade do Colégio São José, de Lajeado; ali estavam uns ex-alunos, entre os quais meu velho pai, e o ex-professor deles, o mesmíssimo irmão Wildner.

Assim que pude, liguei para o pai, contando do encontro, mas fiz um certo suspense, parecido com o que o irmão tinha feito comigo: dei alguns dados e perguntei se ele imaginava quem era – e o pai disse o nome de guerra, antigo, de seu caro professor. Era a mesma simpática e competente figura. (Fui conferir agora na internet e descobri que o irmão Herbert aniversaria dia 14, daqui a três dias, completando os 91.)

Professor do meu pai, que foi professor, sendo eu também um deles. Não dá para evitar uma exclamação, por esses laços que o acaso proporciona. Mas tudo passa e segue, e anteontem meu filho completou cinco anos. Cinco anos – outra exclamação. O que permanece na vida de um adulto como eu daquele menino de cinco anos que eu fui?

O que seguirá marcado no fundo da alma do Benjamim de seus primeiros cinco anos? Um presente? Aquele Batman, o pequeno pacal, que agora chamam pebolim, a pista dos carrinhos? O beijo forçado numa tia? A alegria de brincar o dia todo com o Alfredinho, seu primo? O ciúme da irmãzinha ao não ganhar tanto presente como ele? A certeza do coração feliz dos pais e parentes? Nada disso?

Mistérios da memória, do afeto, nesta lenta cadeia de pequenos eventos que se chama vida

domingo, 9 de outubro de 2011


DANUZA LEÃO

Só no dicionário

Tem sentido, hoje, dizer de alguém que tem excelente caráter? Que é sincera? Que nela dá para confiar? Quais as qualidades mais valorizadas nos dias de hoje?

Bem, como tudo mudou, vou falar de algumas, as que dão mais ibope, e não pela ordem.

É preciso ser ligado, antenado e sobretudo bem informado; é aquele que presta atenção a tudo, a quem nada escapa.

Com esses predicados, é possível abrir as portas para uma carreira brilhante e um futuro promissor, e se tiver também alguma inteligência, o sucesso é garantido. Afinal, é por meio das boas informações que são feitos os grandes negócios e as tramas políticas acontecem.

Mas é preciso também ser esperto para usar essas informações na hora certa, com a pessoa certa. Esperteza, essa sim, uma enorme qualidade. Quem tiver esse dom pode se tornar milionário e poderoso, o objetivo supremo de toda a humanidade -de quase toda, digamos.

Cultura já esteve mais em alta, mas tem sua vez em algumas rodas, e conhecer profundamente um assunto -mesmo só um- costuma deixar as pessoas de queixo caído.

Mas não se esqueça: seja ele qual for, vá fundo e mostre-se um expert. Que seja algo de original: a civilização egípcia, por exemplo. Como poucas pessoas viram uma múmia de perto, esse é um belíssimo tema para ser jogado num jantar de seis pessoas -elas vão babar de admiração, e você vai brilhar sozinho.

Os mistérios do fundo do mar e a vida sexual dos cangurus também podem agradar, mas fuja da astrologia e da psicanálise, que já deram tudo o que tinham para dar. Astronomia, quem sabe? Vinhos, melhor beber do que falar deles, e de viagens, nem pensar.

Outra qualidade muito valorizada é a dos que leem os jornais -bem. Todos os do Rio e de São Paulo, claro, e talvez de mais uns quatro Estados. Mas tem que ser falado a sério, para poderem dizer, como quem não quer nada, que concordam -ou discordam, isso não tem a menor importância- com a divisão dos royalties do pré-sal.

Saber esgrimar com as palavras também faz grande sucesso, mas é perigoso: sempre pode haver alguém mais talentoso e ferrar você de vez.

Mas quando quiser falar mal de alguém, seja irônico -é mais cruel, não compromete, não dá processo- e nunca diga nada que possa ser repetido: fale bem, mas usando tons de voz e sorrisinhos que vão arrasar, de vez, aqueles de quem você não gosta.

Mas um dia você se lembra de que há muito, muito tempo, existiam qualidades bem diferentes dessas, e que hoje não fazem o menor sucesso. Tem sentido, hoje em dia, dizer de uma pessoa que ela tem um excelente caráter? Que é sincera? Que nela você pode confiar? Se você gosta de verdade dela, é melhor ficar calado, pois pega até mal dizer essas coisas de um amigo.

E existem ainda outras de que não se ouve falar há tanto tempo, mas tanto, que já virou até coisa de época. Passa pela cabeça dizer que uma pessoa é sensível, terna, delicada, bem educada, que tem um grande coração? Pega até mal; e passa pela sua cabeça que uma pessoa é bondosa?

Procure lembrar há quantos anos você não ouve falar de um gesto de bondade, não recebe um olhar de bondade, não ouve nem pronuncia a palavra bondade -se é que isso ainda existe.

Se não souber do que se trata, procure no dicionário, e talvez encontre; talvez.

danuza.leao@uol.com.br

FERREIRA GULLAR

E durma-se com um barulho desses

O mundo inteiro hoje parece acreditar que todas as pessoas desejam ouvir música 24 horas por dia

Porque tenho um livro de poemas intitulado "Barulhos", pode alguém imaginar que gosto de barulho. Estará enganado, odeio-o.

Pode ser que, por causa da idade, meus ouvidos, com o passar dos anos, tenham se tornado mais sensíveis.

Ao que eu saiba, porém, com a idade o sujeito tende é a ficar surdo, ouvir menos. Ou serão os nervos?

Pode ser: ouve menos, mas, em compensação, é mais vulnerável.

Seja por que for, o que importa é que barulho se tornou para mim uma coisa quase insuportável. E quando é gente que fala alto, fico particularmente irritado, porque aí é barulho que tem cara, boca, bigode e barba, não é o barulho burro do caminhão da Comlurb, compactando lixo debaixo de minha janela às 11h40 da noite.

Fala-se muito da poluição provocada pela queima de combustíveis nas ruas; do lixo que empesta os bairros do Rio de Janeiro, certamente uma das cidades mais sujas do mundo. E têm toda razão. Pouco se fala, porém, da poluição sonora, que não é menos perniciosa, não apenas à saúde física como psicológica das pessoas, estressando-as, quando já desgastadas estão pelas tensões da cidade grande.

Sem dúvida alguma, vivemos na civilização do barulho. No passado, quando a barulheira era menor, essa expressão "do barulho" soava como elogio. É que barulho, naquela época, era sinônimo de repercussão.
Hoje, até a música, em muitos casos, virou barulho, estridência quase insuportável. Já isso se deve, em parte, à invenção da guitarra elétrica e das caixas de som de alto poder emissor.

Por essas considerações, o leitor já teve ter concluído que estou longe de ser um cidadão integrado na idade do rock. Mas, verdade seja dita, apesar do recente Rock in Rio, já não é essa a causa da poluição de que me queixo.

Admito que, com a idade, fui me tornando mais sensível aos barulhos em geral, até mesmo à gritaria do cara que atende ao celular, ao meu lado, no caixa eletrônico e me faz esquecer o código do cartão.
Contenho-me para não repetir a ele aquela frase com que meu amigo Guaxito gozava os colegas de jornal que falavam berrando ao telefone: "Avisa ao coleguinha aí que já inventaram o telefone".

Às vezes tenho a impressão de que vivo em meio a uma população de surdos, aos quais nenhum barulho incomoda. Pelo contrário, gostam dele e odeiam o silêncio, enquanto eu, estranho no ninho, vivo em busca de um recanto silencioso qualquer, seja um banheiro de restaurante, seja um elevador de edifício comercial. E me dou mal, pois, agora, até em elevador tem música tocando.

Isso é outra coisa que não entendo. O mundo inteiro hoje parece acreditar que todas as pessoas desejam ouvir música 24 horas por dia. Se não bastasse o elevador e o banheiro, agora tem música também tocando nos supermercados. Essa foi a desagradável novidade que me surpreendeu, ao entrar num deles aqui perto de casa para comprar leite, pão e umas garrafinhas de Malzbier, minha mais recente mania.

O novo gerente descobriu que vai vender mais infernizando as pessoas com música alta e atordoante. Ele não entende que as pessoas têm necessidade de se concentrar para avaliar o que estão comprando, além de encontrar ali um de refúgio à barulheira dos ônibus, que tomam conta da rua.

Devo admitir, porém, que a isso já estou quase adaptado, a não ser quando passa um gorducho montado numa motocicleta com cano de descarga aberto, deliberadamente disposto a me estourar os ouvidos.

E vejam vocês: as fábricas produzem essa espécie de moto, com canos de descarga feitos de propósito para gerar o máximo de barulho possível. E os ecologistas não estão nem aí, como se a poluição sonora não contasse.

É a impressão que tenho, pois não vejo nenhuma passeata protestando contra o excesso de barulho na cidade. E não só isso, o próprio governo contribui para nos atordoar.

Existe coisa mais insuportável que sirene de carro do Corpo de Bombeiros? Na verdade, existe, se não mais insuportável, pelo menos igual: a sirene dos carros de polícia e das ambulâncias.

É preciso alguém dizer a esse pessoal que a sirene é apenas para advertir o motorista do carro da frente a ceder passagem. Não é para enlouquecê-lo.

CARLOS HEITOR CONY

O partido que falta

RIO DE JANEIRO - Fiquei sabendo pelos jornais que o Brasil terá mais um partido político: o PPL (Partido Pátria Livre). Somando-se aos já existentes, serão 29 segmentos políticos da sociedade que terão programas para melhorar as coisas e causas nacionais, embora eu não compreenda, por exemplo, que existam 29 maneiras de ser contra ou a favor do aborto, do casamento gay e dos royalties do pré-sal que ainda está no fundo do mar.

Evidente que os 29 partidos poderão fazer coligações em torno de ideias comuns, mas, na realidade, as coligações nada têm de ideológicas e sim de eleitorais, de acordo com cada Estado ou município.

Fala-se em reforma política há bastante tempo. No fundo, o que a classe profissional dedicada ao setor pretende é uma arrumação partidária, aumentando o número de vagas nos Legislativos e de possibilidades na hora das nomeações para os diversos cargos públicos de primeiro e segundo escalão.

Para efeito prático, desde os tempos do Império, a divisão política ficava no conservadorismo e no liberalismo. Em outros países continua esta divisão básica e suficiente. Nos tempos da ditadura, os militares criaram dois partidos e, pensando bem, houve até algumas surpresas, com a vitória da oposição (MDB) em diversas regiões eleitorais.

Agora uma constatação: se, nos tempos de chumbo, em vez de dois partidos tivéssemos 29, certamente ainda estaríamos mergulhados na ditadura. O lugar-comum garante que é bom dividir para reinar.

Como não sou filiado nem admirador de nenhum dos 28 partidos existentes, não sinto o menor entusiasmo pelo 29º que está sendo criado, gostaria que a reforma política criasse mais um, o 30º, o partido do eu-sozinho, do qual eu seria fundador, presidente e beneficiário. Apoiaria as grandes causas nacionais, sobretudo as minhas.

sábado, 8 de outubro de 2011



09 de outubro de 2011 | N° 16850
MARTHA MEDEIROS


Medianeras

Nunca foi tão cômodo ser solitário, e o ermitão deixou de ameaçar: agora, ele é cool

Medianeras é o nome do novo filme argentino que está em cartaz no Brasil. Corri pra ver e descobri o significado do título: medianera, em espanhol, é aquela parte do edifício que não tem janela. É a lateral de concreto sem serventia pro morador, que o deixa sem comunicação com a cidade e que só é utilizada para a colocação de anúncios publicitários.

Pois esse paredão é o símbolo do filme, que conta a história de Mariana, uma garota que vive sozinha num pequeno apartamento de Buenos Aires, e de Martin, que vive sozinho em outro pequeno apartamento na mesma rua. São vizinhos de prédio, mas nunca se viram.

O que seria impensável num pequeno vilarejo – dois vizinhos que não se conhecem –, nas grandes cidade se tornou banal. O diretor Gustavo Taretto acredita na influência das metrópoles na vida de seus habitantes e criou uma fábula cinematográfica sobre a ambiguidade dos tempos de hoje: o que nos une é, ao mesmo tempo, o que nos separa.

Estamos todos conectados, mas pouco nos comunicamos. A fartura de redes sociais e a superpopulação urbana dão a impressão de que convivemos com nossos pares, mas o que a tecnologia e a arquitetura fazem, cada uma a seu modo, é oferecer um certo conforto para a nossa clausura. Nunca foi tão cômodo ser solitário.

Tudo conspira para que tenhamos uma boa vida em nossa própria companhia: o computador, os celulares e a variedade de serviços de tele-entrega, que trazem à porta comida, DVDs, revistas, medicamentos, livros e até sexo. Sair de casa pra quê?

Antigamente, o ermitão era uma anomalia da sociedade, desconfiava-se dele: qual será sua tara? Hoje, pesquisas apontam para uma quantidade cada vez maior de pessoas morando sozinhas. O isolamento virou tendência. E o ermitão deixou de ameaçar: agora, ele é cool.

Para fugir da resignação – a solidão pode ser prazerosa, mas é uma resignação –, é preciso atravessar paredes. Mariana e Martin são dois jovens beirando os 30 anos que estão se desacostumando a se relacionar com gente de carne e osso. Têm dificuldade de conversar em primeiros encontros e só se sentem eles mesmos no refúgio de seus cafofos.

É uma vida escura. É um filme escuro. Que só começa a se iluminar quando, cansados da claustrofobia física e também emocional, resolvem abrir uma janela na medianera. Um buraco clandestino naquele paredão inútil, para que permitam a entrada de um pouco de luz e possam enxergar o que acontece lá fora.

É comum os solitários justificarem sua solteirice dizendo: os homens são todos iguais, as mulheres são todas malucas, não há ninguém interessante. De fato, encontrar alguém que seja o nosso número é mesmo uma espécie de “Onde está Wally?”. Mas com um pouco de romantismo, muita sorte e fazendo a sua parte – quebrando a parede e inventando uma janela –, o happy end pode ser avistado lá embaixo, caminhando pela calçada.


08 de outubro de 2011 | N° 16850
NILSON SOUZA


Previsões

Li outro dia interessante artigo do jornalista Clóvis Rossi sobre previsões a respeito do fim do jornal impresso. Lá pelas tantas, ele cita uma história contada pelo ex-vice-presidente Marco Maciel sobre a sabedoria de um antigo jogador pernambucano, o zagueiro Ananias. Sempre que ele entrava em campo e os repórteres perguntavam o que esperava do jogo, Ananias lascava:

– Só faço previsões sobre o passado.

Pois é, mesmo quem já viu o futuro chegar muitas vezes, como as pessoas da minha idade, incorre em imprudência se disser o que vai acontecer daqui a cinco minutos. Ainda assim, todos temos dentro de nós um Cléo Kuhn escondido, que vez por outra vem para fora e arrisca um palpite, sem consultar qualquer mapa de nuvens e trovões, como faz o nosso atilado meteorologista.

Mas o tema é outro: vai mesmo acabar o jornal impresso? Especialistas respeitados não têm mais dúvida sobre isso. Dizem que a questão é outra: quando? A revista The Economist causou furor quando publicou, em 2006, uma capa com a pergunta: Quem matou o jornal? Na mesma edição, citou a previsão do escritor Philip Meyer de que a última edição impressa de um jornal norte-americano seria publicada no primeiro trimestre de 2043.

A revolução tecnológica, principalmente a internet, estaria matando o jornal, afirmava a reportagem. Está? Por aqui, temos resistido bravamente. Os jornais brasileiros vêm, inclusive, aumentando a circulação, provavelmente por conta de uma nova classe consumidora que ainda não incorporou totalmente as plataformas digitais, como já ocorre em países mais desenvolvidos.

No jornalismo, a gente aprende que não se deve brigar com a realidade. Não me atreveria a dizer que os jornais vão sobreviver às vertiginosas transformações da comunicação. Dizem alguns que o livro, no seu formato tradicional, também está condenado, pois um leitor eletrônico desses que proliferam em todas as lojas pode conter uma biblioteca inteira. Quando penso nisso, racionalizo:

– O importante é que as pessoas leiam, não importa onde.

Mas, lá no fundo de minha alma, prefiro pensar como o zagueirão Ananias: previsões, só sobre o passado. E recomendo: quem quiser se arriscar a prever o fim dos impressos, que o faça numa plataforma digital.

RUTH DE AQUINO

Jobs e Bieber: sobre ídolos e seguidores

Vi um grau de comoção semelhante entre os seguidores de um e de outro nos últimos dias. Da idolatria, estou fora

A idolatria explícita, a um astro pop que morre e a um astro pop que nasce, me deixou aturdida na semana passada. Eu sei. Há um oceano imensurável entre o americano Steve Jobs e o canadense Justin Bieber. Além dos quase 40 anos que os separam, suas áreas de atuação não poderiam ser mais diferentes.

Estamos falando de um showman e de um showboy, com um carisma que vai muito além do sucesso profissional. Vi um grau de comoção bem semelhante entre os seguidores de um e de outro no Brasil nos últimos dias. Uma comoção diante de espetáculos antagônicos, a vida e a morte.

Talvez eu compreenda mais as velas virtuais e o choro de quem perdeu o guru da Apple do que os desmaios, histerias e convulsões diante de um menino de óculos escuros que ainda deve comer maçã com cereal e leite no café da manhã. Mas isso se explica facilmente por minha idade, a mesma de Jobs.

O fenômeno Bieber é algo que passa muito ao largo de minha história e de meu gosto musical. Se eu tivesse uma filha, quem sabe olharia com mais simpatia as moças que, diante do rapaz bonitinho e com voz afinada que imita os passos de Michael Jackson, gaguejam, deliram, brigam, se empurram, se espremem contra a grade, pulam a grade, passam mal.

Porém, mesmo que todas as minhas atuais ferramentas de contato com o mundo tenham sido idealizadas por Jobs, não consigo derramar lágrimas reais pelo desaparecimento do CEO. Sua principal função na vida era maximizar o lucro e valorizar sua empresa na Bolsa – o que fez com uma competência sobre-humana. Lamento muito sua morte precoce. Sou grata, no meu cotidiano, ao gênio inventivo de Jobs. Admiro sua perseverança, seu entusiasmo diante de suas criações, seu charme e estilo, sua capacidade de trabalhar até o fim, vivendo o câncer em público. Era um vencedor, uma águia inspiradora. Daí a transformá-lo em Deus... Jobs nunca seria meu guru.

Como todos nós, Jobs tinha limitações. Uma de suas limitações é mais comum do que se imagina no mundo moderno das grandes empresas. Assim como o fundador da Apple, há chefes que vão à Índia, tornam-se zen-budistas e, de volta à vida real e ao contato com seres de carne e osso, humilham os que nunca serão brilhantes. Porque se sentem, eles mesmos, iluminados.
Vi um grau de comoção semelhante entre os seguidores de um e de outro nos últimos dias. Da idolatria, estou fora

Não sou referência para falar sobre os seguidores porque nunca tive guru – político, cultural ou religioso. O mais perto que cheguei da idolatria foi assistir a Help, dos Beatles, cinco vezes seguidas no cinema. O filme, de 1965, era para dançar, e dançávamos no escurinho do cinema. Mas eu não gritava nem me descabelava. Não sonhava com Paul nem John. Por vezes, imagino a sensação de catarse numa multidão em transe. Mas fico cansada logo.

Nunca passei nem passarei pela experiência de ficar acampada por dias numa fila para ver alguém cantando num telão e disputar hambúrguer ou banheiro. Quando testemunho, pela televisão, o descontrole das tietes de Bieber, me pergunto como deve ser amar um ídolo carnal de maneira mística. Talvez eu tenha perdido algo, mas não percebi.

Tanto Jobs quanto Bieber sofreram adversidades na vida. Jobs foi dado para adoção, só completou seis meses de universidade, dormia no chão no quarto de amigos para poder assistir a aulas como ouvinte, recolhia garrafas de Coca-Cola para ganhar 5 centavos e comprar comida, andava 11 quilômetros para ter uma boa refeição no templo hare krishna.

Bieber era pobre, os pais se separaram quando tinha 1 ano, sua mãe dava duro para sustentá-lo, ele dormia num sofá azul na sala, havia ratos e ele chegou a viver de doações de uma igreja, que fez uma festa beneficente para lhe dar uma bateria.

Quem não se comove com histórias de superação como essas? A fortuna de Jobs foi calculada em US$ 8,3 bilhões. A do adolescente Bieber, em US$ 150 milhões. O cantor vendeu, em dois anos, 9 milhões de discos.

O fundador da Apple vendeu 100 milhões de iPhones em quatro anos e meio. Dois mágicos hipnotizadores de multidões, vendendo fantasias no palco em escala global. É preciso reconhecer o talento e o carisma de ambos. Mas, da idolatria, eu estou fora.


Chinesa JAC Motors anuncia fábrica de R$ 900 mi na Bahia

Planos de montar empreendimento no Brasil - anunciados em agosto - estavam suspensos por alta do IPI a importados, mas a montadora mudou de ideia
Veículos da JAC Motors em Lianyungang, China

Veículos da JAC Motors em Lianyungang, China (ChinaFotoPress/Getty Images)


A montadora chinesa JAC Motors vai anunciar oficialmente, nesta sexta-feira, a escolha da Bahia como sede a primeira fábrica da empresa no Brasil. Em agosto, empresário Sergio Habib, que comanda a operação da chinesa no país, já havia anunciado um investimento de 900 milhões de reais para o projeto - sem especificar, porém, onde a fábrica seria construída. O empreendimento ficará localizado no Pólo de Camaçari.

A unidade deverá ficar pronta em 2014 e terá capacidade de produzir 100.000 veículos por ano. A intenção é que 60% do produto seja de conteúdo nacional. Mesmo com a nova fábrica, a JAC continuará a importar outros modelos, como o J3, o J6 e o J5 e J2, que devem chegar ano que vem.

Em 2012 também chegam os primeiros caminhões de até 4,5 toneladas para competir com similares da Volkswagen e da Mercedes-Benz. O projeto também resultará na criação de 3.500 empregos diretos.

A maior parte dos investimentos na fábrica (80%) será proveniente do grupo SHC e o restante, da JAC. "Será a primeira montadora de automóveis de grande volume do Brasil, que produz modelos abaixo de 50.000 reais, com controle totalmente nacional", afirmou a companhia em nota.

A montadora havia suspendido os planos, em setembro, enquanto o governo não revisasse a medida que elevou o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em 30 pontos porcentuais para veículos importados. Em nota nesta sexta-feira, Habib afirmou esperar que, ao manifestar a decisão de construir a fábrica no Brasil, o governo crie condições para alterar o decreto.

O projeto da fábrica será protocolado nesta sexta-feira no Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, em Brasília. Atualmente, o grupo SHC possui 89 concessionárias no Brasil, das quais 40 são da JAC, número que deve crescer para 200 em 2014.

(Com agência Reuters)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011



05 de outubro de 2011 | N° 16847
MARTHA MEDEIROS


Nós, as eternas desprotegidas

Como é sabido, um comercial de lingerie da qual Gisele Bündchen é garota-propaganda está sendo considerado ofensivo às mulheres. No comercial, se aconselha a melhor maneira de uma esposa dar uma notícia ruim ao marido: primeiro Gisele aparece vestida, dizendo que bateu o carro dele, e depois aparece de calcinha e sutiã dando a mesma notícia.

De igual forma quando avisa que estourou o cartão de crédito ou quando comunica que a mãe dela vai morar com eles. Situações clichês entre casais, vistas com bom humor. Se um homem perde o rebolado ao ver uma beldade em trajes sumários (outro clichê), então é assim que se vai amansar a fera.

Seria apenas mais um comercial valendo-se de uma piada, sem nenhuma consequência para a moral da sociedade, mas como temos hoje uma mulher chefiando a nação, a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República se sentiu no dever de pedir que a propaganda saísse do ar. Um tiro no pé. Como se não tivéssemos massa cinzenta suficiente para julgar o que assistimos.

Ter uma presidente demonstra que estamos alinhados com uma mentalidade menos preconceituosa e indica que possivelmente nossa soberana tenha maior sensibilidade para avaliar questões que interessam às mulheres, como desigualdades salariais, ausência de creches, violência doméstica, dificuldade de fazer mamografias e tantos outros fatores cuja interferência do Estado é bem-vinda. Palpites em propaganda de lingerie, não carece.

Mulher nenhuma vai esperar o marido de calcinha e sutiã à luz do dia, no meio da sala, a não ser que tenha perdido o juízo ou seja, de fato, uma übermodel. Mulher não convida a mãe para morar com o casal, salvo em casos de emergência ou como recurso para terminar o casamento de vez.

Mulheres não batem o carro mais do que os homens, só arranham um pouquinho. Mas é verdade que toda mulher sonha em ser Gisele. Como jamais será, comprar a calcinha e o sutiã que ela usa dá uma falsa ilusão de parecença.

Propaganda mostrando mulheres frívolas que escolhem um homem por causa do carrão dele, ninguém comenta. Mulheres de avental e com um espanador na mão sendo trocadas por um jogo de futebol (papel que a própria Gisele encarnou numa campanha de canal por assinatura) tampouco causam estranhamento. Homens comparando mulher e cerveja, normal. Por que uma mulher utilizando sua sensualidade em benefício próprio seria uma influência mais danosa?

Chega desse paternalismo com as mulheres, como se a gente fosse umas bobocas que não sabem pensar, não sabem avaliar o que veem e não sabem rir de si mesmas. Os publicitários se valem de estereótipos e não denigrem a imagem de ninguém, a não ser a deles mesmos, quando fazem comerciais ineficientes – o que, pela polêmica gerada, não foi o caso. E o governo tem coisa bem mais séria com que se preocupar. I hope.

terça-feira, 4 de outubro de 2011



04 de outubro de 2011 | N° 16846
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma história de amor

Modestamente, acho que tenho uma das melhores bibliotecas de meu quarteirão sobre a Paris dos Anos 20 e a Geração Perdida. Essa coleção vem de ser enriquecida agora com Casados com Paris, uma história romanceada dos breves anos de casamento entre Ernest Hemingway e Hadley Richardson, e cuja ação se passa nos “roaring, fabulous twenties”.

A autora é Paula McLain, que por 335 páginas toma a voz e a maneira de ser de Hadley, numa narrativa que empolga desde os primeiros capítulos. A história começa em Chicago, onde eles se conhecem, e evolui para aquela Paris que ninguém descreveu melhor do que Hemingway em A moveable feast.

Aqui devo confessar que em 1980 segui o inteiro roteiro de Hemingway e Scott Fitzgerald por cada bar, café e restaurante que frequentaram numa cidade fascinante, que à época mantinha uma sedução essencial. É ela que volta a cada parágrafo de Casados com Paris, em todo o seu esplendor.

Lugares como Le Dôme, La Rotonde, Le Select, La Closerie des Lilas, Les Deux Magots, La Nègre de Toulouse e inumeráveis outros retornam, vivos e pulsantes, ao longo de um inventário de lembranças em que estão presentes Gertrude Stein, Ezra Pound, John dos Passos, Ford Maddox Ford, Scott Fitzgerald e mais uma constelação de astros que hoje fazem parte da literatura universal.

Um filho não planejado, mas muito amado, Bumby, e a perda de todos os originais de Hemingway num trem em que estava Hadley sozinha quase balançou um casamento perfeito. Mas eles se reconciliaram, embora não tivessem meios de superar um vendaval que soprou sobre suas vidas.

Pauline Pfeiffer, uma rica herdeira americana, seduziu Ernest em meio a um jogo de dissimulação e arrogância que acabou percebido por Hadley. Ela lutou com suas fracas forças para conservá-lo, mas toda tentativa resultou inútil. O inevitável sobreveio: a separação.

Biógrafos de Hemingway, como Carlos Baker e A. E. Hotchner, atestam que ele jamais esqueceu de Hadley.

Em maio de 1961 ele telefonou a ela e disse: “Amamos demais um ao outro”. Num sábado de julho do mesmo ano, tomou sua arma preferida e suicidou-se.

Foi o fim trágico de uma bela história de paixão.


04 de outubro de 2011 | N° 16846
CLÁUDIO MORENO


Não me devem nada

Atalanta, a donzela guerreira, teve a mesma infância infeliz vivida por quase todos os heróis da mitologia grega. Quando ela nasceu, o rei Iasos, que precisava de um filho varão, foi aconselhado pelo oráculo a abandoná-la. O servo que recebeu a incumbência se apiedou da criança e a depôs no interior de uma caverna, implorando a Artêmis que tomasse conta da pequenina.

O auxílio da deusa veio na figura de uma ursa que acabava de perder os filhotes; ao voltar para a caverna, encontrou a bebezinha chorando e começou a amamentá-la carinhosamente. Meses depois, um caçador das redondezas, percebendo o que se passava, aproveitou-se de um descuido do animal e levou a menina para sua casa, dando-lhe o nome de Atalanta.

O caçador morreu alguns anos depois, e Atalanta cresceu triste e sozinha. O tempo a transformou numa bela mulher, que vivia sob o sol da Arcádia, correndo pelos montes e pelos campos armada de arco e de lança, exatamente como Artêmis, sua deusa protetora – e, como ela, vestida apenas com uma túnica muito curta, presa num só ombro, que deixava livres os seus movimentos e pouco escondia de seu corpo ágil e flexível.

Os que encontravam a virgem caçadora ficavam enfeitiçados com a sua beleza selvagem, mas o temor de suas armas mantinha todos à distância.

Seu momento de glória ocorreu na grande caçada ao javali da Calidônia. A aventura atraiu jovens heróis de toda a Grécia, fascinados pela chance de conquistar honra e renome. Quando o javali investiu sobre eles, vários o atingiram com suas lanças, mas só depois de Atalanta ter ferido profundamente o dorso do animal com uma de suas flechas. Dela tinha sido o primeiro sangue e, por isso, coube a ela o troféu tão desejado.

Ao saber da façanha, Iaso chamou-a à sua presença e quis saber de onde ela provinha. Os indícios eram eloquentes, e o rei, exultante, reconheceu na heroína a filha que julgava perdida; abraçando-a, lamentou ter-lhe faltado, quando ela nasceu, a coragem de desobedecer à recomendação do oráculo. Ela também o abraçou.

Não ia exigir que o pai agora lhe desse o que não pudera dar a ela vinte anos atrás. Iam começar do zero e tratar de ser felizes. Atalanta antecipava, assim, o que Epíteto viria a escrever: a pessoa comum culpa o outro por tudo o lhe que sai errado; o noviço em filosofia culpa sempre a si mesmo; o sábio, sempre tão raro, não culpa nem um, nem outro.

domingo, 2 de outubro de 2011


FERREIRA GULLAR

À toa na tarde

Quando se depara com um sábado vazio, entra em depressão e tudo o que pode fazer é sair andando

Os sábados e os domingos são os seus piores dias, a não ser quando alguém o convida para um almoço ou uma visita a algum museu.

Ele mesmo não toma nunca a iniciativa; se não o convidam, fica só e deprimido. De ficar só, já se havia habituado, mas deprimido não; é novidade de uns tempos para cá.

Chegou a consultar um médico que, depois de ouvi-lo, o aconselhou a não tomar remédio nenhum, pois no seu caso de nada adiantaria e deixaria sequelas.

Assim que, quando se depara com um sábado vazio, entra em depressão e tudo o que pode fazer é sair andando pela rua, a passos lentos, sem rumo.

Desta vez escolheu o calçadão da avenida Atlântica, já que não fazia frio e a tarde estava iluminada. Foi até o escritório, pegou as chaves, calçou os sapatos e vestiu o casaco azul, leve, que costumava usar.

Ao vesti-lo, hesitou um instante, talvez fosse sentir calor. Ainda assim, friorento como era, vestiu o casaco, pôs o chaveiro no bolso e se encaminhou para a saída.

Mas, como o telefone soou na sala, voltou para atendê-lo, já tomado pela esperança de que alguém ia convidá-lo para ir a um bar talvez. Era engano. E já que pensava num passeio demorado que preenchesse boa parte daquela tarde vazia, decidiu ir ao banheiro fazer xixi. Urinou, lavou as mãos na pia e finalmente tomou o rumo da rua.

Apenas, antes de sair, certificou-se de que as chaves do apartamento estavam no bolso. Bateu a porta, tomou o elevador e finalmente chegou à rua. Tomou a direção da praia.

Mal atravessou a avenida Nossa Senhora de Copacabana, começou a soprar um vento que se foi intensificando à medida que andava. Ao descortinar a paisagem da praia, sentiu-se animado. E fez uma reflexão, especialmente ao reparar nas nuvens leves e brancas sobre o céu azul. "É tolice pensar que o mundo pode acabar de repente."

Nos últimos meses, sem nenhuma explicação, teme que uma catástrofe cósmica ponha fim a tudo. Então, se perguntava, que sentido tem a vida. Mas agora sorria reconciliado com a existência ao perceber que aquele céu azul e aquelas nuvens leves eram eternos.

Foi, portanto, sorrindo, que cruzou as pistas da avenida Atlântica e chegou ao calçadão, por onde iam e vinham banhistas de calção e biquínis, turistas de bermudas e bonés, idosos e idosas fazendo cooper.

O mar estava agitado e o vento era agora quase uma ventania, que fazia farfalhar os coqueiros, ali, junto ao calçadão. Abotoou o casaco para se proteger da ventania.

Na areia, grupos de rapazes jogavam futebol. Eram times, com técnico, torcida e camisa própria. Deteve-se um instante para apreciar o jogo, que foi interrompido por uma discussão. Parecia questão de vida e morte. Como não tinha nada a ver com aquilo, seguiu em frente, sem pressa nem ansiedade.

Daí a pouco estava à altura da avenida Prado Júnior, onde morou uma amiga, que costumava receber os amigos para jantar e bater papo. Como essa lembrança o entristeceu, tratou de livrar-se dela e voltou-se para o mar, cujas ondas furiosas avançavam sobre a areia, lá longe, sem barulho.

Logo chegou ao final do Leme e sentou-se num dos bancos da praça para descansar, antes de tomar o caminho de volta. Ali ficou por algum tempo, vendo as crianças que brincavam e os carros que passavam. Via e não pensava em nada.

No mesmo passo lento, fez o caminho de volta. O porteiro abriu-lhe a porta do prédio e ele tomou o elevador, mas, ao chegar à porta do apartamento, procurou o molho de chaves e não o encontrou.

E agora, como vou entrar em casa? Lembrou-se de que mantinha escondida uma chave junto à entrada de serviço, mas se lembrou de que a tirara de lá.

Voltou à portaria, o porteiro o aconselhou a ir até a esquina chamar o cara que faz cópias de chaves e conserta fechaduras. Ele correu até lá, mas sábado o homem não trabalha.

Teria então que arrombar a porta do apartamento. Mas como?

Foi aí que se perguntou onde teria perdido as chaves. No caminho não foi. Só pode ter sido quando sentara no banco da praça, o bolso do casaco era raso. Mas andar de novo até lá, isso nunca.

E se eu for em meu carro? Foi. Estacionou, caminhou até o banco e as chaves estavam lá, no chão de areia. Juntou-as, só faltou beijá-las.

E passou o resto do sábado, feliz como se alguém o tivesse chamado para um almoço ou algum passeio.

sábado, 1 de outubro de 2011



02 de outubro de 2011 | N° 16844
MARTHA MEDEIROS


Carla bruni e o rock’n’roll

Carla Bruni, ex-top model, cantora, compositora e atual primeira dama da França, declarou em entrevista, dia desses, que seu casamento com o presidente Nicolas Sarkozy foi muito rocknroll, usando uma expressão pouco usual para definir um relacionamento. Geralmente, as relações amorosas estão mais para tango argentino.

A comparação com o rock veio do fato de ela, que sempre teve uma vida agitada, independente e fora dos padrões, ter se atrevido a um envolvimento formal com um chefe de Estado, cuja convivência exige o cumprimento de protocolos bem convencionais.

E a recíproca é verdadeira, pois não são muitos os mandatários de uma nação que se divorciam e depois se casam com uma artista que já é mãe e que tem no currículo namorados como Eric Clapton e Mick Jagger. Às favas com o bom-mocismo, o casal bancou o arranjo inusitado e parece levar muito bem sua relação.

O conceito “rock’n’roll”, ao menos da forma como foi utilizado por Carla Bruni, nada tem a ver com noitadas, bebedeiras e drogas. Diz ela que sua rotina com o marido é bastante tranquila e discreta, e o que a fez se apaixonar por Sarkozy foi a descoberta de que ele, um dos homens mais poderosos do mundo, era um dedicado amante da jardinagem. Como se explica esse bolero em lugar do heavy metal?

Por muito tempo, o rock sobreviveu de sua má fama. O músico Frank Zappa certa vez disse que um repórter de rock é um jornalista que não sabe escrever, entrevistando gente que não sabe falar, para pessoas que não sabem ler. Ajudou a colocar uma laje sobre qualquer sofisticação que o rock viesse a almejar – ainda bem que o rock nunca teve essa pretensão, mas teve outras e parece que as realizou.

O rock’n’roll deixou de ser apenas um gênero de música. Dizer que ele simboliza atitude virou um clichê intragável, mas foi o que Carla Bruni tentou exprimir com sua declaração, só que sob um enfoque ampliado.

A rebeldia do rock nada mais tem a ver com cortes de cabelo, modos de vestir ou hábitos ilícitos, e sim com o que lhe amparou os primeiros passos, lá atrás, nos tempos de Chuck Berry e Elvis Presley: a liberdade de fazer o que se quer, a despeito do que os outros vão pensar. Criar música não só para a alma, mas para o corpo. Provocar reações físicas, despertar os ânimos, desafiar o silêncio. Acordar.

Não é preciso guitarras para fazer barulho. As pessoas mais roqueiras que conheço são apreciadoras de jazz, bossa nova e música clássica. Um casamento rock’n’roll nada mais é do que um compromisso entre um homem e uma mulher com facilidade em aceitar mudanças, coragem para sair das zonas de conforto, capacidade de surpreender e autoconfiança para ser quem verdadeiramente são, estejam no palco em que estiverem.

É por isso que o rock, até então um substantivo que designava um estilo musical, expandiu-se. Analisado como postura de vida, foi promovido a adjetivo.